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econ en ae CC er as cers direito? Ce ed cites Peete] ay: Bn emmy Tet EO tc) pie acer eens ett ri valido Se ce aa COR cc ent ey pe 1) Este livro trata de algo de que os juristas, Pelee Elna Cui ttn a exes CHe) Piece ecco ent eo Some eater mene ces COUR red ken ous a Renan mec eee! ON eerie ream Ce Upaietetat eine merece Une ule Ueda rae IER Coke coe Le Elefh ina eect mcee cee. rTM eC lane stelsec ts) Juridica. como 4 politica do direito, Que hajaum ° eee cn onvivamos com Varios. surgidos em ei ce nec lees mores mer kee un cate MTU ara eer Nonliast ee (eevee aire TamcenreK ellen Ste ectpecora tee tena Se La ieee ect eee] Mime coer Ccncts Byam esteia eet act Seco nee ct modelo de um direito ui eee etait iat com uma ordem juridica feita de mui li SE PLURALISMO JURIDICO E DIREITO DEMOCRATICO ANTONIO MANUEL HESPANHA PLURALISMO JURIDICO E DIREITO DEMOCRATICO Si0 Youve ota 2045 Dados lntcnacinais de Catalogagto na Publicagio ~ CIP 1583 Hepanhs, Aosénio Manuel. Pluralizno juraico edvto democclico. /Anténio Manel Hespanka. Sto Peles Annablume, 2013, 320 py 1623 cm ISBN 978-85.391-0528-1 1, Ditcio. 2, Teoria do Ditto. 3. Globlisgio, 4. Democracia. 5, Socindader Compleat. 6. Dizeitos Soi. 7. Plealisme Jurdco. 8. Diteto Democrdtice, 1Ttalo. cpu 340. Dp 340 Catalogo daborads por Ruth Sino Pano PLURALISMO JURIDICO & DIREITO DEMOCRATICO Proje, Produ ¢ Capa Coleivo Gedfca Annablume Imagem da expe Fotogeaficde Arnal de Melo Gone Editorial Eduardo Peta Caixa Norval Beitllo junior Maria Oda Lie de Silva Dias alia Matia Marino de Aievedo Gustavo Bernardo Krause ‘Maia de Lourdes See (in memerian) Pedro Roberta accbi Luda D’Alesio Ferra 1+ edigto: Fevereiro de 2013 (© Asténjo Manuel Hespunhs ANNABLUME editors. comanicago Ruz MIMD, 217. Butenet 5510-021. $0 Paulo. SP Brasil ‘Tel. eFax, (S911) 3539-0226 ~ Televendss 3539-0225 ‘worwannsblume.combe SUMARIO Apresentacao Introdugio 1. Diteito pes-estadualista e legitimagiio democritica 2. Um pouco de histéria recente, As rafzes do anti-estadualismo contemparinen 39 3, Fatores de superacio do modelo estadualista. Questées emergent. 1.0 paradigma estadualista do dircito... 2. A ctise do paradigma “estadualista”, “legalista’, “voluntarista” ¢ “cientista”. O advento da ideia de “comunidade pluralista de direitos”. 4, O que & direito? Entre uma ambiciosa especulagio ¢ um modesto realismo 5. Uma revisio da teotia pluralista das fonces de direit. 6. O elenco das fontes de dircico. 1. O dieito comunitério none B5 87 2. Direito internacional. 3. O direito dos negécios.. 4. A dotting. esotseo 5. A jurisprudéncia 6. O costume .... 7. Os cédigos de boas Pris BAL 7. Pluralismo ¢ democraticidade do direito.. 1. Democraticidade, autoridade, prudéncia, argumentagao..... 121 2. Democraticidadee alargamento dos espagos de normagio 3. Democtaticidade e feitura das leis, 4, Democtacia e pluralismo. Conclusio.... 5. Apéndice: questGes ¢ resposta.. 8. Os fundadores.. 9. O realismo jurtdico (exposigao e objegées). 1. As escolas realistas ~ 0 porqué de um nome... sel 2. O realismo de Herbert L. Hatt (190-1992) ssnssoseel61 3. Norma de reconhecimento e primado da constivuigao. 4, Principios e regras. 5. Princlpios politica do diveto. 10, A pluralidade dos direitos como espelho da pluralidade das esferas de comunicaszo social 1. A esfera comunicativa do diteito. sonnel 94 11, Autonomia e contextualidade dos sistemas de direito. 1.0 direito como fator de seguranca... 2. A teoria dos sistemas auto-poitico: 3. Aupoiesis,globalizacao e estadualismo 12. A dogmatica juridica no contexto pluralisa 1, Limites da regulagio estadual e limites do direito 233 238 246 247 2. Governagio pluralistae feitura das norms. 3. Conhecer para regular. 4, Teoria ds constituigio. 4.1, Primado da constituicao e pluralism, 4.2. O que é a constituicio global de uma ordem juridica pluralist... 257 5. A interpretacio. a 268 5.1. pluralidade de sentidos. eS) 6. Mecanismos de redugio da equivocidade no a7 paradigma estataista, A interpretagio... 7. Mecanismos de redugiio da equivocidade na socicdade pas estaralista, A interpretacio. 272 7.1. Os limites da interpreracto. ‘ 277 7.2. A interpretagio paradoxal 279 7.3. Conclusao. eee Epilogo... 283 Glossétio . 289 Bibliografia 293 Indice analitico. 311 APRESENTAGAO. CCORREU-ME ESCREVER ESTE LIVRO AO VER COMO, JA NA O segunda décads do sec. XX1, se continuam a publicar “introdugSes ao dircito”, como se estivéssemos nos me- ados do sec. XIX, senao antes. Creio que a maior parte dessa literatura assenta no suposto de que o diteito ¢ um produto do Estado. Isto também nio era verdade 4 200 anns: mas, 20 menos, correspandia 40 imagindrio dominan te entre o comum dos juristas ¢ ~ simplificando bastante as coisas - ao que os tribunais decidiam, Sobretudo a partit do momento em que surgitam cédigos e se estabilizau a lei feita pelos parlamentos (ou, por delegagao destes, pelos governos), 0 diteito passou a set identificado com a lei, pelo menos para os juristas menos inquietos. Hoje nio ¢ assim, Claro que também hd juristas mais simplistas que continuam a considerar que o dircito resulta das leis do Estado. E também, na opiniao ptiblica menos atenta, hd quem continue a atribuir ao Estado a responsabilidade exclusiva pelo diteito, Mas hd jd muitos sinais, na opinigo especializada ¢ na opiniéo comum, de que o Estado o controla cada vez menos. Na Europa, assistimos & vaga do direito comunitério que, reconhecidamente, jé tem muito pouco de estadual. Mas, em geral, vemos aceitar como obrigando juridicamente coisas tio diversas como as “leis do mercado”, 0s usos dos negécios, as boas priticas relativas ao ambiente e a outtas coi- sas, as normas da deontologia médica, os regulamentos internos do mundo desportivo, muitas normas técnicas, tc, E, no presente con- texto da crise financeira e econémica da Europa, hd muita gente ue aceita ¢ ativamente defende que a necessidade faz. diteito, um diseito que alguns constitucionalistas jé consideraram como cor. respondente & verdadeira constituicso, Independentemente do que dizem as leis, muitos creem gozat de dircitos ¢ estar obrigados a deveres que decorrem da dignidade hhumana, dos imperativos da solidariedade, dos valores culturais ou teligiosos, da tradicao, das priticas da vida didria. E 0 que é certo & que isso vem sendo, cada vez mais frequentemente, reconhecido pelos eribunais ou por outras entidades que caucionam as nossas Pretens6es jurfdicas ou nos impGem determinados deveres. Ou seja, este livto trata de algo de que muitos juristas #6 agora, paradoxalmente, se dio conta a pluralidade de direitos numa mesiaa comunidade. Paradoxalmente, repito, porque, se se apurarem as coi- 53s com rigor e profundidade, este fendmeno & uma constants, mais visvel ou mais encoberta, da histiria do direito ocidental, se néo de todos os diteitas. Por isso, a nossa primeira aitude d apenas 2 de cons. tatar algo de que ha suficenteevidénca. Seguidamente, ter que seit mais longe, colocando questées decisivas tanto 3 dogmticajuridien, como & politica do direito. Que haja um sé dircito, o do Estado, ou que convivamos com viérios, surgidos em varios nfveis da vida, nfo é indiferente quanto 0s sabetes © técnica intelectuais com que os juristas lidam com o dlicico ~ como o identificam, como o avaliam, como o interpreta, como o aplicam. Saberes ¢ ténicas etes que costuimamos designar or dogmaticajuridica ~ a teotia da pritica do direito. Daf que, de- pois de chamarmos 2 atengio para a nova configuracéo do dircito, tentemos mostrar porque ¢ que a dogmética jutidica cortente — aude ao modelo de um ditto tinicn, 0 dacto de onde oa pode servir para trabalhar com uma ordem juridica feita de muitos dlissitos. Nomeadamente, porque esta ordem pée problemas novos © mais evidente dos quais éa necessidade de saber acomodar entre si estes vitios direitos, sem os redusie atfcialmente & unidade ~ ic, ‘sem que eles percam a sua especificidade -, mas também sem que 10 com o seu reconhecimento se perca um gra minimo de integragio dlas normas que regulam a nossa vida em comum ~ j,c., sem que te- ‘nhamos por isso que viver num caos de direitos, que é 0 mesmo do que viver sem direivo, ‘Também do ponto de vista da politica do direito ~ e da politica tout court — o pluralismo levanta questées cruciais. Se generalizar- mos 0 conceito de direito a todas as normas efetivamente vigentes nna comunidade, estamos, por um lado, a renunciar 2 capacidade inovadora, programética e corretiva do dircito, aceitando como jus to tudo aquilo que vigora. Por outro lado, deixamos de exigir a0 ito algo que esté no centro da cultura contemporainea: que 0 direito eraduza as aspinagbes generalizadas da comunidade, que seja a vontade do povo, que reconhega o principio democritico, Neste plano da politica do diteito, tocamos em questbes ainda parcialmente em aberto. Nem tudo 0 que vigora como norma tem que ser justo, Porém, de que critétios seguros dispomos para avaliar da justiga das normas ? Seguros, possivelmente, nenhuns. Mas este tem sido um problema de sempre na histéria do diteito, E, quando momentancamente se pensou que no 0 cra e que existiam padres certos ¢ seguros de justiga ~ como a ordem divina, o poder da tazdo ou a aucotidade carismética dos juristas — 0 que daf resultou foram culturas juridicas autocriticas ou autotitérias, contra as quais a sen- sibilidade comum se revaltou. A evocagio desta sensibilidade co- mum coloca, no entanto, outra questio indecisa ~ a dos modos de idemtficar a sensibilidade comum, 0 sentido comunicitio de justiga. ‘A organizacio democrética da sociedade oferece uma tesposta para isto. E, embora a democracia tenha muitas imperfeigbes e possa ser manipulada de muitas maneiras, a prépria etimologia da palavra~0 governo do povo ~ nos fornece uma linha de orientagao, deixando embora muitos detalhes em aberto: a sensibilidade comum h4 de corresponder Aquilo que se manifeste como mais consensual, mais igual, mais estabilizador das relag5es comunitérias, mais inclusivo, menos itvitante ou fraturante. Cada uma destas expresses abre, & certo, mais questées diflceis, Porém, aceite o principio, é possfvel ponderar, tentativamente, as alternativas quanto & forma de the dar realizagio. Dir-se-d que esta resposta sabe a poucos a isto apenas se pode responder, como alguém jé fez em relagio & democracia, que, ‘com todas as insuficiéncia, & a melhor resposta de que dispomos. Esta resposta pouco forte, modesta e dubitativa 3s perguntas so- bre a justiga e sobre a democracia conduz a,uma cerceira resposta sobre a natureza do direito: o direito no € uma coisa que exista por sicem si, Mas antes € algo que s6 existe porque alguém (algum grupo) fala dele, 0 designa, o refere, dando-the um determinado contetido ¢ delimitando-the um determinado campo de aplicagio no plano da pritica social. Isto quer dizer que, para vatios grupos de interlocutores, pode haver vitios direitos. E que, por isso, o mundo da vida pode ser contado diversamente do ponto de vista do direito, pode ser objeto de vérias narrativas jucidicas, cada uma das quais dando relevncia a factos ¢ comportamentos diferentes, e aplicando 2 uns ¢ outros diferentes avaliagées jurfdicas. (O que acaba de ser dito nao é nada de muito extraordinétio, Foi dito ¢ redito pelos linguisticas e pelos estudiosos do discurso da literatura desde fd mais um século, quando eles conclufram que nao ha objetos fora da linguagem ou dos discursos; e que, pelo contro, 30 aquela ¢ ectee que criam os objetos a que se refeen ‘Com isto, ficou claro que pode haver muitos discursos diferentes que evocam o mesmo objeto; por exemplo, a liberdade, a honra, a familia, Mas sob esta idéntica capa fonética podem estat a ser referidos concetidos de sentido muito diferentes. Aplicada ao di- reito, esta ideia de evanescéncia da “realidade” — que trata o direito como um efeito de linguagem, um modo de dizer, uma forma de narrar a vida — parece estranha a muita gente, que tende a crer que © direito € uma coisa que esti af, objetivamente, concretizado cm coisas tio materiais como os cddigos, as decisées dos jufzes, com os. seus apéndices policiais e prisionais. De tal modo que, sobre este direito-objeto s6 poderia haver uma versio correta, embora possa hhaver muitas deturpagGes, muitas concegdes erradas, muitos abu- sos, Falar de narrativas juridicas 6, entéo, apontar para a natureza inevitavelmente plural do() direito(®) numa mesma comunidade, Por muito integrada que ela possa parecer. Pois nela sempre haverd 2 grupos ~ profissionais, etizios, culturais, éenicos ou religiosos - que Cerio narrativas diferentes acerca do que é dircito, de quem o e5- tabelece, de que coisas ele profbe ou permite, em que Ambitos ele afeta as vidas de cadal um € em que medida é que cada um de nds 0 pode afetar a ele. Por isso, este pluralismo juridico a que nos teferi- ‘mos, antes de ser algo que surgi nos nossos dias, por circunstincias parriculares dos tempos e das politicas, & antes algo de sempre, pois tem a ver com a mancira de ser dos préprios grupos humanos ~ a sua diversidade de maneiras de ver 0 mundo, as telagbes dele com os homens ¢ as que os homens mantém entre si Ibi societas,ibi ira (agora, no plural). No entanto, um direito regula um espaco de convivio, de aco- modagéo de expectativas, de compatibilizago de intetesses. Por isso, realizar o diteito da comunidade por sobre os diccitos dos gru- os pressupée uma intengio fundamental de procurar conciliar a :xtengio a uma pluralidade de ordens juridicas com o principio cen- tral do republicanismo de que a cidade deve ser regida pela vontade comum do povo. E que, portanto, sem prejutzo da atencio a muitas narrativas juridicas, em que resultar ~ camo se disse antes ~ um “género narrativo” que seja consensual na comunidade; no qual ela conte, que estabilize os célculos de vida da genetalidade das pessoas, Os dilemas desta intengio constituem mais uma manifestacio de uma das tensées mais notérias na civilizagéo atual. Estamos conscientes da irredutibilidade das nossas diferengas ¢ da tragédia que consistiria em reduzir esta diversidade do humano. Porém, vi- vemos num mundo s6, num espaco que a globulizagao e a facili dade das deslocagécs vai tomando aparentemente mais pequeno, ‘numa vida em que a especializacio crescente obriga a contar mais com os outros. A questao é, entio: como podemos compatibilizar a preservagio das diferencas com a inevitabilidade de interacio © de solidariedade social? No direito, a questo pSe-se nos mesmos termos. As comunidades complexas, variegadas ¢ entrelacadas em que vivemos multiplicam as egulacées, as versGes do direito, com as suas permissées ¢ interdigées espectficas de cada uma; inconsisten- tes umas com as outras. Cada uma delas autorizando ou proibindo comportamentos, que a outra trata diferentemente, © que uns gru- pos acham ser um uso das suas faculdades juridicas outros acham que é um abuso, O que uns pensam dever fizet outros acham que é apenas uma possibilidade, ndo obrigatéria. O que uns acham que é uma manifestagao de egofsmo ou de gandincia outros cteem ser um direito seu — mesmo um direito fundamental. No entanto, a sobteposigio complexa de todos em espagos par- tithados pressupde consensos quanto is regras de conviver. Con- sensos, porém, hd muitos. Evitando qualificativos que dependam das valoragées de cada um ~ como consensos justos e consensos injustos -, fiquemo-nos em que ha consensos mais sustentéveis do que outros. Consensos obtidos por imposigao, por silenciamento de dissidentes, por manipulacéo, por simplificagao ¢ superficialidade do debate, sio possiveis e, até, frequentes. Mas, como nio é possivel ‘que poucos enganem ou violentem muitos, por muito tempo, tais consensos enfraquecerio & medida que o didlogo comunitario se for tornando mais inclusive e reflexive. Em contrapactida, consensos formados a partir de um didlogo alargado, participado ¢ que refira sobre complexidade das coisas, tém muito mais condiges para se- rem duriveis, embora nZo definitivos, (O direito dos diceitos, « norma que permita encontrar arranjos harménicos dos vérios direitos que partilham 0 espaco comunititio, deve justamente promover consensos estdveis ¢ estabilizadores entre cles. problema esti em como construir uma versio do ditcito que seja consensual, de uma forma sustencivel. Para ser consensual, ela indo poderd por cm causa a diversidade das narrativas jutfdicas seto- riais. Para sce sustentével, ela tem que se estabelecer sobre um con- ‘senso em que todos participam em igualdade de condigoes e que ser ‘construfda, no sobre uma sociedade abstrata ¢ irreal, mas sobre as sociedades concretas que sio as nossas, a partir de processos vidveis, praticaveis, que estejam ao alcance das instituig6es existentes. Esta versio comum (republicana, da respublica, no seu conjunto) do direi- ‘0 tem que assentar numa observacéo complexa das nossas sociedades das narrativas juridicas nela vigentes, no modo como elas tém sido construidas, na naturcza (leal ou enviesada) dos consensos sobre que assentam, Em todo o processo, as capacidades de observar sem pre- conceitos ede perceber a complexidade do que se observa sio centrais. E, a partir deste diagnéstico, tem que se ir avaliando da legitimidade de cada versio setorial do ditcito, afinando cada uma delas por meio de consensos mais refletides ¢ mais just ¢, a0 fim, compondo tudo num modelo em que os créditos de cada uma dependam do modo como ela mostra capacidade de ter em conta as outras ¢ de se integrar num modelo que articule consensualmente todas os dircitos. Nao se trata de um processo répido, nem suscettvel de ser leva- do a cabo exclusivamente por juristas com recurso aos seus saberes especializados. Muito pelo contritio. Trata-se de um lento processo de experimentagio, erro € corrego. No qual nem é certo que os juristas desempenhem um papel de protagonistas, porque, como se verd, muitos dos saberes usuais dos jutistas poderao constituir an- tes obsticulos do que instrumentos tteis. Sobretude porque aquilo que eles tém por assente e que, frequentemente, resistem a repensar, fax parte de um saber datado, com mais de dois séculos de idade, referido a um modelo de poder que nao € 0 de hoje. Mostrar 0 envelhecimento deste saber é, confessadamente, um dos objetivos deste Livro’ AMH. em preocupacio de exsustividade, indicamse alguns locas ineresssntes da mera ond pom cna finan deur ave es hfe lawandeociesy orp) (Law and Sociery Association); hsp/Iwwwbilorg (Ha. gue lnsiute forthe internaionalizarion of Law); heyp/IwnwlawoRthefatare ongtlfemu/fek-uploaded/documents/LOTFLSt02030complete04101 ide. pdf (Late Seenarie to 2030). 5 INTRODUGAO ‘Como SiR UM DIRErTO POs-ESTADUALISTA? + Ao ler 0 que se diz do direito no inicio deste milénio, damo- nos conta de que conceitos em torno dos quais girou toda a tcoria politica ¢ jusidica durante os séculos XIX e XX tendem a desaparecer € a ser substitufdos, quando se trata de respon- der a quest6es centrais sobre o ambito, a fonte e a forca das rnormas que regulam a vida em sociedade:que é diteito ? + quem diz o direito ? + quem diz. quem diz o dizeito ? + que ambito tem o conjunto de normas jurfdicas provindas do Estado? + qual a forsa destas em relagZo a normas juridicas de ourras origens? Antes, tudo isto parecia claro. O direito era o conjunto de normas emitidas pelo Estado. Era, portanto, o Estado quem o dizia. Embora, ceventualmente, 0 Estado pudesse admitir normas juridicas com outra origem (v.g,, 0 costume, a doutrina dos juristas, normas deontolé- gicas de certos grupos profissionais), para que estas fossem normas jurldicas, garantidas pela forga do Estado, exa preciso que este expres- samente as reconhecesse como tal. Assim, o diceito do Estado era todo © dircito ou, pelo menos, dispunba, de forma absoluta, sobre © que eta direito. Isto porque o Estado cra tido como sendo a tinica enti- dade com legitimidade para dizer 0 diteito. Havia, ¢ certo, opinises diferentes sobre a origem desta legitimidade. Mas, a partir dos finais do sec. XVIII, a opinio. mais corrente, embora nao tinica, era a de ‘que essa legitimidade dos Estados para impor normas aos cidadios resultava de este ser 0 produto da vontade dos mesmos cidadios, ex- pressa pelos Srgiios que oficialmente os representavam (em primeico lugar, pelos parlamentos, em quem residia, por isso, o poder de fazer as leis que compunham o direito do Estado). O- poder normativo de cada Estado cra restrito & Nagao que ele representava (ou corporiza- vva). Fora do direito dos Estados-Nacao apenas existia aquele que estes ‘estabelecessem uns com os outros (dieito internacional). Hoje, tudo se tornou menos nitido e mais complexo. Ao Estado contrapGe-se uma sociedade que parece produzir normas direcamente, sem necessitar da mediagio oficial; & unidade do Estado contrapSe-se a dispersio de centros de poder normativos as Nagdcs, distintas ¢ iso- ladas, contrap6e-se a “Sociedade global” de todas as nagtcs, ultrapas- sando as frontciras das Estados e pouco atenta a0 recorte oficial das fronteiras;& unidade de cada um dos vétios dos direitos, contrapéem- se direitos com diversos centtos auténomos produtores de normas, desprovidos de coeréncia, sobrepostos, combinando normas de val- dade apenas local com outras que valem a um nfvel translocal, global O Estado tende a deixar de ser considerado quer como origem tinica do direito quer como a fonte da sua legitimagio tiltima. Mesmo nos Estados democréticos, em que a vontade do Estado ¢ tida como re- presentando a vontade dos cidadsos e, por esta via, a fonte thima de regulagio das relagbes dos homens em sociedade, tende a pensat-se que essa vontade comum — ou da maioria — no regula tudo, nem regula de forma soberana ~ indisputada - aquilo que regula. ‘As pessoas — juristas ou leigos ~ parece tenderem a procurar 0 direito “auténtico” noutros lugares: na organizagao da vida corrente (Por exemplo, na vida das familias, nas regras comunititias do convé- vio quotidiano); nas préticas estabelecidas ou nas inevitéveis leis dos niegécios (vg, a8 “leis do mercado”, a nova lex mereazori)s nas regras geralmente seguidas em certo setor de atividade ~ as chamadas “re- 8 gras da arte” (dos médicos, da comunidade académica ou cientfiea) = naquilo que é considerado como correto em certo ramo de ativi- dade — as “boas préticas” (na administragao publica, na escola, nas selagGes entre uma organizacio e os seus utentes); nas normas que sio estabelecidas pelas organizag6es representativas de um setor espectfico do ato social (normas de “autorregulamentacao": no desporto, na regulacio da concorréncia, da atividade hancaria ou, mais latamen- te, financeira; da comunicagio social, da internet, na distribuicgo do espetro de frequéncias de comunicacio radiofénica); nas normas de dizcito supra estadual (cstabelecidas ou néo por tratados entre os Estx- dos); nos consensos ¢ acordos que as pessoas estabelecem entre si para regular relag6es entre cla (contratos, cliusulas de arbitragem, acordos ticitos ou estabelecidos pelos costumes ou por rotinas); nas rotinas e uusos comuns ¢ assentes; na comunidade de especialistas em direico (@doutrina, 0 diteito “contra maioriério", et.) O direito nfo € mais uma coisa do Estado, mas também pare- ce deixar de ser a expressio da vontade de um povo, como cria.o melhor da tradicio democrética. Primeiro, porque, neste mundo plobalizado, jé nio é nada ficil (alguma vee o fo) saber o que é “um povo"; depois, porque, neste mundo atomizado e muito acento 2 diferenga, mal se pode jé imaginar que um povo (seja isso 0 que for) possa ter uma vontade, ¢ nao muitas e voléteis vontades, depen- dendo de cada grupo (de género, de idade, de regio, de cultura, de estrato social, de interesses); finalmente porque se pensa que, por ventura, a vontade néo vence tudo, que hé constrangimentos que se lhe impéem; e que, mesmo que fosse liquide 0 que é “o povo” ¢ que é que cle tinha quetido, néo seria posstvel impor isso a certas outras normas ¢ constrangimentos do mundo. Assim, lidar com o direito de hoje, descrevé-lo, ensinar a traba- thar com ele, fazer a sua teoria, implica tomd-lo como ele de facto Enos nossos dias. E, consequentemente, ter sempre presente que 0 direito é um fenémeno mutével nas suas fronteira, plural nas suas fontes de ctiagéo ou de revelagio, complexo na sua légica interna, no consistente nem harménico nos seus conteddos, ¢, finalmente, nada afeito a um saber que pretenda certezas ¢ forrmulagées seguras 9 © nao opindveis. Em suma, trabalhar com o diteito exige que se assuma que ele ¢ algo de “local”, de plural’, de equivoco, sujeito a controvérsias (“opindvel”, “argumentével”) ¢ 20 convivio e. disputa ‘com outras ordens normativas, A prcferéncia por um ou outro ponto de vista sobre 0 que é 0 direito em, naturalmente, que ver com crengas teligiosas, orientages idcolégicas, sistemas filos6ficos, disposigies da sensibilidade. Quem cteia que as normas para lidar consigo e com os outros eso fizadas pela religiio achard, normalmente, que 0 dircito do Estado nao é 0 Xinico e muito menos o thimo critério para avaliaralicitude dos nos- sos comportamentos. Os ctistio pensaram, durante muitos séculos, «que a Biblia e os mandatos dals) Igreja(s)valiam por cima do direito dos poderes temporais; uma substancial parte dos mugulmanos pe sam 9 mesmo, 0 mesmo acontecendo com muitos judeus e, até, com alguns fundamentalistas crstdos. Por sua ver, aqueles que creem que as instituigdcs humanas tem uma natureza (a natureza da sociedade, a natureza da familia, a natureza dos contratos, a natureza do mercado) ou que acham que podemos conhecer por especulasao intelectual o que € justo ou injusto na organizacéo da vida cm comum também. pensario que essa naturcza ou esa seflexto sobre a justiga hao de poder valer por cima daquilo que os parlamentos ou os governos de- mocréticos decidem ser lei. Os liberais em economia tém por certo 1. Adela de sabres ou nowmas “locas, enrsizados numa cultura, fi valgrzada por Ciford (ames) Geers (1926-2006), um fmosoantropdlogo american, aja teosia soil tem inluencado outros sebsres na tea dis citar socks © Fhumanas (Ye dnterpreaion of Clr, N.Y, Basic Books, 1973; Lod Keo ‘ee: Parte sayin IntexpresiveAnchopology, N.Y, Basi Bock, 1983; Anti Relatvism", American Ancbrpolg, vl. 86. 2 (1984), pp. 263-278 Informagio pid: hip://envkipedia.og/ wiki Clifiond_ Geer 2. Na minha obra histéico-uedicsejucdica, tenho inside muito sist: Cals jurtdica europea, Site de wm miléio, Klmedina, 2012 (nora ed modifica), 3.1. Dando conta das peepexidades causadas po conceito, 1d. “Estadual, pluraismo e neoteepublicanismto ~ Prpexidades dos nosios dias’, em Antdnio Carlos Wellner eal Pram uri, Os nows cami hos da contemporaeidade,Sio Paul, Saraiva, 2010, 139-172 20 que as Icis do mercado, a liberdade de inclstria, de propriedade & de comeércio levam, automaticamente, 30 maior bem-estar coletivo © as-regras de convivéncia mais adequadas para chegar a esse estado; por isso, creem que o Estado no deve regular quase nada, devendo Jimitar-se a garantir que esses virios aspetos da liberdade de escolha ¢ de agio efetivamente vigoram. Em qualquer dos casos, uma regulacéo subitrdria do Estado, além de ilegitima, seria intl, pois a navureza das coisas, os impulsos naturais do homem ou a vontade divina ndo se deixam conirariar duradouramente (“Chasse le naturel, il reviendra au galop"). Os que aderem a uma concegio puramente individualista da sociedade tendem a identificar com diteito principalmente aquilo que provém de acordos entre sujeitos de direitos, com um pequentssi- mo niimero de resttigées, introduzidas para proteger interesse de ter- ap pl ep obey 38 opera epeapemorprpucne eo 3 sonia oun se so {Yous omusmoomransiessodpund | azo o1pmp oops 3X ‘soununy sosrp porto psp") | rpsperE:| op sop rep som _ aia oreyens ap nds txpa spe | spol oma wp cnmape Q + TeBUREROD | oeniTpRAE ae ap eam Beepuopmns>rpsjonee| sp reopen nko Gmenios won8 ive ae se25 «SO4I3¥IG 30 VISITVUNTE IGWAINNWOD, 30 ¥I3GI VO OLN3AQY O LWASIINSID, 3 .WISIUVLNMOA,, ‘,¥LSIT931, “NLSIMYNGVISS,, YADIGYEYE OG ISRO ¥°Z gray om sgsungg) e908 op apni0n ep Ye TES PT ip WRC OES pal Seam] SST NT sonno og sai opm o anh > penn eNO eS SpuodDE (ORE) OPE 9 WO ODP «| spend ener 9p ~amwoosids 3p na pooper ong ap aprporde ene ns en opmons ee ep: ope op app Y + ‘emmropsed mem 1.0 nap toxpep> wpe: p apap 09 opea O + and mninesceseaedagor 8a! « ounenperg 9 eed Rare apap oF SE ‘aq onnou 2 poop seu op > am 2 "ep 0 eo epioe 3p a9 Be sa eed son ep RON « ‘Bie eRSEp sp mH9) mp oop «| ‘ae >t an opp waa] ep’ si, ong vowels ap ro 90 wee opr oun foro op pean (ny =A ammanumap > BpEEE oA | pO DEP OE « ors po epee ong seep PFA RP cura EHO ep OREO toc Hep 98 8082p ‘np op oxo aad ge ep 00 sop anbappenn 99) opty 0 Spun #apooden «| cummrueco 2 esermppa a OLITN Od VISIIVAGYLST VNOIAVUYd 0 'T etary 2p rommou p ofaponiy es IER O« 54 .PPIEH op OP, op ORSIOM ae sommegee eperg O Saye op OT 2 upaunes roy doppia 80 i ‘SanFN gard an << ‘pes op oxanp ob op seas 20} oxo posed un mass 2p on pes ab aounaqueny + -poogsdne no mya aye op opsennumntsy pou pyar | seman apevon(uee un oe poor rescue oreacuene wuswepSa S| pepenee apoacn a e309 reper ep ep ua ep anb ap onuanoquonny | aod-ane mains sop rasa y «| Fae, Spa BON 37 ROTTER + |e vedo emeony « "ap wp ctstnnge eb 2 | 2m op 2 empl ge op eimai, op epuNLED yy 2 cumpgotgn | eomany me some tp sp 2d a IA O69 « aT TRON LEP S64 PT Sem op Eau IAD sped | =prpine ep sens bb P| soda ee oon pep emo ‘do on 3 9 pinin van see Yn ne np “yoruesope orogens nan op “pemos shop orm, omy aa 21, 98 >pepemEO EP HSHP ps + {pom pep pie R tvorda a2) eempurpr nr 8 eon suman sg pond a soxpp sop > oper] mene 2 openypepiapassiourn| sexpup rouse 9p eaptodioneaugpin ane 03809 «| smisapzp 21) BHEG sop ap oawpaqummny «| _ofooen vn Huon ee + BEDE 2 tepor ‘ge sghipen en ‘nt vod pen =p ne mppntengs es amd weo'sre| “orp op asa stigorp oumgnds:odpend ommprenSeyre ow | emruuen opera 2p anol 2p onmapaquomy «| -pouranp 0 sees y «| ap up auopren spout pte nb spew 3 > om2poi + opamp) oe cured op manger Se op Oy sop prensop) exepuny oer aaa RET 4, O que é direito? 4, O QUE E DIREITO? ENTRE UMA AMBICIOSA ESPECULAGAO E UM MODESTO REALISMO STAMOS NA COLUNA DA DIREITA DA TABELA ANTERIOR ALGUMAS Re perplexidades a que conduz a aceitacao de qualquer nor- al social efetivamente vigente como norma jut(dica. Como j dissemos na conclusio de um capitulo anterior, nao podemos res- tringit-nos 20 direito do Estado, porque é claro que hd mais normas que, em algum setor da sociedade, funcionam para alguns como se fussein normas juridicas; mas também no podemos acsicar todas estas como direito, sem mais averiguagées, pois existe uma série de diividas a carecer de esclatecimento, quer quanto a sua jurisdicida- de, quer quanto as hierarquias entre elas, em caso de concradiio, objetivo deste capftulo é, portanto, 0 de proceder a uma revi- so das verses da teoria das fontes de direito ¢ da teoria da norma juridica mais tradicionais e frequentes nos cursos de introdugo 20 diteito!, perspetivando-a agora em face de duas caracteristicas civili- 1. _Bxemplo de ets (portuguese) que, embore de boa qualidade e com abernuras pésertadualisa, nfo esio ainda basicamente apoiados numa concesio plura lisa do direte:Jofo B. Machado, Inireduci ao dicune egiimadar [..} cits Josk de O. Ascenso, O dirsita Intvodupdo {ity 255-382, Femando José Bronze, Lijder de ined ao diteco, Coimbra, Caimibea Eitora, 2006, ma- ime, 683-746), Exernplos de texcuais de intcoduczo 20 dretosensiveis nova sinuaco do dirio em sociedade: Paolo Beechi, Christoph Beat Graber, Michele Luminati (Hig), Interdiniplinre Weg in der jurisischen Grandlagnforchung, Ziich wa. 2097; Thomas Vesting, Rechucheorie, Miinchen, C. H. Beck, 2007. zacionais do direito de hoje: « sua matrie plaralista, mas também a sua matriz democritica, que, além de ser largamente consensual, & também uma condigao para a sustentabilidade do direito. Nio pretendemos enveredar por uma especulacio flosofica acer- a da natureza do direito. E uma atinude decerto respeitével; mas creio que nao ajuda a resolver as questdes mais urgentes da polttica € da teoria do direito dos nossos dias. Também no pretendemos avaliar a questo priotitatiamente do ponto de vista da politica do diteito, embora a abordagem teéria 2 que se ambiciona tenha um pressuposto de polltica do diteto, que €0 da opga6 por um direito libertador ¢ democritica, por cor- responder a um paradigma civilizacional amplamente consensual gencticamente reconhecido no mundo de hoje. Nessa medida, a perspectiva politica que subjaz 4 op¢io teérica vale como uma aticu- de tealsta: considerar como preferivel aquilo que a nossa civilizagio tende consensuaimente a considerar como bom. Nos capieulos que se seguem queremos, muito mas lmitadamente, ddescrever um processo geral de identifica e de descrever aquilo quc 2s comunidades atuais, na sua diversidade, consideram como ditto. Ito no exige nenhuuna definigdo unitdria do que seja direito. Mas apenas 0 acordo sobre o processo de o identficar em cada comunidade, Esse proceso deverd cuidar, antes de mais, de ser fiel & realidade do direitos na sua complexidade, mas também na sua positividade. O que pressupée tum processo trabalhoso, complexo ¢ verificivel, de descrisio das muiltiplas formas de manifestagio ou de declaracio daquilo que a comunidade reconhece como idénco para regular as situagGes que afetam a todos. ‘A cxpansio da democracia depois no tilkimo meio século pés um enorme énfase na ideia de soberania popular e, logo, de um dizeito vinculado a vontade do povo, geralmente entendida como aquela que é «expressa pelos meios previstos no modelo de democracia representatva Nio obstante, 0 mundo mudou, também no domfnio da po- licica © do direitos por razdes que se ligam & evolucio cientifica ¢ tecnolégica, mas também em virtude de uma nova valotizacéo da a diversidade e do pluralismo das sociedades. Da ideia de uma socie- dade constituida por individuos iguais e indiferenciados passou-se para a de uma sociedade integrada por pessoas marcadas pela diver- sidade, por grupos portadores de diferengas (culturais, vivenciais [de nero, de idade de capacidades fisicase intelectuaisl, profissionais, politicas)e por redes sociais que eriam novos lagos de solidariedade centre as pessoas’. Estas novas formas de identidade e de relaciona- mento social exigem criam novas formas de expressio politica, mais diversas ¢ mais ricas do que 0 voto € 0 sufrégio. Daf que tenha surgido a preocupacio de encontrar modelos novos de construgio da democracia ¢ de um diteito democritico, admitindo novos pa- drdes de democracia que multipliquem as modalidades ¢ os nivcis de participacao politica e novos paradigmas de direito, admitindo que o direito se possa exprimie por outras formas, para além das «steduais, de modo a poder dar conta de uma variedade e complexi- dade de planos de regulagio que jd esto al pluralismo normative é, assim, um facto, antes mesmo de ser ou um ideal ou um perigos cle jé existe jé é reconhecido como o arual modelo de manifestacio de direiea Ista abiga a repensar tra dicionais formas de identifica (ou circunscrever) 0 direito. Hi alguns critétios cléssicos para circunscrever 0 dircito. Além do da origem estadual, ha o do requisito da coercibilidade. As nor- ‘mas jurfdicas teriam a caracteristica distintiva de poderem ser im- postas pela forga (supondo-s, implicita ou explicitamente, que esta forca era a do Estado). Todavia, tem-se observado que a cocrcio (virtual) para impor uma norma pode ser de muitos tipos — forga 2. A compreensio de sociedade como tum conjunto de graper, diferentemen te caracterizados ~ oposta 4 de uma sociedade de individuos indiferenciadas ~ tem sido, receniemente, 0 tSpico central das concept soci “connini- tars” (vs em sinesecipidae acesel, hup://platostanford.edulenticd communitarian), V ainda idea de “capital social, langads por socd= logos como Pierre Bourdieu James Coleman, mas deisivamente vlgaiada ppor Robert D, Putnam (Bowling Alone: Americas Decining Social Capital, 1995, ce) 6 fisica, constrangimento psicolégico, manipulacio da vontade, cria- fo de automatismos comportamentais; por outro lado, nos orde- namentos juridicos complexos dos nossos dias, hd vrias técnicas de promover a obediéncia &s normas - atribuico de vantagens, criagio de sirmagées jurfdicas desvantajosos, etc.! Também a convicgio dos destinatérios de que uma norma é de diseito (opinio iuris: vem a naturera de direito) nZo levanta menos problemas, uns de naturcea cognitiva 0 que isso de “ter a natureza de direito”?; outros de na- tureza moral ~ esse reconhecimento do direito exige acordo com os padrées de moralidade (0 que quer que isso seja)? Pode haver algo que deva ser retido nestes critérios, mas € claro que com eles no se cobtéma uma resposta satisfatéria para as incertezas sobre o Ambito das normas de dircito, pois estes critétios colocam ainda questées suplementares ¢ muito complicadas ~ 0 que é a “forca do direito?”, ‘© que sio “padrécs de moralidade que se impem ao dircito? ‘Uma solugao, bastante ingénua, mas frequentemente sugerida, 2 de perguntar ao dircito estabelecido pelo Estado quais sic as normas jurfdicas — ou, pondo a questio de outro modo (seme- thante, mas nao equivalente), de onde podem surgir essas nor- mas. Na hist6ria do diteito ocidental, o legislador teve, em alguns momentos, a pretensio de declarar que normas deviam ser tidas como jutidicas, embora frequentemente essa declaragio tivesse tum contesido pouco claro, estando, assim, & mercé da interpreta ‘gio que dela fosse feira (nomeadamente, pelos juristas). Justiniano (imperador bizantino, grande compilador do direito romano, séc. 3. Niosedevendo ainda esquecerareflectode Santo Agostino (se VD sobre necesidade de ditinguic a Forza lehin (do “Estado” da fogaiegcima (de um “bando de lade ("APesadaajustiza, 0 que foo reinos cen grandes bandos de ladises Eos bandos de adres 0 que sf, sno pequenos rinos?" (Rema tage isi, guid sot regna nix magna laracnia? (S.Agorinho, De Givitate Dei 44.1) 4. Oque}é fora reconhecdo por Ulpiano, nos. Il .C*[..]ustiiam namque calms ec bon et sequi novi prof, aequum b iniquo sepacants, licitum abit discernents, bonos non solu mera poenarum, verum ei praemiorum quoque exhortationeefcer eupientes"(D., 1.1.1.1, Upianis) “ VD 4, por exemplo, estipulou que o direito constava de normas de direito natural, de direito das gentes (i..c,, dos povos) ¢ de di- reito civil (ie., da cidade)’ (Inst last, 1, 1, 4), esclarecendo ainda que este tikimo podia ser escrito ou nao escrito, sendo formado pelo costume, pelas leis (leis ¢ os plebiscitos, sendeus-consultos constituigées dos imperadores), pelos éditos ¢ pelas opinibes dos jurisconsultos ‘, Tratava-se de uma definigio fraca, pois no seu tiltimo cermo - as opiniGes dos jurisconsultos - cabia tudo aquilo que os juristas declarassem como sendo direito. Para além disso, no direito natural, no direito das gentes ¢ no direito nao escrito (designadamente, no costume) cabia urn mundo de nor- ‘mas impossivel de delimitar. No direito portugués (e do “império colonial” porcugués), as Ordenagées flipinas, de 1604, sofrem da mesmo imprecisio, pois consideram dircito, além da lei, dos cos- umes gerais ¢ locais ¢ de certas decis6es dos tribunais superiores (assentos), o diteito romano (com a vastidio que acabamos de ver), 0 direito canénico ¢ as opinides mais seguidas dos juriscon- sultos (Ord. Fil., Il, 64). Mais precisa ¢ a delimitacio do direito feita por Napoleio, na lei que por em vigor 0 Cade civil (lei de. 30 do ventése do ano XII, 21.03.1804 ; art.° 79): «A compter du jour lt ces lois sont exécutoires, les lois romaines, les ordonnances, les coutumes générales ou locales, les statuts, les réglements, cessent d'avoir force de loi générale ou particulitre dans les matiéres qui sont l'objet des dites lois composant le présent code ». Jé o pr 10 Cédigo civil porcugués (1867, art.° 16°) circunscrevia o dircito a letra ou ao espirito da lei e aos prinefpios de direito natural, dando a interpretacao desta hima férmula lugar a enorme con- trovérsia. Talver por isso, 0 Cédigo civil de 1966 (art.® 1°) esta- beleceu um Ambito minimo e hiper-legalista para o direito (Art. 19. 1 - “Sao fontes imediatas do direito as leis ¢ as normas corpo- rativas"), que a doutrina logo declarou como um disparate. J& no 5. CE epifen skip ogi cinian 6. _V. hapilen-vkipedia.orwikRoman_law; Anwénio M. Hexpanka, Gale jure enopta fo cy 6 Brasil, o Cédigo Civil de 1917 nao definia 0 elenco das fontes de diseito; uma definigio apenas apareceu, em 1942, com a Lei de introdugao ao Cédigo (dec.lei n° 4657, de 4.9.19427, cujo arc, 4° lista as fontes de direito principal e subsididrio: “Quando a lei for omissa, 0 juiz decidird 0 caso de acordo com a analogia, os costumes ¢ os principio gerais de direito”. Este elenco é bastante aberto quanto as fontes de direito subsidrio, o que tem facilitado & doutrina brasileira um reconhecimento mais franco do cardcter jurfdico de normas nio estatais *. No plano constitucional, uma das formas mais claras de reconhecimento do pluralismo é 0 art.° 231, n° 1, da CREB relativo aos usos ¢ costumes indigenas sobre o tuso ¢ transmissio das tetras ttadicionais da comunidade. E, mais latamente, 0 art.° 109 comete aos juizes federais conhecer das dis putas sobte direitos indigenas (al. XI). As constituigées, em que pareceria que se deveria encontrar fespondida uma questio tio fundamental como a definigio das normas de convivéncia social, sio geralmente muito prudentes nesta matéria, quando nao totalmente omissas. A Constituicio Portuguesa de 1976 também se revela pouico produtiva quan- to a este ponty, cuibura deixe umas pistas titess, Lé-se no art. 3% que “2. O Estado subordina-se a Constituigao ¢ funda-se na Iegalidade democritica. 3. A validade das leis € dos demais atos do Estado, das regides auténomas, do poder local e de quaisquer outras entidades piiblicas depende da sua conformidade com a Constituigéo”. Ou seja, a Constituigio estabelece: (i) 0 primado da Constituigso sobre toda 2 atividade, normativa ou nio, dos Renomeada, em 2010 (Lei nnormas do direto brsleico.” 8. V,, numa sites il, Felipe Quinella Machado De Carvalho, “Fontes do dite ‘0 brasileco:histrico, atuaidades ¢ ranformagSes", mm hup-/Awwwvarbio- jidico.com.br/tefindex php?n_linkerevist_anigos leicua8eatgo ide7338,, 9. Os exemples americanos mais interessantes io, porém, os da Boll, Equa dor da Coldmbia. Pare a questio, em geal, v ep / wren orgesalsocden! ‘unpfi/documents/DRIPS_es pdf hap: /wvcinu.org.ma/temasp_in tn, 176, de 30.12.2010), de *Lei de Ineroduso as 66 entes piiblicos; o que pressupée, por identidade da razio, que a Constituigio se imponha também aos atos de parciculares criado- res de efeitos juridicos (cf. art.» 18, n° 1 da CRP); (i) 0 prinetpio de que o ditcito do Estado se exprime através da lei democritica!®, Estes critérios para a defini¢o do direito foram estabelecidos solenemente (pelo processo mais solene previsto nos mecanismos de governo democritico), mas apenas para aquele direito produzido pelo Estado, porque durante muito tempo se entendeu que a cons- trugio de um governo ¢ de uma regulagio democriticos se tinha que fazer exclusivamente a partir do Estado democrético represen tativo, Daf que nada que nao proviesse do Estado podia set dircito. Por isso, era concraditério que a constituigéo do Estado se ocupasse de uma definiso das fonces juridicas com um ambito mais vasto do que o do Estado. Hoje, esta ideia esté em crise, pois se tende cada vez mais a pen- sar que a democracia representativa ¢ os seus mecanismos de colher ‘5 consensos sociais nfo esgotam a democracia. E que, por isso, a vontade comunitaria de reconheccr uma norma como dircito se pode detetar por formas diversas dayuclas previstas na constituig20 para a identifcagao do dircito estadual, Nestes termos, a ideia de ir buscar a0 direito do Estado uma norma de reconhecimento do direico em geral envolve a mesma falha ldgica que constituiria pedir a parte uma definigéo do todo. Isto vale mesmo quando o direito estadual toma uma posigao expressa sobre os contornos do dircito, ‘ou para o reduzir as fontes legislativas, ou para reconhecer genero- samente 0 pluralismo, ou para o reconhecer de forma limitada, No Primeiro caso, continuaré a verificar-se que a sociedade eventual- mente reconhece como jusfdicas normas no estaduais. No segundo caso, 0 reconhecimento ¢ irrelevante, nao residindo sequer af a Fonte de legitimidade do direito nao estadual. No terceio caso ~ de que sfo exeimplo as ordens juridicas de alguns palses afticanos de lingua 10. Por sua ver, oarc® 112° da mesma CRP enumera os “acs legislative”. or oficial portuguesa" -, © reconhecimento do pluralismo é aparen te, limitado e também supérfluo. Aparente, porque subordina as dens juridicas nfo extatais & constituiglo ea lei, para além de im- plicitamente ndo Ihes reconhecer sendo uma legitimidade derivada. 1. A Const de Angola, depot de saber que“ Replica de Angola um al Daoctn de Dnt acu cn indamertana sensor « prima da Contino eda." t® 21, "x Coa Ee supeema de Repl’ fr 6,11), queoBxado esubontina “s Consgo bel fands na egaidde,devendo pita e fret reper ase” ae 2), dedara expesamente uo dito wadional ex iad pelaconsiuszo «pla digitade da psa human? (Argo 7 (Comme) “Ero v lade efor jurado comnume que ios ones 3 Conti nem ace can ii rem 7930 Roce Ob eat 0 papel a fnctes dining do poder a onal consuls de scond com odio consuenuindn que nfo ene 2 Conscinige2. 0 recnheciment ds insigbs do poder tational obi 28 enidaes pias prada epee ar sles core qs in tui, os vals e aoa conseriinkioscscvador no cio das oni police comunicis edicionaise qu io sam confivaes com a Cons ‘Fonemcom digidaed pes humane” dra pr um nso ‘ent reais abet dum dito no coal &jtamente ena rene vigtncia de uma ordem nat deriva da dignidade da pessoa humana Sobre a quato, «Cats Fei A ecinie matt ent» Eada rida cts acon na order pl engalens, Cima, Aledo, 2012. Em Mocambiqus, asintcn éprarcamentes mesa. Oar. 20 1° da Cnio ‘umber dedara quo Esa se “aborin (se & Cn ese“hnda se] ‘lida’, srocenando o a° 4 quc "as normas constuconais prealces sobe oda 8 retants noma doordenament urd”. Tal come Ang reconheces limitadament o pluralism jr ar®4:"O Ese econo oF vito sistemas rrmativs de solo de confor que ccs na socindade moana, na medida em que nf cone of valores e principio funda et da Gna bercono aad adc 81 © reconhec valor train liad pls popuages¢ coe. 0 direito consuerudinério"), Sobre o renva, v. Carlos Mansel Ses “Es. ulsmo jure erecusos acura (rm hap ongma/IMGI plies Word Tabalo. Polina Juridica 1p, Bosemura 8 Sos" erin ai on Banc Su Cidade (ng) Conte Tafsir uma Paige dam Movanbigue, Ros, Afemoment, 203, 1.4755 6 Limitado, porque apenas se refere as ordens juridicas tradicionais, ‘mas nao jé a outras esferas de producio normativa. Supérflua, pois, como se disse, os contornos do direito nao padem, logicamente, ser definidos por uma das ordens juridicas que o compéem. Em todo o caso, a referéncia constitucional 3 legitimidade do direito do Estado a partir da soberania popular e aos processos de- moctdticos da sua fixago indicia que é razodvel esperar que a so- ciedade que assim se exprimiu relativamente 20 dircito do Estado, considerando-o como legitimado pelo princlpio democritico, adira, em geral, a este mesmo prinefpio como critério de fuxago do di- reito em geral. E, mais do que isso, que prefira o direito formal do Estado a uma qualquer outra constelagio normativa estabelecida sem os mesmos cuidados de 2 entaizar num consenso abrangente, igualitirio, justo c livre. Embora néo garantidamente vAlida, trata- se de uma proposigéo com elevado grau de ptobabilidade que, por isso, pode ser adotada como tegra de heuristica para encontrar um critério - o da consensualidade comunitéria, ou da democraticidade = tanto para a identificagéo das ordens juridicas vigentes na comu- nidade, camo para ponderar a sua hierarquia relativa, valorizando aquelas que parega reuniram um melhor"? consenso comunitério. Apesar desta prestncio pode, porém, acontecer que, apesar do que ficou declarado na constieuigio, a comunidade manifeste - por meios idéneos"? — aceitar como direito outras normas, para além das que tiverem sido estabelecidas pelos processos constitucionais. ‘Ou mesmo que reconhega a estas outras normas primazia sobre as que provém dos drgdos do Estado democratico, Perguntar a0 dircto oficial qual €o ambito do diseito nfo resolve, portanto, o problema da imprecisao da ordem jurfdica, para além de fazer incorrer numa petigéo de prinefpio: se supomos que hé mais direito do que o dircito estadual ~ recordemos que esta era a raiz.do problema, como vamos atribuir justamente ao direito estadual a 12, Nosentide que acima se exprimiu, 15. Ouse, por meio de instincas a ques ela reconhega a capacidade de dizer qual Eodireito—a comperéncia jarsdicional (is + dices, declaragio do dict). 6 legitimidade para declarar que outro ditcito ¢ esse? Por outto lado, & © proprio dircito estadual que, quase sempre, prevé que certos casos juridicos nao possam ser resolvidos pelas suas normas', devendo sé- Jo por outra forma prescrita pelo direito. Isto corresponde 2 admissio de que h4 outro direito para além do expressamente declarado na lei (costume, opinides dos jurisconsultos, principios gerais, ctc.)!*. Fi- nalmente, nio raramente o dircito oficial, na constituigéo ou noutras leis, remete para ordens normativas cujo conteido nio é definido por ele: prinefpios gerais do direito (como no caso brasileiro), pre- valéncia dos direitos humanos (idem), prinefpios fundamentais do Estado de diteito democtético (como no caso portugués), principio da dignidade humana (como no caso de Angola). Encontramo-nos, assim, ainda a bragos com a mesma questao: ‘como decidir quais so as normas — de entre aquelas que regulam cor- portamentos sociaise cuja vigénciaefetiva pode ser observada ~ que sio normas juridicas ¢ em que Ambito comunitirio ¢ que o sio? Isto corres- ponde a saber como sc hi-se reconstrur a teoria das fontes de diteito. Antes de abordar esta questo, no capitulo seguinte, algumas consideragdes sobre o impacto das varias opcées na perspetiva da politica do direito que subjaz.4 andltse aqui feita ~ a de um direito libertador e democritico, i. Vig Céd, Civ, Pore. 1966, ar.°10° (ntegragio das lanes da lei): “1. Os ‘casos que a lei nfo preeja sfo regulados segundo a norma apicsvel2os casos antlogos. 2. Hi analogia sempre que no cato omisso procedam as rzbes ju ‘ifcativa da regulamentacdo do caso previsto na lei. 3, Na falta de caso and logo, siuagio ¢tesolvida segundo a nozma que o propio intérprete criti, st houvesse de legislar dentro do esptio do sistema”. Ou ainda a jd cicada lei de Introducio is normas do direto brailete. 15, Podiase entender que tudo que nto fosseregulado pelo drcco era indiferente ‘20 dirito (cava stuado num “espago livre de diteta", em que todos os com- pportamentos sf livres, nfo havendo nem conidutas obrigatéias, nem condutas, proibidas, nem sequer permitidas ef, Antonio M. Hespanha, O caleidascpis’ Look Sts pp. 699 s. Mas isto néo corresponde a0 senso comum e, pot iso,

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