You are on page 1of 26
Estudos culturais, educacao e pedagogia Marisa Vorraber Costa Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pés-Graduacio em Educagio Universidade Luterana do Brasil, Programa de Pés-Craduacio em Fducaco Rosa Hessel Silveira Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pés-Graduacio em Educacio Universidade Luterana do Brasil, Programa de Pos-Graduacso em Educagio Luis Henrique Sommer Centro Universiti Feevale, RS Universidade Luterana do Bras, Faculdade de Educagio Os estudos culturais: uma introdugao O que é, afinal, Estudos Culturais? Esta frase € outras similares intitulam, no Brasil e em muitos pai- ses, alguns livros e artigos! cujo objetivo tem sido definir os contomos da movimentagao intelectual que surge no panorama politico do pés-guerra, na Ingla- terra, nos meados do século XX, provocando uma grande reviravolta na teoria cultural. Se continuar- ‘mos a percorrer as publicagées, perceberemos, en- tre os textos mais disseminados, que as preocupa- ‘Ges se concentram em problematizagdes da cultura, agora entendida em um espectro mais amplo de pos- sibilidades no qual despontam os dominios do po- ular. Alids, a revolugdo copernicana operada pelos Estudos Culturais na teoria cultural concentrou-se neste terreno escorregadio e civado de pr sonceitos, em que se cruzam duas nogdes ou concepgdes ex- * citamos como exemplos: John Storey (1997); Cary Nel son; Pela Treichler, Lawrence Grossberg (1992); Richard Jobson (198671987); Tomaz Tadeu Silva (19996). a6 tremamente complexas ¢ matizadas como cultura © popular? Cultura transmutaese de um conceito impreg- nado de distingdo, hierarquia e elitismos segrega- cionistas para um outro eixo de significados em que se abre um amplo leque de sentidos cambiantes © verséteis. Cultura deixa, gradativamente, de ser do- minio exclusivo da erudigao, da tradigao literdria © artistica, de padrdes estéticos elitizados © passa a contemplar, também, o gosto das multiddes. Em sua flexio plural — culturas — ¢ adjetivado, 0 conceito incorpora novas ¢ diferentes possibilidades de sen- tido. f assim que podemos nos referir, por exemplo, 2 cultura de massa, tipico produto da industria eul- tural ou da sociedade techno contemporinea, bem como as culturas juvenis, & cultura surda, cultura, empresarial, ou as culturas indigenas, expressando Ver, a este respeito capitulo 1 do livro Estudos cultura cm educagdo, orgenizado por Marise Vorraber Costa (2000), ¢ também o artigo Cultura, culturas ¢ educago, de Aledo Veiga- Neto, neste nimero da Revista Brasileira de Kiducagao, MaiojlunuAgo 2003 N° 23 Estudos ultras, educagio e pedagogia a diversificagio © a singularizagdo que 0 conceito comporta. Ao par disso, o termo popular também é objeto de uma vicejante polissemia, Do popular ao pop,” ‘nomeiam-se movimentagdes das mais vatiadas gamas. Popular tanto pode indicar breguice, gostos e condu- tas comuns do povo, entendido como a numerosa par- cela mais simples e menos aquinhoada da populagio, quanto, na nomenclatura politica das esquerdas, ex- pressar o fetiche do mundo intelectual politicamente engajado ou mesmo as ctuzadas contempordneas em, tomo do politicamente correto, Nesta oscilagao cam- biante do significado, popular © pop comportam gradagdes que, com freqiiéncia, apontam para distin- «Ges entre 0 que é popularesco, rebuscado, kitsch ¢ 0 que é sofisticado, despojado, minimalista. Como se percebe, as palavras tém histéria, vibram, vivem, pro- duzem sentidos, ao mesmo tempo em que vo incor porando nuangas, flexionadas nas arenas politicas em que o significado & negociado e renegociado, perma- nentemente, em lutas que se travam no campo do sim- bélico ¢ do discursive, (0s Estudos Culturais (EC) vao surgir em meio 4s movimentages de certos grupos sociais que bus- cam se apropriar de instrumentais, de ferramentas conceituais, de saberes que emergem de suas leituras do mundo, repudiando aqueles que se interpdem, a0 longo dos séculos, aos anseios por uma cultura pau- tada por oportunidades democraticas, assentada na ceducagdo de livre acesso, Uma educagdo em que as pes- soas comuns, © povo, pudessem ter seus saberes valori- zados e seus interesses contemplados. O projeto ini- cial dos Estudos Culturais briténicos' era “um projeto de pensar as implicagdes da extensio do termo ‘cul- tura’ para que inclua atividades e significados das pessoas comuns, esses coletivos excluidos da partici- > Hi breve erica de Juremir Machado da Silva sobre esse ‘pico 2008), “Essa movimentago no campo da teora cultural € fata. ‘mente documentada no que se refere as suas manifestagdes na Inglaterra, sendo amplamente difundido ¢ reconhecido que este Revista Brasileira de Educacio pagio na cultura quando é a definigao clitista que a governa” (Barker & Beezer, 1994, p. 12) Desde seu surgimento, os EC configuram espa- G08 alternativos de atuagdo para fazer frente ds tradi- odes elitistas que persistem exaltando uma distingdo hierarquica entre alta cultura e cultura de massa, en- tre cultura burguesa e cultura operdria, entre cultura erudita © cultura popular. Nessa disposigao hierér- quica, a0 primeiro termo corresponderia sempre a cultura, entendida como a maxima expresso do es- pirito humano; segundo a tradigo arnoldiana,® “o melhor que se pensou ¢ disse no mundo”. Ao segun- do termo corresponderiam as foutras] culturas, adje- tivadas e singulares, expressio de manifestagdes su- postamente menores ¢ sem relevancia no cenario elitista dos séculos XVIII, XIX ¢ XX. Harmonia ¢ beleza eram pretrogativas da cultura, que deveria ser cultivada para fazer frente & barbarie dos grupos po- pulares, cuja vida se caracterizaria pela indigéncia estética e pela desordem social e politica. S6 a har- monia suscitada pela “verdadeira cultura” poderia pals teria sido o ergo dos EC. Contudo, acess literatura mais recent, em linguas que no a inglesa (por exemplo Mato, 2001; Martin-Barbero, 1997), parece sugerir que tal revravolts nos estudos da cultura teria ovortido, quase simultaneamente, tam bbém em outros paises curopeus,asticos ¢ latino-amerieanos, &x- pressando um certo “estado das discussBes sobre cultura que vai se instaurar em varios locais do mundo, num tempo de grandes reviravltas na organiza do capitalismo, produzidas, om gran- de parte, pelos avangos nas tecnologias da informagdoe da comu- nicagdo, as quis, usando a expresso do filésofo italiana Gianni Vattimo (1991), estariam deixando as sociedades“trasparentes” © favoreeendo a inscrgfio de outros grupos e sueitos coletivos no ‘mapa cultural e politico do século XX, Vora esse respeto a segd0 do prese e texto que aborda o¢ EC na América Latina * Todas as wadugdes de originais em espanhol e em inglés so dos autores deste antigo. * Expresso que faz referéncia a Mathew Amold, autor de Culture and anarchy webrico principal de wma tadigio de and se da cultura fortemente mareada por posigles elitists e hierdt= quicas apaziguar os énimos, aplacar a ignordncia e suprimir a anarquia da classe trabalhadora parcamente instruida, A tradigio amoldiana teve defensores arraiga- dos no século XX, que pretenderam fazer frente a0 suposto declinio cultural, & padronizagao da cultura a0 nivelamento por baixo prognosticado por Amold muitas décadas antes. Diante do risco do “irremedié vel caos” que representariam os “temiveis avangos da cultura de massa”, chegou a ser publicado um ‘manifesto propondo introduzir nos curriculos escola- res um treinamento de resisténcia a cultura de massa, qualificada como uma cultura comercial consumida por uma maioria ignorante e inculta, Contra isso, pre- tendiam criar postos avangados em escolas ¢ univer sidades, nas quais grupos seletos de intelectuais atua- iam como “missionérios” em defesa da “verdadeira cultura!” B, entdo, a essa concepeio elitista — em que cultura é um certo “estado cultivado do espirito”, que estaria em oposigdo “ad exterioridade da civilizagao” — que os BC vio se contrapor?” s trabalhos precursores dos EC, apesar de no serem univocos em suas perspectivas de problemati- zagio, estio unidos por uma abordagem cuja énfase ai sobre a importincia de se analisar o conjunto da produgdo cultural de uma sociedade ~ seus diferentes textos! e suas priticas — para entender os padres de comportamento ¢ @ constelago de idéias comparti- Thadas por homens e mulheres que nela vivem. Em, seus desdobramentos, os EC investem intensamente nas discuss seu significado politico. John Frow e Meaghan Morris (1997), autor e au- es sobre a cultura, colocando a tora australianos, referem-se d cultura “no como uma 7 Ver a esse respeito o capitulo I do liv Estudos eulturais em educacdo: midi arquitetura, bringuedo, biologia, literatura, cinema... orpanizad por Marisa Vorraber Costa (2000), Aqui apalavra textos no faz eferéncia apenas as expres- ses da culluralerada, mas «todas as produgSes culturis que catregam produzem signiticados, Um filme, um quadro, uma foto, um mapa, um trae, uma pega publicitria ou de artsanato podem ser considerados textos cultura a8 Marisa Vorraber Costa, Rosa Hessel Silveira ¢ Luis Henrique Sommer expresso orginica de uma comunidade, nem como uma esfera auténoma de formas estéticas, mas como ‘um contestado e conflituoso conjunto de priticas de representacdo ligadas ao proceso de composigao recomposigo dos grupos sociais”(p. 345). Porsua vez, Stuart Hall (1997a e 1997) diz que na dtica dos EC as, sociedades capitalistas so lugares da desigualdade no que se refere a ethia, sexo, geragdes e classes, sen- do a cultura o locus central em que sio estabelecidas & contestadas tais distingSes. & na esfera cultural que se daa luta pela significagao, na qual os grupos subordi- nados procuram fazer frente & imposigio de significa- dos que sustentam os interesses dos grupos mais po- derosos, Nesse sentido, os textos culturais sd0 0 préprio local onde o significado & negociado e fixado, Analistas contemporaneos da cultura chamam a atengo para a ocorréncia de uma “revolugdo cultu- ral”, a0 longo do século XX, na qual os dominios do que costumamos designar como cultura se expandi- ram ¢ diversificaram de uma forma jamais imagina- da. A cultura nao pode mais ser concebida como acu- mulagdo de saberes ou processo estético, intelectual ou espiritual. A cultura precisa ser estudada e com- preendida tendo-se em conta a enorme expansio de tudo que esté associado a ela, ¢ 0 papel constitutive que assumiu em todos os aspectos da vida social, Essa centratidade da cultura — ressaltada, entre tantos pen- sadores, por Stuart Hall, Fredric Jameson, Néstor Canclini, Beatriz. Sarlo, David Harvey — tem uma di- mensio epistemolégica, que vem sendo denominada “virada cultural”, referindo-se a esse poder instituidor de que sto dotados os discursos circulantes no circui- to da cultura, Um noticiério de televisio, as imagens, stificos etc. de um livro didético ou as misicas de uum grupo de rock, por exemplo, nao so apenas ma- nifestagdes culturais. Eles so artefatos produtivos, sio priticas de representagao, inventam sentidos que circulam e operam nas arenas culturais onde o signi- ficado & negociado ¢ as hicrarquias so estabeleci- das. Para Hall (19976), [.-]e cultura € agora um dos elementos mais dinimicos —e mais imprevistveis ~ da mudanga histirica do novo milé- Malejunju/Ago 2003 N° 23 Estudos culturas, educagio e pedagogia rio. Nao devemos nos surprecnder, enti, que as lutas pelo poder deivem de tr uma forma simplesmente fica eeom- pulsiva para serem cada vez mais simbélicase discursvas, «que o poder em si assuma, progressivament, forma de ‘uma politica cultural. (p. 20) Haveria duas importantes determinantes hist6- ricas para a emergéncia e o desenvolvimento dos EC (Schwarz, 2000, p. 48-49). A primeira seria a reorga- nizagio de todo smpo das relagdes culturais em decorréncia do impacto do capitalismo no surgimen- to de novas formas culturais ~ TV, publicidade, mi sica rock, jomais ¢ revistas de grande tiragem ¢ cir- culagio — que levam a dissolugdo 0 campo de forgas do poder cultural das elites. A segunda teria sido 0 colapso do império briténico, cujo mapa territorial do poder diminui significativamente apés a guerra contra 0 Egito em 1956, revirando o imaginirio so- cial da Inglaterra. Nessa experiéneia comum do fim do Império, a migragdo dos colonizados para sua “casa imaginada’”—a Inglaterra — coloca em primei- ro plano as preocupagdes politicas com as questies coloniais, sendo que alguns dos intelectu: s que ct tribuiram para esse redirecionamento das discussdes culturais foram formados na tradigdo britdnica fora da prépria Inglaterra. Surge uma nova geragdo inte- © criti lectual com novos posicionamentos, id s. Para Schwarz (2000), os Cultural Studies, na Ingla- terra, foram uma “resposta directa a larga renarrati- vizagdo da Inglaterra” (p. 49). Sua leitura vai mais adiante, contestando uma certa visio que coloca es- ses estudos como algo autéctone, que teria emergido de uma matriz centralizadora britinica. De fato, diz ele, muitos dos lideres intelectuais deste projeto eram, periféricos a esta matriz. * Bate € © caso, por exemplo, de Stuart Hall amaicane), Gayatsi Spivak (indiana), Edward Said(palestinonaseido em Jeru- salem que vive no eixo Inglaterra e Estados Unidos). Schwarz (2000, .57) mesciona a afirmagio de Hall de que no seu agrupamento de socialists, em Oxford, de onde surgiu a Nova Esquerdae grande mpulso par os Cultural Studies, no havia um dio inglés Revita Brasileira de Educacio Assim, a queda dos impérios coloniais ¢ os no- vos contornos da cultura no capitalismo teriam, marcado acentuadamente o surgimento destas movi- mentagdes na teoria cultural. O mais antigo movi- mento dos estudos culturais teria surgido de uma va- riante paroquial e provinciana. As obras The uses of literacy (Richard Hoggart, 1957), Culture and Society (Raymond Williams, 1958), The long revolution (Williams, 1961) e The making of the english working class (E. P, Thompson, 1963) foram todas anteriores a disseminagao da eletricidade como principal forma, de energia e a conseqiiente popularizagao de aparatos tecnolégicos que iriam transformar radicalmente 0 acesso a informagdo e a comunicagdo, Hoggart s6 te- ria adquirido um aparetho de televisio apés ter publi- cado The uses of literacy (Schwarz, 2000). Mesmo nesta fase, ndo se pode dizer que os EC estavam_ centrados em tomo dos mesmos propésitos, projetos tedricos e politicos ou perspectivas analiticas. De fato, eles teriam sido uma tentativa de reordenar as con- cepgdes de classe e cultura, focalizando-as no simbé- lico € no vivido ¢ tentando associar as culturas vivas ao poder. Muitas foram as incorporagdes em termos de formas de estudo e perspectivas tedricas, inclusive com repercussdes no marxismo, passando as relagdes de classe a serem vistas como constituidas dentro fora do local de trabalho, na cultura, A questo do poder foi remetida para 0 centro das discussdes; se ele ndo estava nas estruturas do capital, precisava ser problematizado na linguagem, no simbélico, no inconsciente. Todo esse ecletismo resultou provei- ‘t0s0, remexeu as tradigdes intelectuais e permitiu que novos desafios fossem formulados e enfrentados (Schwarz, 2000). Os Estudos Culturais nao constituem um con- junto articulado de idéias © pensamento. Como di= zem seus cronistas mais contundentes, eles so © sempre foram um conjunto de formagées instiveis e descentradas, Hé tantos itinerarios de pesquisa ¢ 130 diferentes posigdes tebricas que eles poderiam ser des- critos como um tumulto teérico. Para Stuart Hall — uma de suas figuras mais proeminentes e um dos mais conhecidos analistas contemporaneos da cul- 39 tura— os Estudos Culturais se constituiram como um, projeto politico de oposigao, € suas movimentagdes “sempre foram acompanhadas de transtorno, discus- si, ansiedades instiveis ¢ um si all, 1996, p. 263). ncio inquietante” Uma teoria viajante - temas, tensoes, problemas e aproximacoes Foi Heloisa Buarque de Holanda" quem usou a expressio teoria viajante para referit-se aos Estudos, Culturais, atribuindo-thes um certo ethos, uma voca- do para transitar por variados universos simbélicos € culturais, por varios campos tematicos e teorias, encontrando portos de ancoragem onde se deixam fi- car e comegam a produzir novas problematizagdes. Os Estudos Culturais no pretendem ser uma disci- plina aca nos nitidamente delineados, um campo de produgio de discursos com fronteiras balizadas. Ao contrario, jica no sentido tradicional, com contor- (© que os tem caracterizado & serem um conjunto de abordagens, problematizagdes ¢ reflexdes situadas na confluéncia de varios campos ja estabelecidos, é bus- carem inspiragdo em diferentes teorias, é romperem, certas légicas cristalizadas e hibridizarem concepgies consagradas, Os Estudos Culturais disseminaram-se nas artes, nas humanidades, nas ciéncias sociais e inclusive nas; cigneias naturais € na tecnologia. Eles prosseguem ancorando nos mais variados campos, ¢ tém se apro- ptiado de teorias e metodologias da antropologia, psi- cologia, lingiistica, teoria da arte, critica literdria, fi- osofia, ciéncia politica, musicologia... Suas pesquisas utilizam-se da etnografia, da anise textual e do dis- curso, da psicandlise e de tantos outros caminhos; investigativos que sdo inventados para poder compor seus objetos de estudo e corresponder a seus propési- tos. Eles percorrem disciplinas e metodologias para asada no texto A academia entre o local eo © A expres slobel,publicado em Z— Revista Bletrénica do PAC ponivel em: Marisa Vorraber Costa, Rosa Hessel Silveira ¢ Luis Henrique Sommer dar conta de suas preocupagées, motivagées ¢ inte- resses teéricos e politicos. As contribuigSes de importantes pensadores so- ciais dos meados do século XX, como Louis Althusser € Antonio Gramsci, juntamente com as anélises cultu- rais de Raymond Williams, Richard Hoggart, Edward P. Thompson e Stuart Hall, ligados as movimentagies iniciais da Nova Esquerda, ajudaram a forjar a pri- meira linhagem de andlises culturais contempordneas identificadas como Cultural Studies. Hall (1996) re lata associagdes dos EC com o surgimento da primei- ra Nova Esquerda britinica, num momento de desin- tegragdo de um certo tipo de marxismo, aquele que se desmantelava diante da visio dos tanques soviéticos invadindo Budapest, em 1956, e transformando em 3s um projeto histérico-politico, Boa parte daque= les que participaram do surgimento da Nova Esquer- da pretendiam juntar estes fragmentos para recompor a agenda do marxismo como projeto politico ¢ traba- Ihar relativamente aquelas questdes que ainda impor- tavam e que poderiam significar contribuigdes impor- tantes a um projeto como o dos EC. Assim, diz Hall (idem, p. 265), trabalhava-se o marxismo, trabalhando contra ele e com ele para tentar desenvolvé-lo, Como concordam varios autores (Angela McRobbie, Cary Nelson, Lawrence Grossberg, Paula Treichler, Richard Johnson, Stuart Halle outros/as), os Estudos Culturais de origem britinica tém sido um ter reno conturbado de discussdes e desencontros, Sardar e Van Loon (1998, p. 52) apresentam um apanhado das criticas, que contestam seu paroquialismo e anglocen- trismo, sua énfase nas questdes de classe (em sua fase inicial), em detrimento de raga e género, ¢ sua aborda- gem preferencial das expresses urbanas metropolita- nas e dos rituais das assim chamadas subculturas. Os EC teriam erigido a cultura popular britanica como modelar, compartilhando, mais uma vez, uma nogdo de arte particularmente eurocéntrica em que sio cele- bbradas as formas de arte popular britinicas. Apesar de seu propalado discurso em defesa dos excluidos ¢ mar- ginalizados, so acusados de manterem-se enredados, numa tradigo que persiste ligada a supremacia da cul- tura e da civilizagdo ocidental. Além disso, apesar de Malejunju/Ago 2003 N° 23 Estudos ultras, educagio e pedagoia se ocuparem de questdes da classe trabalhadora, das mulheres, dos negtos e outras minorias, eram presun- ‘gosa e exclusivamente homens brancos de classe mé- dia que militavam nesse empreendimento inicial Este criticismo permite situar alguns impasses na constituigo do que é identificado por Hall (1996) como 0 legado tedrico dos estudos culturais." De acordo com a visio deste pesquisador, expressa no trabalho mencionado, nao se trata de comentar o éxi- to ou a utilidade dos distintos posicionamentos teéri- cos, ¢ sim, de discutir questies que dizem respeito ao relacionamento entre teoria e politica, Os EC podem, ser tomados como uma formagao discursiva no senti- do foucaultiano, Eles “abaream discursos miltiplos, bem como mumerosas hist6rias distintas, Compreen- dem um conjunto inteiro de formagdes, com as suas diferentes conjunturas ¢ momentos no passado. [...] foram construidos por metodologias e posicionamen= tos tebricos diferentes, todos confrontando-se entre si? (p. 263). Para Hall, os embates dentro dos EC fo- ram cruciais para testé-los nas arenas culturais de um ‘mundo modemo que se esvai e de novas ordens que se instalam. ‘As aproximagGes iniciais com uma pratica critic ca marxista demonstraram, desde o inicio, argumenta Hall (idem), os desencaixes, pois era evidente sua in- suficiéncia para dar conta de questdes que eram obje- to privilegiado dos EC, como cultura, ideologia, a lin- guagem e o simbélico. Além disso, a ortodoxia, 0 cardter doutrindrio, 0 determinismo, 0 reducionismo, a imutivel lei da histéria, o estatuto de metanarrativa € um inequivoco eurocentrismo seriam também in- congruentes com boa parte do que ja se pensava e pretendia naquele momento (décadas de 1950 ¢ 1960). Envolver-se com o marxismo significou mergulhar em um problema. A uma certa altura, 0 que se fez no Centro de Estudos Culturais Contempordneos de "Uma versdo em portugués dost texto esté publicada na Revista de Comunicagao e Linguagens, do Centro de Estudos de ‘Comunicagdo ¢ Linguagens da Universidade Nova de Lio. Revista Brasileira de Educacio Birmingham, durante cinco ou seis anos, foi estudar tradigdes de pensamento que teriam contribuido para forjar o marxismo com o objetivo de procurar supe- rar os limites que ele impunha. Quando o proprio Hall se aproximou da obra de Gramsci, isto teria se dado zna medida em que o pensador italiano procurava saf- das aquilo que a teoria marxista ndo respondia. E, nesse sentido, Hall ndo deixa de destacar © quanto a contribuigo de Gramsci foi importante no que diz, respeito & discussdo de algumas questdes que interes- sam ao estudo da cultura, despontando, entre elas, a extremamente produtiva metafora da hegemonia. (Hall, 1996, p. 267). Sob a dtica de Johnson (1999), apesar da eritica ao velho marxismo ter sido uma constante, tanto nas vertentes literdrias quanto nas vertentes historicas dos, EC, ha inegaveis contribuigdes: A primeira € que os processos culturais esto intima- rmente vineulados com as relagdes sociais, especialmente ‘com as relagSes e as formagSes de classe, com as divisdes sexuais, com a estrituragdo racial das relagBes sociais © ‘com as opressBes de dade, A segunda € que cultura enval- ve poder, contribuindo para produzirassimetras nas capa idades dos individuos e dos grupos scisis para definir& satistazer suas necessidades Ea torecita, que se deduz das ‘otras dus, é que a cultura no 6um campo auténomo nem externamente determinado, mas local de diferengas de ltas socinis.(p. 13) Com esta afirmagao, Johnson recupera a impor- ‘tancia das contribuig do marxismo, concordando com Hall, em que os elementos do marxismo, embo- ra vivos ¢ valiosos, precisam ser constantemente cti- ticados, retrabalhados ¢ testados em estudos detalha- dos. E ¢ isto que acontece até os nossos dias. ® Trata-se do Center for Contemporary Cultural Studies, sediado na Escola de Birmingham, na Inglaterra, onde os Estudos ultras teriam emergido, na deada de 1960, como prética inte- lectualinsitcionalizada, ‘Outro embate importante nos EC diz respeito aos ataques advindos do movimento feminista e das lutas contra o racismo (Hall, 1996; Johnson, 1999). Essa expresso ~ ataque — caracteriza 0 sentido e os con- tomos dessa movimentagdo relativamente aos EC na década de 1970. Segundo Hall (1996, p. 269), 0 do poder tomnou-se evidente quando, em virtude do expressivo crescimento ¢ importincia do movimento iter sexuado feminista no cenario dos anos de 1960 ¢ 1970, o gru- po masculino majoritério do Centro de Birmingham, pensava que estava na hora de incorporar um bom, trabalho feminista nos EC. Contudo, as mulheres invadiram © campo dos EC de forma intempestiva, repudiando qualquer promogo masculina relativa- mente ao seu ingresso. Isto, diz Hall, foi uma expe- rigncia inusitada, inesperada e radicalmente diferen- te, que o confrontava com a materialidade da nogio foucaultiana de saber-poder. Em vez da plancjada desisténcia do poder, os homens “transformados” e bonzinhos que abriam as portas as mulheres esta- vam sendo silenciados, tomados de assalto, contes- tados ruidosamente, além de expostos em suas liga- Ges inequivocas com o arraigado poder patriarcal Desde entio, a critica feminista nos EC tem produzi- do patte significativa das andlises culturais que afe- tam os modos como as mulheres vém ocupando pagos e sendo reposicionadas nas politicas culturais." No que diz respeito & questio racial, as lutas in- temas nos EC nio foram diferentes. Os estudos, hoje umerosos e vicejantes, sobre questdes criticas de raga e racismo, sio resultantes de um longo, amargo ¢ con- testado combate intemo contra um siléncio retumbante A manifestagio mais contun lente desta revolugdo femi- nista dento dos EC, tera sido publicagio Women take issue, que em inglés € um trocadilho lingustco de duplo sentido. Significa tanto © nimero ou edigdo de ums publicapio, indieando, neste «aso, que as mulheres se apossaram éa publicagio da revista do (Centro de Birmingham, como também take issue quer dizer dis- cordar, referindo-se, assim, ao fato de que a intelectusis feminis- tas introduziram suas vores discordantes tos EC (Hall, 1996) 2 Marisa Vorraber Costa, Rosa Hessel Silveira ¢ Luis Henrique Sommer € prolongado em tomo desse ponto. Para Hall (1996), isto pode ser melhor compreendido se situado numa conjuntura arraigadamente briténica, e a retardada saida deste impasse tem conexdes com as renhidas lutas da Nova Esquerda e suas discordincias com 0 marxismo. Aqueles que se empenharam em produzir estudos voltados para esta questdo enfrentaram imensa_ dificuldade para ctiar o espago tedrico e politico ne- cessirio ao desenvolvimento desse projeto."* Outro campo polémico, em ebuligdo desde os pri- mérdios dos EC, & aquele constituido pelo que tem sido criticamente denominado de ortodoxia teérica do textualismo. Hall (1996) ressalta as repercussdes da virada lingiistica para os EC, com suas conseqtientes énfases nas nogdes de discurso e texto, tomados agora em seu caréter produtivo ¢ consttutivo da experiéneia cotidiana, das visdes de mundo e das identidades. Se- gundo ele, também em relagio a este tépico travou-se uma luta intema nos EC britinicos, cujos desdobra- rmentos certamente legaram um saldo positivo tanto em termos de debates teéricos ¢ compreensio da teoria quanto no que diz respeito & produtividade destas no- es nas problematizagées da cultura, O confronto nada, trangiilo entre trabalhos de cunho estruturalista, se- mistico e pés-estruturalista, bem como os embates en- tre estes ¢ as tradigdes de pensamento de varios mati- zzes que inspiravam as andlises do campo, contudo, que se deixe de reconhecer: Jo impedem, ‘A importineia crucial da linguagem ¢ da metifora lingisticn para qualquer estudo da cltur; @expansio da nogio de texto etextuaidade, soja como fonte de signitica- do, seja como aguilo que cide ou adi o significado; © re- conhtecimento da heterogencidade, da multiplicidade dos signifiados, do esforgo envolvido no fechamentoarbitré- to da semiose infinita para além do significado; 0 econhe- “ Os livros Policing the crise: “mugging”, the state and law. and order, oditado por S, Hall, C, Critsher, . Clarke & B, Roberts, em 1978, © The Empire strikes hack, edtado pelo Centro de Birmingham, em 1982, expressam as movimentagdes desta crise intema eujo foco eram as dscussdes sobre rap Malejunju/Ago 2003 N° 23 Estudos cuuras, educagio e pedagogia cimento da textualdade e do poder cultural, da prépria presentagdo, como sitio de poder e de regulamentagio; do simbélico coma fante de identidade. (Hal, 1996, p. 271) Tall argumenta ainda que as conseqiiéncias da virada lingiiistica para os EC far-se-Go sentir ainda por longo tempo, reconfigurando as teorias, por ser preciso, agora, “pensar as questdes da cultura através das metaforas da linguagem e da textualidade” (p. 271). Isso representa um adiamento necessério, um deslo- camento inevitavel, pois hé sempre algo que escapa, descentrado, perdido no meio da cultura, na lingua- ‘gem, nos textos, nos discursos, na signific algo pode ser o elo para localizar uma fonte de poder, aquilo que produz o significado a favor ou contra tal ou qual poli Quando se assume que a cultura opera através das suas textualidades, o grande desafio de um proj to politico como o dos EC, que “tenta desenvolver-se como uma espécie de intervengao teérica coerente (idem, ibidem), & conseguir um registro teérico que dé conta disto, Parece que a saida ¢ aprender a viver ‘em uma tensdo constante, testando permanentemente a vitalidade das teorias em confrontos com as ‘materialidades de suas praticas cotidianas. Viver nes- sa tensio € 0 prego de ndo abdicar de pretensdes in- tervencionistas. A exclusiva pritica intelectual é tran- lila. Atribulada, incerta, instavel e cambiante & a pritica intelectual como politica Tudo isso faz com que seja muito dificil, sendo impossivel, chegar-se a alguma preciso ou consenso relativamente a uma earacterizagi0 dos Estudos Cul- turais. Eles so muit ‘oisas ao mesmo tempo, tensio= nando os panoramas intelectuais e académicos em que esto implicadas tanto as velhas e consagradas discipli- nas como os movimentos politicos, priticas académi- «eas € modos de investigagao tais como marxismo, 0 pés-colonialismo, o feminismo, o pés-estruturalismo. Esse € 0 motivo pelo qual sio freqiientemente descritos como uma antidisciplina ou pés-disciplina, Hall (1996) diz que, apesar de o projeto dos EC caracterizar-se pela abertura, recusar-se tanarrativa ou um metadiscurso, ou consistirnum pro- Revita Brasileira de Educacio Jeto aberto ao desconhecido, a0 inominavel, no se pode reduzi-lo a um pluralismo simplista. De acordo com Sardar ¢ Van Loon (1998), toda esta dificuldade para definir os Estudos Culturais nfo significa que “qualquer coisa pode ser estudos culturais, ou que estudos culturais podem ser qualquer coisa” (p. 9). Ha, segundo estes dois autores, pelo menos cinco pontos distintives dos EC. O primeiro & que seu obje- tivo & mostrar as relagdes entre poder e préticas cul- turais; expor como o poder atua para modelar estas priticas. O segundo & que desenvolve os estudos da cultura de forma a tentar captar e compreender toda a sua complexidade no interior dos contextos sociais © politicos. O terceiro & que neles a cultura sempre tem ‘uma dupla fungao: ela &, ao mesmo tempo, 0 objeto de estudo e 0 local da agdo e da critica politica. O quarto é que os EC tentam expor ¢ reconciliar a divisio do co- nihecimento entre quem conhece e 0 que & conhecido. Eo quinto, finalmente, refere-se a0 compromisso dos ‘EC com uma avaliago moral da sociedade moderna com uma linha radical de ago politica. Os Estudos Culturais na América Latina’® Alasuutari (1999) faz referéncia ao “carisma dos estudos culturais”, que teriam se espalhado por quase todo © mundo, e procura caracterizé-los da seguinte forma: “Eles tém erescido ¢ se expandido nao sim- plesmente através das pessoas que trabalham adotan- do os conceitos da Escola de Birmingham, mas prin- cipalmente porque essas pessoas se identificam com, os EC"(p. 92, grifos nossos). Neste sentido - 0 da identificagdo de sujeitos ¢ grupos de diferentes pai- ses com a atmosfera intelectual e as propostas inves- tigativas dos E condigdes marcantes da pi ~ certamente tém atuado algumas -modernidade, como as * Nesta sept, entenderemos os estudos culturais latino americanos como aqueles que sio desenvelvidos apenas na Amé- rica de lingua espanhols, excluindo-se 0 caso brasileiro, De certa forma, adotando-se uma perspectiva que simboliza 9 miétuo dis- tanciamento em que os dois contextos tm atuado a instabilidades do mundo contemporanco, a desinte- sgtagdo das narrativas mestras que o explicavam, as inimeras rupturas com a ordem estabelecida, a inten- sa conexdo planetiria favorecida pela midia, as no- vas questdes trazidas por inéditas formas de migra- do © desterritorializagio, condigdes as quais os EC parecem corresponder, produzindo encaixes tempo- ratios, porém fecundos. Iniimeros paises tém “ancorado” Et I eistondo se deve, necessariamente, a uma migragdo dos EC britanicos, Parece que as conexdes entre os estudos, que revolucionam a teoria cultural contemporénea podem ser attibuidas, primordialmente, & amplitu- de e abrangéncia destas movimentagdes no cenario de um mundo que se toma transparente, A expres- sio “sociedade transparente”, utilizada por Gianni ‘Vattimo (1991) para atribuir sentido ao pés-moderno, diz respeito ao fato de vivermos em uma sociedade de comunicagdo generalizada, massificada, onde tudo se torna visivel, de variados Angulos e sob inmeras 's. Segundo o autor, o desenvolvimento verti- ginoso das tecnologias da comunicagao e da infor- magdo —jornais, dio, televiso, informatica eafins — estaria associado as crises do colonialismo e do im- perialismo europeu, ¢ teria contribuido radicalmen- te para a dissolugdo de pontos de vista centrais, tor- nado impossivel a manutengdo de uma concep¢i0 de historia como curso unitério em diregao ao pro- Bresso. (Os Estudos Culturais na América Latina tém sido ‘marcados simultaneamente por um grande floresci- ‘mento e uma ndo menos expressiva quantidade de po- "© Numa cartografa dos EC, estes teriam migrado, nos anos e 1980 e 1990, para Ausrlia, Canadé e Estados Unidos, men- cionados como aqueles paises onde hi maior difusdo. Também Franga, Espana, Nova Zelinda, fia e paises do sul da Asia fazem parte deste mapa, A ese respito ver Sardar € Van Loon (1998), Cosa (20000). Ha dscordincas sobre as diepBes € as crgons det fhxo, conform comentamos no presente atgo, Uma cartogrfia dos EC na América Latina € objeto da pesquisa de scosteguy (2001), “4 Marisa Vorraber Costa, Rosa Hessel Sivirae Luis Henrique Sommer lémicas, criticas © negagdes de sua legitimidade, sua relevancia e seu status académico. A existéncia, fa- cilmente comprovavel por incursdes na Internet, de centros universitérios e de pesquisa, e de programas de mestrado € doutorado que focalizam os Estudos Culturais (ou, mais freqiientemente, os Estudios Cul- turales Latinoamericanos) sinaliza tal florescimento, indicando que no Chile, na Argentina, no México, na Colémbia, no Equador, na Venezuela, no Unuguai, por exemplo, ha um conjunto ~ ou mais, ou menos ex- pressivo — de reflexdes, estudos iniciativas institu- cionais que se filiam a esses estudos Mesmo que sua histéria ainda esteja por ser es- crita," conforme assinala Moreiras (2001, p. 355), & possivel, através de um sobrevdo por suas temiticas, caracteristicas ¢ principais questdes, esbogar um qua- dro que nos ajude a ver as formas pelas quais — em, sua especificidade — eles podem ser (e tém sido, como veremos adiante) inspiradores para as reflexdes em. educago no espaco latino-americano. As polémi s iniciam pela circunscrigio do que “pertenceria” aos Estudos Culturais ¢ 0 que no seria especifico do campo, jé por si s6 earacterizado como teéri © metodologicamente instvel. De forma pa- radoxal, os nomes mais constantemente associados aos Estudos Culturais na América Latina ~ Néstor Garcia Canclini, Je: Sarlo ~ nao sdo intelectuais que se reconhegam ali- nhados ou se filiem aos EC de maneira inconteste. Efetivamente, os EC capitalizaram ¢ renomearam es- tudos de “andlise cultural” que se faziam na América 's Martin-Barbero ¢ Beatriz Latina anteriormente, influenciando o seu desenvol- vimento, como afirmam, inclusive, os dois primeiros nomes citados anteriormente, Martin-Barbero, por ® Para um exame dos estudot de comunicagia e cultura na [Améries Latina, fovalizando especiticamente Martin-Barbero, Néstor Garcia Canelini e, como referéncia, St [Escosteguy (2001); para ter acesso a um debate sobre as relagdes entre estudoslteriros e studos culturais na Amerie Latin, den= tro de um quadro mais amplo que envolve pensar questGeshistS- ricas, los6fieas e regionas, ver Moreiras (2001). Malejunu/Ago 2003 N° 23 Estudos culturas, educagio e pedagogia exemplo, declara, em entrevista prestada & revista ele- trdnica Dissens em 1996: ‘io comece! a falar de cultura porque me caegaram coisas de fora, Foi lendo Marti, Arguedas" que eu des- cobri, © com cla os processos de comunicago que se tnha de compreender.[] Nés haviamos feito estos eultrsis io antes de que essa etiqueta aparecesse ‘Também Canelini, conforme Mato (2001, p. 1), teria afirmado que havia comecado a “fazer Estudos, Cutturais” antes de se dar conta de que eles assim se chamavam, NomeagGes parte, & importante assina- lar que a década de 1990 é reconhecida como a déca- da om que ocorreu a explosio dos EC na América Latina, marcada pela realizagdo de pesquisas sobre sumo cultural”, ora utilizando metodologias quantitativas, ora estratégias qualitativas (entrevis ¢ dindmicas de grupo, por exemplo), expandindo-se por meio de estudos e publicagdes de ensaios de maior folego. Cabe registrar, ainda, no que diz respeito aos EC da América Latina, a freqiente utilizagio das ex- pressdes “Teoria cultural” e “andlises culturais”, numa superposigdo que tora dificil falar de fronteiras ¢ li- mites rigidos em relagdo ao que se vem entendendo por Estudos Culturais , poeta, ensasta ¢ jomalista cubano, nascido em 1853 ¢ morto em 1895, € coosiderado o maior her6i ds Ita pela independéncia de Cuba contra 2 Espana ¢ um dos maiores escritores do mundo hispnico. Sua multifacetad experiéneia in- telectal © formagSo educativa permitiram uma movimentagao tesrica nos mais diversos campos, 0 gue o formou uma vox ine ‘Tuente no pensamento latine-americano, José Maria Arguedas, escritor eantropslogo peruano, nas ido em 1911 e morto em 1969, adguiruimportineia como nov lista, tadutore, também, como antropslogo preocupado com as {questdes da cultura andina de origem quéshua, seu conffonto © smestigagem com a cultura peruana urbana de raizes européias Freqhentemente citado pelos autores mas recentes das BC latino- americans, paroce ter sido influéneia marcante no pensemento cultural latino-americano, Revista Brasileira de Educacio Nesse sentido, se hé consenso acerca da explo- sio dos EC na América Latina dos anos de 1990, & necessirio recuar no tempo para rastrear 0 contexto peculiar em que eles foram gestados. Para Rios (2002, p. 247), os EC latino-americanos podem ser defini- dos como “um campo de estudos configurado dentro da tradigdo critica latino-americana’”, ¢, ainda que te- nnham significado uma ruptura epistemolégica com o que antes se fazia, inserem-se em uma importante tra- digdo do ensaio de idéias da América Latina, tradi esta que jé vinha se estabelecendo desde o século XIX. Além disso, ha que se citar a efervescéneia do pano- rama cultural nas décadas mais recentes, em muitos paises latino-americanos, como relembra oportuna~ ‘mente Mato (2001, p. 13), alertando para que niio percamos de vista [.-] a importincia, para o campo dos estudose outraspriti- ‘as em cultura e poder, das conribuigdes de Paulo Frere, ‘Orlando Fals Borda, Antbal Quijano e mumerosos intelee- ‘unis atne-americanos que mantiveram e mantém préticas ‘deatro ¢ fora da academia e que, portant, nie necessaria- rente faze “estado assim come dos diversos movimen- tos teatrais eativistas teatais (os casos de Augusto Boal © ‘Olodum, por exemple), © movimento zapatists no México, ‘0s movimentos ¢ insleetuisindigenas em quase todos os paises da regio (mas particularmente em Chile, Bolivia, Equador, Coldmbia e Guatemala) © movimento feminists, ‘9 movimento dos dizcitos humanos,diversos movimentos de expresses musicas (2 nova cangéo, os rocks crtics, ce), © trabalho de numerosos humoristas (Quine, Rius, Zapata outros) ¢ de cincastas (novo cinema brasileiro © Se a questio das fronteiras e dos contextos que constituiram condigdes de possibilidades para a eclosio dos EC latino-americanos & um campo aberto para ‘iiltiplas exploragGes, também avultam as discusses ligadas & sua nomeagao. Assim, uma de suas denomi- nnagies — Latin American Cultural Studies — € objeto de discussio e contestago. Mato (2001, p. 6) entende que tal denominagao os situaria nos chamados Area ‘Studies, os quais, em sua origem, estariam associados 4 projetos imperiais de produgdo de conhecimentos sobre povos € nagdes dominados, conhecimentos es- ses produzidos para uso das metrépoles. 0 autor 1a academia estadunidense venezuelano entende que é que tem se estabelecido 0 cdnone “valido” para os EC Iatino-americanos, com a sacralizago de alguns autores ¢ a consagrago de uma leitura especifica dos ‘mesmos; além disso, ele expressa seu temor em rela- ‘¢40 a0 que identifica como uma influéneia despoliti- zadora dos EC e retomaremos, tadunidenses, em tépico que adiante ‘Com que dosagem os diferentes elementos da qui- mica geradora dos EC latino-americanos — a influén- cia dos EC britinicos, estadunidenses e australianos, por um lado, uma tradigdo latino-americana anterior © concomitante de ensaios criticos ¢ andlises culturais, por outro — se misturaram, e com quais “resultados”, no & questo facil de responder e nem é esta aqui nos- sa pretensio, Entende Moreiras (2001) que “tal histé- ria também tem uma genealogia totalmente diferente, ‘bem como condigaes distintas de inscrigdo social e in- telectual” (p. 355), © que se reflete, por exemplo, em alguns temas recorrentes e diferentes negociagdes que 6s trabalhos latino-americanos fario com trabalhos de ‘outras reas. Como bem assinalaram Canclini ¢ Martin- Barbero (apud Mato, 2001), 0 encontro entre aportes € leituras dos EC, as tradig6es de estudo anterior vas vertentes investigativas constituiram um sitio inte- ressante para novas ¢ instigantes produgdes, mesmo que sobre elas possa recair o estigma de algum sineretismo teérico e metodoligico. Em contrapartida, hé que se sublinhar que, 2 dife- renga dos EC britinicos, estadunidenses e australianos, «em que a circulagdo de textos dos diversos autores no sofreu qualquer constrangimento advindo da lingua uti- lizada na eserita, no panorama latino-americano a q to dos idiomas que os intelectuais dominem ou nao, no & uma questo menor no panorama da legitimagao € disseminago do que seriam os “genuinos” EC. Mignolo (apd Mato, 2001, p. 10) observa que “o es- panhol e 0 portugues sao idiomas que cairam do carro da modemidade ¢ se converteram em idiomas subal- temos da academia”. Isso explicaria um maior sucesso 46 ‘Marisa Voraber Costa, Rosa Hessel Siirae Luis Henrique Sommer daqueles académicos que, geralmente em fungio de cursos de pés-graduacdo € bolsas de estudo, exibem uum significativo dominio da lingua inglesa, idioma em, que, por exemplo, é publicado o conhecido periddico denominado Latin American Cultural Studies. Interes- sante notar que — se se entende a lingua como um im- portante marcador de identidade — um dos temas mais caros aos EC da América Latina ~ tal questo poderia ser considerada central prépria discussdo interna dos grupos de Estudos Culturais latino-americanos, 0 que efetivamente ndo parece vir ocorrendo, De forma similar & sua ago em outros continen- tes, também na América Latina os EC vém colabo= rando para a implosio das linhas académicas de se- paragio das areas disciplinares, Castro-Gémez (2000, p. 157) afirma, por exemplo, que “a vocagio trans disciplinar dos estudios culturales tem sido altamen- ‘te saudvel para algumas insttuigdes académicas que, pelo menos na América Latina, tinham se acostuma do a ‘vigiar e administrar’ o cinone de cada uma das: disciplinas”. Para Moreiras (2001, p. 74), “as disei- plinas mais seriamente afetadas pela ascensdo dos estudos culturais hoje” so os estudos literérios, a his- téria, a antropologia © 05 estudos da comunicagao. Em entrevista concedida em 1994 (Canclini, 197, p. 79), Canclini registra a origem disciplinar diferen- ciada dos primeiros pesquisadores dos EC da Améri- ca Latina, afirmando: Creio gue essa corrente de estudos ¢ proveitosa no sentido de que ¢ erada de uma varedade de diferentes dis- ciphines: Brunner, da sociologia, Martin-Rarbero, da com nicagdo e semi6tica; meu pr6prio background & em filoso- £1, mas também sociologe,ertca da arte eantropologis; Serlo, dos estudos liters, © Ortiz, antropologiae socio- Togie. Penso que © que temos em comum & 0 deseo de en- contear une maneita melhor de estar 0 processos cultue rais de uma forma multiisciplina. Combinar tis aborda- gens & central ao projeto, uma vez que entendamos proces- sos eulturais como processos que devem ser problematiza- ddos mais como inteconectadose interdependentes do que como fenémenosigolads, que €8 forma como so tratados na maioria das disiplinas Malejlunu/Ago 2003 N° 23 Estudos ultras, educagio e pedagogia Tematicas preferenciais dos Estudos Culturais na América Latina Como vimos, os Estudos Culturais realizados na América Latina foram impregnados pelos contextos, problematicas e tenses vividas nos diferentes gru- pos e nagdes do continente, vindo a mesclar-se com estudos anteriores que, de certa forma, foram revigo- rados. Para Rios (2002, p. 247), como os EC se ocu- pam da producdo simbélica da realidade social lati- nno-americana (materialidade, produgdes e processos), qualquer coisa que possa ser lida como um texto cutu- ral e que cont 1 em si mesma um significado simbélico sécio-histrico capa de acionar formasses discursivas, pode se converter em un legitim abjeto de esto: desde ‘arte ¢ literatura, as leis © os manuais de conduta, 0s esportes, a misica ea televisio, até as atuagdes sociais © as csruturas do sents, Nesse § entido, pode haver uma especificidade — como efetivamente hi —em muitos estudos da vertente latino-americana, mas — vistos em sua globalidade — cles se harmonizam com o desenvolvimento mais glo- bal do campo, que se propde multitematico e polifoni- ccamente interessado em quaisquer artefatos, processos « produtos que “signifiquem”, A contestagao da diferenga entre a “alta cultura” € a “baixa cultura” que caracterizou tdo profundamente 0 ‘campo desde o seu surgimento pode ser comparada, por exemplo, ds anilises que Canclinirealiza das fronteiras entre “arte” e “artesanato”. Enveredando pelas vielas do consumo, da produgdo dos chamados artistas popu- lares e da mercantilizacao das tradigdes, que se situam na arena da peculiar “modemidade” da América Lati- nna, Canelini observa o quanto, a um olhar “refinado” tradicional, a linha que separa a arte do artesanato po- pular é tragada conforme as oposigdes dos canones, tradicionais do “culto ¢ popular”: a arte é vista como “movimento simbélico desinteressado, um conjunto de bens ‘espirituais’ nos quais a forma predomina sobre a fungdo € 0 belo sobre o itil”, enquanto “o artesanato aparece como 0 outro, o reino dos abjetos que munca Revita Brasileira de Educacio ppoderiam dissociarse de seu sentido pritico” (Canclini, 1998, p. 242); a arte, como produzida por artistas “sin- gulares e solitrios”, 0 artesanato, por populares “cole- tivos e anénimos”; a arte, como referente a “obras ini- cas, imepetiveis”;o artesanato, como referente a “objetos em série", reiterativos em suas estruturas, Submetendo tais oposigdes a uma informada e aguda critica, 0 autor latino-americano questiona cada um desses pardmetros diferenciadores, e observa — numa afirmagdo que, de ta maneira, estampa uma diretriz. constante definidora do seu trabalho: Seria possfvel avangar mais no conhecimento da cultura e do popular se se abando- nase a preocupagdo sanitiria em distinguir 0 que te- riam a arte ¢ 0 artesanato de puro e ndo-contaminado & se of estudassemos a partir das incertezas que provo- cam seus eruzamentos (idem, p. 245). Este & apenas, um palido exemplo da pujanga das andlises que incidem sobre questées culturais da América Latina. As hibridagdes — 0 importante con- ceito proposto por Canclini para a andlise das culturas| latino-americanas, as identidades e sua fragmentaso, entre tradigo e as redes de dependéncias, as relagi modetnidade, as transformagdes das culturas popula- res, 0s consumos culturais sao alguns dos nitcleos te miticos mais poderosos que deram e dio fSlego ao pensamento latino-americano nomeado como EC ou lindeiro a esses. Entre os tragos comuns & maioria de tais estu- dos, avulta uma insistente referéncia s transforma- ges da América Latina, nas iltimas décadas, como decisivas para a modelagem das temiéticas, metodo- logias © focos de tais pesquisas. So recorrentes as alusdes a mudangas politicas (& derrocada dos gover- ‘nos militares, mais freqientemente, com conseqiien- te abertura de processos de democratizagio), a0 sur- gimento dos blocos econdmicos (como Mercosul, por exemplo), ao declinio dos Estados-nagao e de outras instituigdes tradicionais (religio, escola) como refe- rentes para a identidade, ao mesmo tempo em que se alude & crescente e avassaladora presenga da midia em todos os estratos da populagiio, as transformagbes do lugar da mulher no Ambito paiblico e privado latino- americano, a questdes como a das populagdes indige- nas © mudangas de enfoque de sua problemética, as- sim como a atengio a atores sociais com relevancia cultural mais recentemente atribuida, como & 0 caso dos jovens, isso, sem falar nas novas preocupagd com as questdes urbanas, entendendo-se as cidades como sitios privilegiados da produgio de significa dos culturais no fim do século XX ¢ inicio do XXI. Nesse sentido, um projeto levado a efeito pelo Centro de Estudios Culturales da Universidade do Chile, cujo delineamento encontra-se disponivel na Internet, & exemplar pela riqueza de sua trama con- ceitual e cardter revisor das questées que tém preocu- pado os EC da América Latina, Denominado Identi- dades en América Latina: discursos y practicas, 0 projeto, contando com uma equipe multidisciplinar, coloca questées que — descontada sua particulariza- «do 4 nagdo chilena — poderiam ser entendidas como atravessando em grande escala os EC latino-america- nos, So elas: Quais so os atuais discursos que sus- tentam e/ou fraturam as identidades no Chile? Que identidades articulam e expressam? Que identidades excluem? Quais so suas coordenadas epistémicas, dticas € sécio-histiticas? Quais sdo seus espagos de produgio e circulagd? Quais so seus dispositivos, estratégias e politicas culturais? Explorando um pouco 2 potencialidade de tais questdes, confrontadas com a pujante produgo dos, EC latino-americanos, poder-se-ia enfatizar 0 lugar do “indigena” na questo das identidades latino-ame- ricanas como um dos grandes cixos inspiradores de trabalhos, assim como, jé do ponto de vista da érea da ‘Comunicagao, a questio do consumo cultural dos pro- dutos da midia. Tanto uma como outra questo se con= frontam na tensio global x local, também presente em significativo mimero de obras “fundadoras” e es- tudos acessiveis ao leitor brasileiro.” Em relagio ao primeito tépico, perspicazes and- lises sobre a impossivel pureza do indigena (expressio ™ Disponivel em: , Acesso em: 29 mar. 2003, Correndo risco de reiteragio, vale «pons elemirar obras bsicas como Consumidores e cidadios © Culturas hibridas, de 48 Marisa Vorraber Costa, Rosa Hessel Silveira ¢ Luis Henrique Sommer de Martin-Barbero) so levadas a efeito por varios autores, como os jé citados Sarlo, Canclini e Martin- Barbero. Contrapondo-se as visdes romanticas que vviam no indio 0 “inico trago que nos resta da autenti- cidade”, o “lugar secreto onde subsiste e se conserva a pureza de nossas raizes culturais” (Martin-Barbero, 1997a, p. 260), 0 estudioso procura pensi-lo dentro do espago politico e tebrico do “popular”, nem visto como extemo ao desenvolvimento capitalista, nem como simples molusco engolido por sua voragem. Nessa diregdo, as pressdes exercidas pelo consumo, pelo mercantilismo, pelo discurso do exotismo ¢ do ristico, dentro do cenario mais amplo de um turismo que é, principalmente, fonte de sobrevivéncia, nao podem ser negadas nem demonizadas. Enfim: tematicamente os EC da Ami a Latina tém mergulhado nos processos ¢ artefatos culturais de povos, na cotidianidade das suas priticas de significagdo, na contemporaneidade de um tempo em, que as fronteiras entre o global eo local se relativizam, se interpenetram e se modificam, Um exame dos su- mérios de obras publicadas, seminérios, jomadas € revistas que tém abrigado trabalhos de EC nos aponta uma variedade tematica que congrega, por exemplo, dentro do campo mais amplo da cultura popular ur- ‘bana, a questdo das culturas dos baitros populares, os graffiti, a apropriagio ¢ a reelaboragio musical, o rock © as subculturas juvenis etc, Conforme Follari (2000, p. 5), encontramos, nos EC da América Latina, [.-Jtextos de uma capacidade previamenteinsuspeitads para amplifcar 0 olhar sobre © mundo do microssocial e dos fendmenos de constituigio © modificagdo das identidades; sobre as modalidades de agrupamento de associa; so- bre 0s procedimentos de produ e de consumo cultural: sobre a invengo das tadigBes econfigurapio da autocom- preenso promovidas pelos esados naci [Néstor Garela Canclini, Cenas da vide pds-moderna e Paisagens Imaginavias, de Beatriz Sarlo, ¢ Dos meios ds mediagdes: comu- nicagio, cultura ¢ hegemonia, de Jestis Martin-Barbero, todas teaduzidas pata 0 portugues Malejunju/Ago 2003 N° 23 Estudos culturas, educagio e pedagogia Algumas discussoes - os Estudos Culturais na América Latina e a pés-modernidade Por outro lado, uma questiio como as relagdes entre os EC a pos-modemidade também esté no ful- ero dos debates, uma vez que — em certos circulos — os Estudos Culturais teriam aparecido como “o ambi- to especifico ¢ exclusivo da discussio relativa ao tema pos-modemnidade — ao menos para muitos analistas tebricos e grupos de leitores” (idem, p. 2). Em inte ressante discussao sobre a presenga ou auséncia das discusses mais filoséficas da pés-modernidade den- tro dos EC realizados na América Latina, 0 citado autor (2000) observa que nio encontra dentro dos; ‘mesmos uma discusséo aprofundada ou demorada, de cunho filoséfico, sobre a pés-modernidade. Para usar suas palavras nada diss [referencias a Nietasche, Heidegeer, eri, ‘Vattieno, Baudrillard, Lipovetski] aparece nos estudos cule ‘urais isso é simplesmente porque esses iltimos sio est- dos do que hi no pos-moderno, mas nio “sobre” © pés- smodemo, Sio estudos sabre identidades, sobre conmunica- co, sobre toora litera e sua relagio com a cultura ou sobre os modos de consttuigée do nacional ou do interna- cionalicompentthado, Porém sou objeto explicit no & 0 smodemoipés-modemo, masa cultura contemporines, a qual est, obviamente,atravessaa pelos efeitos da passager do rmodemo ao pés-modemo, (9.7) referido autor efetua um detido exame das superposigdes, encontros e desencontros das reflexdes sobre a pos-modemidade ¢ as realizadas pelos EC na ‘América Latina, Para ele, “o p6s-modemo no se en- tende sem os Estudos Culturais nem se entende somente com eles”, assinalando também a fecundidade das temiticas que os EC trouxeram para exame, temiticas que nao haviam aflorado em autores “filoséficos”. As ® Roberto Follari & professor titular de epistemologia das iencis, na Facultad de Ciencias Politicas y Sociales, Universidad [Nacional de Cuyo, provineie de Mendoza (Argentina) Revista Brasileira de Educacio tematicas do tempo presente, como a bastante explora- da questdo da cultura juvenil, das bandas de rock, do fanatismo esportivo, ou da miésica salsa, trazidas boca de cena pelos estudos culturais (embora no apenas por estudos que, nominalmente, se filiem a eles) na América Latina, revitalizaram a reflexo sobre as con- tingéncias, articulagdes e buscas de compreensio da pés-modernidade em nosso continent. Em contrapartida, alguns desenvolvimentos “fi- loséficos” relatives & pés-modernidade que cobrem, importantes aspectos tedricos, como 0 status do pés- modemo, a relagdo com a modernidade, com 0 mo- demismo, com a modemizacao, com as teméticas do sujeito e das cigncias, ou no sao tematizados nos tra- balhos de EC ou o so apenas de passagem (Follar, 2000, p. 6). Para o autor, efetivamente se observa uma, certa exterioridade de cada campo em relagdo a0 ou- tro— um se debrugando sobre a cultura do pés-mo- demo ¢ outro propondo uma teorizagio especifica sobre a pos-modernidade; ultrapassar tal alheamento miituo, observa ele, ensejaria um “mituo fecundamen- to conceitual” Alguns questionamentos relativos aos EC na América Latina parecem advir justamente do enten- dimento de que eles deveriam propor um entendimen- to universalizante, ou melhor, parecem resultar da percepeio do visceral enlace dos EC com os discur- sos da fragmentagdo ¢ relativismo tipicos da pos-mo- demidade. Neste sentido, vale a pena dar vor as in- quietagdes de Canclini (19978): ‘Quando menciono paradigmas ou modelos ndo stow ‘egressando uo cientifcismo que postulava um saber de va lidade universal, cua formalizagdo abstratao tornara apli- ‘civel a qualquer sociedade e cultura, Mas tampouco me parece satisfatria a complacéncia pés-modera que acta, a reduglo do saber a narativas miiplas. Nao vejo por que shandonar a aspiragio de universlidade do conhecimento, «busca de uma racionalidadeintercultralmeate comparti= Tada que 48 coeréneia 40s enunciados bisicos e as con trast empiricamente, Foi esse ipo de trabalho que colocou de forma clara que diferentes culturas possuem ligicas € esttatgias diferentes para ter avesso a0 real ¢validar seus conlecimentas, mais intsletusis em alguns caso, mais lie ‘gadas& sensibiidade” e “imaginagi” em outros citadas an- De certs maneira, as preocupagé teriormente — que certamente ecoam entendimentos, modems de conhecimento — vio se articular, no de- senvolvimento da argumentagdo de Canclini, a preo- ‘cupagdes que se conectam com o carter politico dos EC, em que o proprio autor sera objeto de ataques. Acompanhemos sua exposigdo, em que 0 apelo & ra- cionalidade (moderna?) também se faz presente: CCreio que o relativismo antropolégico que fica em umroconkecimenta desi -quizade de tis diferengas mos- ‘rou limitapbes suficientes par gue nele nos instalemos. A ecesidade de constrir um saber vilid imterculturalmente setorna mais imperiosa em uma époce em que as culturas ¢ as sociedades se confrontam todo 0 tempo nos intecimbi- 08 econémicos ¢ comunicacionais, nas migragdes eno tue rama, Precisamos desenvolver poiticas cidadis que se baseiem em uma étca trnsculural,sustentada por um sa- ber que combine o reconhecimento de diferentes estilos sociais com regras raconais de convivéneia muls-étnica e supranacional. (idem, didem) Efetivamente, coexistem no pensamento deste 1m dos mais importantes autores dos EC lati- nno-americanos” a constante busca de negagio de cer- tos eixos da compreensio modema de mundo ~ a ne- ‘gagdo das totalidades marxistas, por exemplo ~ com, a procura de um ponto de sustentagdo que justifique (nda que o exempl citado sejao de Canelini ais te shes slo freqientes em outros estudos de pesquisadoreslatino- americanos; & impossivel esquecer, nese sentido, ue expressive ‘mero dos atelectuais da América Latina com produgio nas dreas és eincias humanas militou e milita na erties de esquerda As ‘struts colonalsts, aulortirias e exploradoras de seus pale ses slo esses mesmos ensaistas ¢ acadmieos que, a0 produzirem anilises eulturais, nfo fogem (nem o querem) dos compromissos politicos -no sentido amplo ~em que foram formados. Marisa Vorraber Costa, Rosa Hessel Sivira¢ Luis Henrique Sommer no apenas andlises culturais das diferengas, mas tam- bém a condenagao das desigualdades tao manifesta- mente expostas na contemporaneidade da América Latina. De maneira mais geral ainda, Canclini (1997, 2), em texto em que aborda o “mal estar dos estu- dos culturais”, aponta como uma das fragilidades de seu desenvolvimento na América Latina a falta de uma_ mais consistente reflexdo teérica ¢ epistemolégica, alertando para o risco de uma “aplicagio rotineira de uma metodologia pouco disposta a questionar teori- camente sua pritica” e sugerindo um esforgo maior nesse sentido, Outra discussao: a despolitizagao da teoria e da pesquisa Também no caso dos Estudos Culturais latino americanos se fazem ouvir vozes que criticam a alegada reniincia ao cariter politico do campo, mes- ‘mo que elas atinjam autores ¢ obras que nao tenham abandonado a intengdo de uma agdo politica “trans formadora”. Tomando como exemplo um dos livros considerados centrais no campo ~ Consumidores ¢ cidaddos -, pode-se resgatar a critica mais comum ao mesmo, a qual consiste na ndo-aceitagdo do nosso status de habitantes da contemporaneidade como meros consumidores em vez de legitimos cidadios. Follari (2000, p. 2) aponta a leitura dessa obra e de outras dos EC latino-americanos vendo-as como cim- plices de um carster “adaptacionista” dos Estudos Cul- turais. O slogan de Canclini, em Consumidores e ci- dados —“O consumo serve para pensar” — certamente foi um dos dispositivos motivadores de algumas des- sas contestagdes. Jé na via inversa dessa critica & des- politizagdo dos estudos culturais, Martin-Barbero pro- poe uma reflexdo que ultrapasse os velhos cacoetes de uma esquerda apenas preocupada com as ages reivindicatérias dos grupos “oprimidos” ¢ de suas ages de organizacao de classe, de uma esquerda que vé as priticas do viver cotidiano mais como um “obs- téculo a tomada de consciéneia do que como agio politica consegiiente” (Martin-Barbero, 1997a, p. 289), E assevera (p, 290): Malejunu/Ago 2003 N° 23 Estudos ultras, educagio e pedagosia (© consumo nio & apenas reproduo de frgas, mas produgio de sentido: Iugar de uma luta que nio se restringe & posse dos objtos, pois passa ainda mais devisi- ‘vamente pelos usos que Ihes dio forma social e nos quais se inserevem demandas e dspositves de agdo provenien- 1s de diversas competSncias eultursis, ‘Também ¢ freqiiente, em um continente onde 0 pensamento social freqiientemente buscou forga nos; ditames marxistas ¢ criticos, a emergéncia de um to desconforto em relagio ao abandono, pelos EC, de explicagdes ou totalizantes ou alinhadas ao dis curso da “libertagdo”, Nesse diapastio, Castro-Gémez (2000, p. 158), entendendo que a cultura urbana de ‘massa ¢ as novas tecnologias da informagio tém sido vistas nos EC latino-americanos como “espagos de emancipagdo democratica”, levanta a suspeita de que 6s estudos culturais teriam “hipotecado seu potencial critico & mercantilizagdo fetichizante dos bens sim- bélicos”. E mais: o ertico atribui aos EC tatino-ame- ricanos um novo tabu —o da abordagem da “totalida- de", seduzidos que estariam pela fragmentagdo do sujeito, pela hibridagdo das formas de vida, pela arti- culagdo das diferengas e pelo desencanto diante das novas metanarrativas. Nao se trata, para o autor, de reabilitar as velhas dicotomias da teoria critica — co- lonizador x colonizado, centro x periferia, opressor x oprimido, centro x periferia —mas, sim, de tomar vi- siveis os “novos mecanismos de produgio das dife- rengas em tempos de globalizacdo”, através de uma “descolonizagdo” das ciéncias sociais e da filosofia, Outra inconformidade alinhada ao pretenso ca- rater despotitizante dos EC diz respeito a elisio do conceito de classe social, tio caro as teorias critica. Verdesio (2003, p. 4) assim sintetiza tal critica em relago aos mesmos ‘A spropriagéo do popular [..] s6 deve, entre owas coisas, &incorporagdo a um modelo teérico que quer ver elas (produgdes da culture populer] uma confirmago, na aioria dos casos, da fldciaseguinte: na pos-modemida- Ae, por fim, os manginalizados podem se expressar. Entre- tanto, todas essas celebragdes perdem de vista, sistemati- Revita Brasileira de Educacio ‘camente, as questes de classe, Quero dizer que 0s estudos ‘ulturais, em ger, tendem a deixar de lado qualquer andli- se de classe possvel Esto, em sociedades tio desiguais ‘como as latino-americanas, se parece mais com um pecado ‘do que com um erro de perspective De qual lado estariam os argumentos mais pode- rosos € uma questo cuja resposta dependeria de uma incursio mais demorada, inadequada as dimensdes des- te artigo Apontamentos finais sobre Estudos Culturais na América Latina Em interessante entrevista dada por Canctini a Patrick D. Murphy (Canclini, 1997b), o autor argenti- nno-mexicano traz. algumas informagdes que podem enriquecer e nna, Uma das questdes colocadas pelo entrevistador, com, respeito 4 perspectiva feminista dentro dos EC da América Latina, ¢ respondida por Canclini através da marcagao da diferenga entre o feminismo americano € 6s estudos sobre mulher na América Latina, além de reconhecer que, ¢ poderia ser mais forte no caso dos EC latino-americanos, Com res- ctivamente, esse enla peito as influéneias da Escola de Birmingham na for- magdo dos EC do continente, Canelini a reconhece, em certa medida, nos estudos de comunicagao, ¢ tam- bbém aponta a existéncia de outras fortes influéneias nio diretamente associadas aos EC, como a de Pierre ‘Bourdieu, cuja importancia, diz Canclini, nao tem sido oficialmente reconhecida, Por fim, quando questiona- do sobre diferentes leituras do pés-modernismo pelos eseritores latino-americanos e pelos ensaistas clissi- cos, (como Jameson, Baucrillard e Lyotard), Canclini aponta algumas diferengas (Canclini, 1997b, p. 87): Na América Latina um conjunto de distintascircuns- tncias poitcasimpregnaearticulago cultural isto 6 exis- ‘tem diferentes formas nas quals modos tradicionais de vids Slo articulados com os processos de modernizagdo. A esse respeite os eseritoreslatino-americanos tém mostrado uma clevada sensibilidade para roconhecer formagSes culturais que io slo necessariamente “modemas"; a meméria po- pular & um importante elemento que contribui para & mie Doutoraem Fducagdo pela Universidade de Buenos Aites, ddocente da mesma Universidade e da Universidad de San Andrés. na revista virtual Pensar Iberoamérica ~ Revista de Cultura, sob 0 titulo aparentemente tradicional Re- sultados para quign? Reflexiones sobre la préctica de Ja evaluacién em la escuela. Langando mao de abor- dagens dos estudos culturais (explicitamente citados) a partir de autores como Giroux, MeLaren, Grossberg, Steinberg e Kincheloe, a autora busca uma revisio da nogdo de pritica escolar e avaliagao. Entre nés, no Brasil, as contribuigdes mais im- portantes dos EC em educagio parecem ser aquelas, que tém possibilitado: a extensdo das nogdes de edu- cacao, pedagogia ¢ curriculo para além dos muros da escola; a desnaturalizagdo dos discursos de teorias € disciplinas instaladas no aparato escolar; a visibilida- de de dispositivos disciplinares em agdo na escola ¢ fora dela; a ampliagdo © complexificagao das discus- sdes sobre identidade e diferenga e sobre processos de subjetivagio, Sobretudo, tais andlises tém chama- do a atengdo para novos temas, problemas ¢ questdes ue passam a ser objeto de discussio no curriculo na pedagogia, Nessa diregdo, projetos de pesquisa integrados ou individuais, trabalhos de iniciagao cientfica, di sertagdes de mestrado e teses de doutorado tém sido produzidos nos Gltimos cinco anos, em especial no Ambito do Programa de Pés-Graduagio em Educagao, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa Estudos Culturais em Educagao ¢ «em outros grupos que partilham de seu direcionamento tedrico, Em uma primeira vertente, poderiamos citar aquelas questdes, discursos ¢ artefatos que, tradicio- nalmente tidos como pedagégicos, sio ressignificados: livros didaticos, cartithas, legis revistas pedagdgicas, livros de formagdo pedagégica para professores, programas e projetos educativos, a propria scriagdo escolar, a ciclagem c as classes de progressdo, a arquitetura escolar. Priticas escolares como a da merenda, da avaliagio, ou dos cuidados na ss educacionais, educagio infantil, entre outras, so problematizadas € constituidas como objetos de estudo sob uma dtica cultural, oportunizando seu esquadrinhamento e an- lise como produtoras de significados, como imersas, Marisa Voraber Costa, Rosa Hessel Silirae Luis Henrique Sommer em redes de poder e verdade, em discursos circulantes, tra dos quais se legitimam determinadas represen- tages de criangas, de menino e de menina, de estu- dante, de professores e professoras, de trabalho docen- te, de alfabetismo, de determinados componentes, curriculares ¢ de educacao. Outra vertente de estudos tem sido aquela com- preendida pela expressdo “pedagogia cultural”, a qual, conforme Steinberg e Kincheloe (2001, p. 14), inetui “vireas pedagégicas” entendidas como “aqueles luga- res onde o poder é organizado e dif undido, incluindo- se bibliotecas, TY, cinemas, jomais, revistas, bringue- dos, propagandas, videogames, livros, esportes etc.” Com base nesse entendimento, tém sido investigados, tanto variados vefculos da midia jomatistica impres- sa ¢ televisiva, contemplando nao s6 matérias “infor mativas” mas também pegas publicitérias, quanto pro- dutos de entretenimento, tais como filmes, desenhos tém buscado es- animados, seriados de TV; nele: uadrinhar seus “ensinamentos”, pertencentes a uma gama também muito variada, valendo-se daqueles re- ferentes & propria educagdo (escola, “progresso”, pro- fessora, aluno etc.) ¢ se espraiando para outros cam- os, como as ligdes sobre o bem e 0 mal, sobre o que é ser mulher, sobre o que é ser indio, sobre o que & a nagdo, sobre o que & natureza, sobre a tecnologia, so- bre o nosso corpo, sobre a genética, sobre como nossa relagdo com os animais nos constitui “humanos” etc. Nessas ligdes, fiegiientemente se estabelece 0 normal e, concomitantemente, 0 desviante; 0 “progressista”, sinalizando para 0 “antiquado”; o certo, sinalizando para o errado, em um panorama que, marcado pelas questées culturais, é naturalizado e mostrado como “moderno”, “atual”, “biologicamente condicionado”, “estando na ordem das coisas”. A questo das identidades — um dos pilares dos EC e que também tem se revelado central nos EC la- tino-americanos de lingua espanhola — emerge com. mais forga nos trabalhos que discutem a heteroge- neidade e hibridagdo de algumas delas, como as de gé- neto, de indio, de surdo (niéo mais visto como um * Jeito deficiente”, mas como uma identidade mergulhada Malojunul/Ago 2003 N° 23 Estudos ultras, educagio © pedagogia em cultura propria), regionais (0 “gaticho”), de jo- vem, de intemauta freqtientador dos chats..." Em tais discussdes, 0 confronto entre o global e o local, entre a modemnidade e a pés-modemidade, entre os diseur- sos da tradigdo e os da contemporaneidade midiética assume um caréter central, num panorama ao qual a educagdo ndo se pode furtar, mesmo quando tenta mitigar a complexidade de tais processos. Registre-se, ainda, que na abordagem de todas, cessas quest6es, os estudos culturais em educagdo—alidi, de acordo com sua vocagao transdisciplinar e multifa- ccetada — tm se valido de contribuigdes metodol6gicas ¢ tedricas de outros campos, em especial daqueles com ‘08 quais mantém maiores afinidades, como os Estudos, Culturais da Cigncia, os estudos de Género, a aborda- anilise foucaultiana do dis- ‘gem P6s-Colonialista, a curso, a Semiética e a Anilise Critica do Discurso, os Estudos de Comunicagio, realizando a alquimia con- veniente a investigagdes que se propdem, como diz Giroux (1995) entre outras coisas, a “analisar a forma ‘como a linguagem funciona para incluir ou excluir cer tos significados, assegurar ou marginalizar formas par- ticulares de se comportare produzir ou impedir certos prazeres e desejos” (p. 95). A articulagao dos Estudos Culturais com a escola: uma possibilidade Finalmente, em nosso percurso pelas movimen- tages dos EC ¢ por seus cruzamentos com a educa- so © a pedagogia, encontramos subsidios para afir- ‘mar que a educago se d4 em diferentes espagos do mundo contempordneo, sendo a escola apenas um deles. Quer dizer, somos também educados por ima- ®v Exemplos dessa produ dos Estudos Cultarais em educa- «io podem ser encontrados em Estudos culturais em educacio ¢ ‘Caminhos investigaivos 1, organizado por Marisa Voraber Cos- ‘2 (2000 e 20022 respectivamente); Infincia e maguinarias, de M ‘eo, organizada por Sarai Schmidt 2001) ¢ Professoras que as Isabel Bujes (2002); Bducapio em tempos de globalisa- istrias nos contam, organizada por Rosa Hessel Silveira (2002) Revita Brasileira de Educacio gons, filmes, textos escritos, pela propaganda, pelas charges, pelos jomais ¢ pela televisdo, seja onde for que estes artefatos se exponham, Particulares visdes de mundo, de género, de sexualidade, de cidadania entram em nossas vidas diariamente. {a isto que nos referimos quando usamos as expressdes curriculo cultural e pedagogia da midia, Curriculo cultural diz respeito as representagdes de mundo, de sociedade, do eu, que a midia e outras maquinarias produzem colocam em circulagio, o conjunto de saberes, valo= res, formas de ver ¢ de conhecer que esta sendo ensi- nado por elas. Pedagogia da midia refere-se a pritica cultural que vem sendo problematizada para ressaltar essa dimensdo formativa dos artefatos de comunica- fo e informagao na vida contempordnea, com efei- tos na politica cultural que ultrapassam efou produ- zem as barreiras de classe, género sexual, modo de ‘vida, etnia e tantas outras. Esta é uma preocupagdo central nos Estudos Calturais Contempordneos, que Giroux (1995) sinte- tiza como “o estudo da produsio, da recepeo e do uso situado de variados textos, e da forma como eles estruturam as relages sociais, os valores ¢ as nogdes de comunidade, o futuro e as diversas definigdes do eu” (p. 98). O proprio sentido de texto & alargado, referindo-se a sons, imagens e dispositivos microele- ‘rdnicos como os computadores e a Intemet. Trata-se de textos culturais que no mundo contemporaneo atra- vessam a5 fronteiras entre Estados Nacionais, cida- des e comunidades, E porque hoje nossos alunos ¢ alunas passam mais tempo em frente a televisio do que na escola (mas no apenas por isso), que o senti- do de realidade foi incrivelmente expandido. Simples- ‘mente ndo podemos mais dizer que partimos da reali- dade se nao considerarmos o poder constituidor subjetivador da midia no mundo atual Num breve recorteilustrativo das aproximagies dos EC com a escola, queremos ressaltar, ainda, que 6s objetos e tematicas que vimos mencionando estio relacionados com o que presenciamos em nossas sa- las de aula hoje. Se até pouco tempo atris ensinar a partir da realidade significava considerar as particu- laridades sociais, econémicas ¢ culturais de um gru- po de alunos, vamos argumentar que 0 coneeito de realidade foi sensivelmente ampliado pata além de qualquer idéia de comunidade, de espago, tempo & lugar e, especialmente, de uma identidade cultural estvel. Tal compreensio, parece-nos, esté diretamente implicada com 0 que vemos e deixamos de ver em nnossas salas de aula e, logo, com as dire escolhas que fazemos em termos do que ensinar € como ensinar. Se nos EC, a cultura é uma arena, um) campo de luta em que o significado ¢ fixado e nego- ciado, as escolas, sua maquinaria, seus curticulos © praticas sdo parte desse complexo. Uma aproximagdo com o curriculo pode ser feita baseando-se na nogdo de campo de luta, crescente- ‘mente utilizada nas andlises curriculares crticas e pés- criticas® que langam mao da teoria cultural contem- pordnea, Quer dizer, “podemos ver o conhecimento & © curriculo como campos culturais, como campos su- jeitos a disputa e a interpretagdo, nos quais os dife- rentes grupos tentam estabelecer sua hegemonia” (Sil- va, 1999b, p. 135). Sendo construido culturalmente, © curriculo reflete o resultado de um embate de for- ‘gas e seus saberes e priticas investem na produgao de tipos particulares de sujeitos ¢ identidades sociais. Esta nogdo, tomando contribuigdes do pensamen- to pos-estruturalista, especialmente aquela provenien- te dos trabalhos de Michel Foucault, procura destacar uma certa dimenso do conceito de poder que alarga © As publicapSes contendo anélises nestas vertentes slo rnumerasas, hoje, no Brasil Citamos, dente elas, Teritirias Con- testados (organizado por Tomas T. da Silva ¢ Antonio Flivio Mo- reira, 1995, Vozes),Alienigenas ma sala de aula (organizado por Tomar T: daSilva, 1995, Vozes),O euriculo nos limiares do con- 1998, DP&A), Documentos de identidade (organizado por Tomes T. da Silva, {empordneo (onganizade por Marisa Vorraber Cost 1999, Auténtica), Crricul = poitcase pritias (organizado por Antonie Flavio Morera, 1999, Papiru), Curricwlo, priticas pe- dagégicas ¢ identidades (orgaizado por Antonio Flivio Moreira « Blizabeth Macedo, 2002, Porto) ¢ Curricula: debates contem- pordneos (organizade por Alice Casemiro Lopes e Elizabeth Macedo, 2002, Comte?) Marisa Vorraber Costa, Rosa Hessel Sivira¢ Luis Henrique Sommer os sentidos circulantes na tradigdo critica. Em outras palavras, no se trata de pura e simplesmente desta- car que 05 grupos que esto em posigao hierarquica- mente superior em uma relagio de poder definem o que deve ser ensinado, 0 que de fato ocorre, mas se trata de considerar a produtividade do poder, para além do binarismo dominadores ¢ dominados. outras palavras, © que precisamos continuar a investigar, dis- cutir, destacar, mostrar & a positividade do poder, sua capacidade de produzir subjetividades c identidades E nesta diregdo que os Estudos Culturais tém enfati- zado a produtividade dos poderes e saberes no orde- namento da vida social No que se refere ao papel do professor e da pro- fessora, novas formas de conceber a escola, 0s co- nhecimentos eo curriculo, desafiam-nos a ultrapassar a nogdo de transmissores de informagdes. Sobretudo, seriamos produtores culturais e nossas praticas peda- gogicas deveriam privilegiar a organizagdo de exp rigncias através das quais os estudantes pudessem vis- lumbrar carter socialmente construido “de seus, conhecimentos ¢ experiéncias, num mundo extrema- mente cambiante de representagdes e valores” (Giroux, 1995, p. 101). Nio se pode perder de vista uma dimensio do curriculo como “lugar de citculagao de narrativas, [..] lugar privilegiado dos processos de subjetivagio, da socializagdo dirigida, controlada” (Costa, 1998, p. 51). linda que 0 idedtio emancipatbrio seja o norte de nos- sas priticas docentes, ainda que objetivemos formar Cidadios criticos e auténomos, ¢ que tais concepgdes sustentem a selegdo dos conhecimentos e experiéncias que compdem o curriculo, o que fazemos é estruturar 0 campo de ago do outro, & governar sujeitos (Foucault, 1995), Através das palavras que escolhemos (nos es- colheram) para olhar para a educagdo escolar ¢ 0 curri= culo estamos compondo uma certa representagio de realidade e dirigindo condutas, produzindo determina- dos tipos de subjetividades e identidades, sintonizados, com a realidade que as palavras compéem. MARISA VORRABER COSTA ¢ doutora em cinias b= rmanas ¢ professor lilular em ensino curricula, Atua presente Malojlunjul/Ago 2003 N° 23

You might also like