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J.

Pinto da Costa

CURSO BÁSICO DE MEDICINA LEGAL

Elsa Minho

2009

Prof. J. Pinto da Costa

SINOPSE DOS TEMAS ABORDADOS

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J. Pinto da Costa

MEDICINA LEGAL
Duas palavras, na abrangência histórica reguladora do comportamento humano,
a princípio de situações estremadas raiando a dualidade máxima da vida e da morte.
Depois na apreciação de certas atitudes ponderadas à luz de um sentimento ético no
espaço e no tempo.

O entusiasmo por si próprio de como se é feito por dentro levou historicamente


André Vesálio (1514-1564) a furtar cadáveres de enforcados para dissecar. É obra de
arte a Fábrica, que regista as suas imagens.

Ambroise Paré (1510-1590) é também uma referência na Medicina Legal.

Falamos muito de morte no trivializar de que a Medicina Legal seria a medicina


dos mortos. Sim, mas não só. Então o que é a Medicina Legal, como utilidade social
para o século XXI?

Obviamente também a morte como tabu a desbravar nas avantajadas questões


subjacentes. Mas, se retirarmos uma fatia a um queijo, o que fica? Um queijo. A fatia
seria os mortos do grande queijo que semelhantemente é a Medicina Legal.

Medicina Legal é todo um conjunto de conhecimentos médico-psico-biológicos


aplicados ao direito nas mais diversas expressões deste, direito civil, direito penal,
direito do trabalho, direito administrativo e muitos outros.

Para certas expressões quando não há expressão no direito há previamente a


ética, a moral, os costumes, a tradição, os padrões mágico-religiosos. Provavelmente, a
Medicina Legal criminal salta da memória de Caim ao matar Abel e a Medicina Legal
sexual na representação da maçã-de-adão e Eva.

A Medicina Legal na sua abrangência sem barreiras, essencialmente


antropológica, passa pelo começo de fazer gente, pelo respeito pela vida, pela
identificação de cada um, pelo seu enquadramento grupal, pela manipulação da própria
vida pelos outros ou por si só.

O pensamento humano e a sua aplicação prática molda-se no tempo, fomentando


a diferença que levou a que hoje não estejamos na idade das cavernas.

Tudo muda, depressa ou devagar. É difícil sermos actores e espectadores


simultaneamente. Não é fácil na cultura ocidental do usa e deita fora, contrariamente à
cultura do oriente, em que se acrescenta sem rejeitar nada, manter princípios de grandes
pensadores, actualmente muito contestados.

Dizia São Tomas de Aquino (Réplica) que “cada pessoa individualmente é


como se fizesse parte do todo. Portanto, se um homem é perigoso para a comunidade e
a subverte por algum pecado, o tratamento a recomendar é a sua execução para se
preservar o bem comum”.

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Para Santo Agostinho (Civitas Dei) “a pena de morte não é apenas lícita, mas
necessária para a saúde do corpo social. Ao encarregado da sua aplicação cabe
aplicá-la como é devida, com as provas necessárias para que não se pratiquem
injustiças”.

Novo é sempre o conhecimento a somar ao que já possuíamos, o qual poderá


interferir com práticas anteriores, sabido é que em ciência o conhecimento altera-se em
30%, de cinco em cinco anos.

Actualmente, com o vertiginoso lançamento rápido, em cima do acontecimento,


de técnicas mais apuradas para conseguirem menos tempo antecipar os resultados,
transforma a biotecnologia mediante a leitura óptica.

Para obter um resultado contra o tempo, consegue-se hoje em segundos o que


num passado de trinta anos exigia dias ou semanas. A tecnologia que aprendemos,
mesmo que ela exista há muito para outros, é sempre nova.

Há uma obrigação moral de permanente actualização para que os resultados


conseguidos sejam os mais credíveis à luz do pensamento técnico-científico considerado
adequado no espaço e no tempo, para esclarecimento da verdade.

Há toda uma experiência anterior, englobando técnicas visuais de diagnóstico,


pela inspecção do cadáver, as quais, para quem não possui tal conhecimento, constituem
novas tecnologias em medicina legal.

O diagnóstico pela cor do cadáver, cuja imagem no arquivo memorial do


técnico, em registo anátomo-patológico, constitui uma técnica de relevância médico-
legal.

Os progressos tecnológicos a nível do sistema de saúde atingiram um nível de


diferenciação muito superior aos do Ministério da Justiça pelo que a capacidade de
resposta da medicina legal oficial do Ministério da Justiça centralizada por lei num
Instituto Nacional de Medicina Legal não acompanha as necessidades reais do País.

Sem apurar as causas de tal situação, é preferível reflectir sobre o manancial


técnico-biológico susceptível de colmatar as carências de momento em material
funcional e em recursos humanos nos Institutos de Medicina Legal, analisando, com
humildade, a situação sem pânico nem teimosia de quem quer correr a pé para atingir o
comboio que partiu há muito.

A Medicina Legal tem uma dimensão social e humana sem limites. Ela deixou
de ser apenas a Medicina dos “tiros e das facadas” para se ocupar da figura humana na
plenitude dos seus anseios e dificuldades. Obviamente visada no controlo de um Estado
de Direito, com suas regras eticamente assumidas e, na maior parte dos casos,
codificadas na lei.

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Pretende-se que a Medicina Legal possa contribuir para uma administração da


Justiça mais humana, mais exacta, de forma a obter o equilíbrio das pessoas em
sociedade distanciada dos princípios medievais.

Não raras vezes, depende do perito médico-legal a decisão do Tribunal, podendo


arrastar como consequência a impunidade de um crime ou a condenação de um
inocente. Árbitro dos resultados das suas próprias investigações, o perito tem, em
Medicina Legal, um papel tão nobre corno o dos juízes, senhores absolutos do destino
de pessoas que o meio ou as circunstâncias impossibilitaram de evolucionar ou
lançaram em caminho desregrado, por egoísmo e incúria dos que lhe são iguais em
direitos e em origem.

Consciente da sua força, possuidor de importantíssimos elementos de decisão, o


médico-legista deve pesar as suas palavras, medir o alcance das suas conclusões, para
tranquilidade da sua consciência e apanágio da sua probidade.

O conhecimento amplo e penetrante dos progressos médico-legais, procurando e


copiando nos mais diversos países o que eles têm de melhor, permitiu à Medicina Legal
portuguesa, actualmente com deficiências, uma significativa melhoria atingida nos anos
80.

A pessoa humana hoje enquadra-se numa Medicina Legal da sua época, tentando
medir o seu melhor ou pior ajustamento às situações concretas que a dinâmica social lhe
impõe e da qual é duplamente actora e espectadora.

Não pretende a Medicina Legal fazer leis mas, como ponte que é entre a
medicina e o direito, cabe-lhe, especificamente, a análise científica das questões, de
modo a proporcionar um desejável equilíbrio entre ambos, com mira na dignidade da
pessoa humana como ser superior.

É curioso observar que a maior parte das pessoas, muitas delas ultrapassando o
nível médio da cultura, desconhece o significado exacto da Medicina Legal. Este
significado passa pela necessidade e utilidade da divulgação da Medicina Legal aos
médicos e aos juristas e a toda a população de um modo geral.

É importante desmistificar a noção da Medicina Legal ser somente a medicina


dos mortos. Se em alternativa tivéssemos que escolher entre medicina dos vivos e
medicina dos mortos seríamos forçados a optar pela primeira, pois que se realizam
milhares de exames de clínica médico-legal, isto é, de vivos, por ano, enquanto as
autópsias no mesmo período representam sete vezes menos.

Desde sempre realizaram-se mais exames nos vivos do que nos mortos. Mas
para justificar a pseudo-reforma, com a criação do Instituto Nacional de Medicina
Legal, em Julho de 2000, dizia-se que era necessário transformar a medicina dos mortos
na medicina dos vivos, o que é uma falácia, porque ninguém pode transformar o que já
estava transformado. Os números são disso exemplo concreto porquanto no princípio do

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século registavam-se para 3397 exames de vivos apenas 336 autópsias para o mesmo
período de tempo.

A Medicina Legal compreende dois graus consoante interfere com o


conhecimento acessível próprio com a profissão médica, em si mesma (Medicina Legal
Restrita) ou aplica o conhecimento científico de outros ramos, para além da Medicina já
no âmbito mais alargado da ciência forense (Medicina Legal Ampla).

A Medicina Legal, como ciência, em qualquer das suas perspectivas apontadas,


é eminentemente social e contribui para a promoção da saúde das populações no
conceito de saúde da OMS de bem-estar físico, mental e social.

Quando ainda não há direito relativamente a questões de comportamento


humano, não significa que não exista já Medicina Legal. Muitas vezes, ainda não há
nenhuma lei porque o direito, necessariamente, tem de acontecer tardio, após reflexão
demorada, ponderada, analisados no tempo todos os problemas morais, éticos, costumes
e religião. Mas por não haver nenhuma lei não quer dizer que já não seja medicina legal.

Na prática, Medicina Legal e Medicina Forense são sinónimas. É o que decorre


da leitura de qualquer tratado em língua inglesa que apenas refere “Forensic Medicine”
independentemente de ser apenas “forense” ou mais para além “legal”. Quer dizer, em
rigor semântico, a Medicina Forense seria apenas a parte da Medicina Legal relativa a
todas as questões em Tribunal (foro, barra).

A Medicina Forense é o aspecto prático. Em boa verdade, Medicina Forense


seria a aplicação de conhecimentos médico-psico-biológicos quando já estamos ao nível
do foro, quando há acções em tribunal, quando a questão já subiu à barra. Mas na
prática não é necessário que esteja em tribunal determinado assunto. As autópsias
médico-legais e os exames nas pessoas vivas seja para efeitos de acidentes de trabalho,
na avaliação do dano, para efeitos civis, malefícios decorrentes dos acidentes de viação,
dos sinistrados ou, na perspectiva criminal qual foi o dano que surgiu, quando um
indivíduo dá uma facada no outro, se foi por acaso, se teve alguma intenção, se as
características do ferimento demonstram ter sido voluntário ou não. Estamos aqui a falar
de presunção médico-legal da intenção de matar, não decidiu sobre essa intenção pois é
o tribunal é que tem essa competência. A função médico-legal prática é objectiva.

À medicina legal compete estudar e dar opinião sobre determinados tratamentos,


por exemplo em caso de responsabilidade médica, o mesmo se aplicando ao
desempenho da clínica médica, clínica cirúrgica, obstetrícia e ginecologia, entre outras.

Em regra, as pessoas só se lembram da Medicina Legal quando precisam dela. O


envolvimento em diferendos com a saúde de cada um e a necessidade de responsabilizar
quem provocou o mal é, em suma, a essência da prática médico-legal habitualmente
incómoda, porque havendo duas partes em contenda, uma delas não gosta da decisão,
enquanto a outra fica satisfeita por lhe ter sido, de algum modo, reparado o dano que lhe
foi causado.

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Uma decisão imparcial será sempre bem aceite por todos pela credibilidade de
intervenção com independência e só mediante a observação objectiva e desapaixonada
da perícia médico-legal.

O estudo da morte, como parte integrante da medicina legal, ganha força na


designação de Tanatologia Forense. Ninguém quer morrer, salvo situações especiais em
que a vontade do próprio, por motivações diversas, ultrapassa o instinto de conservação
da vida.

Uma das funções do médico, a mais triste de toda a sua actividade profissional, é
a verificação do óbito de uma pessoa, sempre responsável mas muito mais
constrangedora quando a verificação cabe numa pessoa que foi sua doente. Ele deverá
colher um certo número de sinais indicativos de que morte é uma realidade irrefutável,
para que não haja hipótese de dúvidas, como outrora se levantaram, sobre a
possibilidade de uma pessoa “morta” ser enterrada viva.

A certificação do óbito é talvez a mais comum das tarefas de todo o médico


relacionadas com a morte. Haverá ainda outras de carácter médico-legal, como a
definição de morte cerebral, para se estabelecer quando pode uma máquina ser
desligada porque a vida não teria qualquer razão já que não poderia haver vida, por si
só, além de uma vida vegetativa auxiliada por maquinismos.

Competirá ainda à medicina legal a realização de autópsias médico-legais,


quando há suspeita da morte poder ter sido criminosa, quando a morte não é
devidamente explicada, quando não se sabe porque a pessoa morreu, nos casos de
intoxicações, nos acidentes de viação e aviação, os acidentes de trabalho e, de um modo
geral, sempre que seja necessária a confirmação do diagnóstico para que as famílias
possam receber uma indemnização quando for caso disso.

Em três circunstâncias é necessário verificar o óbito:

1ª Para inumação ou cremação;

2ª Para colheita de peças cadavéricas para transplantações ou ensino;

3ª Para autópsia.

No primeiro e no terceiro caso, compete ao médico assistente ou à entidade


sanitária local certificar o óbito na impossibilidade daquele. Apenas não compete às
entidades sanitárias a verificação do óbito quando o cadáver se encontra em instituições
hospitalares, cabendo neste caso ao médico do hospital esse dever.

No segundo caso, a morte terá de ser certificada por dois médicos não
pertencentes à equipa que procederá à colheita dos tecidos ou órgãos, devendo, pelo
menos um deles ter mais de cinco anos de experiência profissional. Além disso, também
o cirurgião e a respectiva equipa médica que procederam à colheita devem igualmente
certificar a ocorrência do óbito. Os médicos que procederam à colheita lavrarão, em

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duplicado, um auto, no qual registarão a identidade do falecido, a data e hora da


verificação do óbito, o nome dos médicos responsáveis e o destino dado aos órgãos ou
tecidos recolhidos.

O estudo dos mortos, classicamente conhecido por Tanatologia (tanatos =


morte) e, mais recentemente, na designação moderna de patologia forense, por
influência da língua inglesa, é, historicamente, o campo mais trabalhado desde longa
data nas ciências médico-legais.

A patologia forense engloba o exame tanatológico no qual sobressaem a


perinecroscopia, isto é, o exame do local em que ocorreu a morte de um indivíduo cuja
causa interessa à justiça averiguar e o exame da vítima nesse local.

A necroscopia é a autópsia com as preocupações jurídicas que acompanham as


alterações do corpo, o diagnóstico da morte, a data da morte, os tipos de morte, quer de
morte natural nas suas formas de morte lenta, em regra precedida de agonia, e a morte
imediata. Ela compreende ainda a morte violenta resultante de acidentes comuns ou de
trabalho, de homicídios, de suicídios, ou de ofensas corporais a que se seguiu a morte.

A morte suspeita é a morte súbita cuja causa jurídica permitirá que seja
esclarecida, por meio da autópsia médico-legal, em morte súbita de causa natural ou
morte súbita de causa violenta.

Por meio da autópsia médico-legal estudam-se causas de morte acidentais


domésticas como queda de escadas, electrocussão, ingestão de tóxicos, acidentes de
trabalho, acidentes ferroviários e acidentes de viação.

Quando se encontra um corpo humano que se suspeita que esteja morto, e o


óbito não tiver sido verificado no local pelo INEM, o médico-legista dará a sua opinião
técnico-profissional, respondendo a perguntas ou orientando a entidade policial sobre o
melhor caminho a seguir na investigação ou elucidando sobre a data da morte quando a
morte tiver ocorrido fora dos estabelecimentos de saúde pública ou privados. Um
cadáver encontrado em certo local deve ser fotografado antes de ser deslocado para o
respectivo exame.

Para que se proceda à inumação não basta a certeza da morte. É preciso que a
identidade do falecido esteja rigorosamente determinada. Ao delegado de saúde
compete verificar se o corpo morto é do próprio. É o que habitualmente se verifica nos
institutos de medicina legal quando, terminada a intervenção médico-legal por meio da
respectiva autópsia, o delegado de saúde intervém novamente para verificar e certificar
se o cadáver é transportado nas condições sanitárias previstas na lei.

A autópsia médico-legal é uma tarefa a que todo o médico ou médica está


obrigado por lei quando para tal for nomeado pelo juiz.

Na Tanatologia englobam-se múltiplas questões que os peritos médicos terão


que enfrentar. Entre elas a submersão reveste múltiplas dificuldades. O aspecto do

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cadáver varia com o tempo de permanência na água, com a temperatura desta, correntes
marítimas, sendo diferente na água doce ou salgada. O cogumelo de espuma na boca ou
nas narinas é um sinal com bastante interesse. A cabeça de negro e as proporções
gigantescas do cadáver por impregnação de gases de putrefacção nos tecidos são
frequentes no cadáver submerso quando tirado da água. A presença de diatomáceas
pode permitir o diagnóstico de submersão e até o local em que ela aconteceu.

O enforcamento com seus sinais externos e internos, a crítica da respectiva


informação e o exame do local é um dos assuntos que o médico enfrenta com frequência
na sua vida prática.

A electricidade e as lesões que produz no corpo humano caem no âmbito da


clínica médico-legal quando a pessoa não morre e no âmbito da Tanatologia quando a
morte surge.

Os ferimentos por arma de fogo exigem do perito médico um diagnóstico


correcto para que se presuma da intenção de matar.

Os casos de infanticídio (morte criminosa de recém-nascido) e de morte por


maus-tratos nas crianças são também aspectos da Tanatologia. Eles terão que ser
distinguidos dos caos de morte natural.

No caso de infanticídio, a existência de panos, cordéis, atacadores de sapatos,


gravatas e outros instrumentos, poderá identificar o criminoso. A experiência criminal
indica que é praticamente impossível um criminoso actuar sem deixar algum vestígio da
sua actuação.

Múltiplos problemas relacionados com a inumação (enterramento) do cadáver e


com a exumação (desenterramento) pertencem ao capítulo da Medicina Legal dito
Tanatologia.

Em suma, a imagem da Tanatologia Forense exterioriza-se pela objectividade da


autópsia médico-legal como acto constituído por quatro partes:

• A chamada informação. Tudo o que saiu sobre o caso e criticar a


informação no sentido de orientar os passos seguintes.

• O exame do local onde está ou esteve o cadáver, onde existem múltiplos


vestígios.

• Exame do cadáver vestido e nu, por fora e por dentro, observação


minuciosa da pele, tatuagens, sinais de picada, ferimentos e cicatrizes.

• Exames complementares da autópsia, neles compreendidos os


microscópicos, químicos, biológicos entre muitos outros.

A Sexologia Forense é um dos grandes capítulos da Medicina Legal.

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A pedofilia, dita perversão para uns e doença para outros, veio despertar a
relevância médico-legal da sexualidade, aliás há longos anos de conteúdo estampado na
lei por outras palavras.

A Medicina Legal Sexual abrange múltiplas situações do convívio das pessoas


humanas, de sexo diferentes, do mesmo sexo e ainda certos comportamentos de
humanos com animais como é o caso de animais no bestialismo ou de objectos.

A Sexologia Forense, ou médico-legal como preferem os franceses, engloba uma


vasta lista de questões, isto é, toda a aplicação de leis ao sexo. Os crimes sexuais estão
definidos expressamente na lei actual, designadamente a coacção sexual, a violação, o
abuso sexual de pessoa incapaz de resistência ou de pessoa internada, a fraude sexual, a
procriação artificial não consentida, o tráfico de pessoas, o lenocínio e os actos
exibicionistas.

De um modo especial, a Sexologia Forense engloba ainda o abuso sexual de


crianças, o abuso sexual de menores dependentes, os actos sexuais com adolescentes, o
lenocínio e o tráfico de menores.

Fora deste contexto limitado e relacionado com o sexo, o aborto consta também
do Código Penal.

No capítulo da sexologia forense, os exames médico-legais podem ser


relacionados com crimes de ofensas sexuais (violação, estupro, atentado ao pudor),
aborto criminoso, desfloramento, gravidez, parto, impotência, determinação do sexo,
homossexualidade e intersexualidade.

Em casos de crimes sexuais podem encontrar-se objectos importantes como


preservativos e manchas de esperma. Para o diagnóstico Médico-Legal do aborto
criminoso pode contribuir a presença, no local, de pastas intra-uterinas, comprimidos
vaginais, hastes de laminária, pau de vide, sondas rígidas, tálamos de penas de ave,
varetas de madeira, de vidro, ou de metal (como, por exemplo, vareta de guarda-chuva,
agulhas de croché e agulhas para fazer meia) fósforo, cânula, osso e casca de olmo, e
medicamentos e drogas, de um modo geral.

Nos primeiros tempos, a Medicina Legal quase que desempenhava papel de


ciência de aplicação prática intimamente relacionada com o Direito Penal, por motivo
de julgamento criminal do comportamento humano.

Não se esgota na lei penal a definição de certos princípios obrigatoriamente a


seguir, como a impossibilidade de casamento de dois indivíduos do mesmo sexo, o
casamento de viúvas apenas consentido antes do prazo nupcial (180 dias) mediante
prova de que não existe gravidez.

Questões diversas como a transexualidade, a procriação artificial, a clonagem, a


barriga de aluguer e muitas outras originam a intervenção médico-legal.

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Como o nome evidentemente sugere, a Clínica Médico-Legal é toda a clínica


aplicada às questões de direito e constitui o maior contingente de intervenção médico-
legal em qualquer caso pericial humano.

A nível criminal cabe a definição das consequências temporárias e permanentes


resultantes da agressão e a presunção médico-legal da intenção de matar o que
subentende a intenção com que os ferimentos foram feitos. Tais exames não podem ser
realizados de qualquer maneira. Há normas, há regras que devem de ser cumpridas e
que por isso necessitam de ser conhecidas.

Ao realizar os exames de clínica médico-legal devem observar-se


minuciosamente as lesões existentes para que seja atribuída a mais justa reparação à
vítima. As características dos ferimentos e o instrumento empregado na agressão
permitirão ao perito presumir se houve a intenção de matar.

No âmbito do Direito Civil a indemnização no caso de acidentes de viação


resulta de uma criteriosa observação da vítima.

O mesmo se aplica a propósito dos acidentes de trabalho, interpretando com


saber e prudência a disponibilidade das Tabelas legalmente aprovadas.

A modernidade do comportamento humano exige o diagnóstico e a avaliação de


toxicodependentes com resposta aos requisitos formulados a propósito de cada caso.

A Medicina Legal no âmbito dos vivos lida com as vítimas de criminalidade


sexual, maus-tratos familiares e de menores, diagnóstico da capacidade para exercício
profissional, justificação de faltas ao trabalho e todos os exames que forem requisitados
pelo Tribunal.

No campo civil, um dos aspectos de maior relevância social na medicina legal é


a investigação da filiação pelos grupos sanguíneos e outros marcadores genéticos, os
quais, para além da exclusão de paternidade permitem o encontro probabilidade
cumulativa de 99,99%.

A Medicina Legal do sangue foi durante largos anos uma temática de difícil
aplicação na Medicina Legal. A afirmação médico-legal da problemática da
hereditariedade pelos grupos sanguíneos foi, sem sombra de dúvida, uma das
dificuldades e é agora um dos aspectos prestigiados na Medicina Legal.

O sangue, quer através dos grupos sanguíneos quer por outros marcadores
genéticos permite uma resposta nas questões de hereditariedade que há alguns anos era
impossível mormente pela não aplicação prática do DNA.

Desde sempre a humanidade mergulhou-se nas mais diversas conjecturas de


modo a que apenas no século XIX, mercê das descobertas do monge Gregório Mendel,
a questão de hereditariedade assumiu um carácter científico.

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Mendel foi o primeiro a fundamentar as suas hipóteses e o seu modelo em


observação quantitativas tratadas estatisticamente. Mas a hereditariedade humana foi
preocupação muito antiga mesmo antes de Cristo. O grego Hipócrates, pai da medicina,
cerca de quatrocentos anos antes de Cristo, chamou a atenção para o aparecimento de
certas características humanas como o estrabismo e a calvície em certas famílias.
Também notou que a epilepsia e uma doença dos olhos que levava à cegueira nos
velhos apareciam numas famílias e não em outras.

Os gregos conheciam algumas doenças e tinham a noção de que uma certa


constituição física provocava imunidade enquanto outro tipo de constituição levava a
uma sensibilidade maior para contrair enfermidades. Com o correr dos tempos estes
preciosos conceitos foram esquecidos e só muito mais tarde, já no Século XVIII, Pierre
Maupertuis voltou a chamar a atenção para o interesse pela genética humana. Estudou
várias famílias em que surgiam casos de polidactília (dedos a mais) e albinismo,
analisando os resultados sob a teoria da probabilidade. Os seus valiosos estudos não
tiveram a repercussão conveniente pela ignorância dos seus contemporâneos. No fim do
Século XIX, Francisco Galton deu um grande impulso à genética humana que se
desenvolveu lentamente, até que uma nova página da história da hereditariedade foi
voltada com Gregório Mendel.

A partir daí, são inúmeras e permanentes as aquisições de conhecimentos que


nos últimos anos têm concedido à genética humana o papel de ciência que mais tem
contribuído para o desenvolvimento e certeza das conclusões médico-legais nas
questões de filiação.

Na maioria dos casos os tribunais recorrem à Medicina Legal para averiguar a


paternidade. É uma questão decorrente do Código Civil que admite a verdade biológica
como prova material atendível. Quando a exclusão não foi obtida pela análise
laboratorial, os tribunais pedem aos peritos que indiquem a probabilidade da
paternidade. Esta probabilidade varia consoante o número de sistemas genéticos
disponíveis para definir a individualidade biológica.

Tradicionalmente considerava-se, ainda que hoje erradamente alguns o façam,


apenas a exclusão de paternidade como prova segura e que seria impossível a afirmação
da paternidade do ponto de vista técnico. Actualmente, este conceito foi ultrapassado.
Há necessidade de uma permanente actualização em face dos progressos científicos cujo
desconhecimento não pode nem deve prejudicar a aplicação da melhor.

Para além deste aspecto, o estudo das manchas de sangue, em diversos objectos,
constitui prática importante no capítulo da Medicina Legal do sangue. Haverá que, em
primeiro lugar, averiguar sobre a possível natureza sanguínea da mancha, e no caso
positivo, determinar se a sua origem é humana ou animal.

A Toxicologia Forense é parte integrante da medicina legal. Na actualidade, não


é possível conceber a Medicina Legal sem a problemática dos tóxicos sob vários
ângulos, na sua expressão de confronto com a Justiça em múltiplas situações. Já não é

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apenas o interesse criminal da questão. Em caso de suspeita de envenenamento podem


ter interesse para posterior estudo laboratorial os seguintes pormenores do local: frasco
e drogas (medicamentos), restos de refeições, copos, canecas, pratos e seu conteúdo,
toalhas e panos, vómitos, fezes e urina, sal de cozinha, bebidas, água encanada ou de
poço, entre muitos outros.

Os meios de diagnóstico de intoxicação, seja no caso do ácido cianídrico, ou no


monóxido de carbono, cujo desconhecimento da cor carminada inconfundível explica
diagnósticos erradamente feitos, são hoje suficientes para que não se deixe de fazer o
diagnóstico médico-legal correcto.

Os problemas da droga já são antigos. Contudo, na era actual eles assumem uma
importância médico-legal crescente.

O álcool é um problema que reveste aspectos de muita complexa e difícil


solução. É muito difícil porque a publicidade feita às bebidas alcoólicas é demasiado
intensa e aliciante.

O diagnóstico das manchas de sangue no laboratório é de âmbito da medicina


legal ampla, mas o médico deve saber como e quando deve requisitar os exames e
quando não os deve solicitar.

O alcance social do problema é muito mais vasto e compreende a questão do uso


de drogas nas toxicodependências, a múltipla acção do álcool no organismo humano e
sua repercussão social, as intoxicações acidentais nas crianças e nos adultos de produtos
diversos e medicamentos em excesso, não esquecendo a questão do doping que, nas
mais variadas práticas desportivas e até fora delas, prejudica gravemente a saúde e, por
vezes, leva à morte.

O estudo dos vestígios em casos de suspeita de crime é referido frequentemente


pela palavra “tracio1ogia” cujo nome é tirado de “trace” (vestígio). Esta designação
alberga uma outra de conteúdo não muito nítido (lofoscopia) e o estudo das marcas dos
múltiplos objectos empregados para cometer determinada acção. Por lofoscopia
entendem-se, habitualmente, os vestígios relacionados com alguma parte do corpo
humano que poderiam, permitir a identificação e os vestígios que indicam a utilização
de certos objectos. É o caso, por exemplo, da dactiloscopia (impressões digitais),
quiroscopia (impressões palmares) e pelmatoscopia (impressões plantares)
classicamente nela compreendida. Para outros, os vestígios das pegadas e do calçado
também cabem na lofoscopia.

O estudo dos vestígios é um campo importante na averiguação da verdade


objectiva, a qual, em termos amplos, não se limita ao corpo humano ou à acção da
pessoa humana mas também aos outros animais. A Medicina Legal não é indispensável
apenas para o médico. Ela é fundamental para os licenciados em Direito, possibilitando
ao jurista um largo conhecimento para obter e criticar múltiplas provas científicas, como

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arte acusatória, de defesa, Ministério Público ou Juiz, com vista à mais justa e melhor
aplicação da Justiça.

Para o legislador, a medicina legal proporciona conceitos convenientes para a


redacção de normas sem ambiguidades formais nem dificuldades de execução prática
aquando da intervenção pericial médico-legal. A investigação criminal e a polícia têm
na medicina legal o fundamento básico da importância da pesquisa de vestígios nas
vítimas, agressores e locais de crimes, com um apoio sempre desejável do médico-
legista e cada vez mais próximo da concretização por rotina, O significado da medicina
legal, no campo restrito do direito criminal, assume o relevo de proporcionar provas
para ilibar o inocente e condenar o que prevarica.

O médico é, por vezes, quem primeiro chega a um local de crime, para tratar um
criminoso que está ferido. Toda a sua eventual colaboração sobre o exame do local é
muito limitada pelo segredo médico.

Quando o médico actua, não como clínico, mas no desempenho das suas funções
periciais, para auxiliar a justiça, deve enviar o material encontrado ao laboratório, nas
melhores condições possíveis de acondicionamento e transporte, designadamente peças
de fazenda e roupa interior.

O exame do local, em caso de incêndio, poderá contribuir, em alguns casos, par


determinar a sua origem criminosa ou acidental, para o que se pesquisam vestígios de
matérias inflamáveis, petróleo e pólvora. Pode encontrar-se uma vela na qual seja
possível identificar impressões digitais. Nas explosões, são por vezes relevantes as
impressões digitais e as marcas de passos (pegadas).

O estudo médico-legal das manchas compreende, ainda, as manchas de esperma,


mecónio, fezes, urina, saliva, alimentos e diversas secreções, do ponto de vista orgânico.

Sem aludir, ainda que ao de leve, a todas as manchas, privilegiam-se as manchas


de esperma. O seu estudo é particularmente importante no caso de crimes sexuais como
estupro, violação e atentado ao pudor, e deve incidir quer na roupa da vítima (camisas,
cuecas, períneo, nádegas), no quarto (roupa da cama, chão, paredes, tapetes, reposteiros,
sofás, cadeiras, almofadas), quer na roupa e pele do incriminado.

O DNA (ácido desoxirribonucleico) está na moda. Lêem-se e ouvem-se


informações que nos causam a imagem de uma sensacional descoberta de ocasião.
Contudo, foi há 45 anos (1944) que três cientistas Avery, Mac Leod e Mac Carty
identificaram o DNA embora não tenha sido logo aceite a sua importância como suporte
da informação genética. Múltiplas investigações e acesas discussões tiverem lugar até
que em 1953 Watson e Crick emitiram a hipótese de que o DNA é o código que
transporta a informação genética, o que foi confirmado em 1958.

Na perspectiva criminal, a aplicação prática do DNA é do maior valor para


identificar um indivíduo como autor de certo crime, seja sexual, ou de outra natureza,
desde que exista um pequeno vestígio da sua passagem como uma gota de sangue, ou de

13
J. Pinto da Costa

um cabelo, saliva ou pele. Sublinha-se mais uma vez, que, no estado actual mais
diferenciado dos conhecimentos Médico-Legais, o estudo do DNA nos cabelos ou numa
minúscula gotícula de sangue permite a individualidade certa de cada um de nós.

A identificação é assunto médico-legal que compreende múltiplos e distintos


aspectos, designadamente as cicatrizes, tatuagens, deformações, cor dos olhos, cabelos,
lábios (queiloscopia), voz humana, altura, largura e comprimento da cabeça,
comprimento do dedo médio, auricular, pé esquerdo, impressões digitais
(dactiloscopia), marcadores genéticos e dentes (odontologia forense).

O elevado desenvolvimento da odontologia forense, como especialidade


contribuinte para a resolução prática de questões médico-legais nas grandes catástrofes,
torna importante a informação sobre a identificação dos dentes. Ela compreende ainda a
avaliação do prejuízo dentário no caso de ofensas e de acidentes de vária ordem.

A Psiquiatria Forense é uma das fatias do tal queijo.

A psiquiatria, aceitando nós a compartimentação forçada da medicina em


sectores, é o ramo do saber médico mais humano, e com tanto mais eficiência quanto
mais procura resolver os desvios do Homem, pelo Homem e como Homem. A
psiquiatria é uma grande escola de humildade, de prudência e de senso. As baforadas de
entusiasmo alicerçadas na experiência não suficientemente verificada são um risco.
Lembre-se a marcha atrás com a nomifensina, droga que foi indicada para quadros
depressivos de qualquer tipo e génese tais como depressões involutivas, reactivas,
orgânicas e endógenas que se manifestam predominantemente por abatimento, apatia,
baixa de rendimento ou, primariamente, como perturbações somáticas.

Talvez, a pessoa humana, mais do que de drogas, necessite da compreensão dos


seus problemas psicológicos e até psiquiátricos.

O humano, acompanhando o processo de articulação do meio, artificializa-se


também. A perda da configuração natural da terra e perda do humanismo que a pessoa
sofre contribuem para a tríade instabilidade emocional, insatisfação existencial e
ansiedade. Vai nisso o interesse da legislação sobre saúde mental, pois quando surge o
reajustamento da mudança à transformação do ambiente, origina-se um sistema de vida
próprio, específico e adequado à satisfação, mas antinatural e desumano, e mantido pela
interacção de forças que o afectam de todos os lados, criando tensões intrapsíquicas de
carácter polivalente, que o esmagam, restringem e inactivas ou fazem dele agente
desintegrado explosivo de personalidade.

O homem desumanizado, transformado em instrumento da técnica, reage contra


a natureza, contra a vida, contra si próprio, em ciclo catastrófico de auto-agressão
tendente a conduzi-lo ao nada, ou, em alternativa, sobre si mesmo, à sua primitiva
condição humana e a comportar-se como tal.

O desenvolvimento social e o aparecimento de novas formas de criminalidade


suscitam cada vez mais dúvidas quanto à existência de alterações psicológicas e mesmo

14
J. Pinto da Costa

de nível psicopatológico, das condutas criminais que parecem afastar-se muito da


normalidade, o que, na prática, se traduz por um número de perícias médico-legais
sucessivamente maior.

O futuro da Medicina Legal, como em qualquer ramo do saber depende do


conhecimento da população sobre a sua serventia e efeito prático na resolução de
problemas. Tal conhecimento relaciona-se com um sistema de aprendizagem cuja
eficácia depende de uma pedagogia do exemplo.

A autonomia no ensino da Medicina Legal em diversas instituições


universitárias, origina níveis diferentes de aprendizagem, consoante os seus
responsáveis pelas decisões académicas.

Universidades privadas ou públicas, mais ou menos cultoras da Medicina Legal,


tem como importante o cumprimento do dever do cidadão de fugir ao marasmo
discutindo, questionando, pondo em causa.

É assim possível uma actividade médico-legal educativa prestigiada, respeitada,


elogiada e desejada pelos estudantes de várias orientações, complementada pela
informação sobre perícias médico-legais na competência de organizações privadas que
satisfazem múltiplas situações com resposta qualificada e independente.

Não há necessidade de manter um despesismo na Medicina Legal do Estado,


repetindo serviços que existem nos Hospitais. O País deveria economizar em instalações
e no pagamento de vencimentos em recursos humanos por encargos do Ministério da
Justiça quando serviços idênticos em instituições e competência existem já nos
Hospitais. Não é ético onerar o erário público.

Não se nega a utilidade da organização do Ministério da Justiça, em 1899, ou em


1918 quando os cuidados de saúde eram manifestamente insignificantes, reportando-se,
não raras vezes, a que os doentes fossem para o Hospital para morrer.

Actualmente, sem ofensa para ninguém, e em comparação, as dependências do


Ministério da Saúde têm muito mais e melhor capacidade de resposta do que uma
estrutura centralizada, dependendo de um único comando, detentor exclusivo da
autonomia administrativa e financeira que outrora pertenceu às regiões do Porto, de
Lisboa e de Coimbra.

Os utentes dos exames médico-legais têm o natural direito de ser examinados


por pessoas competentes devidamente possuidoras dos conhecimentos e traquejo que a
contemporaneidade aconselha e exige.

O ensino médico-legal é duplamente uma utilidade e uma necessidade


pedagógica. Dirigido a alvos muito diferentes, ele encerra de comum a informação e
formação conveniente a vários níveis de toda a população, para proporcionar melhor
convívio em sociedade, sem perder a valorização individual de cada um como pessoa
humana.

15
J. Pinto da Costa

É urgente que se congreguem esforços para o ensino de futuros médicos e


juristas, licenciados em medicina, em direito e noutros ramos do saber, a nível de pós-
graduação, sem esquecer a preparação de quadros técnicos intermediários mediante o
ensino técnico especializado de medicina legal de modo a que os quadros do Ministério
da Saúde desempenhem as perícias médico-legais nos Hospitais.

Em Portugal, como matematicamente é evidente, a medicina legal é feita


maioritariamente pelos clínicos gerais e não por especialistas em medicina legal porque
estes praticamente não existem. Em termos globais, a realização de perícias médico-
legais, por médicos-legistas, é uma raridade. O País, mormente no que respeita a factos
não pode afastar-se da realidade. Por isso, a nossa insistência sobre a necessidade de
uma preparação universitária condigna no sector médico-legal para a formação de
técnicos de saúde que de futuro integrarão, nas diversas especialidades médicas, os
quadros do Ministério da Saúde.

Independentemente da responsabilidade da entidade formadora, o facto é que


estamos a ser directamente confrontados com críticas de muitos outros países quanto à
mediocridade do nível de desempenho médico-legal, seja nas autópsias médico-legais
ou nos exames efectuados nas pessoas vivas, para elucidação da Justiça, na maior parte
do território nacional. Seria petulância não o reconhecer.

Haverá que beneficiar da elevada capacidade técnica e científica dos Hospitais


do Estado na área da anatomia patológica bem como de instituições privadas de nível
muito mais elevado do que os aludidos serviços de Anatomia Patológica das delegações
médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal, que são forçados, a recorrer à
requisição de serviços deste âmbito a instituições privadas pela sua própria
incapacidade.

A Medicina Legal adquiriu, nos últimos anos, um ritmo e uma capacidade de


análise dos problemas que lhe são propostos os quais permitem o reencontro da
actividade médica clínica e da actividade pericial, para elucidação da Justiça.

A evolução da medicina e a concomitante revisão das leis exigem, para o clínico


geral, uma educação médico-legal permanente, em face da importância da Medicina
Legal nas comarcas.

Está hoje demonstrado que o nível médico-legal de um País se avalia pela


qualidade das perícias médico-legais nas comarcas e não nos grandes centros.
Efectivamente, bons especialistas há-os em qualquer parte do mundo e em qualquer
matéria, O que mais interessa é a qualidade das autópsias médico-legais e dos exames
de clínica médico-legal que o clínico geral executa nas comarcas.

Para a Medicina Legal o que importa na formação do estudante desta matéria é a


sua capacidade para resolver problemas. A eficiência do ensino médico-legal, em
Portugal, depende da qualidade das perícias médico-legais efectuadas pelos clínicos
gerais. A importância da medicina legal para os estudantes de medicina, futuros clínicos

16
J. Pinto da Costa

gerais, define-se sobretudo no âmbito da medicina legal restrita (autópsias e exames nos
vivos). Ou seja, por outras palavras, a medicina legal será tanto melhor, quanto melhor
for a capacidade dos médicos.

Onde estão os médicos? Nos Hospitais, nos Centros de Saúde, na clínica


privada.

Durante muitos anos, imperou uma medicina não social, na qual concorreu
largamente a noção fulcral, muito generalizada entre a humanidade, de que o que
importa é aliviar a dor, eliminando o sofrimento. E evidente que, em face de urna tal
asserção, a Medicina Legal tinha que ficar preterida, pois ela é uma ciência
eminentemente social, um ramo da medicina que se ocupa da saúde populacional no
conceito de bem-estar físico, mental e social da Organização Mundial de Saúde,
aplicado à lei.

Sublinha-se que o ensino da Medicina Legal deverá ser uma constante da


educação médica, preferencialmente para o clínico geral, sem descurar as vertentes
médico-legais das múltiplas especialidades e de todo o pessoal de saúde.

O ensino médico-legal deve compreender vários níveis, consoante a preparação


prévia dos discentes a quem se destina.

Uma organização médico-legal eficiente no sistema de saúde pressupõe uma


educação conveniente, para que os médicos e juristas recebam preparação
pormenorizada na matéria.

Como ensino universitário pré-graduado deve inserir-se no currículo das


licenciaturas em medicina, da licenciatura em direito e da licenciatura em medicina
dentária seja nas escolas públicas ou privadas em todas as licenciaturas da área da
saúde.

O Ministério da Saúde tem capacidade logística e organizativa para preparar,


através da formação, os seus quadros por forma a bem servir a Justiça.

Não se esgota a colaboração da Universidade no ensino da Medicina Legal pré e


pós-graduada. O ensino de nível paramédico encontrou a sua expressão maior no Curso
Técnico Especializado de Medicina Legal revogado, e mal, como o provam as
consequências dessa revogação. É conveniente também o dito ensino para técnicos
ajudantes de Medicina Legal.

A melhor informação sobre o significado da medicina legal, a todos os níveis,


faculta uma melhor compreensão sobre as dificuldades e necessidades de mudança no
comportamento dos responsáveis sobre a actividade médico-legal do País.

Conta-se ainda no plano de Educação Médico-Legal o ensino da Medicina Legal


para a Polícia Judiciária, Polícia de Segurança Pública, Guarda Nacional Republicana e
Polícia Marítima e outras acções formativas, visitas de estudo, seminários, congressos,

17
J. Pinto da Costa

conferências, mesas-redondas e visitas de estudo orientadas para alunos de escolas


secundárias e grupos profissionais.

Qualquer estudante de medicina sabe que a lei obriga à realização de autópsias


médico-legais e de exames de clínica médico-legal (nas pessoas vivas) excluídos que
estão os de psiquiatria forense reservados aos especialistas em psiquiatria, subentendida
a preparação médico-legal psiquiátrica destes.

É importante recordar que, do ponto de vista técnico-administrativo, todo o


médico (até aos 70 anos) é obrigado a desempenhar funções periciais quando para tal
for nomeado pelo juiz, mormente para a realização de autópsias médico-legais e exames
de clínica médico-legal.

É por isso necessário que as escolas médicas preparem, para a realidade


portuguesa, médicos no sentido da utilidade social da medicina e não apenas clínicos
para tratamento de doentes, tendo sempre em atenção que o órgão da classe se designa
Ordem dos Médicos e não Ordem dos Clínicos.

E que esta preparação permita um desempenho útil para a sociedade na


realização das perícias médico-legais para as quais forem nomeados.

É obvio que se impõe a reciclagem permanente dos médicos o que implica a


frequência das actividades periciais dos serviços hospitalares durante um certo tempo,
com o apoio do serviço a que estiver vinculado, para unia permanente utilização de
critérios médico-legais.

Recorda-se que, não raras vezes, depende do perito médico-legal a decisão do


Tribunal, podendo arrastar como consequência a impunidade de um crime ou a
condenação de um inocente. Árbitro dos resultados das suas próprias investigações, o
perito tem, em medicina legal, um papel tão nobre como o dos juízes, senhores
absolutos do destino das pessoas que o meio ou as circunstâncias impossibilitaram de
evolucionar ou lançaram em caminho desregrado por egoísmo e incúria dos que lhe são
iguais em direitos e em origem. Consciente da sua força, possuidor de importantíssimos
elementos de decisão, o médico como perito deve pesar as suas palavras, medir o
alcance das suas conclusões, para tranquilidade da sua consciência e como apanágio da
sua probidade.

No âmbito da Medicina Legal é necessário abrir a organização às entidades


privadas através de peritos competentes, que poderão contribuir para que o sistema
médico-legal responda integrado no Ministério da Saúde, com mais eficácia e qualidade
às solicitações que lhe são propostas.

É preciso ter a coragem necessária para reformular uma organização médico-


legal centralista, despesista, ineficaz, antidemocrática e com resquícios de país
subdesenvolvido, que já há muito tempo deveríamos ter deixado de ser.

18
J. Pinto da Costa

Com humildade temos que reconhecer que em poucos anos a ficção científica
tornou-se realidade.

A moral norteada por rajadas quase ciclónicas, arrastando, para o arquivo da


consciência humana, princípios que eram tidos como perenes por centenas de anos.
Sabemos que a ética, no conceito intrínseco de escolha permanente do melhor, é
necessariamente mutável. Tudo tem o seu tempo, e a mudança lenta é mais segura, mais
sólida, mais duradoira. Temos acreditado em tudo. Que o primeiro homem nasceu do
barro modelado pelo Eterno. E da costela daquele nasceu a companheira, e, destes,
vieram outros e outros e outros. Provavelmente negro foi o Pai Adão. De património
genético africano ou não, herdamos o ácido desoxirribonucleico e toda uma série
cultural, moldando a revolução sexual impregnada dos mais fantásticos matizes mágico-
religiosos. O sexo, que deixou de ser tabu, para dar origem a um novo tabu. O tabu de
não ser tabu.

É longo o percurso desde a deusa da fertilidade até à interpretação etiológica da


gravidez. As novas tecnologias, influenciando a capacidade reprodutiva na espécie
humana, com ponto fulcral na gravidez da mulher, repercutiu-se no modus faciendi da
humanidade.

Durante largo tempo a mulher era o receptáculo da semente (sémen) toda ela
plena da potencial vitalidade do novo ser. A mulher, qual vaso de flores no qual a
semente crescia até ser planta, num conformismo indispensável de sustento. Só mais
tarde se acordou no papel também activo desta. Sem mulher, sem vontade da mulher,
para fazê-lo ou desfazê-lo, não há novo ser. Sempre assim foi porque de modo mais ou
menos violento, por traumatismos directos na parede abdominal, a mulher interrompeu
a sua própria gravidez, por vezes à custa da própria vida.

O desenvolvimento tecnológico, com receptividade no efémero das


consequências das decisões, animado pelo tempo encurtado da execução prática de
hipóteses não suficientemente experimentadas; desmercê da desmedida concorrência
que, hipertrofiando a ética, entra, obviamente, em conflito, ultrapassando os valores
morais há pouco tempo estabelecidos numa solidez que os tornava estanques é
indiscutíveis.

Diagnosticava-se, outrora, o contacto sexual da mulher pela sua gravidez ou até


por algo que pudesse provar ter havido uma aproximação sexual da qual aquela tivesse
podido resultar.

Na contradição do nascer, há quem queira e quem, não queira. Quantos,


sentindo-se ameaçados pelo peso da esterilidade, não recorrem a todos e a tudo, em
busca dum dom que não possuem? Por maldição? Por castigo?

Fertilidade é a capacidade de fecundar, isto é, de produzir células sexuais que se


unem a outras do outro género. A escolha do sexo do filho, tecnicamente possível hoje,
mercê ou desmercê do progresso científico, teve a sua fase de ocultismo. Já que a

19
J. Pinto da Costa

escolha não era acessível, inventaram-se rebuscados processos interpretativos, tentando


influenciar o desconhecido. É ancestral a preferência por filhos varões, tendo surgido
um ponto alto no século XVIII e XIX relativamente a publicações do género de “Arte
de fazer rapazes” ou a “Arte de procriar rapazes ou raparigas à vontade”.

Inicialmente, tudo era atribuído à mistura das sementes. Parménides considerava


que havia uma luta no útero entre a semente-macho e a semente- fêmea, resultando o
sexo da criança consoante qual delas ganhava. Para Alcméon tudo dependia da maior
quantidade da semente. Demócrito admitia que o sexo do novo ser era relativo à
semente que ocupasse em primeiro lugar a sede da procriação.

Para Empédocles, a temperatura era importante porquanto, dizia, a semente do


macho expande-se no refúgio todos os meses purificado e a fêmea nasce do frio que
encontrou e, do quente, nascem os machos. Nas teorias de Hipócrates e de Galeno, a
semente proveniente do testículo direito gerava os rapazes e a do esquerdo as raparigas.
A autoridade dos mestres impôs-se durante séculos.

Os rapazes seriam alimentados no lado direito do útero. Porquê esta preferência


pelo lado direito? Pela maior proximidade com o fígado com os grossos vasos a ele
ligados, o útero direito receberia mais calor do que o esquerdo. Assim, chegou a ser
preconizado que os homens que desejassem filhos masculinos deveriam atar o testículo
esquerdo, o mais fortemente possível. Ainda na base da teoria da luta das sementes, os
homens eram aconselhados a regimes alimentares fortificantes, com carne vermelha a
fim de tonificar a semente. A mulher teria uma dieta pobre, de carne branca, queijo e
sopas aguadas. O casal deveria comer, habitualmente, testículos de bode assados.

Os períodos de fertilidade eram escolhidos. A criança gerada na lua nova seria


rapaz e, na lua cheia, rapariga.

Segundo o Talmud, o rapaz resultaria do desejo ardente da mulher pelo cônjuge


e, haveria uma filha quando o homem, violentamente excitado tivesse relações sexuais
quase contra a vontade da parceira.

Ainda no campo das fantasias, as relações sexuais ca1mas, espaçadas e sensatas


originariam rapazes, enquanto o amor irracional, passional e frequente daria origem a
raparigas.

Para Ambroise Paré, tido por muitos como o pai da medicina legal, “o filho-
macho é de maior excelência e perfeição que a fêmea, e é testemunha da autoridade e
da proeminência que Deus lhe conferiu, ao institui-lo como chefe e senhor da mulher”.

O marido pretende separar-se da mulher por não ter filhos.

Independentemente do substracto legal inexistente, por si só, há que não


desprezar o conteúdo moral da questão.

20
J. Pinto da Costa

Já entre os egípcios havia processos para diagnosticar a gravidez, na tentativa de


saber o mais precocemente se tinha havido concepção. Consta do papiro de Carlsberg
que a introdução de um dente de alho humedecido na vagina durante toda a noite
provocará odor a alho pela boca ou pelo nariz se há gravidez, que não existirá se a
respiração é normal. Para além de interpretações fantásticas, que bem demonstram o
interesse da humanidade em diagnósticos não raras vezes imbuídos de magia, há
múltiplas possibilidades proporcionadas pelas novas tecnologias.

A urina é hoje o meio de diagnóstico mais precoce e mais usual para detectar
uma eventual gravidez. Ela foi sede de atenção desde séculos. Se a primeira urina da
mulher, durante três dias, fosse lançada sobre uma malva e esta morresse a mulher não
estaria grávida. Também, quando ao mergulhar algumas peças de ferro num pote,
contendo urina de mulher, aquelas ficavam cobertas de manchas vermelhas, haveria
gravidez.

Conta Nicolas Venette que gotas de sangue de mulher deitadas em água se


fossem ao fundo do recipiente indicariam que esta estava grávida. Outros recolheram
partes iguais de urina e vinho branco e se, depois de agitada a urina ela tomasse o
aspecto de caldo de favas, a conclusão era de gravidez. Finalmente, outras deixavam a
urina repousar à sombra, num recipiente de vidro bem rolhado. Depois de coada por um
tecido claro, se ficassem nele alguns bichinhos, a mulher estava grávida.

A fecundidade foi pretendida pelas mais diversas maneiras.

Com fundamentação na grande deusa primordial, a Terra-Ama, são


referenciados certos rochedos cuja forma lembra os órgãos sexuais masculinos ou
femininos. Nessas pedras, por vezes com a forma de pénis, para obter fecundidade devia
tocar-se com a mão, com a cabeça, ou com o corpo inteiro. As mulheres esfregavam o
abdómen ou o umbigo. Os esposos sentavam-se em cimo dessas pedras. Às nascentes de
águas, riachos e quedas de água eram atribuídas faculdades fecundantes. Daí os banhos
de assento. Estes e muitos outros têm sido usados para obter a fecundidade.

Conhecemos hoje, discutimos o seu conteúdo ético, questionamos a sua


legitimidade, os benefícios e malefícios, da procriação artificial dita procriação
medicamente assistida, tudo pela aplicação humana dos avanços científicos da biologia,
da electrónica e da informática. O alcance da fecundidade fez-se durante tempos
imemoriais sem o conhecimento de tais progressos. As técnicas de obtenção de
fertilidade mediante a procriação artificial passam pela detecção do período ovulatório
da mulher, pela curva térmica basal e pelas características do muco cervical. Mais
modernamente, o diagnóstico da ovulação pode fazer-se -pela ultra-sonografia, a qual
permite visualizar certas áreas nos ovários, avaliando o seu tamanho cujo
amadurecimento acontece em regra entre 22 e 25 mm de diâmetro.

O radioimunoensaio permite avaliar o grau de amadurecimento folicular, através


do doseamento plasmático seriado de estradiol e LH, e ainda a possibilidade de prever o
dia e hora em que a ovulação deverá acontecer. Novas tecnologias permitem a

21
J. Pinto da Costa

superestimulação ovárica, obtendo-se mais de um folículo por ciclo menstrual e assim


mais óvulos a serem colhidos mediante o emprego de drogas.

A análise de esperma é feita em amostras colhidas, com pelo menos três dias de
repouso sexual, preferencialmente no laboratório, para evitar transportes longos, e
alterações ambientais bruscas de temperatura e luminosidade. A fertilização in vitro
obtém-se pela conjugação do líquido folicular e da suspensão do esperma, após
procedimentos estabelecidos e quando o ovo tem duas a quatro células faz-se a
transferência do embrião para o útero.

A ultrassonografia pélvica pode ser empregada para detectar e guiar as


manipulações intra-abdómino-pélvicas, para a colheita de óvulos na técnica de
fertilização “in vitro”. Ainda ajuda na aspiração de biópsia das vilosidades coriónicas
para detectar anomalias do produto da concepção intra-uterino, entre a nona e a décima
primeira semana de gestação.

A fetoscopia, consistindo na introdução de aparelhos ópticos na cavidade


amniótica através da parede abdominal e uterina, é uma tecnologia com aplicação
prática de relevo em sexologia forense. Ela assume a máxima importância entre a 16ª e
20ª semana de gravidez, porquanto antes deste prazo o acesso ao saco amniótico é muito
difícil e após a 20 semana o tamanho do feto dificulta muito a mobilização óptica de
modo a obter-se uma visão perfeita. Esta técnica está indicada no estudo de
malformações congénitas entre as quais as mais frequentes são a spina bifida, o
meningomielocelo, anencefalia, hidrocefalia, onfalocelo, e no diagnóstico de alterações
genéticas, por exemplo, através da biópsia da pele.

Outra indicação de muita utilidade consiste na colheita de sangue do cordão


umbilical ou directamente do feto, para pesquisa de hemoglobinopatias, permitindo
ainda a manipulação cirúrgica para correcção de distúrbios devidos a uma
incompatibilidade sanguínea como, por exemplo, a eritroblastose fetal.

A fetoscopia, como nova tecnologia que envolve riscos conhecidos, tem sido
muito discutível. Riscos para o feto, como a morte, hemorragias, hematomas,
prematuridade, comprometimento no desenvolvimento normal e alterações na
capacidade visual devidas à intensidade da luz no interior da cavidade amniótica. Para a
mãe, há o risco de aborto, parto prematuro, infecção, hemorragias uterinas anormais e
sensibilização materna por transfusão feto-materna.

As novas tecnologias, em sexologia forense, são aplicadas sistematicamente em


todos os casos que cheguem ao conhecimento da medicina legal, mercê de legislação
sobre o assunto publicada recentemente Veio o referido normativo permitir que, sem
conhecimento prévio de autoridade judicial, possa realizar-se, atempadamente, o exame
sexual com aplicação eficiente das novas tecnologias. Ficou assim ultrapassada a
impossibilidade de aplicar as novas tecnologias em casos de suspeita de agressão
sexual, porquanto a proibição de realizar o exame sem a requisição judicial, que a lei
impunha, não se compatibilizava com a urgência na efectivação das colheitas dos

22
J. Pinto da Costa

produtos biológicos sobre os quais recai o exame. É que o eventual esperma, líquido
seminal, sangue do agressor, pêlos ou cabelos na vítima, desapareciam, obviamente, por
esta se ter lavado.

No estudo do DNA selectivo para as células sexuais, a amelogenina pode indicar


duas bandas, uma específica do cromossoma x e outra do cromossoma y, o que é prova
de ejaculação. Este método é importante quando anteriormente não foi possível
identificar espermatozóides por exame microscópico directo. O teste da brentamina
(reacção da fosfatase acida) em exsudato vaginal inclusive em cuecas, calças ou em
tecidos porosos ou em suportes porosos (vestuário) ou não porosos (vidro, madeira, etc)
revela uma coloração purpúrea quando existe sémen, mesmo na ausência de
espermatozóides.

Agora, para que se realize o exame, basta que a vítima ou seu representante
legal, denuncie a situação perante a estrutura médico-legal seja o Instituto de Medicina
Legal ou o Gabinete Médico-Legal com competência regional para o efeito.

A tecnologia do DNA tem conduzido à identificação rápida do autor, em


criminalidade sexual, ou colher os elementos necessários que permitam ao tribunal
julgar numa perspectiva moderna com base em prova científica decorrente das novas
tecnologias laboratoriais de diagnóstico, a nível da biologia forense. Não sendo o caso
duma descrição pormenorizada, aponta-se que a PCR tem permitido diagnósticos
médico-legais com grande interesse para a justiça. Por se tratar de uma técnica de
grande sensibilidade, é possível estudar o DNA de um pêlo ou de qualquer outro tipo de
amostra que possua uma quantidade exígua daquele.

A automatização do processo, com a utilização dos termocicladores,


proporcionou a simplificação de todo o procedimento constituindo também uma
importante inovação.

Esta técnica da PCR sobressai na modernidade médico-legal porque permite


analisar uma determinada sequência numa amostra muito pequena de DNA, qualquer
que seja a quantidade e qualidade deste, desde que a amostra tenha, pelo menos, uma
cadeia de DNA intacta. É por isto que um único cabelo, um espermatozóide ou células
somáticas individuais têm sido a chave da resolução de problemas médico-legais em
criminalidade sexual. A análise da sequência permite a detecção de um tipo de
polirmorfismo diferente não baseado no número de vezes que uma determinada
sequência é repetida, mas nas variações ou trocas de nucleotídos que a própria
sequência apresenta.

Propõe-se se a mulher agredida dolosamente ou por meio de acidente de trabalho


ou de viação ou de qualquer outra natureza, com lesão na área genital, possa exigir quê
lhe sejam aplicadas as novas tecnologias. Obviamente que sim, cabendo ao responsável
o ressarcimento dos danos, nos termos legais.

23
J. Pinto da Costa

A adivinhação do sexo do filho antes do nascimento deixou de ser uma


prioridade como já foi outrora, mercê da ecografia pélvica mediante a tecnologia dos
ultrassons. Contudo, algo de fantástico existe ainda, como sugere o facto de muitos
casais preferirem apenas saber o sexo após o nascimento, mantendo assim, um certo
mistério, uma certa dúvida afectiva, que a nova tecnologia destruiu, inclusive sobre a
escolha da roupinha azul ou cor de rosa. Na Antiguidade Oriental, no Egipto, havia
vários processos para prever o sexo do nascituro. Consta no papiro de Berlim:
“Colocarás cevada e trigo em dois sacos de tela, sobre os quais a mulher lançará a sua
urina todos os dias, assim como areia e tâmaras nos dois sacos. Se tanto a cevada
como o trigo germinarem, ela vai dar à luz. Se for a cevada a germinar primeiro, será
um rapaz; se for o trigo, será uma rapariga. Se nenhum deles germinar, a mulher não
vai ter nenhum filho”.

Hipócrates dizia que o rapaz se mexia mais cedo no ventre materno do que a
rapariga. Actualmente, pela ultrassonografia, o diagnóstico do sexo é possível a partir
das 18 semanas de gravidez. É desejável que se pondere o limite da aplicação das novas
tecnologias sempre no interesse da pessoa humana já que os avanços biotecnológicos
permitem tal diagnóstico precoce a partir das 8 semanas, o que pelo menos, numa
perspectiva teórica, poderá levar a uma selecção dos embriões.

O aborto pode citar-se como paradigma, pela actualidade do problema e, por


isso, servirá de modelo para uma reflexão final. Parece decorrer do pensamento
democrático português que o direito ao aborto é um direito inalienável, porém sujeito a
limitações que a dignidade humana impõe. A legislação não cria a moralidade e numa
sociedade pluralista deve respeitar a consciência dos cidadãos. Mesmo que não se
defenda, como moral, uma legislação que permita o aborto, ela deve ser respeitada
enquanto for legalmente admitida. Na essência, a moralidade surge da própria dignidade
da pessoa humana, isto é, dos Direitos Humanos, independentemente de princípios
religiosos que sempre e de algum modo influenciam a moral. As novas tecnologias
devem ser aceites com perfeito conhecimento e consciência das suas consequências
morais e sociais.

O importante a sublinhar no âmbito da Medicina Legal é a contribuição do


exame histológico como prova da inocência ou de culpabilidade da mãe em relação ao
filho morto.

Uma tecnologia no feto, na perspectiva histológica, é indispensável do ponto de


vista médico-legal, para o diagnóstico de ter havido respiração ou não, o qual pode ser
fundamental no caso de suspeita da mãe ter praticado o crime de infanticídio.

Em termos científicos contemporâneos é inadmissível que uma autópsia seja


realizada, descurando as exigências anátomo-patológicas disponíveis.

As novas tecnologias diagnósticas permitem compreender a realidade médico-


legal de uma morte súbita de crianças o que durante muitos anos levantou suspeitas de
homicídio por negligência e que o em regra aparece nos primeiros seis meses de vida.

24
J. Pinto da Costa

Exames histológicos permitem apurar a existência de um relacionamento com


células cerebrais que produzem e utilizam serotonina, as quais aumentam de número
quando a serotonina que produzem é insuficiente.

A morte surge durante o sono porque a deficiente comunicação entre os


neurónios não permite a activação do sistema respiratório e o alerta, quando a criança
com a cabeça assente numa almofada inicia um processo de asfixia.

Isto é, em condições normais o aumento de C02 despertará a criança com


estimulação do centro respiratório. Este conhecimento iliba muitos responsáveis outrora
acusados sem razão.

Foi estudado em 2006 um teste de diagnóstico que permite identificar a


síndrome sem ser necessário recorrer à autópsia pós-morte.

Para concluir, sublinha-se que, como em todos os ramos da actividade humana,


também nas tecnologias aplicáveis à sexologia forense é comum um exagero e excesso
de optimismo relativamente à importância das inovações. O tempo encarrega-se sempre
de situar os factos na sua perspectiva real, acertando as distorções. Ou, como escrevi
algures, um dia virá em que as pessoas voltarão a caçar borboletas, coleccionar selos e a
ter filhos, proporcionando-lhes alegria e felicidade num mundo muito melhor.

De qualquer modo a Medicina Legal deve levar até à exaustão a realização de


todas as tecnologias mais recentes para assim afastar a hipótese de resultados
inconclusivos.

AUTÓPSIA MÉDICO-LEGAL
Acontecimentos recentes levaram a largos comentários sobre mortes violentas.

É preocupante a violação do segredo de justiça, quanto é certo que em outras


condições tal foi publicamente reprovado, ao mais alto nível, muito embora se preveja,
para breve, que o conceito normativo venha a ser diferente.

António Barreto (Público, 29/12/96), cuja clarividência de homem informado e


independente é unanimemente aceite, escreveu um texto do qual recorto algo para
meditação sobre a medicina legal portuguesa: "...... A vítima não morreu por a munição
ter atingido um órgão vital. Morreu por causa da hemorragia! Isto, depois da esquadra
ter comunicado que a vítima tinha sido "acometida de súbita doença "! E de o hospital
ter dado por morta uma pessoa sem ter visto que havia bala......"

Não se compreende como é que, ultrapassando o segredo de justiça, um jornal


(Público, 29/12/96) escreveu sobre um assunto reservadamente médico-legal: "Recorde-
se que o relatório de autópsia do cadáver alegadamente morto pelo guarda Severino
revela indícios da prática de sevícias. A vítima deu entrada no Hospital de Évora já
sem vida e em estado de algidez, tendo-se apurado mais tarde que terá sido alvo de

25
J. Pinto da Costa

disparos. Estes apenas foram admitidos pela polícia depois de ter sido detectada na
autópsia uma bala de calibre igual ao usado pela PSP. Os peritos admitem ainda que a
vítima terá sido alvejada a uma distância não superior a dois metros e meio, o que
poderá configurar presumível envolvimento na prática de um crime de homicídio
qualificado, punível com pena de prisão de 12 a 25 anos".

Este ano de 1997, que agora se inicia, provavelmente, será o ano de mais uma
"reforma" médico-legal a qual exige espírito de reforma e não reformar por reformar, a
presumir que se dá forma a algo que nunca a teve. Aguarda-se, com indelével exigência,
que ela venha a ser melhor que a de 1987. É preciso que se proclame que se esta não
proporcionou o resultado esperado foi apenas porque não foi cumprida e porque certas
interpretações de alguns juristas levaram ao anquilosamento da medicina legal
portuguesa. É urgente e necessário que se lhe preste a devida atenção para que, com
humildade e sem tibiezas, ela seja elevada ao ponto do superior interesse dos
portugueses, sem o que os escândalos acontecem. Somam-se por demais as lacunas
graves. É o caso das autópsias de Sá Carneiro, Adelino Amaro da Costa e
acompanhantes. É o caso de Almada, em que a morte foi atribuída a intoxicação com
ameijoas e mais tarde diagnosticada a causa de morte, em Inglaterra, como tendo sido
devida a intoxicação por monóxido de carbono. É o caso da decapitação como causa de
morte e depois diagnosticada esta em consequência de tiro na cabeça após exumação
feita por outros peritos médico-legais. É o caso da morte súbita de causa natural, de
Évora, e depois morte devida a tiro verificada na autópsia.

A finalidade de uma autópsia médico-legal é sempre distinguir entre morte de


causa natural e violenta e, neste caso, se resultou de suicídio, homicídio ou acidente.
Sem tal diagnóstico, a missão pericial médico-legal nunca é cumprida. Erros iniciais,
em matéria de autópsia, são dificilmente corrigíveis. Não é pela mera reformulação de
frigoríficos ou de mesas de autópsia ou de aparelhagem complementar que se resolvem
os problemas responsáveis pela inoperância médico-legal. Não foi ainda encetada uma
modificação estrutural quanto ao desempenho em termos de recursos humanos. Pelo
tempo perdido, surgem novos casos demonstrativos de que não foi feito o suficiente
pela medicina legal portuguesa, necessária e imprescindível auxiliar da Justiça.

Não se criaram as condições estruturais básicas por forma a evitar as


contradições apontadas. Uma autópsia médico-legal é obrigatoriamente constituída por
várias partes: 1ª Informação; 2ª Exame do local; 3ª Exame do corpo (com vestuário,
adornos, ferimentos externos e internos); 4ª Exames complementares laboratoriais.

O menor cuidado com que certas autópsias são feitas repercute-se na falta de
credibilidade da população. Em carta ao Director do jornal Público (28/12/96), uma
leitora escreveu uma série de considerações que atingem a medicina legal, de modo
negativo. O referido texto é a tradução do descrédito em que os responsáveis colocaram
as perspectivas de uma actuação médico-legal por falta de preparação neste campo, não
possibilitando que todos os médicos desempenhem as suas funções médico-legais com a
dignidade e a eficiência a que a sociedade tem direito.

26
J. Pinto da Costa

De José Ribeiro e Castro (Público, 28/12/96) recordo: " O caso de Évora


começou mal, muitíssimo mal mesmo. ........ mentira grosseira: a da morte do
delinquente por "doença súbita"......... alegados maus tratos na esquadra, disparo
provável a menos de 2,5 m ....... Uma mentira, para mais, que teria passado
despercebida ao próprio hospital - é isto possível? - e que só a autópsia poria a nu".

É evidente que todo o médico deve ter uma preparação médico-legal mínima
para evitar os comportamentos e atitudes que foram dimanados para a Comunicação
Social, a partir de Évora. Compete ao governo, através dos canais próprios, averiguar a
razão de tais afirmações.

Com que base científica é afirmado que: "a vítima terá sido alvejada a uma
distância não superior a dois metros e meio"? Terá sido feita pesquisa de pólvora
incombusta, queimadura ou depósito de negro de fumo? Houve recurso a microscopia
electrónica? Foram feitos disparos experimentais com a arma suspeita a várias
distâncias na tentativa de reproduzir aspecto semelhante ao do orifício de entrada do
projéctil no cadáver? Foi tido em conta o exacto percurso do projéctil no corpo? Foi
feito um diagnóstico médico-legal da presunção de intenção de matar?

E o vício não é só de agora. Recorde-se, contudo, que, quem desde logo refutou
a hipótese de suicídio de uma vítima mortal numa esquadra em Matosinhos, foi a
Medicina Legal.

Na mesma senda de confusão contestatária, Ricardo Leite Pinto escreveu na sua


crónica (Diário de Notícias, 28/12/96) : " ....... os tribunais são independentes....... as
suas decisões são por natureza discutíveis e algumas vezes erradas....."

Ao pretender-se elaborar uma reforma médico-legal é indispensável: 1º Um


levantamento do que está mal no país; 2º Porque está mal; 3º O que se deve fazer para
corrigir os males; 4º Elaborar um programa de recuperação para o imediato; 5º Um
programa de recuperação para dois anos; 6º Para cinco anos; 7º Para dez anos; 8º Para
vinte anos; 9º Levantamento da situação ao fim de vinte anos.

Sem isto, sem a humildade necessária, sem muito pragmatismo, sem se


reconhecer que no fim do século XX quase é necessário começar o que já devia ter sido
feito, daqui por vinte anos estaremos ainda pior do que hoje.

A autópsia médico-legal é um acto profissional de máxima responsabilidade


social a que todos os juristas (magistrados, advogados e outros que até falam sobre ela)
deveriam obrigatoriamente assistir, pelo menos, uma vez.

No Curso de Direito da Universidade Portucalense Infante D. Henrique, os


alunos assistem obrigatoriamente a três autópsias médico-legais sem o que não poderão
ir a exame final na respectiva cadeira de medicina legal exigida para efeito de obtenção
da carta de licenciatura. O princípio, salvo melhor opinião, deveria ser extensivo a todas
as Escolas de Direito do País. Em breve, deixaríamos de ter juristas com "medo" de ver
uma autópsia ou de entrarem num necrotério. Um dos tipos de autópsia de maior

27
J. Pinto da Costa

acuidade social é, sem dúvida, o dos ferimentos por armas de fogo. Isto não exclui a
necessidade da autópsia médico-legal em casos variados como os actualmente previstos
na lei, designadamente no Decreto-Lei 387-C/87, de 29 de Dezembro. Só uma
ignorância crassa do mais elementar sentido de justiça, contrariando os conceitos
científicos da medicina legal, justificaria o atrevimento duma tentativa de alteração da
lei neste particular. Deve fomentar-se a prática da autópsia e não a sua dispensa. É mais
que evidente a obrigatoriedade de autópsia em casos de acidente de viação para que os
familiares tenham direito à reparação patrimonial competente. Sem ela, as Companhias
de Seguros recusam-se, e muito bem, a pagar as eventuais indemnizações. Isto porque a
morte pode ter sido devida a uma causa natural não relacionada com o acidente.

Haverá ainda que alargar a extensão da autópsia médico-legal aos casos de


eventual responsabilidade médica, a única que, por exemplo, acabou por revelar uma
pinça cirúrgica na cavidade abdominal de um paciente que a transportou durante seis
anos (peça do Museu de Medicina Legal do Instituto de Medicina Legal do Porto).
Deverá promover-se a autópsia médico-legal em todos os casos mal esclarecidos, como,
entre outros, o caso de uma paciente que, apresentando uma suposta síndrome
neurológica, a autópsia provou ter sido envenenada por arsénio. Também a segurança
social dos trabalhadores exige a autópsia médico-legal para que não lhes possa ser
atribuída uma causa de morte natural que anule o direito à indemnização.

E para além de todas estas razões e de outras, haverá ainda o aproveitamento


destes casos com interesse jurídico para que os médicos aprendam a fazer autópsias,
ultrapassando o ensino livresco quase medieval, para que deixem de praticar erros
grosseiros por ignorância e por falta de condições para o seu exercício profissional.

MORTE CEREBRAL
A dificuldade do estudo anatómico do sistema nervoso central, nomeadamente
do cérebro, explica porque só nos últimos anos certos ramos do saber, como a
neurologia e a psiquiatria, lograram um desenvolvimento paralelo às outras ciências.
Também o espírito retrógrado mágico-religioso que grassou na Europa, na Idade Média,
teve a sua influência.

Os estudos mais modernos deslocaram o simbolismo do amor, romanticamente


representado por coraçõezinhos, para o cérebro. É assim que dois namorados, em vez de
um coração, deveriam gravar, nos bancos dos jardins e nos troncos das árvores, um
pequenino cérebro, emocionados.

Quando um homem ou uma mulher estão apaixonados, embora as vias químicas


do desejo e do prazer não sejam extactamente iguais, elas partem sempre do cérebro.

O cérebro é o maestro da musicalidade da grande orquestra que é o


comportamento humano. Na partitura encontram-se os múltiplos estímulos que o
maestro recebe e transmite por gestos aos músicos.

28
J. Pinto da Costa

É na base do cérebro (hipotálamo) que se encontra a ordem de comando. Morto


o cérebro, a personalidade humana com capacidade de decisão desaparece, e a "vida"
vegetativa só é possível com o apoio de aparelhagem que permita artificialmente manter
a respiração e a circulação sanguínea.

O cérebro do apaixonado encontra-se repleto de substâncias muito próximas das


anfetaminas (dopamina, noradrenalina e feniletilamina), as quais se relacionam com o
comportamento eufórico dos amorosos, que todos fomos, somos ou seremos. Mas o
cérebro também produz substâncias aparentadas com a morfina, que são as endorfinas,
de nível tranquilizante.

Também na morte, o cérebro comanda a vida. Antes da paragem definitiva do


coração, uma pessoa humana está morta quando o órgão nobre do organismo, o cérebro,
pela sua alteração irreversível, está impossibilitado de manter a vitalidade consciente do
indivíduo.

É um conceito novo este, de morte cerebral. A morte, ancestralmente repleta de


tabus, surge agora como um novo tabu de não ter tabus!

É questão básica e muito discutível se a lei deve definir a morte e, não o


fazendo, não haverá que legislar sobre o modo de a diagnosticar.

Não será discipiendo adiantar que um assunto de tanta relevância social,


aflorando matérias susceptíveis de criar conflitos com os direitos fundamentais das
pessoas, merece uma audiência o mais alargada possível, mormente de todos os centros
que, entre nós, empregam o diagnóstico de morte cerebral. Uma matéria como esta, de
característica muito técnica, exige que a resposta seja dada pela classe médica. No
entanto, competirá aos juristas exigir a essa classe que ela assegure, com certeza, os
meios de diagnóstico, já que, do ponto de vista jurídico e moral, não são admissíveis
margens de erro, ainda que reduzidíssimas.

Não havendo na classe médica uniformidade de critérios para diagnosticar a


morte cerebral, a lei permitirá uma uniformidade social. Se os interesses legítimos dos
médicos e da opinião pública são tão divergentes e de tal importância, a melhor solução
será legislar consoante preconiza o Professor Skegg (1976, Journal of Medical Ethics,
p.190). Pela gravidade da questão e pelo interesse social que ela implica, é óbvio o
máximo de pormenor num documento normativo.

A morte cerebral encerra três aspectos fundamentais: como (os critérios), quando
(em que circunstâncias) e quem (a diferenciação profissional dos médicos).

Parece, eticamente indubitável, que a certificação da morte cerebral requeira a


demonstração da cessação das funções do tronco cerebral e que haja sempre a certeza de
que uma pessoa "morta por impossibilidade de regressar à vida" não venha a recuperar
as suas funções de relação, como cidadão vulgar.

29
J. Pinto da Costa

O problema do diagnóstico da morte ultrapassa, largamente, a questão das


transplantações de órgãos, muitas vezes invocada como mola impulsionadora da
necessidade de revisão de certos conceitos. É com maior frequência durante a prática da
reanimação que se põe com muita acuidade aquele problema.

Os dois ou três minutos de tempo máximo de morte, para o caso das


transplantações cardíacas, origina que na prática o dador tenha sido considerado em
vida artificial, quando persistem a respiração e a circulação mantidas por aparelhos. É
evidente que o critério de morte, em tais circunstâncias, depende do médico que
suspende o artificialismo e assume a responsabilidade de certificar o óbito.

O critério de morte cerebral implica a aceitação da irreversibilidade do coma,


princípio sem o qual aquele critério seria inadmissível. Do ponto de vista civil, para que
haja morte, exige-se a paragem irreversível da circulação e a impossibilidade de a
manter por meios artificiais. Tal paragem definitiva é dispensada, pela jurisprudência
em vigor, desde que, verificada a morte cerebral, haja consecutiva colheita de órgãos
para transplantações.

Não se discute o normativo da questão. No plano ético é flagrante a contradição,


pois que é o respeito pela vida humana e as consequências morais e sociais do seu
terminus que estão em jogo.

O procedimento em conformidade com a legislação acarreta uma larga soma de


consequências diferentes para um corpo; uma pessoa será tida como viva se não lhe
colherem órgãos e morta nos casos em que estes lhe vão ser retirados.

É assim que tomado o critério de morte cerebral como indiscutível, tal critério só
tem sentido ético se for diagnosticado em dois casos diferentes nas suas consequências
de aplicação a terceiros quando há transplantações, mas iguais no valor intrínseco do
cadáver como vestígio indelével de uma pessoa humana que foi diferente de qualquer
outra.

Não é o momento de discutir a diversidade de critérios da fixação da data da


morte de dois doentes em situação idêntica, sendo aplicável só a um deles o conceito de
morte cerebral porque lhe vão ser extraídos órgãos para transplantes. O que não
significa que não seja discutível a existência de dois critérios de morte (morte clássica e
morte cerebral). A morte ocorre no mesmo momento, quer se extraiam órgãos quer não.
A dualidade de critérios confunde a opinião pública.

A questão da morte cerebral deve aplicar-se à colheita e transplante de órgãos e


tecidos de origem humana e ao desligar de um ventilador para não prosseguir um
tratamento considerado desnecessário. Do ponto de vista ético, ficará assim garantida a
igualdade, em face do estado de morte cerebral, afastando-se a ideia de prémio para os
indivíduos a quem são extraídos órgãos para benefício de terceiros, e que receberiam,
atempadamente um direito de morrer, enquanto outros seriam mantidos civilmente até
que a máquina fosse desligada.

30
J. Pinto da Costa

A ambiguidade ética da solução actualmente imposta confronta-se com a


realidade de que, em princípio, tanto uns como outros são eventuais dadores.

Em Portugal, as regras semiológicas para verificação da morte cerebral foram


definidas no documento publicado na Revista da Ordem dos Médicos nº 4 de 1986.

Na Argentina, por exemplo, o artº 21º do Decreto 2011/77 enumera os sinais


que, na totalidade, e como mínimo, se devem pesquisar para certificar a morte natural,
incluindo a cerebral.

O artº 41º do Código Sanitário do Perú indica como sinal de morte para colheita
de órgãos para transplante a electroencefalografia.

Em Espanha, o Real Decreto 426/80, de 22 de Fevereiro, consigna no seu artº


10º os sinais para comprovação da morte cerebral.

A lei italiana (nº 644, de 2 de Dezembro de 1975) aponta no seu artigo 4º os


sinais indicativos de morte.

A publicação de critérios no Diário da República asseguraria que em qualquer


ponto do país aqueles critérios fossem os mesmos, evitando-se que difiram consoante o
hospital em questão. Isto poderia proporcionar uma noção de maior segurança para os
eventuais dadores.

A publicação dos critérios pode ser um meio de triagem, à partida, quanto à


capacidade das instituições dotadas dos meios necessários para diagnóstico da morte
cerebral.

A circunstância de mudança dos critérios, anteriormente previstos, não prejudica


a sua publicação, porque compete à Ordem dos Médicos "manter actualizados, de
acordo com os progressos científicos que venham a registar -se, o conjunto de critérios e
regras de semiologia médico-legal, idóneos para a verificação da morte cerebral ". (Artº
12º da Lei nº 12/93, de 22 de Abril).

A questão da morte cerebral é suficientemente controversa, pelo que, salvo


melhor opinião, um estudo exaustivo do tema deve ser feito antes da aprovação de um
texto que imponha procedimentos obrigatórios aos cidadãos.

Em suma, do ponto de vista ético, são pertinentes as Regras ou Critérios de


Semiologia Médico-Legal para a verificação da morte cerebral, da Ordem dos Médicos
(1986 e 1991), actualizáveis periodicamente de acordo com os progressos da ciência
médica sem necessidade de publicação que ultrapasse a divulgação da Revista da
Ordem dos Médicos.

Do ponto de vista legal, a sua publicação no Diário da República ou a mera


referência neste Diário, remetendo para a Revista da Ordem dos Médicos, seria a
garantia de todos conhecerem as "regras do jogo" e tanto mais quanto, na prática, só não
é dador de órgãos quem não se oponha.

31
J. Pinto da Costa

É impertinente argumentar-se com o "direito" a receber órgãos os que


necessitarem deles para sobreviver quando não quiserem que lhes seja aplicado o
critério de morte cerebral para proporcionarem transplantes. Acima de tudo, conta a
liberdade das pessoas, pelo que ninguém pode impor os seus critérios ao próximo. Doía
a quem doer.

AUTÓPSIA
Meditação sobre uma palavra imprópria. O impossível da auto-observação,
como cadáver. Do grego autos (por si mesmo) e opsis (observar, olhar).

É possível que a referência mais antiga à prática das autópsias date de 1286,
quando um médico abriu vários cadáveres, procurando a causa de uma epidemia de
peste, em Cremona, Itália. Segundo um médico holandês do séc. XIV, o Papa teria
ordenado que se abrissem cadáveres, com a mesma finalidade, em Avinhão. Na
primeira metade daquele século a prática da autópsia era um facto, em Bolonha. Era de
Florença o médico António Benivieni (1440-1502) que, pela primeira vez, pediu
autorização aos familiares para examinar os cadáveres dos parentes. No fim da Idade
Média, o prestígio alcançado pelas autópsias médico-legais levou a que a Faculdade de
Medicina de Montpellier estivesse autorizada para realizar autópsias. A primeira
autópsia, na América, foi feita pelo médico Juan Camacho, na ilha de La Española, em
18 de Julho de 1533, a pedido de um padre que queria saber se duas gémeas siamesas,
unidas pelo umbigo, cuja morte ocorreu oito dias após o nascimento, tinham uma ou
duas almas. Na Rússia, no fim do séc. XVIII, por imperativo de Pedro o Grande, a
autópsia passou a ser obrigatória em casos de morte violenta.

O nível científico da autópsia actual teve início em Viena, com Rokitansky


(1804-1878) e, em Berlim, com Virchow (1821-1902). Autópsia é palavra impregnada
de algo mágico-religioso. O destino. A vida depois da morte. Cientificamente, na
humilhação do finar, autópsia clínica é o estudo pormenorizado do cadáver com o
objectivo de aprofundar a causa da morte já conhecida de um doente. A autópsia
médico-legal, de sentido social mais alargado, pretende um diagnóstico para quem
morreu de causa ignorada, ou foi vítima de acção violenta, tomada esta como causa
externa ao organismo, trate-se de homicídio, suicídio ou acidente de trabalho, de viação,
doméstico ou qualquer outro.

O objectivo da autópsia médico-legal processa-se em dois tempos. Primeiro,


para distinguir a causa de morte em natural e violenta. Está consagrada pelo uso a noção
de que as mortes naturais são aquelas que não resultaram de agentes externos
convencionais como o excesso de calor ou frio, a electricidade, os traumatismos, os
tóxicos, etc. Compreendem-se nas mortes naturais as doenças do coração, as
pneumonias, as doenças renais e muitas outras. Em boa verdade, natural só deveria ser a
morte que resultasse da velhice. Estabelecido o carácter da morte, a autópsia decidirá
sobre o homicídio, o suicídio ou o acidente.

32
J. Pinto da Costa

O alcance jurídico e social da autópsia médico-legal é inquestionável. Ela pode


ter como objectivos essenciais a determinação da data da morte, a identificação do
indivíduo a quem pertenceu o cadáver mediante o diagnóstico do sexo, idade, estatura,
fórmula dentária e vestígios de tratamentos registados no odontograma, tatuagens,
cicatrizes, impressões digitais, grupos sanguíneos e outros marcadores genéticos. Pode
ser importante averiguar se a morte foi rápida ou precedida de agonia, se houve
deslocação do cadáver e qual era a sua localização ou posição primitiva. É fulcral
distinguir se os ferimentos encontrados no cadáver foram feitos em vida ou após a
morte. Havendo vários ferimentos, qual deles provocou a morte, o que permitirá apontar
o responsável quando houve vários agressores. É relevante estabelecer a cronologia dos
ferimentos, isto é, qual deles foi feito em primeiro lugar e sucessivamente. A autópsia
médico-legal indicará o número de agressores, a posição destes e da vítima e a
identidade daqueles. Esta pode ser denunciada por manchas de sangue diferente do da
vítima ou pela forma das mordeduras, indicando alterações na arcada dentária de quem
mordeu.

O objectivo da autópsia estende-se por vezes à averiguação da eventual alteração


do comportamento em face do teor do álcool encontrado no cadáver, em caso de
agressões, acidentes de trabalho ou a acidentes de viação. Também a autópsia dirá sobre
a natureza do instrumento que provocou os ferimentos encontrados. Se as balas retiradas
do corpo foram desfechadas por determinada arma. Se houve ricochete aquando do
disparo, o que atenua a responsabilidade criminal. A distância do disparo da arma,
traduzindo uma certa intencionalidade. Se o corpo encontrado num foco de incêndio se
encontrava vivo antes do contacto com o fogo. Se os restos cadavéricos resultaram de
explosão ou de espostejamento criminoso. O estudo do conteúdo dos pulmões,
brônquios, traqueia e medula óssea, mediante o plancton, permitirá dizer o local onde se
deu o afogamento. Enfim, se certas lesões cadavéricas foram feitas por animais,
nomeadamente insectos, roedores, aves, peixes ou outros.

Uma autópsia é um acto médico de cariz técnico-científico que não pode andar a
reboque de pressões de nenhum tipo, para apressar a sua realização para permitir que o
cadáver seja entregue à família para o funeral ou a entidades oficiais para exéquias
fúnebres. As pressas nunca dão resultados positivos e até pode acontecer que nunca se
descubra se a carbonização de um cadáver em avião resultou de acidente ou de
homicídio. O perito médico-legal, como disse o insigne médico-legista Devergie, deve
fechar os ouvidos e abrir os olhos. Ao exíguo tempo ocupado na recente autópsia do
Primeiro-Ministro Sá Carneiro, contrapõem-se as cinco horas que demorou a autópsia
do Presidente da República Sidónio Pais, assassinado por arma de fogo.

O poder instituído é responsável pela falta de qualidade das autópsias quando


permite que elas sejam realizadas em termos que contrariam as condições exigidas pela
ciência médico-legal. A realização de uma autópsia médico-legal, para além dos
recursos humanos, basicamente médicos, e acessoriamente paramédicos e de
complementaridade técnica, exige condições materiais à luz do século vinte. Os que

33
J. Pinto da Costa

fazem ou toleram que se realizem autópsias mal feitas são verdadeiros coveiros da
medicina legal, que a enterram e destroem, pela má prática.

É o adormecimento tolerante dos responsáveis pelo incumprimento dos deveres


médicos, e a passividade perante a inoperância do serviço pericial. As autópsias
incompletas, com o argumento retrógrado de que são muito superficiais porque há
muitas para fazer decorrem de uma incongruência matemática uma vez que nem sequer
uma autópsia é completa.

Em regra, a autópsia não deve ter lugar, antes de terem passado vinte e quatro
horas após a morte. O princípio encontra raízes históricas no medo que as pessoas
tinham de ser enterradas vivas. Em certos casos, contudo, a autópsia pode fazer-se antes
desse período, quando os sinais de morte são evidentes para qualquer pessoa quando
existe a mancha verde de putrefacção no abdómen, livores cadavéricos, esmagamento
da cabeça ou do tronco, ou outra evidência do género, como, por exemplo, a
decapitação.

Uma autópsia médico-legal não se limita a cortar um morto. Se o poder público


quer autópsias bem feitas terá que fazer por isso.

Há determinados pressupostos que a ciência médico-legal preconiza e aconselha


e que o poder executivo deveria obrigar a respeitar. São já do século passado as normas
que em face da autorização concedida pelo artº 18º da carta de lei de 17 de Agosto de
1899 foram emitidas pelo Governo de então. A pormenorizada apresentação dos
preceitos gerais para a autópsia evidencia, sem margem de dúvida, a exigência de
autópsia completa, em todos os casos, variando consoante o caso em apreço, começando
a abertura do cadáver pela região ou cavidade onde existem ou se supõe existir as lesões
determinantes da morte. A autópsia deve ser completa ainda que no seu decurso se
encontre causa suficiente de morte, pois que pode haver concorrência de causas ou
acontecer inclusive que a primeira lesão encontrada não seja a verdadeira causa da
morte.

São os médicos que, por lei, devem fazer os cortes no cadáver, ditando em voz
alta tudo quanto observam que o escriba vai anotando por escrito. Este é, em regra, um
funcionário do Tribunal que acompanha o juiz. A autópsia deve ser realizada em local
amplo e arejado, sempre que possível com luz natural. O cadáver deve ser removido,
com suavidade para o local onde vai ser autopsiado, evitando tombos do corpo ou
compressão deste. Não deve deitar-se qualquer substância sobre o cadáver ou as
vísceras para o desinfectar ou desodorizar. Os cortes nítidos e amplos constituem a
técnica apropriada para abrir e examinar todas as cavidades. As vísceras devem ser
observadas no corpo antes de serem retiradas, evitando-se tocar-lhes com as luvas sujas
ou repuxá-las ou comprimi-las quando se extraem. Antes de abertos os órgãos devem
ser pesados, pois o peso é um elemento valioso para o diagnóstico de certas doenças
naturais que possam afastar a hipótese de crime. A autópsia não deve ser interrompida.

34
J. Pinto da Costa

Em regra, uma autópsia médico-legal demora uma hora. Assim, para fazer vinte
e cinco autópsias, no mesmo dia, seriam necessários vinte e cinco médicos, na base de
que mais do que uma autópsia por dia é uma sobrecarga exaustiva para qualquer
profissional. É obvio que o excesso pedido, por vezes, é uma exigência a evitar, o que
nem sempre tem sido possível. Por exemplo, o Instituto de Medicina Legal do Porto
dispõe de nove médicos para realizar autópsias. Em 1993, embora uns médicos tenham
realizado mais autópsias do que outros, a média por médico foi, no ano referido, de 114
autópsias, o que significa que houve dias em que alguns médicos não fizeram exames
cadavéricos. Assim, consegue-se evitar uma eventual necessidade de aligeiramento na
qualidade da execução das autópsias por falta de médicos para um determinado número
de cadáveres.

Compete, obviamente, ao Estado o controlo de qualidade, isto é, a maneira como


as autópsias são realizadas: de acordo com a ciência médico-legal ou à margem desta, o
que, se atenua, não inibe os médicos de eventual responsabilidade profissional pelos
prejuízos de terceiros.

VERIFICAÇÃO DA MORTE
A verificação da morte encontra raízes no Séc. XIX. A Portaria de 9 de Agosto
de 1814 proibia o enterramento de cadáveres sem certificado de óbito.

A vida, em termos de direito, tem um começo e um fim, independentemente das


múltiplas concepções de índole mágico-religiosa resultantes da angústia vital, com
projecção para uma desejada eternidade.

Como valor fundamental protegido, a vida recebe tratamento legal no âmbito


civil e penal.

A verificação da morte designada classicamente óbito acompanha-se de um


documento chamado certificado de óbito. Este deriva da mais nobre actuação de toda a
prática médica: a decisão.

O diagnóstico do óbito assenta na colheita e crítica dos sinais médico-legais da


morte. É uma decisão da maior relevância, englobando problemas morais, éticos,
deontológicos, civis e criminais, que garante a passagem da situação de uma pessoa viva
à condição de morta. São evidentes o profundo envolvimento do médico e a sua
responsabilidade legal ao certificar a morte de alguém.

O certificado de óbito é um documento médico-legal de grande significado


social. É ele, desde logo, que vai determinar se o cadáver pode ser entregue à família,
para o funeral, ou se haverá necessidade de autópsia médico-legal, como nos casos de
morte violenta, isto é, quando esta resulta de causa externa (intoxicações, acidentes de
trabalho, enforcamento, esganadura, estrangulamento, infanticídio e outros homicídios,
aborto, etc.) ou nos casos de morte súbita suspeita de não ter sido natural.

35
J. Pinto da Costa

O certificado de óbito pressupõe um gesto médico anterior. Trata-se do exame


do hábito externo o qual consiste na observação cuidadosa e pormenorizada do aspecto
exterior do cadáver, pesquisando a cor e aspecto da pele (sugestivos de intoxicações,
hemorragias internas, leses traumáticas) e demais elementos que a medicina legal
propõe para que haja ou não fundamento científico de que a morte não tenha sido
natural.

O papel do médico não se extingue com a assistência que presta aos vivos nem
ao doente terminal. Prolonga-se ainda na actividade profissional concernente ao
falecido.

Quando for chamado para certificar um óbito, o clínico comparecerá


prontamente, actuando segundo as leges artis e graciosamente nos termos da lei. Ao
preencher o certificado de óbito com o dia e a hora deste, o médico atesta quando
cessou a personalidade jurídica de certa pessoa. É a partir daquela data e mediante
certos prazos que se pode proceder ao enterro, à cremação ou incineração que se
desenvolvem os processos sucessórios de reabilitação e herança, e que cessa a
competência legal dos procuradores ou representantes do falecido.

Ainda o certificado de óbito, pela indicação da causa da morte nele contida,


condiciona o pagamento dos prémios de seguro de vida ou indemnizações aos
familiares, pois há apólices que apenas cobrem o risco de morte acidental. Quando ao
verificar o óbito o médico diagnosticar uma doença de declaração obrigatória, terá que a
comunicar superiormente e o cadáver será encerrado em caixões de chumbo para
protecção da saúde pública.

A verificação e a certificação do óbito competem ao médico assistente,


entendido como tal aquele que observou o doente nos oito dias anteriores à data da
morte.

Pode um médico não ter examinado o seu doente nas últimas semanas antes do
falecimento, mas nem por isso perde aquela qualidade, devendo passar o certificado,
obviamente após a verificação do óbito, com o diagnóstico de causa natural quando o
desfecho foi uma consequência previsível da evolução da doença.

Quando a morte ocorreu no domicílio com assistência médica, o certificado


compete ao médico assistente e, se aconteceu durante um internamento hospitalar, a
verificação do óbito é da competência de um médico da equipa que tenha cuidado do
doente.

Não é fundamental que seja este ou aquele clínico a verificar o óbito, mas sim
que seja um médico hospitalar, inclusive um médico do Serviço de Urgência que foi
chamado para prestar assistência a um doente internado na enfermaria.

Para além das implicações legais do certificado de óbito e sua directa


repercussão no direito civil, incluindo o do trabalho, e direito criminal, ele é uma
referência obrigatória para a estatística da mortalidade e morbilidade das populações.

36
J. Pinto da Costa

Apesar de todo o empenho que nestes últimos anos vem sendo feito, por
louvável iniciativa do Ministério da Saúde, para o correcto preenchimento do certificado
em conformidade com as normas da OMS referidas no Manual da Classificação
Estatística Internacional de Doenças, Leses e Causas de Óbito, ainda há certificados, em
conservatórias do Registo Civil, nos quais constam "morte indeterminada"!

Quando no certificado de óbito, relativamente à causa de morte, se alude às


doenças ou condições que a provocaram ou para ela contribuíram, tal causa pode ser
directa, intermédia e básica.

Quando for absolutamente impossível a comparência do médico, para a


verificação do óbito, o certificado pode ser substituído por um auto administrativo,
sendo aquele passado, posteriormente, pelo médico assistente ou pelo delegado de saúde
com base nos elementos contidos no auto.

A declaração do óbito, que não compete ao médico, é obrigatória como consigna


o Código de Registo Civil, mas tem que ser comprovada pelo certificado de óbito
passado pelo médico que o houver verificado. Quando não exista certificado, o
funcionário que recebeu a declaração requisita à Autoridade Sanitária local a verificação
e o respectivo certificado. Habitualmente, a verificação do óbito é feita por um só
médico excepto no caso de colheita de órgãos cadavéricos para transplantações em que
são necessários três.

O certificado de óbito pode ser recusado pelo conservador se a assinatura do


médico não estiver reconhecida pelo notário ou autenticada com selo branco.

A verificação do óbito, quando há morte violenta, é, em regra, efectuada nos


Serviços de Urgência hospitalares, com o fundamento de que quando se procedeu ao
transporte do corpo ainda poderia haver um estado susceptível de reanimação
cárdio-respiratória.

São evidentes hoje as vantagens da verificação de óbito, a qual, historicamente,


assumiu, no passado, algo de fantástico, devido ao temor de ser enterrado vivo.

A dita inumação prematura foi, sem dúvida, um marco importante.

PRESSUPOSTOS DO ENTERRAMENTO
A inumação ou enterramento, que hoje não significa necessariamente que o corpo
seja dado à terra, mercê da cremação, pressupõe pormenorizado condicionamento legal.

O registo civil da morte antecede, formalmente, a inumação, nas Conservatórias.


Para efeito de registo civil são órgãos normais a conservatória dos Registos Centrais, as
conservatórias intermediárias, delegações e postos de registo civil da respectiva área.

37
J. Pinto da Costa

O Código do Registo Civil prevê postos rurais, postos hospitalares e postos dos
Institutos de Medicina legal. Compete aos postos rurais receber e reduzir a auto as
declarações relativas a óbitos da área da sua jurisdição, o mesmo aplicando-se aos postos
hospitalares para os óbitos no respectivo hospital, e aos Institutos de Medicina Legal para
os indivíduos cujo cadáver seja depositado na respectiva morgue.

Na Conservatória dos Registos Centrais, regista-se o óbito dos portugueses no


estrangeiro, ou de estrangeiros em viagem por mar ou ar em transportes portugueses. O
registo é lavrado na conservatória da área em que a morte ocorreu ou onde o cadáver se
encontra.

Após elaborado o assento de óbito, deverão ser averbados quaisquer elementos de


identificação obtidos posteriormente, a transladação e a incineração se for caso disso.

Com vista ao enterramento, o óbito deve ser declarado verbalmente, no prazo de


quarenta e oito horas após a morte, ou depois do cadáver ter sido autopsiado, ou a
autópsia dispensada.

Quando o cadáver não aparece (desastre no mar, acidente de aviação) os herdeiros


do ausente podem requerer a declaração de morte presumida, dez anos após o
desaparecimento, ou cinco anos se o ausente entretanto tiver completado oitenta anos.

Se o desaparecido é menor, a referida declaração só será proferida cinco anos após


a data em que o menor atingiria a maioridade se estivesse vivo.

A declaração da morte presumida equivale à declaração de óbito para efeito de


novo casamento e para efeito sucessório.

A obrigação de declarar o óbito é da responsabilidade dos donos da casa (excepto


se estiverem ausentes), do parente mais próximo ou outros familiares que estejam
presentes, director ou gerente do estabelecimento público ou privado ou respectivos
substitutos, ou ministro de qualquer culto religioso presente no momento da morte, das
autoridades administrativas ou policiais quando o cadáver é abandonado ou da pessoa ou
entidade encarregada do funeral.

A declaração de óbito deve ser comprovada pelo certificado médico do óbito


passado, gratuitamente, pelo médico que verificou a morte, em impresso próprio mas na
falta deste certificado poderá ser passado em papel comum, isento de selo. É prática
aceitável o uso de fotocópia do referido modelo em sua substituição.

Se a declaração é feita na Conservatória ou nos outros locais previstos na lei, sem


estar acompanhada do respectivo certificado de óbito, é da competência do funcionário do
registo civil, que receber a declaração, requisitar ao delegado de saúde ou seu
representante, a verificação do óbito e a passagem do certificado.

Quando a competência do médico para certificar o óbito é absolutamente


impossível porque não há delegado de saúde ou quem o substitua, o certificado de óbito

38
J. Pinto da Costa

pode ser substituído por um auto lavrado pela autoridade administrativa com a
intervenção de duas testemunhas.

Nos casos nítidos, é evidente que qualquer pessoa sabe o que é um morto. Nos
casos limite, o diagnóstico da morte é difícil e é um acto médico, pelo que a expressão
normativa só tem exactidão quando o cidadão vulgar não tem dúvida que um semelhante
está morto. Assim se compreende e pode aceitar que o autuante não médico declare ter
verificado o óbito e a existência ou não de sinais de morte violenta ou de quaisquer
suspeita de crime.

Um dos exemplares do auto, que é feito em duplicado, deve ser anexo à


declaração de óbito e o outro deve ser enviado, pelo autuante, ao médico assistente do
falecido, caso exista, ou ao respectivo delegado ou subdelegado de saúde, o qual, em face
dos elementos que conseguir coligir, procurará classificar a doença que causou a morte e
passará o certificado de óbito.

O conservador pode recusar quer o certificado médico quer o auto de verificação


de óbito se a assinatura não estiver reconhecida por notário ou autenticada com selo
branco.

Pratica o crime de atestado falso o médico que certificar a morte de uma pessoa e
a causa dela, sem ter visto a pessoa antes ou depois de falecer.

O enterramento não será autorizado, quando houver suspeita de crime ou outra


causa de morte violenta (acidente de trabalho, doença profissional, acidente de viação) ou
não for conhecida a causa da morte, havendo então lugar à autópsia médico-legal.

A inumação necessita de prévio assento de óbito no qual constarão a indicação da


hora, data e lugar do falecimento ou do aparecimento do cadáver, a causa da morte, o
nome completo, o sexo, idade, estado, naturalidade e última residência habitual do
falecido, o nome completo dos pais e do último cônjuge e o cemitério onde vai ser
sepultado.

No caso de óbito de pessoa desconhecida devem apontar-se todos os elementos


que possam facilitar a sua identificação (impressões digitais e o estado dos dentes).

Relativamente aos fetos apenas são registados no livro de óbitos a morte fetal
intermédia (entre 20 semanas e 28 semanas completas) e a tardia (28 semanas ou
superior).

Quando a morte ocorrer em hospital (onde não haja posto de registo civil) ou em
asilo, prisão ou outro estabelecimento análogo do Estado, compete ao director ou
administrador comunicar o sucedido no prazo de 24 horas, à respectiva conservatória.

No caso de acidente, de uma ou mais pessoas, em incêndio, desmoronamento,


explosão, inundação, terramoto, naufrágio ou outros casos do género, o assento de óbito

39
J. Pinto da Costa

será lavrado para cada uma das vítimas cujo cadáver tenha sido encontrado em termos de
poder ser individualizado.

As famílias têm o direito de proceder ao enterramento de familiares falecidos em


hospitais, asilos e casas de assistência pública.

Mas, eventualmente, tais familiares poderão ser autopsiados, com algum atraso no
enterro, se o responsável familiar consentir na autópsia clínica para confirmação de um
diagnóstico já elaborado ou com fins apenas de investigação científica.

A autópsia médico-legal, obviamente, como acto judiciário, não necessita de


consentimento.

INUMAÇÃO
A inumação, também designada enterramento, é um acontecimento de altíssimo
valor social, imbuído de vínculos morais, médico-biológicos e legais. O cadáver, seja de
quem for, representa o substracto orgânico de uma pessoa que viveu, com amor e ódio,
com prazer e sofrimento, e que finou. É uma espécie de supervivência continuada na
morte, fabricada na imagem da contemplação do que foi. É o respeito pela vida, e não
pela morte, que consagramos ao proceder ao ritual do enterramento. Há que ter a certeza
que o inumado é o próprio. Há que garantir que não houve troca de cadáveres. Para obviar
a tal engano, o Instituto de Medicina Legal não autopsia nenhum cadáver sem que ele
esteja identificado, para o que o registo das impressões digitais é fundamental ou, quando
não há termo de comparação, a identidade é afirmada em auto de reconhecimento escrito
por quatro testemunhas.

É chocante para um familiar verificar no cemitério, na ocasião da última


despedida, que o morto que está dentro do caixão não é o seu pai, ou o seu filho. Isto já
aconteceu.

A inumação ou enterramento é uma prática que se perde no tempo, testemunhada


pelas antas ou dólmenes. O cadáver era colocado de cócoras na anta com a cabeça sobre
os joelhos e junto dele armas, amuletos, vários utensílios e víveres. O destino a dar aos
cadáveres foi sempre dependente de motivação religiosa. No Egipto Antigo os mortos
eram conservados, com um mínimo de alterações do corpo, por meio do
embalsamamento, prática executada desde cerca de 2000 anos antes de Cristo até 200
anos da nossa Era.

É para notar que a designação múmia só foi empregada usualmente após o séc.
XII, pelos gregos e latinos, e que antes desta data se chamava gabara aos corpos
embalsamados, o que significa conservados religiosamente. O embalsamamento, além
dos egípcios, foi usado pelos etíopes, persas, incas e aztecas. Quando a religião não é
favorável à conservação do cadáver, há outras práticas, como, por exemplo, o abandono
do corpo às aves da rapina nas torres de silêncio ou a cremação. Muito embora a

40
J. Pinto da Costa

sepultura, para os cristãos, desde sempre tenha sido importante, os cemitérios, como
instituição, são relativamente recentes.

Os sepulcros eram particulares e em regime de propriedade privada.

A inumação é tão antiga como a cremação, sendo contudo aquela mais comum.
Com o advento do Cristianismo, a inumação foi preferida pelos cristãos quer pela
semelhança com a sepultura de Jesus Cristo, pelo respeito aos cadáveres, e sobretudo
porque a morte era tida como um simples sono até ao dia da ressurreição final. Por isto, os
cristãos mudaram o nome pagão de necrópole (cidade dos mortos) para cemitério que
significa dormitório. Mas, se os cristãos não cremavam os cadáveres, os pagãos tanto
incineravam como sepultavam os seus mortos. Durante muitos séculos, a inumação foi a
prática exclusiva no Mundo Cristão, embora a Igreja Católica admitisse que, em caso de
necessidade, por exemplo de epidemias, os cadáveres podiam ser cremados.

Nos meados do séc. XIX, surgiram correntes de opinião favoráveis à cremação,


mais fundamentadas em materialismo contrário ao Cristianismo do que propriamente em
razões higiénicas, para combater a crença na imortalidade, despertando na Igreja Católica
franca condenação a tais práticas. É assim que a inumação se mantém no Codex Iuris
Canonici como o modo habitual de sepultar os fiéis e se proíbe a sepultura eclesiástica
aos que mandassem cremar os seus corpos.

Em 1963, porque a cremação era já uma prática corrente, sem o carácter


anti-religioso de outrora, a Igreja consente na sua prática, embora continue a recomendar
a clássica inumação. A inumação, em Portugal, é, maioritariamente, por tradição,
dependente da religião Católica. Pelo Direito Canónico, o fim e o espírito das exéquias
religiosas são a oração da Igreja pelo defunto, honras prestadas ao corpo de um baptizado
e consolação e esperança para os que o acompanham. Os mortos eram inumados nos
adros das igrejas, no interior dos templos e nas criptas, até ao fim do séc. XIX. A Igreja,
por várias vezes, condenou a prática de enterrar os mortos nas igrejas, como nos Concílios
de Meaux, em 895, e de Reims, em 1117. Em Portugal, o 1º Concílio de Braga, em 663,
proibiu o enterro nas igrejas.

No séc. XVIII, imperava a ideia de que enterrar os mortos nas igrejas em recinto
fechado era prejudicial à saúde dos fiéis. Era o pensamento da Revolução Francesa, nas
memórias de Hagenot e Maret.

O conflito social da proibição da inumação nas igrejas foi bem tratado por Júlio
Dinis no romance a Morgadinha dos Canaviais. Inumar é enterrar, mas tal pressupõe um
conteúdo normativo do óbito no âmbito do registo civil.

A inumação de fetos recebe tratamento especial na legislação portuguesa.

O Código do Registo Civil prevê, pormenorizadamente, as múltiplas e eventuais


situações com interesse médico-legal, no campo da inumação. O Código Penal, ao
criminalizar o impedimento ou a perturbação de cerimónia fúnebre, protege não a

41
J. Pinto da Costa

memória do morto mas o respeito que os vivos guardam pelos mortos como valor ético
socialmente aceite.

Depois do enterramento, continua a haver protecção para os locais onde os mortos


foram inumados. Quem profanar o lugar onde repousam as pessoas falecidas, ou
monumentos erguidos à sua memória, será condenado com prisão, sendo também punível
a tentativa.

A inumação debate-se hoje com graves problemas logísticos nos países mais
industrializados, tomando a cremação um significado progressivamente mais penetrante
no convencionalismo do culto dos mortos, perpetuado pela memorização audiovisual da
fotografia e do vídeo.

PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL DO
ENFORCAMENTO
Muito provavelmente, o modo de morrer, por enforcamento, passará para o Séc.
XXI. Até quando? Desde quando tal prática se arrasta no tempo?

Para os Hebreus era um dos quatro suplícios: o enforcamento, o fogo, a


lapidação e a decapitação. Aplicava-se a pena de morte aos idólatras e blasfemos.

Escreveu Devergie, grande figura da medicina legal francesa, em 1839, que se


algo necessitava de investigação era sem dúvida a história da suspensão. Volvidos mais
de 150 anos, vale a pena rever e meditar sobre um tema de tão largo envolvimento no
comportamento humano. Estigmatizante numas comunidades, reprovável ou tolerado,
estimulado ou bem visto noutras, o enforcamento é castigo judiciário ou evasão
definitiva em muitos estados depressivos.

Com simplicidade, nota-se que o enforcamento é um processo violento devido


ao peso do corpo que constringe o pescoço por laço ligado a um ponto fixo. A sua
etiologia é múltipla e pode revestir as formas de suicídio, execução judiciária, acidental,
erótica ou masoquista, homicida, homicida-suicida e simulação.

As primeiras forcas devem ter sido qualquer ponto mais ou menos fixo, de altura
superior à da vítima. Naturalmente, a forca nasceu na árvore. O seu próprio nome assim
sugere, forca, forquilha, como bifurcação de ramos. Talvez, por observação directa, o
homem tenha verificado que o seu semelhante, quiçá outros animais, morressem por o
pescoço ficar entalado entre os ditos ramos.

A tecnologia procurou apurar o mecanismo da execução, e surgiu a forca com


três paus. Mas a árvore continua a ser o instrumento mais generalizado. Ainda hoje
muitas execuções são praticadas em certas comunidades, em árvores, do mesmo modo
que Tácito indicou como eram feitas para os desertores e traidores germânicos.

42
J. Pinto da Costa

Inicialmente, a corda era apertada à volta do pescoço e a vítima era içada. Mais
tarde, com o uso da escada, o condenado subia uns degraus e depois bruscamente aquela
era retirada. É numa terceira fase que se empregou a carroça puxada pelo animal, que,
em fuga, deixava pendurado o sentenciado.

O enforcamento vigorou na Roma Antiga, segundo uns como derivação,


segundo outros como origem do suplício da cruz. Na Grécia, destaca-se a violência
sofrida por doze mulheres ditas impúdicas, mortas às mãos de Telémaco e uns amigos,
por ordem de Ulisses (Odisseia, Canto XXII). Os Germanos enforcavam os desertores e
traidores, pendurando-os em árvores pelo pescoço. É possível que tenham sido eles os
grandes difusores da forca pela Europa, a ponto desta se ter tornado o símbolo da Justiça
durante a Idade Média.

O enforcamento tem sido uma forma de linchamento e embora duvidosa, a


origem desta palavra está estritamente relacionada com ele. Não sabemos se a palavra
provém de um juiz de paz que na Virginia no séc. XVIII, enforcava pessoas sem
julgamento, ou da própria palavra lynch que em inglês significa flagelação ou castigo
corporal, ou porque na cidade de Lynchburg, em 1792, se verificou o 1º caso de
enforcamento sem julgamento ou porque até antes disto, em 1687 um juiz também
chamado Lynch, encarregado de lutar contra a pirataria e o banditismo, aplicou o
enforcamento sem julgamento prévio. Ainda há a hipótese do nome estar relacionado
com um colono que enforcou um ladrão fazendo justiça por suas próprias mãos. E ainda
há quem atribua a um governador irlandês a responsabilidade da designação, ao
enforcar um filho. As lutas de classes, de etnias, de clãs, como meio de eliminar o
adversário do modo mais rápido e violento, com a única razão de força antes de
qualquer intervenção dos poderes públicos instituídos, estão na base explicativa do
fenómeno do linchamento. Modernamente, o Ku-Klux-Klan emprega o enforcamento
como uma das execuções sem julgamento.

Nos Estado Unidos, desde 1882 até agora admite-se que tenham sido linchadas
mais de 6000 pessoas quase todas negras, com uma média de cerca de 150
linchamentos, por ano, neste últimos anos.

Antigamente não se admitia o enforcamento na suspensão incompleta, como


suicídio, até a possibilidade ter sido demonstrada, por Louis. Antes disto, muitas
pessoas pagaram com a vida crimes que não cometeram. Recorda-se o caso de Marco
António Calas, encontrado morto, num armazém do pai, em Toulouse, em 1761; como o
cadáver estava pendurado por meio de corda que lhe constringia o pescoço, presa a
bengala apoiada nos batentes da porta entreaberta, João Calas, pai do morto, foi acusado
de ter assassinado o filho e morreu no suplício da roda, em 1762. Feita a revisão do
processo, por terem surgido dúvidas quanto à culpabilidade de João Calas, Louis
apresentou uma comunicação célebre à Academia de Paris, e a inocência de João Calas
foi reconhecida, publicamente, por sentença de 9 de Março de 1765.

O enforcamento é relatado desde há muito como meio de suicídio e de suplício.


Homero alude ao suicídio de Epicarto, Sófocles descreve o enforcamento de Jocasta,

43
J. Pinto da Costa

Virgílio o de Amata, Eurípedes o de Fedra e Plutarco dá conta da verdadeira epidemia


de suicídio por enforcamento nas jovens de Mileto. A Bíblia alude ao enforcamento,
destacando-se o suicídio de Judas. Tolstoi, na Ressurreição, repudia o relato de um
enforcamento que um carcereiro presenciou. Em Cervantes, pode ler-se de Don Quixote
a Sancho Pansa: "Não tens de que ter medo, porque estes pés e pernas que apalpas e
não vês, sem dúvida, são de alguns foragidos e bandoleiros que nestas árvores estão
enforcados; que por aqui os deve enforcar a Justiça quando os agarra, às vintenas ou
trintenas; por isso julgo que devo estar perto de Barcelona".

Entre nós portugueses, até à abolição da pena de morte, o enforcamento foi


praticado judiciariamente. Alguns escritores portugueses aludem a aspectos do
enforcamento. Eça de Queirós, nos Contos: "Ambos os beiços se lhe arreganhavam num
sorriso empedernido. De entre os dentes, muito brancos, surdia uma ponta de língua
muito negra".

José Régio, em As Encruzilhadas de Deus: "O homem dança de roda... / Estira


as pernas geladas/ Espalma as longas mãos pretas/ Deita fora a língua roxa/ E faz
caretas".

Hyppolito Raposo, em A Kalunga, "É lançada uma corda. O laço corre e


abre-se para receber a cabeça num instante. Um corpo alonga-se, estremece e logo a
vida o desampara, no meio de um gáudio doloroso. Da bocarra aberta pende a língua
que não falou".

João Grave, em O Passado, "... quando o carrasco, líbido e tressuando, apeava


do poste os enforcados roxos, d'órbitas saídas e com a língua entumecida fora da
boca".

Antero de Figueiredo, em Jornadas em Portugal, "... quando o carrasco se


acavalava nos ombros do desgraçado, para, com o peso do seu corpo, lhe apertar, mais
cerradamente, a corda na garganta, a fazer-lhe vomitar pela boca fora a língua de
palmo e meio".

Os moralistas medievais entendiam que o enforcamento não devia ser aplicado


às mulheres, às quais era infligido o suplício da roda para não ofender a modéstia dos
espectadores. O enforcamento é um dos meios de execução da pena máxima em todo o
mundo. A influência cultural da Grã-Bretanha, nos países da Commonwealth explica a
larga implantação daquele método em muitos países que hoje o seguem. Morrer na forca
tem sido considerado uma das maiores afrontas. Esta ideia de estigmatizar certos
condenados encontra-se traduzida, por exemplo, na execução dos chefes da conjura
contra Hitler, em 1944, na Alemanha nazi, sendo para notar que o processo habitual das
condenações à morte, nessa ocasião, era o fuzilamento.

O triste espectáculo do enforcamento público acabou na Grã-Bretanha, em


1868, mas persiste em muitas paragens da África e da Ásia sobretudo, processos quase
medievais de enforcamento judiciário, contrastando com a mais diferenciada tecnologia

44
J. Pinto da Costa

ao serviço de homem. O enforcamento como meio de execução judiciária na Europa


está longe de ter sido encerrado definitivamente. Em 1975, na Grã-Bretanha foi
apresentada uma moção na Câmara dos Comuns para reintroduzir a pena de morte para
delitos terroristas que causassem morte, a qual, embora tenha sido derrotada, mostra que
o problema foi equacionado. Tentativas do género têm sido repetidas naquele país, com
resultados semelhantes. Em Maio de 1982, aquela Câmara voltou a rejeitar a
reimplantação mas a votação foi de 357 votos contra e 195 a favor, encontrando-se entre
estes o de Margueret Thacher. Mais uma vez, em Julho de 1983, o Parlamento Britânico
rejeitou a proposta.

Há que ter cuidado com a violação dos direitos humanos. Quase que diríamos, à
boa maneira portuguesa, que água mole em pedra dura tanto dá até que fura!

MORRER COM DIGNIDADE


O conceito de morrer com dignidade mudou. Os filósofos gregos suicidavam-se.
Os romanos pediam aos servos que os matassem com a espada. O comandante de um
navio naufragado ia com ele para o fundo. O general derrotado na batalha suicidava-se.
Os cristãos entregavam-se aos leões, com hinos de amor, em vez de renegarem a sua fé.

O problema da morte é um falso problema que esconde o âmago da questão: o


amor. Quem ama Cristo segue-lhe incondicionalmente os passos, como única meta
existencial. O homem que ama uma mulher salta por cima de tudo, joga fora valores
grandes em favor da amada, com a indiferença exponencial e exclusivista do amor. Este
é a entrega total e incondicional a outrem. Não é justo nem injusto. É superior.

Ao amor, como valor positivo, apenas se contrapõe o ódio, como valor negativo.
O resto é acessório que não conduz à plenitude da personalidade humana.

O amor à Pátria leva à aceitação da morte com naturalidade pelos militares e


pelos familiares do morto, orgulhosos do acontecimento. O amor à camisola, de outrora,
que fazia atletas heróis, transferiu-se para o amor ao dinheiro que leva os desportistas a
lutar até ao máximo das suas forças e, às vezes, até para além delas, com auxílio
pernicioso de drogas.

Hoje, o conceito adquiriu nova perspectiva, muito mais limitada ao doente, e não
à pessoa humana na plenitude das suas virtualidades.

Os conspiradores contra Hitler, em vez do fuzilamento, foram enforcados para


tirar dignidade ao acto da pena de morte.

Preocupamo-nos muito com a questão de morrer com dignidade quando o doente


está numa fase irrecuperável, especialmente nos casos de cancro.

É mais importante viver com dignidade do que morrer com dignidade. É


hipocrisia tratar com respeito, dignidade, competência e dedicação, utilizando, com

45
J. Pinto da Costa

oportunidade, os meios habituais de diagnóstico e prognóstico, aquela mesma pessoa a


quem durante toda a vida negámos tais possibilidades, não mitigamos o sofrimento e a
fome, nem materializámos o direito de uma vida digna.

Com as devidas reservas, e partindo do pressuposto de que ao nosso próximo


trataríamos como irmãos, será admissível (menos chocante) a reflexão sobre o que, num
plano ético, hoje se reconhece, internacionalmente, como corolário da morte com
dignidade. É com esta reserva que sublinhamos alguns princípios fundamentais.

O doente tem o direito de aceitar ou recusar qualquer tratamento, após


"consentimento informado" isto é, depois de devidamente esclarecido sobre a questão,
compreendendo-a por forma a poder optar e não apenas quando o médico "explica
bem".

No sequencial panorama ético, o que significa então a afirmação da Declaração


dos Direitos do Doente (1981) de que o enfermo tem o direito de morrer?

Além do respeito e outras atitudes já referidas, para a pessoa humana em vias de


deixar de o ser, serão legitimadas as questões de ordem económica decorrentes dos
custos de meios raros e caros de diagnóstico e terapêutica, cujos resultados são
improváveis de melhoria de situação perante a irreversibilidade da doença em fase
adiantada.

É óbvio que ao doente devem ser proporcionados os meios para a mais completa
e pronta reintegração na família e na sociedade.

A medicina, no sentido como antigamente, não é exclusivamente praticada por


médicos. Recebe agora o nome de saúde (serviços de saúde, técnicos de saúde,
programas de saúde, política de saúde, etc.) mas continua a ser a medicina de sempre. É
o cuidado dos outros, para alívio do sofrimento, com respeito da vontade, apenas
limitado pelo convencionalismo de regras pré-estabelecidas no plano normativo ou
naturalmente impostas pela moral e aceites pela ética.

Tudo decorrerá sob a capa protectora e confortante do segredo médico


classicamente originário.

Todo o doente, rico ou pobre, deverá, na opinião de muitos, dispor da mesma


oportunidade de sofisticadas intervenções cirúrgicas ou metodologias dispendiosas para
a sua recuperação, contando apenas, caso a caso, no prato da balança dos valores, o
programa a encetar e os resultados a obter.

Em termos de custos, não pode haver limite para salvar a vida da pessoa
humana. É aqui que assenta a essência do problema ético: para que vida?! É a
contradição em zigue-zague da hipertrofia normativa do valor da pessoa humana que
matamos porque não encontramos outro meio de impor os nossos próprios valores, ou
que privamos da liberdade, pela mesma razão.

46
J. Pinto da Costa

Gastam-se fortunas a tratar do inimigo por motivos de ferimentos que lhe


infligimos em tempo de guerra. É mesmo do conceito internacional a obrigação ética de
tratar, em primeiro lugar, o ferido mais grave, seja ele amigo ou inimigo. O diminuído
adquire importância. O mais doente prefere sobre o menos doente.

O que significa morrer com dignidade, no caso dos que nascem com graves
deficiências incompatíveis com futura relação humana?

Deixar que o "monstro" após algum tempo morra naturalmente?

Tentar prolongar-lhe a vida com alimentação e respiração artificial e outros


meios técnicos? Ou matá-lo?

A ética ensina que apenas a pessoa humana pode matar o seu semelhante na
guerra, valorizando inclusive como heróis os que mais matam. Fora disso, matar é
proscrito, com excepção das comunidades que entendem que a pena de morte é solução
para certas questões criminais.

O doente terminal, que difere do agónico, pelo nível de consciência, necessita de


apoio contrário à solidão geradora de todas as aflições e desconfortos.

A prática ensina que as pessoas não querem morrer sós. Outras preocupam-se
em não estar sozinhas quando metidas no caixão à espera do funeral. É o sentimento
ético do facto que nos leva a estar junto dos nossos mortos, nem que seja noutra sala ou
à porta da rua, em conversa animada exterior ao falecido. Mas estamos lá.
Aparentemente, pelo morto, Em boa verdade, pela nossa consciência ética da questão.

A presença, a certeza de que está alguém com o doente terminal, que mais não se
faz porque não é possível, num plano de aceitação superior, é reconfortante.

Ao conforto não será estranho, naturalmente, o substrato mágico-religioso do


enfermo, como guião mais fácil e acessível para a morte.

Até ao condenado à morte, na véspera de execução, é concedida mais atenção,


refeição melhorada, vinho, e a presença pela assistência religiosa da companhia
confortante para os que acreditam no Além.

Fora da morte súbita, o processo de morrer evolui por cinco fases, como
inicialmente propôs Kübler-Ross: negação e isolamento, cólera, negociação, depressão e
aceitação.

Morrer com dignidade está na moda. O substrato da dialéctica é profundamente


materialista. A dignidade evocada não é do moribundo, é nossa, que não queremos
aceitar a veracidade dos factos e a pequenez do que somos.

A importância (o desejo de ser importante de Adler, fulcro da conflitualidade


neurótica), que o ser humano assume na família, no grupo, na comunidade, é um verniz
que não resiste à pesquisa psicossomática do indivíduo.

47
J. Pinto da Costa

Terminal dizia-se do limite do caminho de ferro ou das últimas paragens dos


autocarros ou dos camiões TIR. Hoje, terminal é também o doente que antigamente
estava a morrer. Era o moribundo, o agónico, com todos os seus problemas. Dantes
sublinhava-se que o médico, independentemente das suas convicções, devia promover a
assistência religiosa da personalidade humana que em breve se extinguiria. Hoje
exalta-se, especialmente, a assistência a prestar aos cancerosos na fase mais avançada da
doença quando a morte é praticamente inevitável.

A dignidade está mais próxima do recato, da privacidade, do direito à


intimidade, do que ao acto intrinsecamente em si mesmo de estar ligado ou não ligado a
aparelhos ou submetido a medicação farmacológica considerada desnecessária.

Mas, se queremos discutir o âmago filosófico do problema, permita-se-nos


pensar, despindo as roupagens do convencionalismo estereotipado das frases feitas dos
jornais, revistas, pasquins e livros do mais diferente tamanho, feitio e cor de capa.
Então, a morte com dignidade, para a pessoa humana religiosa, será o pórtico
importante da passagem de uma vida para outra vida diferente e mais importante, pela
proximidade do ente superior que é a origem de tudo ou, muito rudimentarmente, para o
incrédulo, a nova situação de terminar, acabar, finar, deixar de existir.

A questão de morrer com dignidade só tem sentido quando surge no ómega dum
processo linear que começa com nascer com dignidade e prossegue em viver com
dignidade.

Morrer é o acontecimento final da vida, tão natural como nascer. A pessoa


humana assume a plenitude existencial quando é absolutamente livre na escolha de
opções boas ou más, responsavelmente tomadas.

"Morrer com dignidade" é um chavão moderno sem sentido quando desinserido


do processo longitudinal da pessoa humana. Seria mesmo desarmonioso e aviltante
proporcionarmos uma morte digna àquela pessoa a quem demos uma vida indigna, às
vezes dispensando-lhes menos favores que ao cão e ao gato.

Deixemos que a morte surja como remate natural de uma vida que bem ou mal,
foi vivida por cada um, como quis ou pôde. Nada de soluções fáceis impostas com
piedade forçada, ultrapassando as possibilidades técnicas de prolongar a vida no
interesse particular do doente que muitas vezes é a projecção de si próprio na família ou
no grupo que o acolhe. Sem exageros. Sem regras. Sobretudo com bom-senso e no
interesse do doente.

DÊ O SEU CADÁVER
Na época super-renascentista, em que passamos, o cadáver, além de ser uma
situação inevitável de todo o animal que nasce, assume, novamente, prioridade de
discussão.

48
J. Pinto da Costa

A angústia vital da falta de humildade na aceitação do degradante fim existencial


levou o ser humano a pretender justificar a sua imortalidade. Os ritos funerários dão-nos
conta disso. Na Antiguidade Oriental a vida era religião a pensar no além, e tudo o resto
era secundário.

Novas perspectivas na modernidade sócio-cultural desenham-se no destino do


cadáver. Ele não é apenas tomado no sentido clássico da morte representada,
simbolicamente, pelo esqueleto e pela foice, nem tão-pouco o cadáver literário na
poética criação de António Nobre, em o Só , ca (caro) da (data) ver (vermibus), carne
dada aos vermes, cuja alegoria, antes dele, tinha sido apontada pelo prelado francês
Jauffret (1759-1823).

É uma verdade universal que os centros anatómicos, sobretudo na Europa, se


debatem com o problema da escassez de material cadavérico para o ensino. Mas a
questão não é só de hoje.

Já em 1913, eram reconhecidas "as dificuldades que sofria o ensino pelo


pequeno número de cadáveres deixados pelos serviços hospitalares à sua disposição".
Tal reconhecimento justificou a Portaria nº 40 desse ano, providenciando que ficassem à
disposição das escolas médicas os cadáveres dos falecidos nos Hospitais, Asilos e Casas
de Assistência Pública, que, no prazo de 12 horas após o falecimento, não tivessem sido
reclamados pelas famílias para procederem ao seu enterramento, com o pressuposto de
que, imediatamente após a morte, tivesse sido dado conhecimento à família.

Estabelecia-se ainda que relativamente aos cadáveres requisitados pelos


familiares, para exéquias, às escolas médicas, estas deveriam entregá-los, findos os
estudos a que julgassem dever submetê-los, e entregar também a importância
habitualmente gasta com o enterro. Mas a mesma portaria salvaguardava a possibilidade
deles não serem entregues se a sua conservação na posse das escolas representasse
interesse para a ciência.

A Direcção-Geral de Saúde, em 22 de Agosto de 1913, preconizava que aos


despojos, que não fossem requisitados pelos familiares, as escolas médicas fariam o
enterramento conveniente.

É indiscutível que a melhor maneira de ensinar a constituição do corpo humano,


pela motivação forte da carga emocional evidente que contém, é pelo órgão cadavérico
humano. Muito mais do que mediante estruturas de plástico, fotografias ou vídeos.

Não tem sido pacífica, assim reza a história da civilização ocidental, a utilização
de cadáveres humanos para estudo. O aproveitamento destes, para ensino e investigação
científica, especialmente do ponto de vista anatómico, data do século XVI, embora na
clandestinidade. Como pioneiro deste estudo, perante a falta de material humano para
observação directa de como somos feitos, merece uma breve recordação André Vesálio
(1514-1564) quem, em porfiadas e dificultosas excursões, angariava corpos de
condenados, às escondidas pela noite calada.

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J. Pinto da Costa

Entre nós, no séc.XVI, já os juristas Gaspar Vaz (1553), Manuel Soares da


Ribeira (1572) e António da Gama (1559) eram favoráveis à concessão dos cadáveres
aos médicos para estudo.

A posição negativista perante o cadáver não facilita a solidariedade social de


doar o próprio corpo, retirando-o à rotina convencional do armazenamento e destruição
na terra.

A disponibilidade de corpos para estudo limitou-se durante muito tempo aos


cadáveres de condenados e dos que não eram reclamados por familiares, e, não raras
vezes, ao furto e ao seus comércio. É possível que muitas outras atitudes possam existir.
Uma delas, assenta, curiosamente, na nacionalidade do evento e na proximidade
temporal.

Um distinto médico, quando estudante, foi ao cemitério da aldeia e levou o


esqueleto de um tio para casa. Foi neste ambiente familiar que estudou a anatomia.
Numa interpretação genética, tal esqueleto deveria ser mais semelhante ao seu que outra
ossada qualquer!

As Escolas Médicas, em Portugal, actualmente (1991), continuam a lutar com


grande dificuldade, cada vez mais acentuada, chegando, em algumas delas, a não ser
atingida a média de um cadáver por ano. A dificuldade não é satisfeita com a minoria de
corpos de pessoas que não tenha sido reclamada para exéquias, ou daquela cuja
identificação após a morte seja impossível, e tanto mais porque o progresso da medicina
legal reduz, extraordinariamente, o número de tais casos, na medida em que a maioria
dos desconhecidos acaba por ser identificada.

Na evolução cultural em curso, dilata-se a consciência da legitimidade da doação


de cadáveres.

Embora sinónimas, dação e doação não têm o mesmo sentido de aplicação


prática. Dação não exclui a possibilidade de entregar uma coisa em pagamento
porquanto é um dos seus significados. É por isso que preferimos o termo doação, o qual
implica transmissão gratuita a outrem.

Em matéria de tanta sensibilidade humana, como esta, devem escolher-se as


palavras mais exactas para evitar confusão resultante de pertinente dialéctica e de
interpretações tendenciosas a favor de sentido que não se pretendeu inicialmente.

Não há legislação que proíba a utilização de cadáveres humanos para fins de


ensino, havendo, pelo contrário, estímulo para tal desde 1913 (Portaria nº 40).

Na eventualidade de se legislar sobre o assunto deverá ter-se presente que o


cadáver humano se situa na categoria jurídica "res extra commercium", pelo que será
imprescindível que fique inequivocamente impressa a noção de qualquer fim lucrativo
na atitude da entrega do cadáver para estudo anatómico. É assim que parece justificar-se
plenamente a preferência da doação sobre a dação.

50
J. Pinto da Costa

Doar o cadáver é a forma normal de possibilitar o ensino real da anatomia, em


vez da aprendizagem livresca, frequentemente afastada da verdade morfológica
humana.

Ainda recentemente (1988), um trabalho realizado no Instituto de Medicina


Legal do Porto provou que o nervo facial pós-mastoideu nada tem que ver com a
descrição anatómica dos livros. Tal conhecimento morfológico é fundamental pois só
pela noção da anatomia se podem evitar lesões cirúrgicas decorrentes de golpes
praticados segundo a indicação de livros, não coincidindo com a exacta localização das
estruturas nas quais se intervém no plano cirúrgico.

A doação do cadáver é uma atitude da maior dignidade do ser humano, um valor


filantrópico a cultivar, ultrapassando a multiplicidade de conflitos entre a exigência
dessa dignidade e os múltiplos comportamentos desajustados ao respeito que os
cadáveres merecem.

A doação do cadáver, para evitar conflitos de interesses após a morte, deve ser
feita pelo próprio, mediante uma declaração autenticada pelo notário, de forma a
constituir uma disposição testamentária a cumprir, obviamente, antes do funeral.

Haverá que manter a dignidade pelo respeito da memória da pessoa falecida,


pelo que a cerimónia fúnebre convencional deve ser mantida com relevo para a atitude
nobre da doação, em vez do egoísmo da inutilidade em entregar a carne aos vermes, ou
ao processo higiénico da cremação.

Se as pessoas aceitam e louvam deixar os olhos, os rins, o coração ou outros


órgãos para transplantações em outras pessoas, não se vislumbra porque, com o mesmo
espírito, não se há-de deixar todo o cadáver para a superior colaboração no ensino
daqueles que mais tarde procederão às ditas transplantações que a ciência médica e a
ética aconselhem.

É importante o desenvolvimento de um programa de solidariedade, para doação


do cadáver, em face do respeito individual pela vontade de cada um.

Não é coerente que se impeça o cumprimento da vontade das pessoas que em


vida tenham manifestado por escrito o desejo de legar o cadáver para estudo anatómico.
É evidente também a legitimidade da utilização, com tal finalidade, dos cadáveres que
não tenham sido reclamados para o funeral, excepto se as respectivas pessoas tivessem
declarado expressamente que não queriam que o seu cadáver fosse utilizado desse
modo.

A doação de cadáveres obriga quem os recebe a uma série de compromissos


legais e éticos, designadamente proceder ao registo do óbito do falecido, manter um
arquivo completo dos cadáveres humanos recebidos, proceder à identificação
dactiloscópica, fotográfica ou antropométrica, conservar o corpo mediante processo
científico adequado, reconstituir o melhor possível os cadáveres após a dissecção
quando houver lugar a funeral, e anotar as peças anatómicas retiradas para conservação

51
J. Pinto da Costa

ou para investigação científica. Engloba ainda o dever de efectuar o transporte dos


cadáveres a partir do local em que se encontram e de proceder às exéquias (inumação ou
cremação) consoante a vontade do doador.

No plano de estudos médicos devem fomentar-se acções ordenadas para o


desenvolvimento do respeito pelo cadáver humano e do apreço pela atitude da sua
doação ao serviço da medicina, imediatamente antes do início da aprendizagem
anatómica, para que tais noções não rujam, como agora acontece, depois dela, inclusive
no último ano do Curso, na cadeira de Medicina Legal e Toxicologia Forense no Porto,
em Coimbra e em Lisboa.

Recorda-se que os estatutos pombalinos da Universidade de Coimbra, 1563 (nº


12, livro III, parte I, título III, capítulo II), dispunham que para uso da anatomia servirão
os cadáveres dos que morressem nos Hospitais e dos condenados e, na falta de ambos,
servirão os cadáveres de quaisquer pessoas que falecessem na cidade de Coimbra.

Em tais estatutos, o médico assistente era obrigado a prestar informação


pormenorizada sobre o tratamento que efectuou ao doente. Preconizava-se que os
médicos eram obrigados a assistir às autópsias e às prelecções que o lente (professor) a
respeito delas fizesse. Estas e outras disposições, fazem lembrar uma rábula de certa
revista teatral. Ó Marquês, volta cá outra vez!

NO DIA DOS MORTOS


Reconhecer os próprios erros é prova grandiosa de carácter.

Vai que o país encontrava-se mergulhado na escandalosa situação de falta de


peritos médico-legais nas Comarcas, para o regular serviço da Justiça, pelo êxodo
maciço de demissão forçada por uma peregrina determinação.

Uma distracção ou um esquecimento do cirurgião pode matar.

O automobilista, menos adaptado à realidade do terreno que percorre, pode


colidir com o obstáculo que não previu. O legislador apressado, obsessivo, estreitamente
sectorizado, pensando no seu campo, desprezando a globalidade da pessoa humana, sem
medir as consequências do que pretende normalizar, constitui um perigo social.

Em boa hora, um diploma vital publicado no Diário da República, no dia dos


mortos de 1991, sustendo a escandalosa situação que o país atravessava, pela falta de
peritos médico-legais, fora das cidades do Porto, Coimbra e Lisboa (geograficamente
enumeradas do Norte para o Sul).

Médicos designados, para realizarem autópsias, por não haver peritos para as
fazerem, foram presos por desobediência ao Tribunal. Daí, uma certa confusão nacional
pela argumentação contraditória dos médicos nos órgãos da Comunicação Social, por
estes acalentada e difundida, a qual em vez de esclarecer confundiu as mentalidades.

52
J. Pinto da Costa

O grande drama da falta de médicos para realizar autópsias nas Comarcas é


sobretudo a falta de remuneração condigna pelos exames periciais efectuados.

Um inquérito recente a 138 médicos revelou que 135 estão interessados em ser
peritos das Comarcas. Isto é significativo, porquanto, 97,82% dos peritos inquiridos
pretendem ser contratados desde que as funções periciais sejam remuneradas, "com
tabela de remuneração justa, necessariamente muito diferente da actual".

Os minguados proventos auferidos pelos peritos médico-legais, permitem


transferir a máxima clássica do chercher la femme para chercher la monnaie, para
explicar o fulcro da relutância da realização das autópsias médico-legais.

Não será por demais repetir que uma das notas mais negativas da organização
médico-legal portuguesa decorre da exiguidade nacional das verbas disponíveis, para
uma aplicação decente da medicina legal à Justiça, designadamente do malfadado
Código das Costas Judiciais.

A questão agudizou-se desde que os médicos portugueses começaram a tomar


conhecimento do quantitativo recebido pelos seus colegas na Europa Comunitária.

Em 1987, foi publicada a Reforma do Serviços Médico-Legais. Contudo, apesar


de altamente elogiada e invejada no estrangeiro, a referida reforma, por não ter sido
totalmente aplicada, não solucionou ainda as carências médico-legais do País e a falta
de resposta, para algumas questões essenciais e agrava, cada vez mais, pelo acumular do
tempo, as insoluções.

O estado problemático existente no País, em 1991, é a resultante lógica e


inevitável da concretização de uma orientação concentrada no espaço e no tempo para
resolução das necessidades médico-legais, que só nos últimos seis anos, embora
timidamente, começa a ser enfrentada.

Com serenidade, e nisso vai a superioridade da decisão, o Governo contradisse,


corajosamente o lapso inicial, ouvindo os justificados clamores dos Magistrados
Judiciais e do Ministério Público, a braços com a dificuldade de objectivarem as provas
nos múltiplos casos, em que não podiam prescindir, cientificamente, da prova
médico-legal.

Sem cair no estafado "tudo está bem quando termina bem", não pode deixar de
sublinhar-se a reconhecida humildade, apanágio da superioridade humana, e, no caso
presente, política, decorrente do encontro fácil da solução adequada.

Quanto mais não fosse, serviria o gesto para meditar sobre a utilidade da audição
ao Conselho Superior de Medicina Legal, órgão de cúpula da medicina legal
portuguesa, no qual, estão representados os três Institutos de Medicina Legal do país, o
Conselho Superior da Magistratura, a Procuradoria-Geral da República, a Polícia
Judiciária e o próprio Ministério da Justiça por pessoa indicada expressamente para o
efeito.

53
J. Pinto da Costa

Porque o Conselho foi ouvido nas suas reflexões de preocupação quanto aos
efeitos perversos da proibição dos médicos, em exclusividade no Ministério da Saúde,
realizarem perícias médico-legais remuneradas pelo Ministério da Justiça, o país passou
do nível mau para medíocre o que constitui notável avanço.

O desencanto dos médicos acabou. Um vislumbre de confiança dilata-se no povo


português que vê abrir-se a porta, com responsabilidade, para solução da situação
dramática impeditiva da funcionalidade da Justiça portuguesa.

Criadas que estão as condições convidativas de trabalho, para os médicos, em


igualdade de circunstâncias de carreiras, de remuneração e acesso, para os médicos na
medicina legal ou nas restantes carreiras médicas da saúde, designadamente nos
Hospitais, Centros de Saúde e Clínica Privada, não faltarão médicos para trabalhar em
autópsias médico-legais. A prová-lo está, a afluência de concorrentes ao actual concurso
nacional de médicos para peritos de Comarcas, excedendo o número de vagas.

Isto não quer dizer que tudo esteja bem. Mas é inegável que um grande salto em
frente, para além do prestígio obtido pelo Governo, foi dado na linha de continuidade do
progresso que o Conselho Superior de Medicina Legal pretende para o país.

É evidente que o estudo científico para a racionalização do trabalho no campo da


medicina legal ultrapassando a dificuldade do momento, carece o empenho de todo o
Governo, não bastando o interesse do Ministério da Justiça, representado pelo atilado
esforço do Ministro para a melhoria dos Serviços Médico-Legais do País.

A questão das autópsias médico-legais não é um problema exclusivo do


Ministério da Justiça, mas um problema nacional que não tem interessado as Autarquias
nem a Assembleia da República.

Aguardamos, com fé, o encontro da rápida melhoria das autópsias realizadas nas
comarcas, a qual passa, necessariamente, pela formação e informação dos médicos
inclusive em acções de reciclagem nos Institutos de Medicina Legal.

MORRER DE REPENTE
A ignorância não é perturbadora. Nem a nossa, nem a dos outros. Aterrorizador
é no dia seguinte ela ser igual à da véspera. É a estagnação. Tal e qual a água parada
onde pululam insectos transportadores de morbilidade.

Ignorância por ignorância, salta à mente a morte de um jovem desportista de 20


anos, há dias relatada na comunicação social.

"Morrer de repente" é expressão enfatizada pela inopinada supressão do curso


vital sem pré-aviso agónico ou, pelo menos, dum mal-estar pregoeiro suficientemente
justificativo do desenlace. Perturba sempre, mas, no jovem, muito mais. O corte
prematuro do ritmo biológico é muito diferente, tão diverso que exige profunda

54
J. Pinto da Costa

explicação, quase uma satisfação de que ninguém provocou a morte. Que ela resultou
somente de algo intrínseco àquele que deixou a vida.

A ciência departamentou a questão. À morte súbita das crianças chama-lhe SIDS


(Sudden Infant Death Syndrome) e aventa explicações sistemáticas que serão
provavelmente diferentes, em 30%, daqui por cinco anos.

Nos jovens, a morte súbita arrasta uma pesada carga emocional na família ou no
grupo, com uma certa dificuldade em divorciar a imagem do ente querido e o
falecimento por overdose. No jovem, a imagem mortal espectacular eleva-se no futebol.
A maior ou menor repercussão social varia com o valor económico do jogador.

A morte súbita é a morte inesperada, cuja raridade não é tão grande como às
vezes se pensa. Mais frequente nos lactentes, diminui de frequência entre os 5 e os 30
anos mas existe, e aumenta após os 40. É precisamente a sua raridade nos 20 e 30 anos
que explica a relutância na aceitação do acontecido por quem desconhece o assunto. Em
regra, o perito não tem qualquer informação nos casos de morte súbita porque o
indivíduo foi encontrado já morto, desconhecendo-se as circunstâncias da morte. Não é
o caso do jogador que morre perante centenas ou milhares de espectadores.

Por vezes, em casos de morte súbita, há uma situação patológica evidente,


facilmente sensível à visão, como, por exemplo, as rupturas de aneurismas do coração
consecutivas a enfartes e as rupturas de aneurismas vasculares, entre outras. Acontece,
noutros casos, a morte surgir sem a exuberância patológica do género da referida. Então,
o exame cadavérico revelará patologia que poderá explicar a morte, sobretudo quando
há conhecimento prévio de que outras pessoas, com grau de comprometimento orgânico
de nível semelhante, foram vítimas de morte súbita. Daqui o grande interesse do
conhecimento das múltiplas situações para o estudo deste tipo de morte.

O país tem o direito de exigir competência ao médico que recebe dez mil
escudos por cada autópsia (vinte mil se tiver o Curso Superior de Medicina Legal).
Corre-se o risco de, no caso de falta da necessária reciclagem, um perito que o é, possa
vir a deixar de o ser. O pagamento aos peritos médicos foi dignificado, em proporção
nacional, independentemente do numerário atribuído no estrangeiro a actos do género
ou outros em iguais circunstâncias de desempenho profissional em Portugal e dora dele.
Dignificada terá de ser, obviamente, a resposta, em qualidade, do trabalho pericial
executado.

Não é aceitável que ao fazer-se uma autópsia de um jovem de 20 anos, que


morre durante um jogo de futebol, não se preste atenção a certas particularidades,
consideradas de rotina. O coração avaliado pela relação de tamanho, com a mão fechada
do cadáver, pode indicar normalidade. Pelo contrário, um coração maior que a mão é
sugestivo de patologia cardíaca. É indispensável que o coração seja pesado, em gramas,
porquanto o seu peso quando desproporcionado ao restante corpo é a favor de alteração
cardíaca patológica.

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J. Pinto da Costa

O calibre da aorta é relevante para avaliar a desproporcionalidade entre o


coração que debita uma certa quantidade de sangue e o calibre da aorta por onde este
tem que passar. Haverá suficiência do coração para as necessidades vitais?

É evidente que uma ligeira insuficiência cardíaca numa pessoa qualquer pode ser
incompatível com a vida quando o indivíduo é futebolista. Por vezes, a autópsia
evidencia com nítida objectividade, a causa da morte, como a ruptura de artérias na base
do cérebro (hemorragia cerebral) ou o enfarte do miocárdio com ruptura cardíaca.
Noutros casos, compreende-se a morte em face da arteriosclerose coronária, lesões
sifilíticas, endocardite e outra patologia do coração.

Relativamente à aludida autópsia do jovem de 20 anos, concluiu-se por "morte


indeterminada". Mesmo sem ter observado o cadáver, surgem sérias dúvidas sobre a
metodologia empregada que terá levado a tal conclusão.

Na revolução cultural de que todos somos autores, coexiste o paradoxo da


comunicação social atribuindo o desenlace a "ataque cardíaco fatal" quando defrontava
determinado clube, enquanto a autópsia "não revelou nada de anormal" segundo o perito
médico-legal que a efectuou.

A conclusão de "morte de causa indeterminada" só é admissível "in extremis" e,


obviamente, após usados e esgotados todos os conhecimentos científicos actualizados e
disponíveis para elucidar convenientemente a justiça. Autópsias brancas houve sempre e
haverá sempre. Mas é necessário que esta designação esteja legitimada em
conformidade com os conhecimentos científicos exigíveis em dado momento.

Quando a morte ocorre durante um jogo de futebol, as causas da morte


encontram fundamento em circunstâncias bem definidas, na maior parte das vezes a
doença coronária cardíaca, cardiopatia hipertensiva ou estenose aórtica (Bernard
Knight, 1976).

Estes casos de estenose aórtica, quando surgem em desportistas em actividade,


têm um enorme impacto social, como tem sido verificado no estrangeiro e entre nós
aconteceu algumas vezes, com particular relevância no caso do jogador de futebol do
maior clube português que morreu durante um desafio de campeonato nacional. O
mecanismo da morte é a paragem cardíaca com repentina e completa baixa de pressão
nas artérias cerebrais o que causa falta de oxigénio. Outros jogadores de agremiações
mais modestas tiveram um funeral inerente à modesta repercussão social das suas
mortes.

Relativamente ao caso do jovem de 20 anos, autopsiado há dias, é um pouco


peregrina a afirmação de que estaria posta de parte a hipótese de dopagem, o que
pressuporia a realização dos competentes exames toxicológicos.

Não é necessário que haja "doping" para que a morte ocorra durante um jogo.
Parece legítimo levantar algumas dúvidas. Apenas uma questão, englobando duas

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J. Pinto da Costa

perguntas: Que tipo de controlo médico-desportivo havia com este jovem? São
suficientes os mecanismos em exercício, para evitar situações do género?

Aguardemos que os responsáveis não se limitem a subir o pagamento pelas


autópsias, mas que promovam a competência dos peritos, nem que para isso tenha de
usar-se a hierarquia e a disciplina, valores fora de moda mas indispensáveis para
resolver, com eficiência, as questões pendentes (e outras).

Que se tem feito entre nós ao nível das autópsias médico-legais? Além de
escassas lamentações individuais, que tem sido feito de concreto, palpável, visível,
consequente, pelo Ministério Público, com vista à melhoria da grave e preocupante
insuficiência em que são feito as autópsias médico-legais na Comarcas (Círculos)?
Nada.

Qual a posição dos Senhores Juizes? Temos assistido mediante a comunicação


social a múltiplas manifestações sobre o desempenho da sua nobre actividade. Mas,
sobre as carências médico-legais dos Tribunais, o povo português nunca ouviu nada.

E se, com diz o povo, quem cala, consente, em medicina legal estará tudo bem!

Como remate, recordo o que escrevi há tempos (1984, Revista de Investigação


Criminal): "A morte súbita, tão desejada por uns e temida por outros, exige, do ponto
de vista médico-legal, um estudo sempre mais aprofundado, mercê das disponibilidades
cada vez maiores da tecnologia dos múltiplos ramos das ciências médicas."

Mantenho a afirmação.

A MORTE PROCURADA
Pelo próprio. Pelos outros no próprio. O suicídio e a sua irmã mais nova, a
eutanásia. A morte do próximo, com intenção ou sem ela. O homicídio, com muitos
nomes no Código Penal: qualificado, privilegiado, a pedido da vítima, na ajuda ao
suicídio, o homicídio por negligência, o infanticídio privilegiado e a exposição ou
abandono de pessoa com a morte como resultado.

O indivíduo que atropelamos mortalmente, sem intenção, nem preocupação


porque estamos cobertos pelo seguro.

Uma linda rapariga da aldeia casou com o sacristão desdentado, muito feio e
desajeitadamente coxo. Ao ser-lhe perguntado porque casou com ele, respondeu: “Ele é
tão engraçado quando ajuda à missa e entrega as galhetas ao Senhor Abade”!

A pessoa humana tem comportamentos tão subtis que lhe cabe judiciosamente o
epíteto do bicho mais curioso da natureza. De Blaise Pascal: « Le coeur a ses raisons
que la raison ne comprend pas ».

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J. Pinto da Costa

O coxo, um dia, morreu. Ela definou, só queria morrer, e faleceu pouco tempo
depois.

A morte, ignorada, temida, desprezada, consentida, procurada, rejeitada. Sempre


a morte.

A morte na criminalidade e na guerra, nas vítimas inocentes dos atentados


bombistas. Nas catástrofes inevitáveis. Nas guerras infindáveis pela conquista do poder.

A morte de outrem, consecutiva a tortura, é condenada com 12 anos de prisão


(máxima de 20) (Artº 132º, Código Penal). Se a morte sobrevier (Artº 154º) após maus
tratos, em menor de 16 anos, pelo pai, mãe ou tutor, a pena aplicável é de prisão de 3 a 9
anos e multa até 250 dias.

A pena de morte é proscrita, actualmente, pela Constituição da República


Portuguesa (Artº 24º). O critério ético dos portugueses nesta área não é exactamente
coincidente com o princípio constitucional, ao admitir que haverá situações
excepcionais. A morte procurada para o próximo tem mecanismos diversos na pena de
morte: enforcamento, decapitação, guilhotina, garrote, fuzilamento, apedrejamento,
cadeira eléctrica, câmara de gás, injecção letal, açoites, achatamento dos ossos por
compressão, potro, roda, tormento da água, fogo e outros.

Alguns, quando estão sem esperança de continuar na vida e querem fugir ao


sofrimento, que adivinham progressivo, pedem que outros os matem. Mais vezes do que
se pensa. Mas a aprovação social da morte praticada por outrem num interessado a
morrer implica a mudança da lei penal no sentido permissivo sem o que o gesto é crime.

Será legítimo dar a morte a quem a pede?

Direito à vida e direito sobre a vida não são exactamente a mesma coisa.
Paradoxalmente, às múltiplas declarações sobre os direitos à vida, culminando na
declaração universal dos direitos humanos, contrapõe-se a licitude de manipulação de
um direito sobre a vida das pessoas, dando-lhes a morte.

A palavra eutanásia, dizem alguns, terá sido empregue pela primeira vez por
W.E.H. Lecky (em 1869), com o significado de acção de induzir suave a facilmente a
morte, sobretudo de doentes incuráveis ou terminais, com o mínimo de sofrimento.
Thomas More (1478-1535), em duas obras, "Utopia" e "Diálogo da Consolação",
apresenta nesta última a noção do alívio que se dá à dor e refere com clareza o conceito
de eutanásia, centrado na medicina e na moral.

A aceitar-se a eutanásia, ela não deveria ser praticada pelo médico, para
salvaguarda da sua imagem como pessoa que luta pela vida, contra a morte do próximo.
Na pena de morte, não é o médico que actua. Ele limita-se a verificar a morte.

Com uma certa ingenuidade, alguns pretendem igualar a morte de um doente


cujo desenlace aconteceu por evolução natural, porque não recebeu tratamento, e um

58
J. Pinto da Costa

doente que morreu porque, propositadamente, para o matar, evitando mais sofrimento,
lhe foi administrada uma droga.

Independentemente da eventual e futura legislação sobre a eutanásia, esta


encontra ancestral resistência no juramento de Hipócrates: Não darei veneno a ninguém,
ainda que me seja pedido.

O argumento de "irremediavelmente perdido", utilizado para justificar a


eutanásia, é uma falácia, e se não gostarmos da palavra, digamos que é um engano ou
uma burla. Em boa verdade, irremediavelmente perdidos estamos todos nós desde que
nascemos. Então, todo aquele que não encontre significado na vida, por falta de solução
para os seus problemas teria o direito a ser morto ou a morrer.

Se à primeira vista não parece difícil optar pela eutanásia ou rejeitá-la, ao


reflectirmos sobre a morte desejada, em liberdade, agudiza-se a dificuldade de opinião.

É eticamente aceitável que um doente terminal peça morfina, cianeto ou outro


meio qualquer para que o matem? Talvez sim, talvez não. Que sim, desde que a vontade
do interessado nesse sentido seja indubitável e inquestionável a autenticidade da sua
opinião, quando munido da capacidade de decisão. Que não, com algumas reservas,
exactamente pela apreciação das circunstâncias em que se diz que sim à morte
expressamente desejada. O impressionante caso de Ingrid Frank, que diante das câmaras
de vídeo ingeriu conscientemente cianeto para se matar, abalou a opinião pública: É
eticamente aceitável que em tais circunstâncias uma pessoa procure a morte?

Esta é um problema que no caso apontado de Ingrid Frank coincidiu com o


modus faciendi do suicídio, espectacularmente difundido pela comunicação social,
através da TV e largamente comentado pela imprensa. A corrente de opinião muito
favorável ao acto de Ingrid é um forte ingrediente de propaganda ao suicídio.

Na sociedade actual, onde cada vez mais a Bíblia e o Corão apenas se encontram
nos Hotéis de Luxo, e a indústria hoteleira menor reduz a disponibilidade livresca às
volumosas listas telefónicas, incluindo a valorização comercial local das páginas
amarelas, a liberdade de cada um constitui o último degrau, para preenchimento do
espaço vazio deixado por um Deus eliminado como referência final das decisões
humanas. Nesta óptica, o suicídio seria eticamente aceitável. Esta pirueta sem rede pode
constituir embuste muito artificioso ao admitir-se que a liberdade humana deverá
conciliar-se com a responsabilidade pessoal e social de cada um. No caso do doente
terminal, as relações deste com a família e com o próximo não existem ou são negativas
pela continuidade da sua existência. É assim que a morte é um alívio para a família,
mais que para o interessado que, não raramente, já nada tem de que ser aliviado.

O culto da morte é inseparável de um conteúdo mágico-religioso. A falta de


crença numa entidade divina a quem se deve a vida, bem como numa vida sobrenatural,
como valores máximos e últimos, leva a que a morte e o sofrimento físico ou psíquico,
que a precedem, percam sentido, pelo que não têm que ser assumidos. Assim, caímos na

59
J. Pinto da Costa

possibilidade de dispor, de modo positivo, do fim da existência. Por outras palavras, se


a afirmação da liberdade é o supremo valor, não é possível negar à personalidade
humana a capacidade de poder decidir, de modo activo, sobre o seu fim existencial.
Onde vamos desembocar? O Mundo de hoje não é melhor nem pior. Essencialmente é
diferente.

Um dos meios mais frequentes de suicídio é o enforcamento. Muitas formas


existem, condiciona-das pelos costumes e pela moda. Causam certa surpresa alguns
suicídios cometidos no fim da vida, quando pouco faltava para a morte em comparação
com o percurso existencial percorrido. A marginalização sócio-afectiva indiscriminada,
sentida pelo velho, pode relacionar-se com condutas desviadas na terceira idade,
constituindo factores de activação de reacções anti-sociais e desemprego a inconstância
e a inactividade ocupacional e o fracasso técnico-profissional. A conduta toxicode-
pendente pode ser considerada muito próxima do comportamento suicida. Ela traduz a
perturbação da organização das pulsões, provocando a morte ulterior e um prazer
imediato. O suicídio nos militares merece um breve apontamento, quanto mais não seja
para sublinhar que a taxa de suicídio é inferior à da população civil entre os 16 e os 24
anos.

O suicídio nos Hospitais é diferente consoante se consideram os hospitais


psiquiátricos e o hospital em geral, sendo dupla naqueles. Nas prisões, cuja difusão das
notícias do suicídio agita a opinião pública, o acontecimento merece uma pausa. O
sentido existencial na prisão, como na vida livre, para muitos, é vazio, ao ponto de
anular o instinto de conservação da vida. Há quem admita que, os suicídios nas prisões
não são mais do que a resultante final das tendências perversas ou auto-punitivas do
condenado, imputando exclusivamente ao seu autor a responsabilidade de tais actos.
Para outros, tais gestos traduzem a revolta e o desespero dos privados das liberdades
fundamentais. A única prevenção seria a mudança nas estruturas prisionais.

Com a morte procurada ou não, há uma verdade inegável: o homem arrasta, no


percurso da vida, o peso do seu caixão vazio. É preferível entrar nele o mais tardiamente
possível e com a naturalidade biológica do finar. Vai nisso, como compensação, uma
certa segurança e alegria de viver.

VONTADE DE MATAR
Vontade é, na interpretação do étimo animus, de Cícero (ânimo, espírito, afecto,
coração, desejo, vontade, conselho, propósito, atrevimento, esforço) a expressiva e
clássica componente da intenção de matar (animus necandi), sumamente relevante do
ponto de vista criminal, ligada ao termo necandi (necans, necantis, que mata) de Ovídio.

Questão essencialmente jurídica, a decidir pelo Tribunal, ela tem uma base
médico-legal que os juízes demandam ao perito para aplicação penal.

60
J. Pinto da Costa

O problema da intenção de matar não é novo. No princípio do século (1900), as


instruções regulamentares a observar, aquando da realização das autópsias
médico-legais, prescreviam, no caso de morte por ferimentos, que o perito médico
indicasse ao juiz a intenção com que os ferimentos denotavam haver sido feitos.

Efectivamente, não é o perito que diz qual foi a intenção. São os ferimentos que,
pelas suas próprias características sugerem, a nível apenas de presunção, se poderá ter
havido tal intenção. Quem vai decidir sobre a intenção é o juiz, não se limitando à prova
objectiva médico-legal, concluindo mediante apreciação dos múltiplos elementos
processuais de que dispõe e dos quais a conclusão médico-legal, apesar de elemento
importante, não deixa de ser uma parcela.

Os ferimentos falam por si. Eles podem dizer-nos se houve uma facada no
pescoço, no tórax ou no abdómen, se a faca tinha o gume afiado, altamente cortante, ou
se já revelava um certo uso, se o ferimento resultou de queda, se o tiro por arma de fogo
foi dado de muito perto ou de longe fora do alcance da pontaria do indivíduo comum, se
houve ricochete da bala, por ter sido disparada, por exemplo, primeiro para o chão.

O ferimento é diferente conforme é feito por uma arma caçadeira, por uma
pistola vulgar, ou por uma arma de guerra, variando muito o seu aspecto com a distância
do disparo.

Já o velho Código Penal (1886) referia-se explicitamente à intenção de matar na


tentativa de homicídio, no homicídio frustrado e no caso de ofensas corporais
voluntárias de que resulte a morte, bem como no homicídio voluntário simples,
homicídio qualificado, parricídio e infanticídio. Em todos estes casos o sentido da
palavra é a vontade.

A intenção de matar não se limita aos mortos. Também nos vivos a informação
sobre a presunção que o médico-legista proporciona ao Tribunal é decisiva para a
Justiça.

A observação directa das lesões nas pessoas vivas permite a apreciação de um


certo número de características do ferimento, designadamente a natureza do instrumento
que o produziu, a direcção e o sentido de actuação e a violência empregada no manejo,
cujo conjunto é essencial para a objectividade da presunção médico-legal da intenção de
matar.

Qualquer médico que trate de um ferimento de etiologia traumática deve tentar


interpretar o porquê desse ferimento, como é que foi produzido, sem olvidar que os
elementos da sua observação serão basicamente fundamentais para a investigação
judiciária e para a decisão final do Tribunal.

O problema da intenção de matar é extremamente complexo e subtil. A intenção


é uma questão de ordem subjectiva pelo que, do ponto de vista médico-legal, nunca se
pode dizer se houve ou não intenção de matar.

61
J. Pinto da Costa

Quando se desfecha uma arma, visando os joelhos, ela pode ser levantada
inadvertidamente e atingir a cabeça em vez dos membros. Outros quando pretendem
alvejar a cabeça, o disparo atinge os pés.

Nunca se pode afirmar a intenção de matar. Que seria do perito que garantisse tal
intenção, em face de uma facada mortal no coração, quando confrontado com a
realidade dela ter sido provocada por uma criança?

O mesmo princípio de inimputabilidade aplica-se também aos doentes mentais


sem lucidez de consciência para o acto praticado e para os que actuam sob embriaguez
alcoólica ou sob a influência de outras drogas quando não procuram, propositadamente,
estes estados.

A prática médico-legal ensina que, por vezes, o álcool origina que grandes
amigos e até familiares próximos cometam homicídios que, em estado de sobriedade,
não teriam praticado.

Quando os ferimentos, pela sua sede, pela violência com que foram produzidos,
pela natureza deles, pelo número e distribuição relativa são do género dos que a
experiência anterior ensina como terem sido produzidos com intenção de matar,
devemos concluir apenas que fazem presumir médico-legalmente aquela intenção em
face da evidência adequada da capacidade vulnerante do instrumento empregado na
agressão.

O número de ferimentos pode contribuir para a presunção quando eles são feitos
pelo mesmo indivíduo. Ocaso do emprego de pedras, como instrumento contundente ou
outros objectos, reveste um aspecto particular. Há que distinguir se o instrumento
contundente foi utilizado directamente ou por arremesso. O instrumento arremessado
não confere agressão a exactidão suficiente para que se possa inferir da intenção de
matar.

No caso de ferimentos por armas de fogo, no vivo, há toda a conveniência que o


médico, que assistiu ao ferido no hospital, colha os sinais de disparo e os registe no seu
relatório clínico porque mais tarde poderão ser úteis.

Só por ironia é concebível que um agressor peça à vítima que esteja quietinha
com o pescoço porque apenas lhe quer dar uma facada superficial. O ridículo da
situação é evidente. Toda a facada no pescoço, como em outras regiões que a pessoa
comum sabe existirem órgãos vitais, como o tórax e o abdómen (o povo diz estripo-te,
ponho-te as tripas ao sol) faz presumir médico-legalmente a intenção de matar. A
superficialidade do ferimento deve-se a circunstâncias estranhas à vontade do agressor,
porque a vítima fugiu ou porque foi impedida, de algum modo, de ser atingida a
profundidade mortal.

O médico-legista conclui pela presunção através de elementos objectivos. O


magistrado dispõe do relatório daquele e de outros relativos ao exame ás faculdades

62
J. Pinto da Costa

mentais do agressor, sabe a idade do réu, tem o depoimento de testemunhas e conhece


os factos que precederam a agressão.

O juiz confronta-se, por vezes, com a hipótese do ferimento mortal poder ter
resultado, involuntariamente, durante uma luta.

O perito é interrogado sobre a intencionalidade e a sua resposta deverá ser


sempre objectiva sem ultrapassar o limite pericial. É uma achega que o magistrado não
dispensa e ainda bem.

CADÁVERES HUMANOS E ENSINO MÉDICO


A utilização de cadáveres humanos para estudo tem sido difícil.

André Vesálio (séc. XVI) "roubava", de noite, os cadáveres de condenados


abandonados no monte, para estudar anatomia. Da sua aventura, legou-nos a célebre
"Fábrica", monumento artístico de rigor e pormenor sobre o desconhecido que era o
corpo humano.

Tudo aconteceu no histórico da anatomia humana, do roubo à compra de


cadáveres, quando os não reclamados pelas famílias e os dos condenados não eram
suficientes.

Actualmente, em todo o Mundo, o ensino médico vê-se confrontado com a falta


de corpos para estudo anatómico, para muitos efeitos indiscutivelmente insubstituíveis,
não chegando a atingir, em algumas escolas médicas, a média de um cadáver por ano.

Sem cair na vulgaridade, sublinha-se que a dissecção do cadáver humano é


indispensável na formação geral de qualquer médico e na estruturação básica dos
candidatos das diversas especialidades médicas e cirúrgicas.

A prática no cadáver foi, outrora, entre nós, obrigatória, para treino dos
cirurgiões e mantém-se ainda hoje em muitos outros países cujo nível profissional é
muito superior ao nosso.

Renasce entre nós portugueses, no arrastamento de que somos vítimas (ou


beneficiários) da Comunidade Europeia, a consciência da necessidade da doação de
cadáveres (não dação porque esta não exclui obrigatoriamente a venda). Tal doação não
deve ser uma solução para evitar as despesas de funeral, mas um acto filantrópico, uma
dádiva de amor, pela cultura e pela ciência, pois que, indispensável na formação dos
médicos, o cadáver contribui, relevantemente, para que estes sejam os convenientes
guardiões da saúde humana. Todo o processo terá como indispensável a senha
permanente da dignidade humana.

Os princípios que devem orientar a doação do corpo, para estudo anatómico


pós-morte, assentam na não comercialização e na vontade devidamente expressa,

63
J. Pinto da Costa

obviamente em vida, por forma a evitar expedientes articulados com circunstâncias


fortuitas, como a situação dos cadáveres abandonados e não reclamados que é a prática
corrente fornecedora de material para estudo.

O respeito pelo cadáver, como templo que foi da personalidade humana que
albergou, é uma exigência básica.

Pretende-se agora, no espírito renascentista referido, legitimar o que outrora foi


obrigatório por lei, a dissecção de cadáveres para ensino anatómico, a realização de
autópsias clínicas para esclarecimento de diagnósticos quando não haja implicações
judiciais e o aproveitamento do cadáver no sentido pedagógico na autópsia médico-legal
quando se levantam questões de algum modo relacionadas com a Justiça.

Os cadáveres são importantes mas mais importante ainda é a vontade da pessoa


humana, pelo que o ensino médico poderá dispor de cadáveres quando a pessoa
manifestou em vida que o seu corpo fosse aproveitado para o ensino e quando o cadáver
não foi requisitado para exéquias, excepto se a pessoa manifestou em vida vontade
contrária. Na senda do respeito máximo pela vontade da pessoa humana, não deve ser
impedida a execução dessa vontade, por qualquer forma. As instituições que receberem
tais cadáveres devem promover os sentimentos de veneração e de respeito, a nível
cívico ou religioso, consoante a personalidade dos finados. A doação do cadáver não
deve ser encarada como valor social menor próprio dos desprotegidos, dos menos
afortunados, dos indigentes, daqueles para quem a vida não sorriu. Ela traduz um
comportamento superior, a pensar nos outros, que de algum modo irão beneficiar, para
além da sua morte.

Os cadáveres devem ser utilizados com dignidade nunca esquecendo que eles
são o resto de uma pessoa humana e que em qualquer ocasião podem ser requisitados
pelos familiares para enterro se o desejarem. Não é essencial que o cadáver esteja
inteiro para o efeito. O que conta é o direito que assiste à família e aos amigos de prestar
as honras e homenagens aos despojos humanos. Foi neste sentido, e nunca houve
prejuízo na afectividade colocada no evento, a regra seguida nos funerais dos militares
falecidos no Ultramar, em combate, cujo caixão continha alguns fragmentos humanos
do que restou de explosão de minas e armadilhas.

Qualquer pessoa que goze de capacidade testamentária deve poder dispor em


vida do seu cadáver para o ensino médico. Discute-se muito o direito da oferta de
cadáveres para estudo, por parte de familiares. Há quem outorgue esse direito apenas ao
próprio e quem o estenda aos familiares em linha directa. A solução não é tão
transparente como possa parecer à primeira vista pois estão em jogo valores como o
direito de propriedade sobre o cadáver. Haverá que exaltar o respeito pela memória dos
doadores, mediante cerimónias públicas, regulares, com fundamentação religiosa, como,
por exemplo, uma missa celebrada por sua alma, no caso provável da maior parte dos
cadáveres provir de católicos, ou serviços religiosos próprios dos protestantes, ou
manifestações de outros credos religiosos ou homenagens cívicas no caso dos ateus.

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J. Pinto da Costa

A utilização do cadáver para estudo anatómico não prejudicará a obrigatoriedade


de autópsia médico-legal quando houver implicação com a Justiça.

Sejamos honestos e humildes, reconhecendo e lembrando que o legislador de


1919, já consignava "O director do Instituto (de Medicina Legal do Porto) terá o direito
de mandar guardar para o museu todos os exemplares anatómicos, os outros que julgar
capazes de servir de peças de convicção nos Tribunais, ou que possam ser utilizados
para fins docentes". E que até antes daquela data, em 1913 (Portaria nº 40, de 22 de
Agosto) se consignava que ficarão à disposição das Faculdades de Medicina, para seus
estudos, os cadáveres dos falecidos nos hospitais, asilos e casas de assistência pública,
os quais, dentro do prazo de doze horas, decorridas depois do falecimento, não sejam
reclamados pelas famílias para procederem ao seu enterramento.

O estudante deve ter presente que quando disseca um cadáver está a estudar um
corpo que uma pessoa ocupou e que está a beneficiar da possibilidade que
voluntariamente alguém lhe proporcionou.

Não há, de momento, segurança para que a vontade da pessoa que quer doar o
seu corpo para estudo, seja inequivocamente cumprida. É certo que, a pedido do
Professor Jubilado de Anatomia Doutor Abel Tavares, elaborei uma norma que o
interessado deverá assinar acompanhado por duas testemunhas, com reconhecimento
por notário, a qual tem sido usada para casos de doação do cadáver. Nessa norma,
consta que a pessoa "declara que deseja que o seu cadáver seja entregue à Faculdade
de Medicina do Porto, para estudo anatómico, no espírito filantrópico consignado nos
termos da lei, designadamente o Decreto-Lei nº 45683, de 25 de Abril de 1964, e
Decreto-Lei nº 553/76, de 13 de Julho, pelo que não haverá que proceder a inumação
em cemitério, consoante minha vontade expressa no presente documento".

Mas, não raras vezes, tal documento apenas é conhecido meses após o
enterramento ter sido feito. Haverá, pois, que encontrar mecanismo que dê força prática
à resolução conscientemente tomada. A legalidade de tal documento está salvaguardada
pela ausência de proibição da doação do corpo. É opinião unânime que a dissecção
anatómica de material humano é indispensável e insubstituível para o ensino médico
pré-graduado e pós-graduado.

São múltiplas as situações no sentido de aproveitamento de cadáveres sujeitos a


autópsia médico-legal, em cursos de pós-graduação, para além do ensino prático diário a
estudantes universitários de medicina e ainda o beneficio do conhecimento morfológico
do corpo humano proporcionado aos estudantes de direito, aquando da sua
aprendizagem médico-legal.

O sentido de utilidade da personalidade humana para com os outros pode e deve


projectar-se para além da própria morte, pela legalização dos princípios reguladores da
oferta do corpo morto à Ciência, da qual, de algum modo, todo e qualquer ser humano
beneficiou em vida e os vindouros poderão aproveitar.

65
J. Pinto da Costa

SUBMERSÃO
Antes de Lavoisier ter descoberto a respiração e a importância dos pulmões, a
submersão não foi encarada cientificamente. Pensava-se que ela era uma inundação do
tubo digestivo, o que os holandeses dessa época e os alemães deixaram transparecer,
respectivamente, nas palavras verdrinking e Ertrinkung, cujo significado era para ambas
absorção de líquido em quantidade excessiva.

Foi Ambroise Paré, considerado por muitos como o pai da medicina legal, quem
primeiro distinguiu a submersão feita em vida e a imersão de um cadáver.

A submersão foi empregada, outrora, como meio de execução judiciária.

A lei das doze tábuas, em Roma, previa a morte por submersão para os que
matavam os pais. No século VI, os Burgondes afogavam as mulheres adúlteras depois
de as meter em sacos com cobras e ratos. Durante a Idade Média a submersão
manteve-se como processo de execução judiciária.

Morrer afogado não é apenas morrer asfixiado.

Pensava-se, antigamente, que a morte nos afogados surgia em duas alternativas:


asfixia, por falta de ar devida à entrada de líquido nas vias respiratórias, impedindo a
entrada daquele, e inibição quando a morte não surgia por asfixia. Estudos científicos
mais recentes mostraram que esta simplicidade de alternativa não era suficiente para
explicar todos os casos mortais na habitualmente designada submersão ou afogamento.
Muitos outros casos escapam a tal dualidade, como, por exemplo, os acidentes mortais
dos mergulhadores.

Admite-se, actualmente, que a submersão compreende quatro grandes grupos:


submersão primitiva (afogamento), síncope primitiva (hidrocussão), acidentes de
mergulho e inundação bronco-alveolar (asfixia).

Quando um indivíduo inala agua, em vez de ar, não é por falta deste que ele
morre mas por outros mecanismos.

Sabe-se que os níveis de sangue, em sódio e potássio (como também de outros


elementos) devem manter-se em equilíbrio para que não haja doença, e quando
ultrapassados certos limites a morte surge. Ora, quando nos casos de afogamento em
água doce grandes quantidades de agua entram nos pulmões, o sangue ao nível alveolar
é hemolisado rapidamente, isto é, por ruptura dos glóbulos vermelhos libertam-se
grandes quantidades de potássio, o qual, actuando nas fibras miocárdicas, impossibilita
a sua contracção para o funcionamento de bomba que compete ao coração.

Acresce ainda que, a um coração enfraquecido, por este meio, é pedido, de um


momento para o outro, um esforço muito maior que o habitual pois a volémia (massa de
sangue com grande quantidade de agua) é muito maior. Não se trata de mera questão de

66
J. Pinto da Costa

asfixia pois se a agua fosse enriquecida, em oxigénio e dióxido de carbono na proporção


em que se encontram no ar, a morte surgia na mesma.

É que a água salgada devido ao seu conteúdo em cloreto de sódio (sal) está mais
próxima da qualidade do sangue do que a água doce, o que, no caso desta, leva os
glóbulos a romperem. É por isto também que a morte demora quatro minutos na água
doce e oito minutos na água salgada. Daqui decorre ainda que a responsabilidade
médica por não atendimento atempado a um afogado em agua salgada é muito mais
grave do que quando a submersão se deu em agua doce, situação de muito mais difícil
recuperação.

O contacto com água muito fria ou muito quente pode causar uma cessação
imediata da respiração e precipitar a morte por inibição cárdio-respiratória.

As formas médico-legais da submersão são as acidentais (mais frequentes), o


suicídio e o homicídio como sucedeu a uma mulher na Alemanha cujo marido lhe
manteve a cabeça debaixo de água num riacho de sessenta centímetros de profundidade
até ela morrer.

O exame do cadáver compreende o estudo pormenorizado da sua parte externa, a


observação das vísceras e restantes estruturas, e o exame meticuloso do vestuário e
objectos que o acompanham e ainda uma extensa gama de exames complementares
mediante aparelhagem sofisticada.

Há que distinguir entre lesões traumáticas feitas em vida (quedas, agressões) e


lesões produzidas durante o afogamento, ou provocadas pelos animais necrófagos
(tubarões, peixes, mariscos).

A submersão tem sido empregada como meio de infanticídio, lançando o


recém-nascido a fossas, ao mar, ou ao rio. A submersão pode ocorrer durante um ataque
epiléptico quando um doente fica com os orifícios respiratórios submersos num charco
ou num riacho com pouca água.

O cadáver saído água putrefaz-se tão rapidamente que é possível um


perito-médico afirmar que ele se encontra fresco e no dia seguinte outro perito assinalar
acentuadas manifestações de putrefacção. Esta, pela libertação de gases, aumenta o
volume corporal de tal modo que é difícil aos familiares reconhecerem o cadáver.

Quando um cadáver é retirado da água após permanência durante um certo


tempo, nem sempre é possível concluir qual foi a causa da morte. O certo tempo é difícil
de concretizar pois depende de múltiplos factores. A temperatura da água é um deles.
Sempre que esta se encontre a uma temperatura inferior à do corpo este vai perdendo
calor e tanto mais quanto a agua mais fria estiver e a uma velocidade dupla daquela que
acontecia se o cadáver estivesse exposto ao ar, isto porque a agua conduz duas vezes
melhor o calor do que o ar.

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J. Pinto da Costa

A putrefacção cadavérica está atrasada na água porque o seu desenvolvimento


implica a coexistência de três elementos: o ar, a humidade e o calor. Conjugam-se dois
destes factores para que um cadáver em regra se conserve mais na água. São eles o ar
(menor na agua do que na atmosfera) e o calor (maior perda).

Se o cadáver está fresco, eventuais cicatrizes de intervenções cirúrgicas antigas,


mutilações ou defeitos físicos e tatuagens podem contribuir para a identificação.

Haverá sempre elementos decisivos, com base nos restos cadavéricos para a
determinação do sexo e da idade pelas medidas e outras características dos ossos e até a
identificação individual pelos dentes, que constituem as estruturas mais resistentes à
putrefacção, bem como pelas eventuais próteses dentárias.

Com humildade, temos de reconhecer que será presunçoso quem afirmar que
descobre todos os casos de submersão, por mais evoluída que seja a técnica laboratorial
de que dispõe. Mas há sempre que tentar a busca da verdade, esgotando as
disponibilidades que a ciência oferece.

PROCRIAÇÃO
Um percurso vertiginoso tem sido feito desde o tempo em que as criancinhas
julgavam que os bebés nasciam das couves ou desciam do céu no bico das cegonhas, até
aos bebés-proveta, passando pela ingenuidade do menino espertalhaço que sabia como
os manos saíam mas que não sabia como eles entravam!

A procriação é um manancial de questões, abrangendo o diagnóstico da


gravidez, parto, aborto, certos crimes sexuais, e, mais recentemente, as mães de aluguer
também designadas mães de substituição, a FIV (fertilização "in vitro"), os bancos de
esperma, os problemas da filiação legal e os direitos do embrião, entre a extensa
problemática do início da vida.

A procriação artificial (ou procriação assistida) é ainda assunto controverso pois


que, para muitas pessoas, a prática da inseminação artificial heteróloga (com esperma
que não seja do marido) é profundamente imoral.

Em matéria de procriação, a ignorância é espantosa, mesmo sem atingir o limite


da ingenuidade daquele que pensava que o povoamento florestal consistia em ter
relações sexuais debaixo das árvores! Por desinformação aceita-se tudo desde que, com
técnica de "marketing", o engodo seja bem camuflado com embalagens de filantropia e
de progresso.

A dignidade da existência humana, geralmente proclamada e poucas vezes tida


em conta, causa perplexidade ao fundamentar conclusões sobre a diversidade do
comportamento humano.

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J. Pinto da Costa

A procriação é um problema. Foi sempre um problema. Um homem vai na rua,


encontra uma mulher que não conhece. A troco de algum dinheiro aconteceu o
congresso carnal, sem sequer lhe saber o nome. Foi procriado alguém. O grande
problema, aceite a nível do Direito, é que a lei tem que ser supra-religiosa.

Ao ponto de vista teórico contrapõem-se excepções. Há uns tempos (Sousse,


1982), num Congresso Médico-Legal, na Tunísia, jovens médicos e advogados
afirmaram, publicamente, que só "eram válidas" as leis que estivessem de acordo com o
Corão (a Bíblia dos árabes).

Mas voltemos à procriação. Para muitos, o embrião deve equiparar-se ao adulto,


pelo que a morte de qualquer deles seria um homicídio. Para outros, o paralelismo não é
correcto.

Há uma necessidade consensualmente aceite de proteger a vida, mas, do ponto


de vista legal, ela não é reconhecida antes da concepção. Embora o espermatozóide
tenha vida própria, ele não é, do ponto de vista médico-legal, a vida que se pretende
defender.

A questão fulcral, médico-legalmente, não assenta no estádio em que a vida


começa mas sim quando é que a lei deve proteger o embrião humano em
desenvolvimento.

Como base no princípio jurídico de que nenhuma lei deve proteger um ser
identificado não tem sido dada protecção a um embrião nos seus primeiros estádios.

O extraordinário desenvolvimento do conhecimento científico nos últimos anos


veio questionar o Direito, neste campo, è que, actualmente, já se consegue identificar o
ovo mesmo da sua primeira divisão celular, Por isto, mantém-se a questão de saber
quando é que deve iniciar-se a protecção legal ao produto da concepção. Assim, talvez
não seja correcto protegê-lo apenas quando ele tem vida independentemente (depois das
28 semanas de gestação).

As novas tecnologias da procriação abrem jus a uma pergunta: Poderá o feto "in
vitro" receber a mesma protecção legal que os outros fetos? A resposta é: Não.

Se o legislador nunca se pronunciou contra a pílula pós-coito, que impede a


nidação do ovo (fixação), o embrião "in vitro", também não pode ser protegido pela lei
porque, neste caso, ela permanece 72 horas ou mais antes de ser fixado no útero.

Deixando a todos a superior liberdade da escolha, recordo que a pessoa humana


não é apenas um conjunto complexo de peças e fluidos que a mantêm em
funcionamento, como se de um automóvel se tratasse.

HOMOSSEXUALIDADE

69
J. Pinto da Costa

A medicina legal, como aplicação de conhecimentos médico-biológicos ao direito,


está toda impregnada, como é óbvio, de assuntos incómodos, que chocam a sensibilidade
do ser comum. A homossexualidade é um deles.

O Mundo não é realmente aquilo que cada um de nós quer que ele seja, mas sim o
que é.

A homossexualidade, abordada na amplitude de questão multifactorial, definida


em termos de ordem biológica, psicológica, psiquiátrica, sociológica e moral, com a
respectiva aplicação às questões de direito, é um tema necessário para melhor
compreensão da humanidade e que não deve ser mantido em silêncio.

Vai sendo cada vez menor a estigmatizarão da homossexualidade mas, entre nós
portugueses, adjectivar de homossexual uma pessoa cuja imagem se pretende denegrir
não tem sido atitude rara, ao ponto da calúnia cair sobre importantes figuras públicas.

A discussão sobre a discriminação da homossexualidade só tem sentido após um


conhecimento da sua múltipla problemática como fenómeno humano, para além do estrito
plano biológico. A circunstância dos primeiros doentes diagnosticados com sida serem
homossexuais levou à generalização errada de que tal síndrome se adquiria por esse facto.
Chegou mesmo a afirmar-se que a sida era um castigo de Deus!

A homossexualidade é um tema que tem recebido em Portugal tratamento


destacado por parte de professores de medicina legal.

Um aspecto que nem sempre é bem claro quando se fala da homossexualidade é


relativo ao papel de cada um dos parceiros, de que um faria de homem e outro de mulher.

A convencional dicotomia, encontrada já nos tratadistas clássicos da medicina


legal, de homossexual activo e passivo, tem sido muito contestada e exige reflexão. Ao
activo caberia o papel de homem e ao segundo o de mulher. Na verdade não é
exactamente assim.

A maior parte das relações homossexuais é ocasional, na rua, nos jardins, em


lugares públicos e não propriamente entre pessoas que vivem em comum.

O homossexual classicamente designado por passivo seria muito mais activo por
duas razões: porque activamente ele compromete-se na procura de parceiros e porque
durante a relação sexual ele tem uma actividade muito mais demorada que o outro, pois
que, não aceitando outro tipo de erotismo a não ser o relacionado com a fricção ou a
penetração do pénis, o orgasmo surge-lhe necessariamente mais tarde. É assim que
enquanto o dito activo já está satisfeito, o passivo ainda deseja prosseguir activamente a
relação sexual.

Talvez traduza melhor a intervenção de ambos, considerar a actividade penetrante


de um e a actividade receptora do outro. Do ponto de vista científico esta afirmação não é

70
J. Pinto da Costa

correcta, pois o que existe na conjugação carnal de homens ou de mulheres é que há


pessoas que se erotizam.

A homossexualidade em Portugal, pelo Código Penal, é permitida entre adultos


nas mesmas condições de qualquer relação heterossexual, isto é, em privado. Ela apenas é
crime, no caso de homossexualidade com menores de 16 anos (Artº 207 C.P.), penalizada
com prisão até 3 anos para quem os desencaminhar para a prática do acto contrário ao
pudor, consigo ou com outras pessoas do mesmo sexo.

O tratamento dado pela nossa lei à homossexualidade reflecte a tendência genérica


do grande respeito pela vida íntima das pessoas e a maior condescendência do
pensamento comum em contraste com o século passado e anteriores. Ela só será punida
penalmente quando atingir um certo limiar de significante relevância social. A bitola vai
sendo cada vez mais alargada, paulatina e insidiosamente, pelo hábito costumeiro. Dois
homens ou duas mulheres, abraçados, beijando-se na via pública, não é acontecimento tão
raro hoje, entre nós, como era há quarenta anos.

A questão arrasta-se de longa data e hoje presumimos serem modernas questões


antigas. É muito grande o rol de personalidades que sendo homossexuais se increveram
na História, não por isso, mas por feitos que os notabilizaram. Entre eles, em Roma, Júlio
César celebrizou-se como o homem de todas as mulheres e a mulher de todos os homens.

Os nossos antepassados geográficos não foram bem tolerados como reza a


História das Condenações Homossexuais em Espanha, nos tempos da sua integração no
Império Romano no século III antes de Cristo. Com a introdução do Cristianismo, surgiu
a repressão sexual.

O Concílio de Elvira (306-307) excomungava os homossexuais hispânicos e


privava-os de todos os sacramentos inclusive à hora da morte.

Os condenados por homossexualismo, pelas leis de Teodósio II, eram lançados à


fogueira numa praça pública.

A transformação conceptual da sexologia é muito significativa nas últimas


décadas. Em 1960, nos Estados Unidos, um professor de biologia foi despedido da
Universidade Illianois por ter afirmado que as relações sexuais antenupciais eram
normalmente aceites.

O interesse protegido pelo Código Penal, em termos de homossexualidade, não é a


moralidade sexual, mas as vítimas, obviamente, menos capazes de se defenderem, isto é,
os menores de 16 anos.

Homossexualidade é uma designação cientificamente correcta que do ponto de


vista social cada vez mais é substituída pela palavra GAY de origem inglesa, sendo para
notar que quando se alude vulgarmente a homossexuais, as pessoas pensam muito mais
em homossexuais masculinos do que femininos.

71
J. Pinto da Costa

Que a homossexualidade em Portugal existe é um facto sobejamente conhecido.


Mas o que impressiona é o relativo reduzido número de casos que originam intervenção
da Justiça.

Por exemplo, no Instituto de Medicina Legal do Porto, realizaram-se escassos


exames de vítimas de homossexualidade, das quais uma por ano em 1984, 1985, 1986 e
duas por ano em 1987, 1988 e 1989, sendo contudo mais frequentes os exames a
homossexuais efectuados por outros motivos que não a homossexualidade em si mesma
para diagnóstico médico-legal.

A homossexualidade associa-se directa ou indirectamente a múltiplos aspectos da


violência e catástrofes.

No País, a grande criminalidade relacionada com a morte não ultrapassou, nestes


últimos anos, o nível das dezenas nas autópsias do género, o que do ponto de vista
estatístico não é relevante.

Não há sociedades perfeitas, mas quanto menor é o sofrimento das pessoas melhor
é a sua estrutura. Na base de muita homossexualidade está subjacente muito sofrimento
inaparente.

ESTERILIZAÇÃO
De maneira sucinta, pela limitação de espaço, aponta-se que a esterilização
reveste, fundamentalmente, dois aspectos: o teórico e o prático. No primeiro caso, a
esterilização voluntária pode atingir o nível criminal.

O escasso conhecimento de alguns casos resulta, pontualmente, de comunicações


em congressos médicos e outras reuniões científicas, sempre parcelares, nos quais
inclusive se apresentam ou discutem as técnicas mais eficientes para provocar a
esterilização.

Que se saiba, não há entre nós nenhuma condenação pelos tribunais por prática de
esterilização, nem sequer o levantamento da situação nacional. O pensamento humano
sobre esterilização é controverso e radicalmente oposto por múltiplas razões, inclusive
pela indiscutível carga emocional antinazi de algumas comunidades.

Não é evidente qual a gravidez que pode ser prejudicial para a mulher. Na
interpretação médico-legal do problema, e tomando como comparação a exigência de
gravidade que o Código Penal refere (Artº 143º) para a consideração das consequências
das ofensas corporais, que apenas o são quando afectam de maneira grave a vítima, mais
pertinente se torna a dúvida sobre a gravidez que prejudica gravemente a mulher. Não se
trata das doenças hereditárias, pois os países, cuja legislação e jurisprudência condenam a
esterilização voluntária com raras excepções, não a autorizam por motivo de práticas
eugénicas por doenças hereditárias. Isto não significa que não haja médicos que durante

72
J. Pinto da Costa

uma cesariana, sem qualquer conhecimento da mulher, não lhe laqueiem as trompas,
porque ela já tinha cinco filhos! Tal procedimento, mediante a respectiva queixa que
nunca existiu, seria passível de cadeia.

O médico não tem o direito de decidir pelos outros e muito menos quando a sua
decisão interfere com direitos fundamentais da pessoa humana. Deixemos a teoria. O que
acontece na prática?

Há um pensamento numeroso de que a grande dificuldade do problema assenta na


irreversibilidade da esterilização. Se assim não fosse, a abertura legal para esterilizar
pessoas seria maior. Tal não significa que a esterilização não possa ser reversível, por
vezes, o que inclusive tem motivado acções de responsabilidade civil, em alguns países,
quando o casal pede larga indemnização ao médico por gravidez da mulher quando o
esterilizado foi o marido. Seria aconselhável, nestes casos e na defesa do médico, uma
investigação de paternidade para averiguar se o filho era do marido!

Na prática, o pensamento dominante dos médicos que aceitam a esterilização é


que esta só deve fazer-se quando os outros métodos anticoncepcionais falharam. Este
princípio é um pouco aleatório porque qualquer jovem sabe pelas campanhas educativas
da T.V. que pode fazer amor usando preservativos sem contrair a SIDA (e obviamente
fugir à gravidez). Outro requisito é que seria um casal a pedi-la, ponderando-se a idade
dos cônjuges sobretudo a da mulher e o número de filhos do casal.

Em princípio, se a mulher tem mais de 40 anos, se o casal tem três filhos, a


esterilização seria aceite mas abaixo dos 35 anos ela seria recusada. Entre os 35 e os 40
seria importante o número de filhos para a decisão e sem filhos ou só com um não haveria
esterilização. O mesmo se diz para a vasectomia mas neste caso conserva-se esperma
congelado.

Há um fosso entre o direito e a prática diária em termos de esterilização.


Mantém-se a questão: deve legislar-se ou não?

Legislar, a favor ou contra?

Legislar, sabendo à partida que a lei não será cumprida, não será contribuir para a
anarquia em detrimento do Estado de Direito?

Não legislar, esperando que a esterilização seja o resultado indiscutível, quase


dogmático, da decisão humana, é utópico. Porque a pessoa humana, embora seja toda
igual em qualquer parte do Mundo, é realmente diferente.

O homem das montanhas do Peru, o camponês de certas recônditas paragens da


China onde os cães ladram ao ver um caucasiano, o corretor da Bolsa de Nova Iorque ou
o general do exército soviético, pouco mais têm de comum que o esqueleto e a alma. Uns
morreriam de cirrose hepática ou outras doenças por carências alimentares ou desvios que
para outros são uma necessidade.

73
J. Pinto da Costa

Há uma forte corrente, por parte dos que apenas aceitam a esterilização como
último recurso de contracepção, para que não se legisle. Bastaria a opinião do Código
Deontológico médico limitando a esterilização dada a irreversibilidade desta. Por mais
que se limitem as intervenções, nunca haverá a certeza quanto ao futuro do casal
relativamente à sua fecundidade. Pode sempre acontecer que um dos cônjuges morra ou
case novamente, ou morram os filhos.

Como consequência da esterilização são bem conhecidas certas perturbações


psíquicas na esfera da sexualidade.

No plano moral, a esterilização, como mutilação, atinge de modo relevante a


integridade do corpo humano e uma das suas funções. Pensam muitos que a esterilização
será encarada de modo diferente quando a reversibilidade das intervenções estiver
garantida. Até lá, todo o médico deve saber que intervenções sem finalidade terapêutica
continuam ilícitas, mesmo que a proibição seja apenas teórica por não haver
procedimento judiciário. Também deve saber que a sua atitude profissional neste caso não
terá cobertura em caso de responsabilidade civil profissional.

Em certos países, a esterilização é lícita se tem fim terapêutico e é ilegal se é feita


com fim contraceptivo. À luz do Código Penal ela cabe no artº 143º como ofensa corporal
voluntária.

Para evitar o aborto, a esterilização tem sido proposta como contracepção, mas a
irreversibilidade desta não tem conseguido o consenso de meio anticoncepcional,
universalmente aceite.

O planeamento familiar é uma alternativa à esterilização, o qual deve ser


individualizado pessoa a pessoa, pois caso contrário corre-se o risco de transformar em
obrigação uma liberdade, pela pressão de mesas-redondas na televisão, na rádio, e noutros
grupos de pressão de massas.

SEXOLOGIA FORENSE
A sexologia médico-legal é a aplicação de conhecimentos
médico-psico-biológicos às questões jurídicas relacionadas com o sexo.

A redacção dos crimes de violação, estupro e atentado ao pudor, contém algo de


insultuoso à mulher já que a lei, ao tentar protegê-la do homem, a coloca num plano de
inferioridade, o que é constitucionalmente reprovável e condenado pelos direitos
humanos.

É ao Tribunal que deve competir aplicar as penas, caso a caso, na delinquência


sexual, com a independência que é seu apanágio, em face da realidade sócio-cultural
determinada pela ética.

74
J. Pinto da Costa

Em termos de sexualidade não se trata apenas de mudar as leis, mas sobretudo, de


alterar as mentalidades que as fizeram.

O sentido da sexologia forense só é compreensível perante a concepção oficial da


própria sexualidade reflectida na colectânea normativa dependente da orientação
filosófica e sócio-cultural que lhe serve de substracto.

Em todo o Código Penal ressalta o conceito básico da moral pública a qual, na


modernidade e relativamente aos problemas do sexo, se designa por moralidade sexual.

Do ponto de vista teórico, não há, no normativo codificado, posição ideológica


definida sobre a sexualidade, o qual reflecte, contudo, a moralidade católica que dimana
da tradicional religião dos portugueses.

Quem ofender gravemente o sentimento geral de pudor ou de moralidade sexual é


passível de pena de prisão até 1 ano (C.P. Artº 212º). A prática mostra que enquanto há
homens condenados por darem apalpes em mulheres a inversa não se verifica.

A cópula com violência, ou quando a mulher, para nela ser conseguida a cópula,
for tornada inconsciente, posta na impossibilidade de resistir, é condenada com pena de
prisão que varia de 2 a 8 anos, enquanto os atentados ao pudor são penalizados com
prisão até 3 anos (artº 205º). Em minha opinião, a pena para a cópula com violência
deveria aproximar-se mais da pena de homicídio.

A circunstância da lei prever que as penas serão especialmente atenuadas se a


vítima tiver contribuído de forma sensível para o facto, leva a que a mulher seja
traumatizada psiquicamente quando pelo seu testemunho quiser provar que não contribuiu
de forma sensível para o facto.

É para notar que quando a pena é inferior a 3 anos, ela pode ser suspensa, e que
pelo critério habitual do Código Penal, após cumprimento de metade da pena em prisão, o
restante tempo pode ser passado em liberdade.

O adultério, que actualmente não é crime, estava de algum modo relacionado com
o direito sucessório, dada a sua interferência com a transmissão de bens pecuniários.

A paternidade, no conceito de ser presumida "em relação ao marido da mãe"


(Artº 1796º, nº 2, Código Civil), reflecte o pensamento do Código de Napoleão (Artº
312º) de que "o filho concebido durante o matrimónio tem por pai o marido".

A homossexualidade (Artº 207º) é crime com menores de 16 anos.

Muito embora não haja descriminação sexual normativa, o número de situações


concretas chegadas à justiça è intensamente mais numeroso nos homens do que nas
mulheres. Haverá nisto uma espécie de compensação para as mulheres por não lhes ser
concedida socialmente tanta liberdade sexual como para os homens?

75
J. Pinto da Costa

A prostituição desapareceu legalmente desde 1 de Janeiro de 1963. Ela continua,


mantendo-se como a mais velha profissão da humanidade, assumindo, actualmente, nova
relevância social, no campo médico-legal, pelo risco de transmissão da SIDA.

O tráfico de pessoas (Artº 217º) é proibido para o estrangeiro, pelo que não
criminalizado como tal em Portugal, sendo menos penalizado no tipo legal de crime de
lenocínio.

Sobre o aborto, o que a lei veio regular já estava assegurado pelos princípios
gerais do Direito no que toca ao aborto por motivo de risco de vida da mãe. O que deve
ser defendido não é o aborto, mas o direito das mulheres possuirem as condiçes
sócio-económicas para terem os filhos que desejarem.

A educação sexual (Lei nº 3/84, de 24 de Março) está prevista em programas


pré-estabelecidos para as escolas. Contudo, o melhor ensino é sempre o que dimana do
exemplo, isto é, do comportamento dos professores ao transmitirem a mensagem da sua
vivência na imagem que proporcionam aos alunos.

A legislação, seja qual for o seu alvo, deve reflectir, no espaço e no tempo, a
estrutura do comportamento humano, sancionado pelo dinamismo da ética.

A esterilização, como intervenção cirúrgica destinada a tornar o homem ou a


mulher incapazes de procriarem, não impedindo a prática sexual, adquiriu preponderância
médico-legal nas últimas décadas, sendo genericamente reprovada como medida punitiva.

A esterilização eugénica quando praticada sem consentimento do interessado é


crime. A contracepção é o outro objectivo da esterilização.

Há quem afirme que, do ponto de vista religioso e moral, a esterilização com fins
não terapêuticos é comparável ao aborto provocado. Há também opiniões variadas sobre o
assunto, inclusive que o consentimento do marido não é relevante quando a mulher
pretende uma esterilização terapêutica, mas que tal consentimento necessitará de ser do
marido e da mulher quando são evocadas raízes eugénicas ou contraceptivas.

A permissão da esterilização terapêutica na lei portuguesa decorre do direito ao


tratamento médico, subentendido o consentimento expresso.

O Código Penal Português não prevê a esterilização como crime, nem tão-pouco
pode aplicar-se-lhe o princípio normativo que proíbe as mutilaçes corporais com o intuito
de se tornar impróprio para o serviço militar, porquanto estas, obviamente, não se referem
à capacidade de procriar.

No contexto da legislação portuguesa, a esterilização não é proibida desde que se


cumpram os requisitos por ela impostos do ponto de vista médico-biológico.

A transexualidade e a procriação artificial são questões ainda muito longe de


terem encontrado um consenso suficientemente sólido para atingirem o plano normativo.

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J. Pinto da Costa

A sexologia forense continuará como um dos capítulos mais apaixonantes da


medicina legal, já que ele toca muito especialmente com a origem da vida, e está
impregnada de uma carga histórico-cultural muito pesada.

VIOLAÇÃO SEXUAL
Vista de um certo prisma, a designação violação é uma redundância, pois que,
por si só, a palavra violação encerra a carga de crime sexual, com um sentido próprio no
código penal de qualquer país.

A violação e, de um modo geral, toda a sexualidade, como dimensão essencial


da conduta humana, está muito impregnada de tabus, apesar de São Clemente de
Alexandria (cerca do ano 200) ter referido que "não devíamos envergonharmo-nos
daquilo que Deus não se envergonhou de criar".

Na violação as complicações maiores são a gravidez e as contaminações, entre


estas a sida.

A violação já na Idade Média era castigada severamente. O homem que violasse


uma mulher recebia cem açoites e passava a ser criado dela. Se já era criado seria
queimado vivo. O homem livre não podia casar com a mulher que violou, mas se
casasse, ela passava a criada com perda de todos os seus haveres. Nas sete partidas do
Rei Afonso X, o sábio, alude-se aos que violam ou roubam virgens e viúvas que vivem
honestamente.

Nas ordenações de Alcalá, de Afonso XI, de 8 de Fevereiro de 1386, também se


previa a pena de morte.

Deixemos a história e reflictamos sobre o entendimento actual da violação.

Há, para começar, duas opiniões divergentes. Os que entendem que a violação
respeita apenas à mulher, e os que estendem o crime até ao homem. Num grupo (ambos
os sexos) encontram-se países como a Argentina, a Bolívia, a Colômbia, a Costa Rica, o
Equador, o Haiti, a Itália, o Panamá, o Paraguai, Salvador, o Uruguai, o México e a
Espanha que, em Direito Penal, nesta matéria, dá cartas. Segundo o Código Penal
Espanhol (artigo 429º), comete violação quem tiver acesso carnal com outra pessoa,
qualquer que seja o sexo dela, seja por via vaginal, anal ou bucal, pelo uso da força ou
intimidação, quando a pessoa se encontra privada dos sentidos, quando o abuso for em
alienado mental, ou com menor de doze anos mesmo que não haja violência. No outro
grupo, que inclui os países que consideram que a vítima de violação pode ser apenas a
mulher, contam-se a Alemanha, o Brasil, Cuba, o Chile, a Guatemala, as Honduras, a
Nicarágua, o Peru, Porto Rico e a República Dominicana. Entre nós portugueses, a
situação é curiosa:

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J. Pinto da Costa

O facto do Artº 201 do Código Penal (C.P.) empregar a palavra "mulher" impede
qualquer dúvida, exigindo expressamente que a vítima seja mulher, não sendo possível
por analogia aplicar o principio ao homem. São pressupostos da violação a cópula ou
acto análogo com menor de doze anos.

A circunstância de não se expressar o sexo de um menor tem levado alguns a


admitir que o crime nesta idade pode ser referente a ambos os sexos, aplicando o mesmo
raciocínio do entendimento do crime de estupro que o legislador agora refere apenas ao
menor e que dantes especificava como relativo à mulher (Aquele que estuprar mulher
virgem... C.P. 1886).

Esta pretensa amplitude do conceito de violação no novo Código Penal é


coincidente com os códigos penais de outros países como referi.

A ambiguidade da redacção empregada no artigo 201 do C.P. leva alguns mais


exigentes a tirar ilações que, se não são correctas, são, pelo menos, providas da mais
elementar lógica. Dizem que se o crime de estupro, que no velho código apenas admitia
como vítima a mulher (Aquele que estuprar mulher...), passou a ser extensivo também
ao homem no novo Código (a cópula com menor...) porque a palavra menor alberga
vítimas de ambos os sexos, também o Artº 201 sobre a violação, ao consignar a
expressão "cópula ou acto análogo com menor de doze anos..." será extensivo ao sexo
masculino, desde que a idade da vítima não exceda aquele limite.

Muito se tem discutido sobre a interpretação de acto análogo da cópula. Para


uns, seria acto análogo da cópula e não cópula em que o pénis não penetrou para lá do
hímen, como é o caso daquelas mulheres que ficaram grávidas sem lesões anatómicas
no hímen, porque o espermatozóide subiu até ao óvulo sem que o esperma tivesse sido
depositado profundamente. Para outro, o acto análogo da cópula incluiria os chamados
coitos anal e bucal, e assim se explicaria a expressão "acto análogo da cópula" na lei. É
concordante com esta interpretação a legislação de muitos países que expressam os dois
sexos como passíveis de violação.

Na violação, os vestígios são diferentes consoante a mulher é virgem ou não.

A ruptura anatómica do hímen nem sempre acontece durante a cópula, ou porque


as características daquele permitem que o pénis penetre sem provocar laceração, ou
porque ele não chegou a penetrar, o que não invalida a possibilidade de gravidez, sendo
esta, óbvia e indubitavelmente, um sinal de certeza absoluta de cópula, excluída, nem
deveria ser necessário dizê-lo, a inseminação artificial. Para os que entendem que o
coito vestibular já é cópula, definida esta como a junção dos dois sexos por força a
tornar possível a gravidez e a realização do mesmo acto que não tenha esta
consequência, por esterilidade temporária de um ou de ambos os parceiros na medida
em que ele constitui a união carnal, esta não será "análoga à cópula" porque já é
cópula.

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J. Pinto da Costa

Um facto não pode deixar de ser devidamente ponderado. Apesar de no velho


Código de 1886 (Artº 394º) não estar expressa a palavra "mulher", mas apenas o étimo
"menor" nem por isto o artigo alguma vez deixou de ser exclusivamente aplicado
quando a vítima era mulher, porque o referido artigo remetia para o anterior, segundo o
qual o sexo feminino da vítima era elemento constitutivo do crime de violação.

Pelo facto do hímen estar situado mais profundamente nas crianças do que nas
adultas, explica-se que na generalidade dos casos a cópula seja sem desfloramento
anatómico, havendo, pelo contrário, extensas lesões vulvares e perineais, pela
desproporção entre o pénis e a região genital feminina, nas crianças de idade inferior a
dez anos.

O que está em jogo no crime de violação é a posse carnal e esta pode ser
demonstrada pela presença de esperma nos órgãos sexuais femininos, para cá ou para lá
do hímen. É importante sublinhar que é possível a inexistência de lesões na mulher
adulta virgem, inclusive mantendo a integridade himeneal.

Para o diagnóstico médico-legal da violação podem contribuir lesões


traumáticas, denunciando a força empregada pelo agressor ou a resistência oferecida
pela vítima.

A violação tem sido "inventada" por mulheres para justificarem o aparecimento


de uma gravidez. A mitomania que é própria na criança cuja imaginação se sobrepõe à
realidade, inconscientemente, pode permanecer na idade adulta.

As circunstâncias declaradas no Artº 393º, que definem a ilicitude da cópula, são


a vontade, a violência física, a veemente intimidação, a fraude (não sedução), a privação
do uso da razão e dos sentidos.

O sexo não é circunstância, pelo que o legislador não expressou o sexo feminino.
Sendo assim, e por comparação, o Artº 201º do C.P. actual também é limitado à mulher
dada a semelhança da sua redacção com o Artº 394º do C.P. de 1886.

Toda a legislação dos crimes sexuais, altamente protectora, com destaque para a
violação, é um insulto à mulher, pela sociedade machista em que vivemos.

A mulher e o homem têm os mesmos direitos. O que tem que ser protegido é a
pessoa humana, no que ela contém de dignidade e de liberdade e não a mulher ou o
homem. Só faltava fazer leis para os hermafroditas! Acabe-se com a obsoleta e
retrógrada designação de violação, estupro e atentado ao pudor. Os senhores juristas que
procurem o normativo adequado para penalizar quem perturbar a liberdade sexual do
próximo e depois será o juiz que, sem grilhetas à guiza de ementa de restaurante,
aplicará a pena que entender, na perspectiva processual correcta. A referida protecção
discriminatória coloca a mulher num plano de inferioridade, o que, além de
constitucionalmente reprovável, é condenado pela declaração dos direitos humanos.

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J. Pinto da Costa

É necessário mudar a lei penal, por forma a que o Tribunal possa, caso a caso,
aplicar a lei, decidindo em matéria de delinquência sexual. Nuns casos, será a mulher
que tem que ser protegida e noutros será o homem a necessitar de protecção. Talvez, por
isso, seja discutir o sexo dos anjos quando se reflecte sobre a violação, cuja discussão
deveria limitar ao plano académico o enunciado de um certo número de questões.

O panorama é sobejamente amplo. O acto sexual da violação implica violência


para conseguir a penetração do órgão genital no corpo de outrem, considerando-a
alguns, normal apenas na vagina, e outros também normal na boca e no ânus.

A lei prevê que a pena seja especialmente atenuada, se a vítima tiver contribuído
de forma sensível para o facto da violação. Mas aplicar pena atenuada ao agente
equivale a limitar a liberdade sexual da mulher. Esta tem todo o direito de provocação,
enaltecendo os seus dotes femininos, mantendo incólume o seu direito à liberdade
sexual.

Os interrogatórios policiais e as declarações em audiência de julgamento a que a


vítima de violação é submetida, ao fazê-la reviver o dramático momento da prática do
acto, contribuem para o agravamento da situação de trauma psicológico da própria
violação.

Em suma, mantendo para as mulheres o estatuto de inferioridade com o qual são


estigmatizadas, a protecção sexual não será descabida! As mulheres só serão iguais aos
homens quando mulheres incompetentes preencherem, em igualdade com os homens
incompetentes, os cargos superiores que estes ocupam.

CONTROVÉRSIA DE ÉTICA SEXUAL


O tempo que passamos é o melhor. Porque vale tudo. Nada é proibido, para o
bem e para o mal. Antes pelo contrário. A Sida. O castigo. Adão e Eva pós-paraíso.

Em supervivência quase medieva, cerca de três milhões de presbiterianos


americanos foram surpreendidos com uma carta que lhes foi dirigida pelos seus
responsáveis hierárquicos, afirmando que estavam arrasados com os comportamentos
sexuais dos "teenagers", violência sexual, novas tecnologias de reprodução, sida,
doenças transmitidas sexualmente, necessidades sexuais dos solteiros, homossexuais
masculinos, lésbicas, incapacidade e velhice.

Na orientação genérica do vale tudo, tudo bem, em matéria de sexualidade,


quase nos atrevíamos íamos a sugerir uma "limpeza" do Largo do Intendente, por
variadas razões. Porque o estrangeiro, que visita Lisboa e pretende adquirir as preciosas
cerâmicas da Viúva Lamego, confronta-se com o espectáculo de uma prostituição
medíocre (sabe-se lá, a sida) que, em termos de turismo, é profundamente negativo.
Porque tal panorama é uma afronta a quem deu o nome ao Largo, o Intendente Pina
Manique, pessimamente afrontado no dia a dia.

80
J. Pinto da Costa

Triste homenagem a quem, em 1762, ainda com vinte e nove anos de idade, foi
nomeado, pelo Marquês de Pombal, juiz de crime no bairro do Castelo de S. Jorge, em
Lisboa.

Fortunato de Almeida (História de Portugal, 1928) sublinha que no exercício de


vários cargos já Pina Manique dera provas de inteligência, muito zelo e actividade.

Cerca de 1780, a subversão, nessa época rotulada de ideias jacobinas ou


libertinas oriundas da pré-revolução francesa, colocava o País em lamentável
decadência.

A rainha D. Maria I, em 18 de Janeiro daquele ano, nomeou Pina Manique


Intendente-Geral da Polícia e do Reino, para entravar a dissolução dos costumes, dos
vícios degradantes, enfim da corrupção geral.

O eminente Intendente-Geral da Polícia, como lhe chamava Alfredo Pimenta, foi


encarregado de limpar a cidade de Lisboa, cheia de gente da pior espécie. É Caetano
Beirão, em publicação de 1934, que nos diz textualmente: "Lisboa era, nesse tempo,
uma cidade infestada por vadios, mulheres perdidas, frades devassos, soldados
indisciplinados, ladrões de toda a espécie, que a tornavam intransitável de noite, teatro
de cenas vergonhosas".

Pina Manique, moralizador, ressalva a proibição de mulheres representarem no


Teatro de S. Carlos e expulsa a bailarina Rosa Fiorini pelo escândalo que causara,
aparecendo em público de braços descobertos, seios à mostra, botas cor de carne e saias
de cambraia transparente. Integrado no espaço e no tempo, ele é produto natural da
época. Alguns meses antes de casar, a futura mulher deu à luz. Esta, por sua vez, era
filha natural e legitimada do Capelão da Casa Real, Monsenhor da Igreja Patriarcal,
Governador do Arcebispado de Évora no reinado de D. José.

CONTROVÉRSIAS TÊMPORO-ESPACIAIS
A sugestão de tolerância para a homossexualidade e para a prática sexual fora do
casamento e ainda a ordenação sacerdotal de homossexuais foram largamente rejeitadas
na América. A reacção dos baptistas, em Atlanta, que contam quinze milhões de
membros, foi espectacular ao sublinhar que a homossexualidade, o sexo antes do
casamento e a promiscuidade podiam colocar-se ao mesmo nível da violação, incesto e
prostituição como pecados contra os modelos bíblicos da sexualidade. Controvérsia com
a Igreja Católica na qual impera uma tolerância cada vez maior na problemática sexual.

O Mundo é uma bola (quase redonda) movediça, com probabilidade de repetição


de fenómenos. Não há, portanto, regressão mas tão-somente repetição, no princípio
matematicamente escravizante de que trinta por cento da verdade de hoje estará errada
amanhã, de cinco em cinco anos. Dêmos as voltas que quisermos. Não ingerir azeite

81
J. Pinto da Costa

como profilaxia de aterosclerose, dizia-se ontem. Hoje, deve beber-se azeite para a
evitar.

O sexo foi mitificado. Seguiu-se a desmitificação e adivinha-se nova


mitificação.

Na área da educação sexual, a telenovela Sassá Mutema é um tratado de muito


volumes daqueles que são o orgulho das estantes de qualquer cidadão pouco letrado que
não chega a perceber a maravilhosa essência da crítica social e política televisiva!

Controvérsias tem provocado o cinema no século XX, em contraste com a Idade


Média, quando por falta de artificialismo da imagem em movimento, no monopólio do
contacto ético da sexualidade, imperava a Inquisição. Filmes como o "Império dos
Sentidos", "A Última Tentação de Cristo", "Pato com Laranjas", "A Lei do Desejo", "A
Laranja Mecânica" e "O Último Tango em Paris" que foi o primeiro contestável,
exibido em Portugal no pós-25 de Abril, premiado por numerosas excursões de galegos
que até nós procuravam o deleite da pornografia, contam-se entre os que mais
controvérsias produziram.

Controvérsias são controvérsias. E no sexo também.

O acto sexual não teve sempre a dignidade de acontecimento moral que hoje lhe
é atribuída. A princípio era como no cão. O esperma era simplesmente depositado. Mas
o homem complica tudo. Inventou a vida sedentária, em quatro paredes,
escravizadamente sentado a uma máquina de escrever, perdão, estaticamente fixado,
horas a fio, ao computador. Para compensar a anti-fisiologia deste comportamento
atrofiante das massas musculares, corre, pelas ruas, em cuecas.

O homem deixou de ser simplesmente animal. Artificializou tudo. Inventou as


florestas de cimento em vez de cabanas, civilizou-se, dando carácter e conteúdo humano
às funções animais. Tornou clássico o aforismo "Os animais devoram, os homem come
e o civilizado saboreia".

Se o homem voltasse para trás, tudo ficaria reduzido à animalesca ciência do


essencialmente vital biológico. Como os gatos e os cães, coitados, que deixariam de ser
alvo do nosso carinho e afecto, para nos gratificar, atenuando frustrações.

A fantasia da moda hipertrofiadora dos encantos naturais de cada um de nós,


seria substituída por vestuário túnico multiplamente protector do calor e do frio e do
sexo num estádio avançado de inibição, por inutilidade óbvia do arranjo artificial numa
forma mais regressiva do comportamento humano.

A ultrapassagem das relações sexuais, como única atitude para procriação,


conferiu àquelas um elevado sentido moral, pelo lucro moral obtido. Sentido moral
definido pelo prazer erótico, sensação amorosa, alegria, fusão integral psicossomática,
satisfação de um instinto e libertação intensa de obsessões e paixões ocultas.

82
J. Pinto da Costa

Como alguém disse, as relações sexuais do homem culto não constituem uma
simples satisfação dos órgãos da metade inferior do corpo mas sim um acontecimento
espiritual que desencadeado, embora a nível do aparelho genital, aproxima o homem
dos deuses em lugar de o rebaixar à categoria animal.

Como referiu Simonin, director do Instituto de Medicina Legal de Estrasburgo,


no seu último livro (1955): "Se fosse necessária uma prova para demonstrar o papel
considerável ocupado pelo instinto sexual na vida humana, a medicina legal sexual
podia dá-la".

Controvérsias notáveis, para quem se interessa pelo género, são as de Vasco


Pulido Valente na Revista Capa, de Julho (Sexo, sentimento - e o que quiserem"),
porque elas representam o despertar inconsciente de uma sociedade rudimentarmente
embarcada na conflitualidade progressiva de um findar de século, que esfuma a
nostalgia do passado, com o temor do virar de página de um século, que também é de
outro milénio.

Controvérsias sexuais futuras? Talvez o regresso aos silícios!

E progressivamente, são mais dilatadas as controversas questões da concepção,


do aborto agora camufladamente chamado IVG (interrupção voluntária da gravidez),
das mães hospedeiras ou portadoras, da virgindade, da prostituição, da
homossexualidade que nas mulheres recebe o atributo de lésbicas em homenagem à
poetisa grega Safo, natural da ilha de Lesbos que se precipitou de um rochedo ao mar
por não ver correspondido o seu amor por um barqueiro, cerca de setecentos anos antes
de Cristo e cuja fama de homossexual feminina é historicamente reconhecida.

Controversos são também, no signo da ética sexual, o sadismo, o fetichismo e o


exibicionismo.

A ética sexual, como toda a ética, é dinâmica, na perspectiva de ciência de


valores. Cite-se, como exemplo, a variação desta ética na Moldávia (União Soviética)
cuja mudança foi determinada pelo afrouxamento do modo de pensar da juventude e
pelo relaxamento dos seus hábitos sexuais que, em certa medida, foram copiados pelos
mais velhos. Da liberalização dos costumes, a sífilis aumentou sessenta e sete por cento
nos primeiros seis meses do corrente ano de 1991 em relação ao ano anterior.

Nos Estados Unidos, há um milhão de pessoas infectadas com o vírus da sida. A


manifestação da doença não deve aumentar, não pela ética sexual, mas porque as drogas
terapêuticas atrasam as manifestações da doença, demorando as complicações
pulmonares mortais.

Interpretar padrões de ética sexual do comportamento subentende duas variações


máximas: o espaço e o tempo.

A estrutura sócio-cultural de um povo, na sua vivência, é o terreno onde o tempo


constitui o adubo que a faz crescer e florir.

83
J. Pinto da Costa

O espaço é o cenário no qual o clima é valor determinante.

TER OU NÃO TER FILHOS


O problema da filiação, no plano normativo, é controlado pelo Código Civil,
regulando a vida familiar.

Poucas pessoas, antes de casarem, conhecem os eventuais problemas decorrentes


dos filhos. Talvez tal comportamento esteja relacionado, de algum modo inconsciente,
com o princípio de que "quem casa não pensa, e quem pensa não casa".

A problemática de ter ou não ter filhos pode considerar-se sob o ângulo da


capacidade mental e emocional de um indivíduo para se reproduzir.

A questão subentende dois pontos de vista: negativo e positivo. No primeiro


caso, há que considerar se uma certa pessoa, ou um casal, tem direito a reproduzir-se, ou
se não o terá porque o casal sofre de certas alterações que possam afectar o embrião, ou
porque o casal não possa cuidar adequadamente do filho que nasceu. No caso dos pais
atrasados mentais, tarados ou com grau de consanguinidade muito próximo (irmãos,
pais e filhos, primos direitos, etc.).

A questão em aberto consiste em decidir se deve evitar-se que uma pessoa ou


um casal se reproduza e quando. Há quem diga que sim, há quem diga que não. E todos
têm argumentos.

A opinião das pessoas não informadas sobre o assunto cai, naturalmente, para a
sensibilidade da sua personalidade para com uns ou outros dos argumentos possíveis.

Do ponto de vista positivo, a questão é relativamente recente e representa a


possibilidade de uma pessoa ou um casal poder reproduzir-se mediante as novas
técnicas procreativas.

A primeira dúvida consiste em decidir se há algum motivo pelo qual uma pessoa
ou um casal que queiram ter filhos não possam ser ajudados nesse sentido.

À partida, duas situações ocorrem: ou há dificuldade ou impossibilidade em ter


filhos. As questões são significativamente diferentes porquanto no primeiro caso uma
aplicação terapêutica medicamentosa habitual ou uma cirurgia tradicional, sem
colidirem com convencionalismos morais globalmente pré-estabelecidos, poderão
resolver a situação, eliminando a dificuldade.

No segundo caso, pela ajuda de processos novos, a impossibilidade é


ultrapassada, entrando no controverso campo da Bioética (designação de Potter em
1970) para as velhas questões morais, éticas, deontológicas e legais que têm
acompanhado a intervenção médica, nos mais diversos comportamentos.

84
J. Pinto da Costa

Parece mais fácil admitir que o grupo social exerça um certo controlo sobre o
aspecto positivo da questão, designadamente negando o acesso à nova tecnologia da
procriação artificial a certas pessoas, do que na vertente negativa.

É evidente que é mais difícil ajudar alguém a que se reproduza quando essa
pessoa não dispõe de capacidade natural para procriar, como é o caso de defeitos
anatómicos, esterilidade, e certas doenças, do que evitar a reprodução quando o
indivíduo dispõe de toda a capacidade para se reproduzir.

No primeiro caso, para conseguir o poder reprodutivo do indivíduo, são


necessários meios especializados, humanos e materiais, obviamente constituindo
encargos económicos fora do comum.

No segundo caso, a natureza segue o seu curso sem necessidade de ajudas


especiais, consoante a vontade individual, excepto quando o Estado assuma o papel de
retirar a capacidade física ao indivíduo, esterilizando-o. É possível que quando o poder
do Estado intervenha neste sentido, já exista uma gravidez, pelo que a solução passa
pelo aborto com acentuadas implicações de ordem social, legais, éticas, religiosas e
políticas.

É muito controversa a questão dos pais atrasados mentais, que já têm um filho
atrasado mental. Deverão ter direito ou dever a esterilização?

Problemática semelhante, e de resposta cada vez mais difícil, do ponto de vista


ético, é o caso dos pais doentes mentais, já que o próprio conceito de doença mental é
hoje muito diferente de outrora e as possibilidades terapêuticas para conferirem um grau
aceitável de sociabilidade no sentido de responsabilidade e capacidade de administração
dos seus actos é hoje notável.

Nascido o produto da concepção, põe-se a questão do casal (quando ele existe)


ter capacidade mental, emocional ou física para se encarregar dele, o que é a regra até
prova em contrário, devendo neste caso o Estado tomar medidas adoptivas. Em
princípio e salvo raras e justificadíssimas excepções, o tribunal em caso de divórcio,
entrega os filhos à mãe, apesar de hoje, perante o princípio da igualdade, a lei não
distinguir poderes especiais do pai ou da mãe.

Para os pais casados o poder paternal pertence a ambos, de comum acordo.


Havendo desacordo, em questões graves, o tribunal pode ser ouvido e se o filho tiver
mais de catorze anos deverá ser ouvido excepto quando "circunstâncias ponderosas o
desaconselhem" (Artº. 1901º, Código Civil).

Que dizer dos pais homossexuais, lésbicas e transexuais?

Talvez seja preferível não dizer nada e reflectir na experiência vivida de


múltiplas situações do género, difundidas e comentadas a nível mundial pelos órgãos de
comunicação social, com destaque para o poder de penetração da TV.

85
J. Pinto da Costa

A ética é uma ciência dinâmica que não pode ser imposta por ninguém. Antes
pelo contrário, as nossas diatribes pessoais diluem-se na força da ética, no espaço e no
tempo.

Em qualquer opção, não devem esquecer-se, como referência, os melhores


interesses da criança, na balança de valores.

Em 1982, Sommerville designou como desviados aqueles relativamente aos


quais o Estado ou grupo social mantinha preocupações quanto à sua capacidade de
reprodução. A designação não é muito feliz e exige explicação no sentido de que não
deve confundir-se com o desvio classicamente considerado no ponto de vista criminal.
Tratar-se-ia de um "desvio" no aspecto sociológico. O conceito de pai "desviado"
compreende-se com facilidade quando a tara, o problema intelectual ou o problema
mental é nítido ou existe muito antes da concepção.

No caso corrente, admitida a normalidade do casal, as questões devem decidir-se


pelo melhor interesse do filho, inclusive nos casos de divórcio, separação judicial de
pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento (Artº 1905 C.C.) ou
fora dele (Artº 1911), chegando ao ponto do tribunal poder estabelecer que no caso do
falecimento do cônjuge a quem o filho foi entregue a criança não seja entregue ao
ex-cônjuge sobrevivente (Artº 1908, C.C.).

Quando um homem e uma mulher vivem em comum, fora do casamento, o


poder paternal pertence a ambos. Se a mulher vive só com o filho, tal poder pertence a
esta.

O interesse do menor está protegido pelo tribunal mediante requerimento do


Ministério Público, qualquer parente do menor ou pessoa a cuja guarda ele esteja
confiado, confiando-o a pessoa estranha ou a estabelecimento de educação ou
assistência quando a segurança, a saúde, a formação moral ou a sua educação se
encontrem em perigo (Artº 1918, C.C.). A lei prevê os meios de suprir o poder paternal
em múltiplas circunstâncias (Artº 1921 e segs).

Embora entre nós se dê preferência à mãe pelo simples facto de o ser, tal não é
universalmente aceite, reconhecendo-se igualdade de direitos aos pais.

A jurisprudência entende que mesmo de tenra idade, a criança não deve ser
entregue aos cuidados da mãe, se existirem circunstâncias que o desaconselhem
(Acórdão da Relação do Porto, 06.11.84). É neste sentido a Declaração dos Direitos da
Criança segundo a qual, esta precisa de amor e compreensão para o desenvolvimento
harmonioso da sua personalidade.

Tanto quanto possível, a criança deve crescer sob a protecção e responsabilidade


dos pais, e, onde quer que seja, numa atmosfera de afecto e segurança moral e material;
a criança de tenra idade não deve, salvo em circunstâncias excepcionais ser separada da
mãe.

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J. Pinto da Costa

O conceito do melhor interesse do filho implica que o direito dos pais sobre o
filho não seja absoluto e que o filho também tenha direitos como pessoa jurídica,
especialmente o direito a ter protegida a sua integridade emocional ou física, incluindo a
protecção contra o abuso pelos próprios pais. Os citados direitos incluem ainda as
medidas que os pais ou tutores devem tomar para garantir ao filho as necessidades
básicas da existência.

Em suma, a questão, à partida simples, de ter ou não ter filhos, envolve sempre
um conflito de direitos: dos pais, do filho, do Estado e do pensamento ético da
comunidade.

Tudo deve ser avaliado na base da dignidade das pessoas humanas envolvidas.

PROCRIAÇÃO ARTIFICIAL
Escassos considerandos hoje, oportunamente de índole recreativa, embora o
problema seja muito sério. No direito à diferença, a questão da procriação é diferente.

A natureza é uma escolha permanente. O limbo é uma perda estatisticamente no


plano teológico.

O embrião é uma esperança de vida.

A natureza está permanentemente sujeita às perdas estatísticas e se o embrião é


uma perda estatística não devemos entrar em pânico. Não podemos queimar etapas no
desenvolvimento humano. O jurista não deve ajudar com a confusão linguística. A
tutela do embrião é importante mas não pode confundir-se com a tutela do homem.

A vida não se limita a conceitos, a princípios de tal modo arreigados, que


tendam a uma esclerose de consciência. Quando se diz que não se devem fazer embriões
excedentários, não quer dizer que eles não sejam feitos.

Uma concepção da vida humana assente no conceito da vida natural não


dramatiza a vida mais do que ela tem de existência dramática.

Que o plano natural de vida prossiga, sem regras muito apertadas, para que ela
corra dentro da normalidade. A vida é posta em forma de máscara de Carnaval. Tudo
deve ser encarado com uma certa flexibilidade.

A norma é realista. Há um forte desejo de que não haja embriões excedentários.


Mas fica-se pelas intenções. Em Portugal, o número de embriões, por mulher
inseminada artificialmente, é de três vírgula dois embriões.

Que fazer dos embriões excedentários? Há muitas propostas. Aqui vai mais uma:
deixá-los crescer e mascará-los de Simpsons ou de Tartarugas Ninja (que é o que está a
dar) e incorporá-los, anualmente, nos cortejos carnavalescos!

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J. Pinto da Costa

O preço de uma procriação artificial varia: é de quatrocentos contos quando é


paga pelo particular e de trezentos contos para o Estado, donde se conclui que o
dinheiro do Estado é mais valioso do que o do sector privado! Será?

É um escândalo, diz o povo, andar a fazer filhos com esperma dos outros. Não
interessa o sentimento colectivo. O que conta é a vontade do médico que entende que
deve fecundar-se a mulher com esperma de outro homem, mesmo que a consciência
moral genérica o reprove. Porque a democracia é estúpida, o procriador artificial é quem
manda.

Por vezes há abusos.

Esta seria verdadeiramente carnavalesca, se não fosse autêntica: Cecil Jacobson,


de 55 anos, que foi catedrático de Genética da Universidade de George Washington, da
capital dos Estados Unidos, usou o seu esperma para engravidar clientes, na sua clínica
particular, entre 1976 e 1988. Ele foi acusado, pelo promotor de Justiça, de ser pai de
cerca de setenta e cinco crianças de idades compreendidas entre os cinco e os treze anos.
O cientista, muito pouco ético, afirmou preferir usar o próprio esperma porque era a
única maneira de estar seguro de que o bebé não teria a sida. Profilaxia da SIDA à
americana!

Cecil Jacobson não é um indivíduo qualquer. Foi ele o primeiro médico a


realizar, na década de setenta, o exame do líquido amniótico nas grávidas, permitindo
detectar doenças, como o mongolismo, processo que hoje é de rotina na América para
mulheres que engravidam depois dos trinta e cinco anos.

Uma mulher de 39 anos (não em Portugal) que já era mãe de dois filhos obtidos
naturalmente, foi sede de processo mecânico artificial para ter outro filho por alegada
impossibilidade de ter mais filhos. A mulher esteve sete dias em coma e depois morreu.
Não foi feita a autópsia porque o médico passou um certificado de óbito que levou ao
enterramento imediato do cadáver. Carnavalesco, não é?

Direito de nascer. O que é isso? Aborto não depois das doze semanas. Treze não.
Treze dá azar. Se a vida é o bem tutelado, sendo ela una e indivisível, será que cresce
com o amadurecimento? Viva o Carnaval!

O bebé proveta, criação de Patrick Steptoe, inglês muito circunspecto, por sinal
nada carnavalesco, é uma concepção legítima para ajudar um casal que não tem filhos
porque a mulher não pode conceber logo de início. É por isso que o método é normal e
moral, embora haja a ideia errada de que o bebé seria feito de matéria química existente
nos laboratórios, em estufas e máquinas complicadas, até nascer.

O Carnaval é uma instituição pagã muito anterior a Cristo. A Igreja Católica


aproveitou-o e integrou-o no itinerário cristão. Sempre atenta aos grandes
comportamentos e sensibilidades humanas, com a preocupação pelo império dos
sentidos, deveria pronunciar-se sobre a procriação artificial heteróloga (com esperma de
outro homem). Ou sim ou sopas. Viva o Carnaval!

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J. Pinto da Costa

O filho pode não ter muito a ver com o sexo. Por vezes é muito mais sexual a
tomada, em conjunto, de um café, do que fazer um filho. Pode mesmo fazer-se por
encomenda, mediante um banco de esperma, como quem paga as prestações de um
televisor ou de um apartamento alcatifado.

Procriação para não entender.

O leitor entendeu? Não? Ainda bem. Este Carnaval não dá para entender.
Esquece-se na quarta-feira de cinzas. Pode ser que acabado o folguedo comece a
respeitar-se todo o ser vivo como pessoa humana na sua dignidade.

Não endireitar o Mundo, mas não permitir que ele se entorte ainda mais deve ser
a meta de todo e qualquer um de nós. Os vindouros nos julgarão.

HERMAFRODITISMO
A notícia correu o Mundo dimanada do jornal Tempo, de Manila. Um filipino
hermafrodita, grávido de seis meses, pretendia o estatuto feminino para casar com o seu
companheiro, um soldado de vinte e um anos. Não é a veracidade da notícia que está em
causa, até porque a comunicação social foi célere em desmentir o acontecimento,
esclarecendo que na realidade de nada mais se tratava do que de um homossexual que
pretendia, mediante o insólito, colher dividendos para um eventual casamento com
outro homem.

Do mesmo modo que da calúnia fica sempre algo, também não vamos
desperdiçar a possibilidade de ilações sérias motivadas pela tentativa de embuste dos
menos cautos.

A banalidade biológica do acontecimento num hermafrodita contrapõe-se em


infinda movimentação ética, notável revolução (mexedela) de princípios estabilizados
do comportamento sexual. Conceitos de maternidade, amor maternal, instinto maternal,
afectividade, foram abalados, com surpresa, pela citada notícia porque, afinal e apenas,
um homem funcionaria como a minhoca por, como ela, ter nascido bissexual.

É a questão do hermafroditismo, que é uma palavra cujas raízes provêm da


mitologia grega. Hermafrodite, filho de Hermes e de Afrodite, unido por vontade dos
deuses com a ninfa Salmacis num só corpo! O hermafroditismo é, pois, a reunião de
ambos os sexos num mesmo indivíduo ou, melhor dizendo, a existência, em uma só
pessoa, de alguns caracteres genitais que originam dúvidas quanto ao verdadeiro sexo
de um indivíduo.

Diz a lei (Código Penal) que quem praticar inseminação artificial em mulher,
sem o seu consentimento, será punido com prisão, havendo procedimento criminal
mediante queixa. Assim, para que se verifique o tipo legal do crime em questão, a
condição de mulher é essencial. Quer dizer que se for homem o inseminado, não haverá

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J. Pinto da Costa

crime. O hermafrodita que se encontre civilmente registado como homem, se fosse


inseminado artificialmente contra a sua vontade não poderia queixar-se por não ter sido
crime o acto praticado.

À dinâmica da ética surge o caudal direito. O hermafroditismo encontra-se ainda


restrito ao plano ético.

Uma dificuldade biológica na evolução habitualmente comum, em quase todos


os indivíduos, pode acarretar a manutenção dos dois sexos na mesma pessoa.

Em regra, a orientação masculina (testicular) ou feminina (ovárica) está


relacionada com indutores primários dependentes dos cromossomas sexuais.
Habitualmente a diferenciação testicular começa cerca da 7ª semana e a do ovário cerca
da 10ª semana intra-uterina. A natureza das vias genitais internas (já não se trata apenas
da natureza histológica da gónada) constitui o sexo genital interno. Este depende
exclusivamente da secreção hormonal do testículo e é determinado entre 50º e o 90º dia
após a procriação. Na mulher, é a ausência de testículo, e não a presença do ovário, que
leva à formação de trompas, útero e parte alta da vagina.

Em regra, entre o 3º e o 5º mês, define-se o sexo genital externo, de grande


importância social, pois é ele que marca o sexo oficial do estado civil. O sexo genital
externo, que também depende da presença ou ausência do testículo fetal, é constituído
no homem pelo pénis e pelo escroto, e na mulher pelo clítoris e grandes lábios, ficando
o goteira genital aberta, isto é, a parte baixa da vagina.

O hipotálamo (base do cérebro) estimulando a secreção de hormonas


hipofisárias desencadeia o aparecimento de caracteres sexuais secundários devidos à
testosterona no sexo masculino e de estrogénios no sexo feminino.

Não devem confundir-se os hermafroditismos com os pseudo-hermafroditismos


que são precocidades hetero-sexuais, isto é, falsas puberdades precoces que se traduzem
pelo aparecimento de sinais de virilização no sexo feminino e de feminilização no sexo
masculino, que são ambiguidades sexuais.

O melhor conhecimento da fisiologia da reprodução, numa perspectiva técnica e


científica, permite a transplantação de um ovo para uma mulher estéril. Por que não para
o peritoneu de um homem?

Os problemas jurídicos suscitados pela inseminação artificial foram pela


primeira vez apontados no Código Penal de 1982. Mas nem todos.

Volvidas que estão algumas dezenas de anos, desde o início da procriação


artificial humana, vai sendo tempo de fazer um balanço, sem esquecer que as
intervenções biomédicas devem ser avaliadas sob o aspecto moral, com referência à
dignidade de pessoa humana que cria ou que é criada.

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J. Pinto da Costa

O Código de Direito Canónico estabelece que o erro relativo às qualidades da


pessoa, somente anula o casamento quando o erro é da própria pessoa. Isto na prática
significa que em caso de dúvida haverá que determinar qual o sexo do indivíduo em
questão, o qual, se for o mesmo de outro indivíduo, impedirá o casamento entre ambos,
pela lei em vigor entre nós.

O hermafroditismo é uma questão, em termos normativos, especialmente ligada


ao casamento. Segundo o Código Civil, o casamento contraído por duas pessoas do
mesmo sexo é juridicamente inexistente (Código Civil, artº 1628º). Quando um dos
noivos "estava em erro acerca da identidade física do outro" o casamento é anulável por
falta de vontade (Código Civil, artº 1635º).

Contrariamente ao que muitos pensam, não existem na mesma pessoa todos os


caracteres sexuais externos e internos. O que acontece é um indivíduo ter algumas das
características dos dois sexos, em proporção diversa originando múltiplas situações
diferentes, às quais é preferível chamar estados interssexuais do que hermafroditismo. É
assim que tais estados agrupam conjuntamente situações de origem variada como as
cromossomopatias ou digenesias gonadais, os hermafroditismos verdadeiros e os
pseudo-hermafroditismos.

Cada caso de suspeita de hermafroditismo deve ser estudado


pormenorizadamente, por forma a estabelecer o diagnóstico do sexo mediante a
apreciação de elementos de probabilidade e de certeza. Nos primeiros sobressaem o
aspecto geral do indivíduo, o psiquismo e a forma dos órgãos genitais externos.

Como elementos de certeza, contam-se a apreciação da característica anatómica


do exame obtido mediante intervenção cirúrgica, o que não é prática habitual e é
eticamente duvidoso quanto à legitimidade da sua realização propositadamente para fins
diagnósticos. A funcionalidade masculina ou feminina é difícil de afirmar, porquanto se
a presença de espermatozóides no esperma é um dado positivo, a sua inexistência não
exclui a hipótese de masculinidade. A menstruação não é suficiente para diagnosticar o
sexo feminino pois a hemorragia pode reconhecer outras causas. Apenas a gravidez é
sinal de certeza de que o sexo do indivíduo em questão é feminino.

A presença de cromatina sexual, descoberta por Barr, em 1949, não é apenas um


diagnóstico qualitativo mas sim quantitativo, sendo predominante no sexo feminino. O
cariótipo, isto é, o sexo cromossómico, é a fórmula sexual do indivíduo. O sexo
hormonal, como diagnóstico certo do sexo, merece algumas reservas pois são tantas as
interferências de nível patológico que podem alterar o teor hormonal, provisória ou
definitivamente, que é preferível não lhe conferir um valor de certeza, para efeitos
legais.

Para além dos problemas quanto ao casamento, o hermafroditismo levanta outras


questões legais, nomeadamente relativamente ao estado civil fora do matrimónio e aos
problemas do sexo no desporto.

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J. Pinto da Costa

Hermafroditismo não deve confundir-se com transexualismo (ou


transexualidade) já que este implica determinado sexo e uma vontade de mudança para
o sexo oposto, constituindo uma verdadeira doença que necessita de tratamento, sem o
qual o doente mantém um sofrimento notável.

Fique, como meditação, uma nova reclamação masculina quanto ao "direito" dos
homens a terem filhos seus, no ventre, demoradamente por nove meses, como a mulher.
Tudo pela dedução logicamente perigosa da diferença (para quem não aceita esta como
direito) da mulher ter filhos e o homem apenas os fazer. Da receptividade que a mulher
constituiu durante milénios, o homem pretende assumir agora o mesmo papel: o ser
humano como chocadeira. Valerá a pena mudar tanto a natureza?

SOBRE O ABORTO
Sobre é um modo arcaico de encimar o desenvolvimento do tema. Obviamente
adequado porque o assunto é antigo, como a natureza humana. Desde quando? Pela
certa, antes de Adão e Eva, não houve abortos humanos provocados. Recentemente
(Junho de 1992) a OMS, num relatório sobre a reprodução humana, refere que se fazem
150 mil abortos por dia. Por ano fazem-se cerca de 15 milhões de abortos clandestinos
(mais de 40 mil por dia), admitindo a própria OMS que o seu número atinja os 22
milhões anuais (mais de 60 mil por dia). Tomando para o planeta, como base, uma
população sexualmente activa dos 15 aos 65 anos (3,5 milhões) calcula-se que em cada
mil mulheres se fazem 32 a 46 abortos.

O número de abortos, per capita, tende a diminuir, uma vez que alguns dos que
poderiam vir a ser vítimas de abortos não o são, porque não chegam a nascer. Na base
de que se praticam 100 milhões de cópulas por dia, poderia haver muito mais embriões.
Tal não acontece pela múltipla contracepção que se não tem sido feita nos últimos 25
anos, por exemplo, teriam produzido mais 400 milhões de pessoas que realmente não
chegaram a ser concebidas.

É preciso discutir o aborto, dizer que sim, dizer que não, com fundamento
arbitrário diametralmente oposto. Mas convicto, por opção consciente. O bem de uns
transposto em mal dos outros. Discussão superficial, repetida, a escavar as consciências
até ao consentimento informado, deliberativo, responsável, para não ficarmos de fora.

Até ao fim do ano o assunto vai ser apreciado no lugar superior das discussões e
deliberações. Embora não possamos votar, é importante saber o que é decidido mesmo
que seja contra o que pensamos. Urge, por isso, que cada um saiba o que quer e porque
o quer. O aborto pode ser encarado como uma ficção moral. Em termos futebolísticos,
transportado o jogo para o simbolismo da vida, a procura da vitória poderosa, como
valor supremo na escala das importâncias, coloca o aborto como bola branca que espera,
no centro do campo, pontapés dum lado, pontapés do outro, mais cabeçada, menos
cabeçada. Dum lado joga o materialismo dialéctico com as suas jogadas delineadas pela

92
J. Pinto da Costa

esquerda. Contrapõem-se os contra-ataques, pela direita, da Igreja Católica. E o aborto,


passivamente, vai recebendo chutos de ambos os lados. Os empates
institucionalizam-se. As contendas repetem-se, na esperança de um golo marcado que
dê a grande vitória e seus dividendos.

Há jogos importantes, perigosos até. Um deles, recentemente, relacionou-se com


a unificação da Alemanha e a liberalização do aborto até aos três meses, debaixo do
apupo dos contrários. Mas não passou dum campeonato nacional. Vejamos na contenda
europeia quem ganha.

Será constitucional um referendo? Ou pelo menos desejável?

Haverá que evitar, no mínimo, procissões de velhinhas decrépitas, arrastando-se


a custo, empunhando cartazes que engrossam as manifestações anti- aborto. Pelo
aproveitamento do ridículo. Do espectáculo.

Será mais valioso um cortejo só de mulheres nos limites da idade de procriar?


Quais limites? Uma menina peruana, Lina, de cinco anos e meio teve um filho que
nasceu vivo com nove meses de gestação.

Porque legitimar o aborto até aos três meses e não aos quatro ou mais ? Não é,
certamente, pela saúde da mãe, até porque hoje, desfrutando das modernas tecnologias,
é possível fazer abortos, por cesariana, a um custo estimado de quatrocentos contos nas
melhores condições higiénicas (?!). Será realmente o aborto um problema ético
essencial? Quanto à ética, evidentemente que é, no dinamismo próprio que lhe assiste.
Contudo, é difícil descernir sobre o pensamento dos outros quando não há prospecção
nesse sentido. E a questão não é de sim ou não. Um complexo rendilhado de variáveis
tem que ser atendido para não se cair no erro do estrangeiro que, por ter visto meia
dúzia de gatos com a cauda cortada, foi dizer para a sua terra que em Portugal os gatos
não tinham rabo.

Aborto mudado, virado do avesso, lançado para primeiro plano, pela vaga forte
da renascentista bioética, que o trata como problema transcendental, que é,
estreitamente relacionado e inalienável com outras questões do início da vida humana.
Quantos de nós existiríamos se o aborto não fosse crime, melhor dizendo, não lhe fosse
aplicada a pena, em determinadas circunstâncias atendíveis por lei? Quantas mães, sem
condições físicas para terem filhos, os teriam, negando todas as racionais previsões
médicas? Mas, cuidado, que ás vezes não ganham os melhores, mas os mais
determinados. Em termos futebolistas ainda, lembre-se como a Dinamarca repescada
venceu a Alemanha campeã. A dificuldade está em saber quais são os melhores a jogar
no aborto. Melhores é um conceito que passa pela força da razão da maioria.

Seria mesmo oportuno decidir o jogo, com grandes penalidades ou moeda ao ar?
Vamos aceitar prolongamentos indefinidos?

Vamos dar a taça a quem primeiro meter um golo no prolongamento?

93
J. Pinto da Costa

Talvez que, filosoficamente, tudo isto seja muito interessante. Na prática, muito
provavelmente, para nós portugueses, não é preocupante. Será difícil não fazermos o
que a Europa disser. Acima da Europa, contudo, está a consciência individual, protegida
pelo estatuto do objector.

Nenhum médico, ou qualquer outra pessoa, será obrigado a praticar abortos ou


colaborar neles se não quiser, seja qual for a lei, criminalizante ou despenalizante, sobre
o aborto.

Nem nenhuma mulher consentirá no aborto se não quiser.

O problema só era verdadeiramente um problema se as mulheres fossem


obrigadas a abortar contra as suas próprias convicções, necessariamente respeitáveis se
tomadas linearmente após a indispensável informação proporcionada ao seu nível de
entendimento.

A PALAVRA E O SEXO
Que a educação é prioritária é um chavão em qualquer parte do Mundo. Que
educação é difícil definir. A educação religiosa existe em qualquer comunidade. Abolir
o ensino religioso nas escolas oficiais seria uma decisão peregrina. Que seja
inconstitucional o ensino da religião católica, sem oportunidade para outras religiões,
parece transparente. Proibir o seu ensino seria anti-democrático. Ninguém o proíbe.
Contudo, deixar o ensino da religião a nível opcional é privar o estudante de conhecer
os fundamentos da religião obviamente vinculada ao seu País desde os primórdios
históricos do início da nacionalidade. Em boa verdade, as democracias assentam na
maioria. Não seria mau, por isso, a título informativo, proporcionar, numa perspectiva
cultural, o conhecimento da religião que historicamente baseou o comportamento dos
portugueses em quase nove séculos de existência.

Educar é informar. Sem impingir, proporcionando ao próprio a elaboração do


seu conhecimento, numa perspectiva ecuménica.

A nível oficial, é necessário que um número de, pelo menos, quinze alunos
hajam voluntariamente requerido que lhes seja ministrada a respectiva aula de formação
religiosa para que exista tal ensino.

A pessoa humana sem fé é um quadro sem moldura, nem que a fé seja "não ter
fé".

A humanidade não vive sem sonhos. Ao longo dos tempos, a utopia tem sido a
de encontrar um espaço onde a igualdade social, a justiça, a paz e a abundância seja
amplas, gerais e irrestritas. É este o ideal procurado pela pessoa humana no seu perfil
religioso.

É preciso sonhar, individual e colectivamente, para manter a busca da satisfação.

94
J. Pinto da Costa

O ideal jamais será alcançado, mas importa continuar a persegui-lo, a tentar


criá-lo.

A utopia é o lugar inexistente (ou - não; topos - lugar). O processo de procura


externa é necessário e conveniente. A utopia é boa.

É curioso que, quando se desce no tempo, a história do comportamento humano


seja tão similar, para os índios da Amazónia, os aborígenes da Austrália, ou os nativos
da Nova Guiné. Quando os homens falam com as mulheres contribuem de algum modo
para a procriação. Numa concepção ancestral todas as palavras boas saídas da boca
penetram no seio de todas as mulheres prontas para as uniões e para os partos futuros.
Numa fantástica mitologia, a palavra descreve uma linha em hélice, saindo pela boca,
numa vaporada tépida do ponto mais secreto do ser. A palavra varia de qualidade e,
consoante o caso, penetra por uma de duas aberturas da mulher, nomeadamente pelo
sexo ou pelo ouvido. Este representa um duplo sexo, no qual o pavilhão é masculino e o
canal auditivo é feminino.

A palavra má, dita de noite, entra pelo ouvido, segue pela faringe e pelo fígado
e atinge o útero e, por ser má, impede a mulher de procriar numa perspectiva de
esterilidade temporária. A palavra boa é diurna. Do ouvido passa directamente para o
sexo, enrolando-se imediatamente à volta do útero, na forma helicoidal. Esta palavra
boa (também chamada palavra de água) possui a humidade necessária para a procriação.
A palavra boa transforma-se em germe celestial, em potência, aguardando a intervenção
do homem, para que seja possível desenvolver-se, tomando forma humana. O germe era
tido como o projecto de um embrião.

No princípio, no momento da união do homem e da mulher, o génio de essência


divina, meio serpente e meio homem, reproduzindo o gesto primordial divino ao dar
formas ao primeiro casal, mistura as palavras boas da mulher com a semente do homem,
que é a Terra.

No começo da humanidade, o primeiro casal foi petrificado pela entidade divina


numa argila húmida, provindo assim dos torrões terrenos.

Pela força da palavra, o casal original teve oito filhos, dos quais os primeiros
quatro foram homens e os outros mulheres. Estes oito iniciais podiam fecundar-se a si
mesmos, por possuírem duplo sexo.

Haveria quatro formas de útero e três formas de sexo masculino. Cada forma
relacionava-se com uma complicada correspondência simbólica com características
próprias e poderes específicos. A forma pobu, por exemplo, é comparável ao feijão e é
nefasta, imprópria para a concepção por o útero ser pouco profundo. É a forma do
aborto e dos filhos doentes. A forma pé de antílope, de útero triangular, é uma forma
muito boa, da qual se espera a gestação de gémeos do sexo masculino.

Na civilização cristã, a força da palavra é dogmática desde 1851, embora


proclamada por Santo Agostinho muito antes (354-430). O anjo Gabriel anunciou a

95
J. Pinto da Costa

Maria: "Eu te saúdo, ó cheia de graça, o Senhor esteja contigo". Perante a perturbação
de Maria, o anjo retorquiu: "Sossega, Maria, porque alcançaste a graça de Deus. Irás
conceber e dar à luz um filho, a quem darás o nome de Jesus. Ele será alto e
chamar-lhe-ão Filho do Altíssimo". Então Maria perguntou: "Mas como vai ser, se não
conheço varão?" A resposta foi pronta: "O Espírito Santo descerá sobre Ti. Por isso, o
teu filho será Santo e chamar-lhe-ão Filho de Deus". Em seguida, Maria disse: "Sou a
Serva do Senhor. Faça-se segundo a tua palavra".

Os mitos da procriação são um espectáculo no percurso do pensamento humano.


Fantástico é o nascimento de Buda. Sua mãe, a virgem Maya sonhou que um
maravilhoso elefante branco com seis dentes pousou no seu seio e penetrou nela,
delicadamente, através do flanco direito. Dez meses depois num jardim, viu uma árvore
com lindas flores vermelhas. Ao levantar o braço direito para segurar um dos ramos,
logo deu à luz, pela anca direita, sem a ferir, seu filho Buda. Foi então que as fabulosas
serpentes fizeram chover duas águas perfumadas, umas frias, outras quentes, para banho
da mãe e do filho. Em seguida, o neófito deu sete passos na direcção de cada um dos
pontos cardeais e disse: "Sou o Senhor da Vida e da Morte", enquanto lhe nasciam
flores de lótus sob os pés.

Mudanças grandes e pequenas continuam a ocorrer em todo este nosso


extraordinário planeta, revelando, em vislumbres, as incontáveis forças internas e
externas que nele convergem, aguçando a curiosidade da projecção do passado, rumo ao
futuro.

A prodigiosa riqueza do pensamento humano na viagem do tempo não tem


barreiras na imaginação. A força da palavra balança num mundo bizarro e temporário
em que são possíveis os extremos do comportamento humano.

A dúvida persistente na influência da palavra no sexo culmina numa escala


gigantesca do poder de dominar o outro e colher os seus recursos na gestação de novo
ser.

Tudo é possível. Até acreditar que uma chicotada, com serpente, na nádega de
uma mulher virgem a consegue engravidar.

Como diria Cousteau, os peixes do Amazonas falam durante o dia inteiro,


concluindo que eles, conversando, são certamente a origem das lendas dos caboclos
sobre as cidades de espíritos no fundo do rio.

Por hoje basta. Voltarei com outros assuntos no plano das cogitações vulgares de
uma Europa que teima em persistir, sem aceitar, humildemente, que a próxima
civilização é a do Pacífico, com seus ritos, mitos, palavras e sexo.

FALAR DE SIDA

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J. Pinto da Costa

Porque está na época. Aproxima-se o dia 1 de Dezembro, o Dia Mundial da


Sida. Seja. A geração de há cinquenta anos marchava garbosa, de Lusito, nas epopeicas
paradas da Mocidade Portuguesa, sob a superior condução de homens proeminentes
como Eduardo Romero, Henrique Galvão, Humberto Delgado e Marcello Caetano. Que
charmoso este ficava com suas botas altas bem engraxadas e sem esporas!

A portugalidade do 1º de Dezembro dividiu-se com o 10 de Junho, a princípio de


Camões e agora Dia de Portugal e das Comunidades. A exaltação patriótica do primeiro
de Dezembro perdeu-se a favor da sida.

A meditação misturada das celebrações nacionalistas de Dezembro e de Junho


surge pela razão histórica do cumprimento da efeméride a celebrar dentro de dias.

A múltipla informação disponível sobre a sida é assaz perturbadora. Como


apreciá-la? Há vários critérios. Em questão de volumes é imensa. Em páginas,
contam-se por milhares. A peso são vários quilos. Tudo misturado, mastigado,
centrifugado, decantado, pouco resta: Que a sida não é coisa boa. Não é maledicência
divina, como alguns pretendem. Que é um vírus (ou mais). Que ataca toda a gente
mediante certas condições. Que os drogados (heroína) são mais vulneráveis, quando
usam a mesma seringa.

Ninguém vai dar seringas aos presos, e ainda bem. Não dá, nem pode dar,
porque se as desse, estaria a legitimar que os presos se drogassem com injecções de
heroína.

Na Finlândia, não há menos heroinómanos que em Portugal. A educação é que é


diferente. Naquele país nórdico não é habitual uma pessoa injectar-se com a seringa do
outro. A ética do drogado é diferente.

Quando a geração dos pequeninos dos anos 30-40 cantava o Hino da Mocidade
Portuguesa: "Lá vamos, cantando e rindo. Levados, levados, sim!" não faltava a droga
para voar nos ideais supremos. Vivia-se drogado, embriagado nos valores superiores da
Pátria, que ultrapassava existencialmente os jovens para além dos espaços vazios.

O que falta hoje à gente é um objectivo, um ritmo anti-droga, um projecto, uma


esperança de vida melhor que a da geração anterior, utopicamente atingindo níveis de
sonho jovem, exigente no anabolismo crescente da força vital.

Na confusão, na antinomia, passeando no vácuo, a droga é o torpecente


oferecido e aceite para fugir da nefasta realidade.

A droga e a sida são irmãs gémeas no infortúnio.

Conceitos recentes de dissociação da procriação e do prazer no acto sexual


tornaram imoral que um homem e uma mulher quaisquer façam um filho sem um
projecto assumido para ele. Em contrapartida, é mais aceite que ambos usufruam do
bem-estar sexual em comum, com a legitimidade do prazer intelectual encontrado na

97
J. Pinto da Costa

reflexão filosófica de um tema fundamental, contribuindo de certa maneira para o que


no "reinado" do Marquês de Pombal se classificava de libertinagem.

A sida não resulta só da droga. Também pelo sangue, na forma terapêutica de


transfusão, pode contrair-se a infecção. A maneira mais fácil, elementar, de a evitar,
consiste em aquecer o sangue a cinquenta graus durante, pelo menos, trinta minutos. Por
esta medida não ter sido encetada, muitas pessoas foram (são) contaminadas pelo vírus
da sida. A realização de autópsias médico-legais em portadores de sida não implica
risco para os médicos, porquanto a autópsia só é feita, pelo menos, vinte e quatro horas
após a morte. Antes desse período o vírus "morre", pelo que não há contágio.

A via sexual parece ser, sem dúvida, a de maior probabilidade de contágio. A


princípio como paradigma estigmatizante dos homossexuais. À medida que a amostra
estudada se alarga, conclui-se que nos heterossexuais o risco é o mesmo.

A campanha do preservativo, tecnicamente eficiente, mostra-se impotente, em


termos de resultados. É que os factores culturais são mais importantes no
comportamento humano do que os ditames da técnica. Há anos, em Joanesburgo, entrei
numa farmácia para comprar comprimidos anti-palúdicos antes de penetrar numa zona
interior de malária. Dois patrícios nossos, não se apercebendo da minha nacionalidade,
em português "vernáculo-pornográfico" comentavam uns reclames de preservativos que
se encontravam em cima do balcão, em termos irreprodutíveis nestas colunas, não
passando na filtragem do respeito pelos leitores. Do mínimo que posso transmitir,
destaca-se a afirmação de um para o outro, de que a relação sexual com preservativo era
como comer um rebuçado com papel!

Há pouco policiamento na matéria da sida e quase nenhum controlo sanitário.


Não é contudo só por falta destes que a sida progride. O empenhamento de cada um é
fundamental. O Estado não deverá ser mais que um observador atento, contribuindo
pela sua força para a garantia do cumprimento das leis.

É ou não é pela prostituição que a sida mais se propaga?

Que se faz em termos de controlo da prostituição?

O que pensa a opinião pública da sida?

Quantos casos há de sida em Portugal?

Qual é o meio sócio-cultural no qual ela mais se desenvolve?

É particularmente curioso que na lista das quarenta e três referências das


"Doenças de Declaração Obrigatória" se incluam infecções como a cólera, a
tuberculose, a coqueluche, a escarlatina, o sarampo, as hepatites A e B e outras por vírus
não especificados, a papeira, a malária, a sífilis, o tétano e muitas outras, sem que a
SIDA ou a simples alusão a portadores de vírus assintomáticos seja incluída.

98
J. Pinto da Costa

A referência da sida na lista oficial daquelas doenças por ser indispensável foi
introduzida ainda que tardiamente. Tal deverá ser o ponto de partida para uma
abordagem científica da questão. Por isso, é mais prudente não citar números. Para não
errar. Há bastante imprecisão nos casos apontados em Portugal. Entre 1983 e 1987,
haveria 53 casos mortais no país, por informação oficial. No Instituto de Medicina legal
do Porto, traduzindo um sector restrito da população portuguesa, relativamente a 1991 e
1992 (até fim de Outubro), registaram-se seis casos.

Uma coisa é certa: as vítimas da SIDA, entre nós, nunca atingiram o nível
"normal" dos mais de duzentos mortos por mês por acidentes de viação. É preciso ter
coragem de enfrentar este problema que é mais grave que a sida. Talvez, partindo de
uma recordaçãozinha: nunca houve na guerra do Ultramar a média de duzentos mortos
mensais, nem o estropiamento foi tão grande como o que os acidentes de trânsito
deixam nos vivos.

Valerá a pena investir na sinistralidade rodoviária parte do esforço que se dedica


à sida? Impõe-se fazer algo diferente por esta, à procura de melhores resultados, os
quais, segundo a elementar matemática das estatísticas, são cada vez piores.

Mau grado o notável empenho dos responsáveis pelo sistema, o provérbio não
perdoa: "De boas intenções está o inferno cheio".

VIOLÊNCIA, MEU AMOR


O amor é cego e vê, não sei porquê... Assim rezava uma canção do,
provavelmente, maior cantor lírico português. Agora, porque é Verão, o calor prevalece,
o metabolismo aumenta e a violência é descomedidamente afectada, insultada,
injusticada e tomada como má. São más as aglomerações dos motoqueiros, mesmo que
não façam mal a ninguém. Como é Verão, tempo de férias, apesar do Poder proclamar
que elas podem ser gozadas em Janeiro, podemos dar largas ao pensamento sem
violência, sobre a violência.

É tempo de repudiar calúnias. É muito duvidoso que, actualmente, haja mais


violência que ontem, no século passado ou no milénio ancestral. Nós, observadores, é
que vamos sendo outros; a violência é a mesma. A relatividade e o carácter indefinível
do conceito de violência não são acidentais, mas inerentes a um tipo de noção que atira
para a diversidade conflitiva das avaliações sociais. Na verdade, os mesmos factos não
são apreendidos nem julgados segundo os mesmos critérios. Talvez hoje ela seja
aparentemente menor, pela criação de mecanismos inventados, como o poder judiciário,
para apaziguar o ânimo dos contendores, institucionalizando a vingança mediante o
poder do Estado, para interromper o circuito infindável do
crime/vingança/crime/vingança...

Violência houve sempre. O homicídio é violento. Violência é a causa externa


que faz sofrer ou morrer. A violência actual configura-se diferente, apenas porque o

99
J. Pinto da Costa

terreno é diverso, pela mudança dos comportamentos, mercê ou desmercê dos avanços
da tecnologia, largamente difundidos pelos mediáticos da informação. Violência pouco
mais significa que um desvio nítido de normas jurídicas e institucionais,
pré-estabelecidas, no espaço e no tempo. É difícil criminalizar uma sociedade quando as
regras da limitação da natalidade permitem que se mate crianças com esse fim, como
aconteceu outrora na China.

A violência admitida, em critérios de normalidade, nas zonas periféricas das


grandes cidades, é muito maior que nas zonas centrais. Toda a violência é social,
embora ela possa manifestar-se de múltiplas maneiras, como diferentes também são as
sociedades. Só pode aceitar-se, com larguíssimas reservas, a insinuação do maior
aumento da violência. Quem vive hoje, vive a violência contemporânea. Não a do
homem das cavernas nem a ficção das naves espaciais que o cinema nos antecipa. Tem
que aceitá-la e conduzir-se como quando circula numa curva perigosa. Todo o cuidado é
pouco. O melhor antídoto é a prudência. A guerra tem sido definida como manifestação
da violência internacional directa, quando se traduz por mortos e feridos que
ultrapassem os números dos conflitos das tribos primitivas.

A guerra mais mortífera foi, até agora, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945),
com 15 milhões de mortos, seguida da guerra de 1914-1918 (9 milhões), da guerra da
Coreia (2 milhões) e da guerra Sino-Japonesa (1 milhão). Estes números não assustam,
quando comparados com os actuais 50 milhões de pobres e cerca de 20 milhões de
desempregados na nossa Europa.

A violência pela criminalidade será tanto maior quanto mais comportamentos


forem inscritos como delitos no Código Penal. Uma violência exercida em tempo de
guerra poderá contribuir para a atribuição de Cruz de Guerra ao seu autor. O mesmo
acto na vida civil pode metê-lo na cadeia.

Violência velhinha, cantada por alguns, queixando-se dos contemporâneos. O


discurso é monotonamente repetido pelos tempos. Tucídedes (livro III da Guerra do
Peloponeso) afirmava sobre a guerra civil que devastou Corciro em 427 antes de Cristo
que é só traições, incertezas, desconfianças entre os grupos, excessos respondendo a
excessos, até mesmo antecipando-os para se prevenir. O desaparecimento de qualquer
acordo é tal que até as palavras não têm mais sentido.

Na Idade Média e no começo da Idade Moderna, a insegurança da vida e a


constância da violência nas relações humanas são bem demonstradas nas séries
históricas da televisão e nas fitas de cinema. Sem pretender escandalizar, deve dizer-se
que o mundo de hoje não é mais violento que em tempos anteriores. A diferença assenta
em que a deficiência técnica de há centenas ou milhares de anos não facilitava os
homicídios por armas de fogo, as explosões, as sabotagens de aviões, helicópteros,
caminhos de ferro ou navios.

A violência, actualmente, está tão enraizada na rotina do nosso quotidiano que


pensar e agir em função dela deixou de ser um acto circunstancial, para se transformar

100
J. Pinto da Costa

numa forma de modo de ver e de viver o Mundo. Com a visão ecuménica global deste,
como é possível falar de violência, perante um multifacetado de civilizações e
miniculturas não miscíveis, com seus padrões próprios não uniformizados? Não é
possível, pois não há uma realidade homogénea, existindo, pelo contrário, vivência em
eras diferentes nas quais o sentido da violência é profundamente diverso. Que há uma
tecnologia da destruição é um facto, pela diversidade dos instrumentos disponíveis, pela
gradação dos meios e respectivo acesso.

A violência mais atendida na preocupação humana é a resultante da agressão


física que algumas pessoas sofrem por actuação directa sobre o corpo, bens, objecto
amado seja a família ou os amigos. Há violência na ditadura e na democracia. No
comportamento económico actual, o tripé do lucro rápido e grande assenta no tráfico de
droga, na prostituição e na venda de armas. Esta depende do fomento da violência.

Na competição económica, a indústria do fabrico de armamento é fonte


lucrativa, para a exportação, contribui para estreitamento de alianças e criação de
clientelas de aquisição de peças sobresselentes e respectivos projécteis. Tal comércio
mantido, simultaneamente, como Poder e Contra-Poder, origina a que ambas as forças
estejam niveladamente apetrechadas, como é o caso da Unita, em Angola, ou da
Renamo, em Moçambique, para só falar sob o manto de egoísmo afectivo que nos une
aos povos de África de língua oficial portuguesa.

Quando se reflecte na possibilidade de utilização de bombas de neutrões, que


apenas "matem" as pessoas sem destruir a materialidade das cidades, atrevemo-nos a
admitir que, pelo menos, começa a haver uma certa prevenção da violência. É preciso
manter a violência, porque é necessário vender armas, que são uma fonte nítida de
ganho de muita gente, obviamente de grupos económicos dominadores. A violência vai
melhorando ou piorando consoante o grau de optimismo individual. Para uns, a garrafa,
em igualdade de conteúdo líquido, estará meio cheia, e, para outros, meio vazia.
Recuando na Grécia Antiga, Heráclito de Éfeso (séc. VI-V aC) sublinha que o combate
é de todas as coisas pai, de todas rei.

O que conta não é a realidade vivida por cada um de nós, mas o que sabemos e a
comunicação nos proporciona. O inopinado é um valor sócio-cultural. Contra o ritmo da
monotonia. O terrorismo na Irlanda já não é tão importante como outrora. Os
acontecimentos na Bósnia ficam para trás pelas crises no futebol. Muita da insegurança
que as pessoas hoje dizem ter não resulta de nenhuma violência que directamente lhes
tenha tocado mas apenas porque ouviram dizer.

A seguir ao 25 de Abril, a maior parte das pessoas que se suicidou não foi
prejudicada pelos acontecimentos mas apenas entrou em pânico pelo que era dito ter
acontecido a outros. A violência, com a carga de ruptura que veicula, é um alimento
privilegiado para a massa anónima. Quanto mais são espectaculares as violências
relatadas mais é acicatada a curiosidade, a leitura, a audição e a visão dos seres
humanos. Num Mundo cada vez mais transparente não é de rejeitar que de algum modo
estejamos a ser influenciados na estruturação da nossa própria personalidade por uma

101
J. Pinto da Costa

cultura facilitada da violência. Que sempre existiu. Que agora nos é dada em
embalagens sugestivas e tentadoras, ao nosso gosto. Hoje lemos dois ou três jornais
diários, folheamos as revistas semanais, ouvimos o noticiário da rádio e vemos a
televisão.

Consumimos e integramos sem crítica, como se fossem dogmas de fé, o que nos
é proclamado muito profissionalmente pelos órgãos da informação. Nunca fomos, como
agora, tão bem informados quer sobre a riqueza, quer sobre a pobreza. É possível que,
como preconiza Adler, a grande essência do comportamento humano, assente na ânsia
de ser importante e não propriamente no sexo como referiu Freud. A desigualdade,
como acto rotineiro e contumaz, das diferenças inter-pessoais, permitindo que uns
usufruam à saciedade o que à grande maioria é negado, é uma violência. A
desigualdade, considerada violência, é um fenómeno temporal, que atinge todas formas
possíveis de sociedades.

A naturalidade da desigualdade, que aceitamos sem saber porquê, e encontramos


como comportamento normal da história da civilização humana, só se entende quando
se compreende que ela é uma condição de estruturas sociais, que as reproduzem como
um fenómeno aparentemente natural.

O número absoluto de pessoas que cometem e sofrem a violência é maior.


Relativamente, não há diferença significativa. A violência gera o medo e este inibe o
córtex cerebral, com todas as maléficas consequências de desaceleração das expressões
vitais.

Em suma, e na defesa da verdade da violência, parece poder concluir-se que ela


é um comportamento estável da humanidade, pretendendo o poder pela força temperada
ocasionalmente pela racionalização do problema. A prática do que se vê pelo Mundo
fora mostra que não convém matarmo-nos todos uns aos outros, pois deixaria de haver
compradores de armas, e ninguém dominaria fosse o que fosse.

Resta-nos a consolação de que por um mecanismo perverso a violência não


aumentará. Nem diminuirá.

Como sempre.

SEVÍCIAS SEXUAIS EM MENORES


O abuso sexual em menores começou a ser referido publicamente na segunda
metade dos anos 60.

A vitimologia ensina que a maior parte das vítimas de abusos sexuais está
relacionada com alguém conhecido, quase sempre em casa da vítima e que quanto
melhor é a informação mais adequadas serão as medidas de prevenção.

102
J. Pinto da Costa

Mais de 50% dos abusos sexuais em crianças são cometidos por alguém que a
vítima conhece e em quem confia. Uma criança vai sendo vítima de abuso sexual
enquanto não tiver poder e dependa dos adultos económica, política, social, física e
emocionalmente.

A prevenção do abuso em menores passa pelo conhecimento do perfil da


vulnerabilidade, abrangendo três áreas: a falta de informação e conhecimento público
sobre violação, a posição social da criança e o isolamento social do menor.

O facto de uma criança ter sido vítima de maus-tratos na infância predispõe a


que ela própria, quando adulta, infrinja maus tratos a outras crianças. Cerca de 65% das
pessoas que maltratam crianças foram maltratadas, 25% agridem os filhos devido a uma
perda momentânea do controlo dos seus impulsos e apenas cerca de 5% são psicóticos.

Na década de 80 acrescida dos cinco primeiros meses de 1990, realizaram-se no


Instituto de Medicina Legal do Porto 589 exames de sexologia forense, dos quais 331
em menores de 18 anos (56,1%).

Considerando o limite de idade até aos 16 anos, o número de exames foi de 286
(48,6%) dos quais apenas 13 (4,5%) são relativos a indivíduos do sexo masculino. A
maior parte dos exames foi requisitada pela Polícia Judiciária (53,1%), seguindo-se os
Tribunais de Círculo, os Tribunais de Instrução Criminal, os Tribunais Correccionais e
o Tribunal de Menores. A maior incidência de exames (83,9%) é relativa aos menores
de idade compreendida entre os 9 e os 16 anos. A maior parte dos exames não revelou
qualquer alteração morfológica indicativa de abuso sexual determinante da solicitação
do referido exame médico-legal. Em 142 casos, houve sinais que permitiram afirmar
não ter havido cópula com penetração do pénis na vagina. Em 59 casos, a confirmação
de hímen complacente não permitiu excluir a realização da cópula.

A confirmação diagnóstica médico-legal de sodomia é impossível sem a


presença de leses morfológicas. Em 12 casos, a aludida ofensa sexual não foi
confirmada por inexistência de alterações anatómicas. Apenas num caso foi feito aquele
diagnóstico.

A existência de alterações anatómicas himeneais, em 56 casos entre 10 dos quais


havia gravidez, permitiu confirmar a hipótese de abuso sexual.

Não é fácil definir o nível sócio-cultural dos examinados, mas ele atinge os
estratos menos protegidos. Em 127 casos (1984-1990 Maio), houve 5 referentes a
atrasados mentais. Por ordem de frequência, o abusador foi o pai, um conhecido, um
vizinho e um tio. Globalmente, foram os familiares, os amigos e os conhecidos os
abusadores mais frequentes. A maior parte destes não tinha antecedentes criminais. Não
se encontrou referência a antecedentes psiquiátricos nos abusadores a não ser num caso.
Muitos abusos foram cometidos na residência comum à vítima e ao agressor (42,8%).

A atenção para o problema do abuso sexual em menores foi recentemente


despertada por uma publicação na Holanda, em 9 de Dezembro de 1988, pondo em

103
J. Pinto da Costa

causa os diagnósticos de incesto baseados em testes psicológicos considerados


controversos, relativamente a dez crianças com a idade média de 4 anos que foram
retiradas às famílias por decisão judicial.

As circunstâncias em que se verifica o abuso sexual de menores estão


estreitamente relacionadas com a dependência do menor para os adultos.

O isolamento no seu ambiente confere às crianças um risco maior de serem


abusadas sobretudo no meio familiar. A figura do agressor constitui uma das fontes de
autoridade para o menor, aumentando a vulnerabilidade deste para ser agredido, pois a
criança não é ensinada a revoltar-se mas sim a obedecer. A desigualdade do poder do
agressor em relação à vítima desempenha um papel importante no abuso sexual de
menores e observou-se em todos os 286 exames efectuados por queixas sexuais.

É importante que as múltiplas informações definindo o perfil de cada caso de


abuso sejam concentradas para que, mediante investigação científica, a realidade
existente possa ser a base essencial de uma prevenção mais eficiente.

CONCEITO DE INFANTICÍDIO
O infanticídio, hoje considerado como crime privilegiado (menor pena), foi
outrora punido, como homicídio agravado, com pena de morte mediante execuções por
vezes ofensivas de dignidade humana.

Na Idade Média, a mãe que matava o filho, de forma secreta, voluntária e


perversa, era empalada e depois enterrada viva.

O pai, no primitivo Direito Romano, devido ao jus vitae ac necis, relativo aos
filhos, não era incriminado se matasse o recém-nascido. Em contrapartida, a mãe era
considerada criminosa.

O poder paterno de dispor do filho recém-nascido relacionava-se com o direito


de propriedade. Foi com o Imperador Constantino que o infanticídio praticado pelo pai
passou a ser punido, atitude confirmada por Justiniano, com pesadas penas criminais.

Apenas no séc. XVIII, o infanticídio começou a ser encarado como um crime


que em vez da agravação deveria ser um crime menos castigado.

A severidade penal, que grassava na Europa no séc. XIX contra o infanticídio,


começou a ser posta em causa, sobretudo quando a mãe matava o filho no acto do
nascimento para ocultar a sua desonra.

Entre nós (Artº 356º, Código Penal 1886), o crime de infanticídio consistia em
matar voluntariamente um infante no acto do seu nascimento ou dentro em oito dias e
era punido com pena de prisão maior de vinte a vinte e quatro anos. Se o crime tivesse

104
J. Pinto da Costa

sido cometido pela mãe, para ocultar a sua desonra, ou pelos avós maternos, para
ocultar a desonra da mãe, a pena seria a de prisão maior de dois a oito anos.

Tal legislação, inspirada nos velhos Códigos Penais espanhol e francês,


afastava-se mais da realidade que o Código Penal actual (1982, Artº 137º). É que, por
vezes, a mãe que mata o infante não o faz para ocultar a sua desonra, mas porque tem
perturbações de tipo psicológico inerentes ao puerpério.

O infanticídio pode ser cometido pela epiléptica como também pela


esquizofrénica. Estas doentes podem ter morto o filho, actuando em curto-circuito, por
acto impulsivo, resultante da transformação directa dos impulsos efectores em actos,
sem que haja análise da consciência. Mas tanto num, como no outro caso, a mulher não
será responsável pelo acto.

O infanticídio também pode ser praticado por um acto compulsivo precedido de


análise da consciência com reconhecimento de que o acto é absurdo, acontecendo que,
por haver perturbações afectivo-volitivas, a mulher decida executá-lo para anular a
ansiedade. Este modo de actuação é próprio das doentes obsessivas.

O novo Código Penal (Artº 137º), não contemplando a intervenção dos avós,
marido ou outras pessoas que não sofram alterações do puerpério, concentra a acção
jurídico-penal apenas na mãe. É assim que também por isto se conclui que o problema
da honra não é o ponto fulcral da questão, já que a lei deixou de atender á intervenção
dos avós e de outros familiares quanto à desonra daquele que mata a criança para salvar
a honra da mãe. É o que ressalta da expressão do Código no citado artigo: "A mãe que
matar o filho durante ou logo após o parto, estando ainda sob a sua influência
perturbadora ou para ocultar a desonra serão punida com prisão de 1 a 5 anos".

Entenda-se que a influência perturbadora que leva a mulher a matar um filho não
atinge o nível psicótico porque neste caso a mãe seria inimputável. O que conta são as
modificações importantes relativas a alterações comportamentais significativas,
originando que, na balança dos valores, a honra sobressaia sobre o direito à vida do
semelhante, no caso concreto do próprio filho, vencendo uma das componentes
instintivas do ser humano  o instinto maternal.

É óbvio que o puerpério não conduz sempre a uma alteração psíquica. É exigível
que se demonstre inequivocamente que a perturbação psíquica sobreveio em
consciência daquele, de modo a diminuir a capacidade de entendimento ou de
auto-inibição da mãe.

A questão da desonra é muito complexa. à clássica desonra da mulher casada


grávida de outro, que não do marido ausente, contrapõe-se hoje o beneplácito acordo de
um casal que recebe um filho, com um esperma que não é do marido, perante uma
aceitação moral pública cada vez maior.

105
J. Pinto da Costa

A prática do infanticídio não restitui a honra a ninguém, na base de que a honra é


o conceito que uma pessoa tem da sua própria dignidade, e que não deve confundir-se
com reputação. Esta é o conceito que se possa ter do outro.

Pode alegar-se que mais do que à honra da mulher, o legislador submete-se a


uma certa intolerância social contra o adultério e contra a mãe solteira o que, além de
inconstitucional, é contraditório com o desenvolvimento ético.

Quando se suspeita que uma mulher tenha praticado o infanticídio, haverá que
decidir se estão reunidas as condições para que se possa imputar-lhe tal crime,
designadamente sinais de gravidez recente.

O exame do local, com a colheita de manchas diversas, para exame laboratorial,


indicará a eventual proveniência destas relativamente à mãe e ao filho.

O exame psiquiátrico poderá satisfazer o requisito legal de esclarecer se a mãe se


encontra "sob a influência perturbadora".

A justificação da honra na ausência de perturbações psicopatológicas é


suficiente na lei portuguesa, como em outros países, para atenuar significativamente a
pena que, nos casos de homicídio qualificado, pode atingir vinte anos.

As chamadas características do feto de termo, conjugando múltiplas medidas


corporais, peso do corpo e da placenta, cumprimento do cordão umbilical e
desenvolvimento de certas estruturas (cabelos, unhas, órgãos sexuais) são ainda mais
relevantes quando o feto não se encontra inteiro.

Em líquidos biológicos e nos órgãos internos do cadáver, as docimasias (provas


que permitem investigar) sugerem se houve, ou não, vida extra-uterina.

Há sempre que estabelecer o diagnóstico diferencial entre a morte natural e a


morte criminosa, indicando a causa daquela ou o mecanismo desta. O infanticídio
pressupõe a viabilidade do feto independentemente da mãe, caso contrário, em regra nos
primeiros meses de gestação, haverá aborto espontâneo ou provocado.

São questões proeminentes no infanticídio, como problema médico-legal,


concluir se o feto foi expulso vivo ou morto, a determinação do tempo decorrido até o
cadáver ter sido encontrado, o que não é tão fácil como à primeira vista pode parecer.

Como remate e para meditação, lembro o que escreveu um ilustre professor de


medicina legal francês (Derobert, 1977): O infanticídio é o aborto dos pobres.

MAUS TRATOS NAS CRIANÇAS

106
J. Pinto da Costa

Acontecimentos pontuais, com a coincidência da divulgação noticiosa da


agressão não mortal de uma criança e da morte de outra, em pontos diferentes do país,
revolveram a opinião pública.

Aventou-se um problema novo, como pretensa consequência gravosa de


instabilidade nacional, da ruptura com valores do passado, da imoralidade, do excesso
de liberdade, da inoperância da Justiça, e de muitos outros bodes expiatórios, querendo
projectar nos outros a responsabilidade que nos compete como pessoas de uma
comunidade.

Vem de longe a disfuncionalidade da relação adulto e criança, com castigo para


desvios de critérios de normalidade, como há dois mil anos antes de Cristo, quando o
Código de Hamurabi estipulava que seriam amputadas as mamas à ama que deixasse
morrer uma criança nos seus braços.

A ética de então consignava que não se devia deixar morrer uma criança.

Na história do antigo Egipto, um criminoso foi obrigado a carregar, às costas, o


cadáver da criança, que matou, durante três dias e três noites. O Rei Saul sacrificou o
seu filho Jonatan para obter a vitória.

Na Grécia, Agaménon tentou sacrificar a sua filha Ifigénia, para que a frota
troiana pudesse partir, mas a Deusa Diana tirou-a do altar. Foi ainda na Grécia que
muitas crianças feias e aleijadas foram lançadas do monte abaixo.

Os Amonitas, Arameus e os antigos Hebreus também sacrificaram os filhos.

Na Babilónia, o Rei Nimrod, com medo de um conquistador cujo nascimento


estava anunciado pelos profetas, massacrou sete mil crianças.

O menino Jesus, na fuga para o Egipto, foi salvo da carnificina infantil mandada
por Herodes.

Na Antiguidade, praticou-se o emparedamento que consistia em meter vivos nas


paredes os filhos primogénitos para garantir a prosperidade.

As crianças epilépticas eram atiradas contra as paredes por serem consideradas


possuídas pelo demónio.

Os filósofos gregos aceitavam os maus-tratos nas crianças. Segundo Aristóteles


"um filho ou um escravo são propriedade, e nada do que se faz com a propriedade é
injusto".

Paulo Zacchia (1626), considerado por muitos o pai da medicina legal, levantou
a questão dos maus-tratos na criança, ao realizar algumas autópsias por esse motivo.

Johnson (1868), em Londres, descreveu um quadro de fracturas múltiplas,


atribuindo a causa delas ao raquitismo, uma vez que naquela época não logrou outra
explicação para o facto.

107
J. Pinto da Costa

Tardieu (1879) publicou, em França, um trabalho intitulado "Estudo


médico-legal sobre as sevícias e maus tratos exercidos nas crianças ", relativo ao que
encontrou em duzentas e duas autópsias do género.

Besnier (1902), em França, fez a sua tese de formatura sobre este tema.

Parisot e Caussade (1929) publicaram "As sevícias nas crianças" nos Annales de
Médecine Légale.

Caffey (1946), pediatra e radiologista americano, publicou um artigo no qual


dava conta de seis lactentes, cujos pais não eram capazes de explicar como tinham
acontecido fracturas múltiplas de ossos longos e inclusive o hematoma subdural.

Silverman (1953), também pediatra americano, assinalou a origem traumática de


tais lesões.

Woolley e Evans (1955) insistiram na etiologia traumática das fracturas mas


acrescentaram que eram intencionais.

Caffey (1957) publicou novos casos de observação pessoal, afirmando que estas
lesões eram devidas inequivocamente a maus-tratos produzidos por adultos.

Modernamente, os maus-tratos adquiriram nova forma, pela exploração da


criança em trabalho que chegou às dezasseis horas diárias.

É muito possível que a maior acuidade da questão dos maus tratos na criança
(em inglês battered child) possa estar relacionada com o impacto do caso de uma
menina maltratada fisicamente, pelos pais, e que foi salva pela Sociedade Protectora dos
Animais, nos Estados Unidos, em 1870. É assim que emerge a ponta dum iceberg, um
bocadinho mais levantado com os milhares de crianças lesadas, torturadas e mortas
pelos pais, nos relatos de Kempe, Silverman, Steele e Droegemueller, em 1962.

Na Inglaterra, em 1983, foram estudadas cento e quarenta e sete famílias de um


Condado Inglês. Em duas gerações, houve quinhentos e sessenta filhos, dos quais
quinhentos e treze foram vítimas de agressão, tendo havido quarenta e um casos
mortais. Em apenas três destes casos aconteceu sanção judicial.

A agressão sexual nas crianças é uma forma de maus-tratos. Mais de metade dos
abusos sexuais em crianças são cometidos por alguém que a vítima conhece e em quem
confia.

Uma criança vai sendo vítima de abuso sexual enquanto não tiver poder e
dependa dos adultos económica, política, social, física e emocionalmente.

A prevenção de abuso sexual em menores passa pelo conhecimento do perfil da


vulnerabilidade, abrangendo três áreas: a falta de informação e conhecimento público
sobre violação, a posição social da criança e o isolamento social do menor.

108
J. Pinto da Costa

A falta de informação é o resultado de uma educação errada, mantendo a


ignorância das crianças com o pretexto de lhes proteger a inocência, do que resulta a
maior vulnerabilidade. Inversamente, estão mais protegidas as crianças que sabem que
os adultos, que lhes dão um beijo ou fazem carícias pouco habituais, poderiam abusar
delas sexualmente. É um primeiro mecanismo de defesa contra os vizinhos, pais, ou
adultos desconhecidos que tentam contactos inesperados.

Os mitos, as crenças e os estereótipos são factores importantes de risco no abuso


sexual de menores.

No que toca à posição social das crianças, elas dependem do mesmo grupo que
os abusadores adultos. Paradoxalmente, a dependência da protecção dos adultos torna os
menores mais vulneráveis.

Além da dependência, há a sublinhar a menor capacidade física das crianças em


relação ao abusador e a programada obediência e submissão à autoridade dos adultos.

O isolamento dos menores é outro factor que deriva da estrutura fechada da


família nuclear, a qual facilita o abuso sexual, como aliás o incesto e a violência, porque
mantém a criança isolada, juntando-se ainda a crendice popular de que os filhos são
propriedade dos pais, dificultando assim a intervenção que poderia prevenir o abuso.

O facto de uma criança ter sido vítima de maus-tratos na infância predispõe para
que ela, quando adulta, infrinja maus tratos a outras crianças e ainda possa vir a
tornar-se uma pessoa violenta e potencialmente homicida.

É muito importante que os menores não sejam maltratados por todos os motivos
e até porque é necessário desfazer o ciclo vicioso.

Os maus-tratos podem revestir uma forma activa (aguda ou crónica) e uma


forma passiva.

Fala-se muito em trinta mil crianças maltratadas, por ano, em Portugal. A este
número correspondem cento e oitenta mil em seis anos durante os quais foram
autopsiadas no Instituto de Medicina Legal do Porto menos de dez vítimas mortais, não
especificamente por traumatismos mas também por má alimentação (forma passiva).

Não são tantas, como se pensa numa análise superficial da questão, as crianças
agredidas fisicamente, e muito menos mortalmente, já que, por doença e desnutrição,
morrem, diariamente, em todo o mundo, quarenta mil crianças. E, mais ainda, morrem
mais de quatro milhões de crianças de idade inferior a cinco anos, por ano, também em
todo o mundo, por infecções respiratórias, especialmente a pneumonia, cujas mortes
podiam ter sido evitadas se as doenças fossem diagnosticadas e tratadas atempadamente.

Naturalmente que muito há a fazer pelas crianças.

Como nota prática, é um pouco psicadélico, não se chegar à conclusão se uma


criança de dois anos foi violada ou não, por alegada incompetência do médico local,

109
J. Pinto da Costa

quando os exames de sexologia forense serão efectuados, de preferência nos Institutos


de Medicina Legal. É o que diz a lei, para bom andamento da Justiça, o que evitaria
situações convulsivas, por descontrolo emocional das populações aquando de
julgamentos.

Como remate duma reflexão superficial sobre os maus-tratos, sublinha-se que


uma autópsia, em casos do género, não é fácil. É preciso eliminar a possibilidade da
morte ter resultado de causa natural, seja uma hemofilia, um tumor de Kaposi
(relacionado com a sida) ou uma osteogénese imperfeita (digamos descalcificação), para
citar alguns casos concretos.

Resta não esquecer que a problemática dos maus-tratos é uma questão


sócio-cultural, na qual a falta de amor, por agressividade excessiva, é uma componente
fatal enquanto não modificarmos o nosso comportamento adulto para com as crianças.

Mais do que as inúmeras terapêuticas sociais e os mecanismos legais atinentes,


importa uma revisão colectiva e sobretudo individual, repensando as nossas atitudes e
gestos.

COMPORTAMENTOS VIOLENTOS
O homem violento, agressivo, caído nas malhas da justiça é uma espécie de
modelo supervivente do renegado criminoso nato de Lombroso. É difícil analisar as
diferentes fases do comportamento do homem criminoso porque o modelo é metafórico,
irreal e depende da codificação social do acto praticado como crime. O incesto já foi
crime e o adultério também. Hoje não.

É incontestável que a agressividade é uma componente humana, cuja supressão


talvez seja ainda mais espectacular do que a presença. A agressividade e a violência
estão estreitamente relacionadas com a fome, a sede, a cólera e a alegria, cujos
desenvolvimentos se processam segundo uma sequência invariável no que toca ao seu
carácter explosivo, invasor e hegemónico. Um comportamento pré-criminal é um estado
de não necessidade de cumprimento, levando a inaceitação de qualquer norma e a uma
insubmissão genérica, que muitas vezes não tem grande repercussão prática porque tais
comportamentos não chegam às malhas da justiça, como, por exemplo, cuspir na rua ou
"levar" um cinzeiro do café. Apesar de conservar a inteligência, muitas vezes de nível
superior ao normal, o delinquente é transformado pela ausência irredutível de um
comportamento insubmisso a qualquer disciplina indispensável à vida social na qual se
encontra inserido.

O estado perigoso ou perigosidade é um conjunto de condições subjectivas que


permitem um prognóstico relativamente à propensão de um indivíduo para cometer
delitos. Há critérios nos quais o exame psiquiátrico forense deve fundamentar-se com
vista à conveniência das medidas de segurança, compreendendo as características da
personalidade, o grau de saúde ou doença mental, as características do delito, o cadastro

110
J. Pinto da Costa

criminal, o comportamento durante a prisão ou tratamento, meio ambiente em que o


recluso se irá integrar e a prospecção sobre a conduta. Em conformidade com estes
critérios é possível considerar três grupos distintos, designadamente de baixa, de
moderada e de alta perigosidade social.

Para a definição da imputabilidade, não pode deixar de sublinhar-se o carácter


globalizante do comportamento passional. Dissociar a televisão e a violência não é
tarefa fácil, mas aquela já foi mais responsabilizada do que actualmente, cabendo à
droga o privilégio de ser mais apontada no comportamento violento, sobretudo dos
jovens, já que são estes que preferencialmente a utilizam. Antes da televisão, os grandes
acusados eram a rádio, a banda desenhada, as revistecas e a literatura barata. No futuro,
haverá, provavelmente, outro bode expiatório, para os pais justificarem certos
comportamentos dos filhos, que reprovam, sobretudo, por conflito de gerações.

É numa perspectiva multifactorial que deve ser compreendida a pessoa humana,


quando submetida a exame para a avaliação da imputabilidade. Da história longitudinal,
resultará a informação muito importante sobre a socialização como processo de
aprendizagem social pelo qual o delinquente se integrou, com maior ou menor
dificuldade, nas sociedades e suas instituições e adquiriu os seus costumes e tradições.
Em condições normais (mass media) um indivíduo deve adoptar as condutas julgadas
desejáveis pelos diferentes grupos que ele frequenta e os seus códigos éticos,
dependendo a socialização do meio familiar, cultural e físico.

A agressividade e a violência, em face da problemática da imputabilidade,


relacionam-se com o desejo de ser amado, de evitar sentimentos desagradáveis inerentes
à rejeição e à punição, a tendência a copiar os outros e a necessidade de identificação
com certos "ídolos". A agressividade é o exemplo de atitude negativa contrapondo-se ao
altruísmo que surge como atitude positiva. A violência sem agressividade não faz
sentido. A violência é uma maneira muito globalizante de estar no Mundo,
profundamente difundida, constituindo os actos agressivos uma chamada de atenção.

A violência gera violência e esta alimenta a agressividade. O agressor, ao


cometer um acto de violência, quer provar o seu poder. A agressividade não tem nada
que ver com a maldade, mas sobretudo traduz mais um desejo de defesa do que de
ataque. O acto agressivo, raras vezes vivido como tal pelo seu autor, relaciona-se
sempre com a história pessoal do indivíduo e aos seus primeiros anos de vida,
nomeadamente com as dificuldades desde o nascimento e durante toda a edificação da
personalidade, as quais podem ter destruído o equilíbrio psíquico.

É curioso notar que sendo a família, por conceito próprio e vocação, o local onde
devia imperar a doçura, a segurança e o amor, ela transformou-se num meio negativo
revelador ou fabricante de tendências patológicas ou primitivas. Ninguém pode sentir-se
realmente integrado na sociedade em que vive se não está solidário com ela e possui um
sentimento de irresponsabilidade. Quando alguém tem a sensação de ser útil não há
hostilidade para com os outros, nem necessidade de vingança, de lutar ou discutir.

111
J. Pinto da Costa

A violência é uma realidade que não deve ser dramatizada mas que é preciso
controlar. É uma questão social de âmbito universal, e não apenas do ensino nas escolas,
nem dos educadores, dos juízes e muito menos dos ministérios da justiça ou dos
governos. A agressividade pode ser domada, vencida, orientada de forma a tornar-se
positiva, dando-nos uma certa capacidade para vencer na vida, em qualquer tipo de
actividade, inclusive no desporto. A violência, pelo contrário, é sempre negativa e,
independentemente da justificação apresentada, não depende de necessidade embora
possa pensar-se, erradamente, que sim, pela múltipla violência contida na história da
humanidade.

Com um vislumbre de esperança, perante a avalanche de problemas, que uma


civilização permissiva, como a nossa, desencadeia em catadupa, saibamos encontrar o
nível de tolerância e compreensão no desejável enquadramento normativo.

FACTORES ECONÓMICOS E SOCIAIS DA CRIMINALIDADE


O crime dimana do grupo, mas a própria evolução grupal, motivada por uma
certa conduta, estremece a maneira considerada correcta até então pelo grupo social.

A compreensão do acto criminoso só é possível pelo estudo da personalidade, ou


seja o Homem, no seu ambiente vivencial, na sua aprendizagem escolar, na sua
educação moral e religiosa, na assistência sanitária que recebeu no trabalho, no grupo,
considerada ainda a capacidade económica familiar, a habitação, a facilidade de
transporte, os divertimentos e a comunicação social.

As guerras, com padrões morais afastados da normalidade anteriormente aceite,


constituem factor desestabilizante e que dificulta a aplicação de normas com o ritmo
anterior, o que, obviamente, resulta no aumento significativo da criminalidade. Foi o
que aconteceu com a guerra de 1914 a 1918, de 1939 a 1945, com a guerra do
Vietname, da Coreia ou das nossas províncias ultramarinas.

Ninguém duvida que o desemprego e o subemprego, o problema da habilitação,


o rápido desenvolvimento que atinge qualquer cidade, vila ou aldeia, a migração
acentuada dos jovens para centros cada vez mais populosos e diferenciados, para não
falar no choque dos retornados são factores que contribuíram e contribuem para o
aumento da delinquência. Numa escala comparativa de valores, podemos dizer que em
Portugal não há crimes, se atendermos a que nos Estados Unidos se comete um crime de
sete em sete segundos, do nível de homicídio, estupro e roubo.

Portugal é um país em desenvolvimento, onde a qualidade de vida nas grandes


urbes, mormente em Lisboa e no Porto, é cada vez mais degradada. Não existem vias de
comunicação suficientes, chega a demorar uma hora para atravessar as pontes e as
"bichas" nos autocarros não têm fim. Não há espaços verdes porque em todo o local,
que poderia constituir o pulmão verde das cidades, constroem-se imóveis,
transformando-a em florestas de cimento.

112
J. Pinto da Costa

A criminalidade é diversa consoante a diferenciação sócio-cultural e económica


de uma certa região. O acesso à cultura é igual para todos, mas é muito mais igual para
uns do que para outros.

O crime é o facto punível por lei. É por isso que há quem preconize que para
acabar com os crimes se rasgasse o Código Penal...

O criminoso de guerra será amanhã um herói a título póstumo. As vítimas da


Inquisição são hoje seres encarados com respeito e os cristãos lançados às feras
venerados como santos. Muitos delinquentes, por não se adaptarem ao senso comum da
época em que viveram, são hoje tidos como heróis. A sua inadaptação, o seu "crime" foi
a antecipação de novas formas morais ou jurídicas que o tempo mais ou menos distante
faria prevalecer. Uma doutrina que hoje recebe, em todo o Mundo, o aval de largos
milhões de pessoas, valeu a Cristo a condenação à pena capital por contradizer a ordem
pública.

O criminoso é um reflexo e um m motivo de progresso. Na primeira hipótese, o


crime surge da inadaptação a circunstâncias novas por inaceitação do desafio no tempo.
Na segunda, o estudo da conduta humana e a tentativa do seu reajustamento à nova
ordem são o efeito positivo do fervilhar do comportamento humano.

Não vamos insistir na problemática do criminoso político pois, devido à


alternativa do poder político, o mau de hoje é o bom de amanhã.

Do seu perfil resulta sobretudo um inconformismo com as estruturas sociais


vigentes.

Quanto maior é a desorganização social, mais frequente é o crime, aumentando


com a inflação, instabilidade política e económica. Encontram-se nas grandes cidades
vários tipos característicos de delinquentes.

Os homicídios e as ofensas corporais, como exemplos de crimes violentos, são o


resultado do endeusamento da força, como processo válido de solução dos conflitos
humanos, em face de ausência de adequada educação e de meio de transmissão cultural.
Os atentados terroristas são um reflexo do retorno à vingança privada. A punição, pura e
simples, nem diminui a criminalidade nem recupera o criminoso. O que falta é a
humanização do Homem.

PRESPECTIVA HUMANA DO CRIME


A criminalidade é uma listagem constante nos códigos penais das comunidades.
Se os rasgássemos, desapareciam os crimes, como aconteceu com o adultério, o incesto,
a procriação artificial sem autorização do marido, ou a situação que deixou de ser
estupro, concretamente a cópula com meninas de idade superior a 16 anos, por abuso da
sua inexperiência ou mediante promessa séria de casamento, e a ajuda ao suicídio na

113
J. Pinto da Costa

Alemanha, a qual não é crime, enquanto entre nós ainda é. De qualquer modo, há
parâmetros definidores de comportamentos sociais impostos, alguns dos quais
entendidos como merecedores de penas quando desrespeitadas. Diz-se normal o
indivíduo com capacidade para responder de forma adaptada aos estímulos que o
rodeiam. A capacidade de excitação é assim uma prorrogativa normal do indivíduo
"normal"

A maior parte da conduta relaciona-se com a sobrevivência. O cérebro é alertado


e mobilizado de múltiplas maneiras para permitir que o organismo satisfaça as suas
necessidades, resista aos inimigos e neutralize as ameaças. Ele intervém na motivação e
nos aspectos emocionais, provavelmente como o mecanismo mais antigo e mais
importante ao serviço da sobrevivência.

A motivação implica o conhecimento do equilíbrio físico-químico corporal, por


forma a que toda a situação que origine a fome ou outras necessidades básicas prossiga
a conduta ou sequência de condutas que satisfaçam a necessidade e mantenham a
integridade corporal. O sistema nervoso primitivo estava organizado e era adequado
para transformar os impulsos básicos (fome, sede, impulso sexual e de conservação) na
correspondente forma de conduta (alimentação, bebida, reprodução e, conforme as
circunstâncias, defesa, hostilidade e agressão).

Qualquer forma de conduta de cidadão normal, cumpridor dos códigos, deriva de


forças bipolares de recompensa (satisfação, gratificação, prazer) e de castigo
(insatisfação, frustração, dor), cujo objectivo é evitar o castigo e conseguir a satisfação.
O desequilíbrio desta bipolaridade equilibrada pode despromover a pessoa humana a
criminosa, debatendo-se nas malhas da lei.

A emoção amplia muito as respostas da conduta, tornando-as mais específicas e


mais adaptadas às solicitações do ambiente. O medo, ao motivar a pessoa, fazendo-a
cautelosa, tende à preservação da espécie. O irado elimina os obstáculos que se opõem à
sobrevivência. Também pelo medo surge a atitude amistosa que promove a
socialização. As condutas anti-sociais relacionam-se com dois sistemas etiológicos
interactivos. O interno, devido a psicopatologia e à sua conflitualidade e, outro, externo,
proveniente das normas sociais dialecticamente transmitidas pela comunidade.

Ainda que marcadas por actuações, por vezes violentas, as condutas anti-sociais
não são sempre criminosas nem mesmo agressivas, podendo ser provocantes, isto é,
interrogativas. Elas levantam a questão dos interditos e das transgressões que cometem,
individual ou colectivamente, como em certas famílias acontece. As conflitualidades
subjacentes intrapsíquicas e interpsíquicas permitem a passagem ao acto na forma de
desorientação ou sideração, quer se revelem por quadros depressivos, neuróticos ou
psicóticos. Com o devido respeito pelo Direito, o crime não é apenas um fenómeno
jurídico-social, mas sobretudo um fenómeno biológico da personalidade humana.

A pessoa humana é una. Corpo e alma, soma e psique, matéria e espírito são
palavras sinónimas. É sobre cada pessoa, individualmente, que actuam factores

114
J. Pinto da Costa

endógenos recebidos da carga hereditária dos antepassados e exógenos que o ambiente e


o peri-mundo introduzem no corpo e no espírito, factores que originam e moldam a
disposição criminógena e configuram a morfologia biológica, social e jurídica do crime.
Este nos primórdios da humanidade, era exclusivamente um fenómeno natural, que
depois se transformou em social, a seguir em jurídico, mas sem deixar de ter sempre um
cariz de facto biológico. O crime, como acção humana, é a resposta normal ou anormal
(patológica), preferencialmente mais anormal do que patológica, consciente ou
inconsciente, de uma pessoa, a uma situação-estímulo duplamente endógena e exógena.
Por outras palavras, é uma resposta da personalidade e do mundo circundante,
simultaneamente, de um modo transitório, permanente ou periódico.

A criminalidade é tão antiga como a própria sociedade. A compreensão do


delito, como fenómeno de patologia social, implica o conhecimento do comportamento
humano. O essencial para entender o fenómeno criminal na sua totalidade consiste em
considerar, por um lado, a infracção jurídica e o acto social e, por outro, a pessoa
humana e o seu estado perigoso.

A defesa da sociedade exige que o fenómeno criminal seja considerado numa


perspectiva dupla, como abstracção jurídica e como realidade humana e social. Um
conhecimento profundo do ser humano, no sentido da personalidade biológica,
permite-nos prever como a personalidade agirá, em determinadas circunstâncias,
perante certos estímulos intrínsecos e extrínsecos. Podemos, assim, contribuir para uma
melhor compreensão da criminalidade e um aproveitamento mais eficaz na desejável
recuperação social do delinquente, como pessoa perturbada no desvio comportamental.

Para além do delito como entidade jurídico-social, ele encerra, na perspectiva


psiquiátrica da delinquência, um envolvimento biológico sómato-psíquico, da
personalidade humana. É sobre esta unidade que actuam os factores intrínsecos do
património genético individual e os exteriores provenientes do ambiente e que o
peri-mundo projecta e dá forma à disposição delictógena e se enquadram, caso a caso, a
morfologia biológica, social e jurídica do delito.

O facto delitivo representa biologicamente o acto terminal, como resultante final


de uma estruturação habitualmente anormal da personalidade. Ele é, também, o início
de um outro processo jurídico, que pretende averiguar se aquele facto representa uma
acção ou omissão voluntária, típica, anti-jurídica, culpável e punível. É assim que o
delito é uma unidade biológico-social juridicamente estabelecida convergente de dois
aspectos essencialmente distintos.

A existência de um crime depende de uma lei que o tipifique e o sancione, pois


que a pena é o seu carácter predominante como fenómeno jurídico. Trata-se, por isso, de
um conceito relativo, que surge como consequência lógica de factos considerados
nocivos para o indivíduo e para a sociedade e que o Estado, na defesa de ambos, tipifica
e estabelece as respectivas sanções e medidas de segurança.

115
J. Pinto da Costa

Numa abordagem simplificada da questão, recorda-se que foram os crimes que


criaram as leis que os definem e não a inversa. O legislador ordenou, classificou,
tipificou todo um conjunto de acções ou omissões voluntárias, considerado nocivo, para
o indivíduo e para a sociedade, no espaço e no tempo.

O crime, como acção humana, é uma resposta normal ou patológica consciente


ou não, de uma determinada personalidade, a uma situação duplamente estimulante, de
cariz intrínseco e extrínseco. O crime é assim. Na personalidade unitária individual e na
ambiental, latu sensu, encontram-se o fundamento etiológico e circunstancial que
condiciona a conduta criminal e a morfologia geral da acção.

Assim como "não há doenças, há doentes" significa que a doença é um episódio


de carácter individual, que não se repete exactamente do mesmo modo noutro doente,
também "não há crimes, há criminosos".

Para compreender o crime temos que aprofundar o estudo da personalidade do


autor.

Não é possível valorizar um acto apenas pelo seu exame, por mais típico que
aquele seja, sem um pormenorizado estudo das causas, motivos e circunstâncias que
moveram a vontade, sem uma análise da intencionalidade que impulsionou o seu autor.

Deduzir a intenção, pelo estudo externo do fenómeno, poderia conduzir-nos a


erros grosseiros. É por isso que ao discernir sobre a intenção de matar, o nível
conclusivo deve ser prudente, pois o fenómeno é essencialmente subjectivo.

A "tendência criminal" não é um estado ou fase final, mas, antes pelo contrário
é, um aspecto inicial, susceptível de evolução e desenvolvimento e, portanto, submetido
a influências do meio.

O crime não pode, assim, ser distanciado da perspectiva humana que lhe
representa a estrutura nuclear.

REPENSAR A DELINQUÊNCIA
Sob este título, reuniram-se há dias, na terceira cidade do País, centenas de
pessoas oriundas de todo o espaço nacional.

A feliz iniciativa, que merece um bravo para a Comissão Organizadora, mexeu


no estagnamento. Independentemente da qualidade das intervenções, reconhecendo-se a
dificuldade de comunicar em áreas tão sensíveis como a delinquência, na qual
potencialmente todos somos actores, como protagonistas ou vítimas, o saldo foi
positivo. Pela troca de impressões, nos corredores, mais do que no palco, descobrindo
que descoordenadamente, muitos fazem o mesmo que outros, sem o saberem.

O delinquente foi o fulcro da temática, sem contudo ter sido esquecida a vítima.

116
J. Pinto da Costa

E ainda bem, porquanto, embora na Idade Média, a vítima tivesse uma


importância fulcral no fenómeno criminal, tal relevância esmoreceu posteriormente. A
compreensão para a vítima chegou a ser muitas vezes maior do que a falta cometida.

O aumento do poder do Estado, aos poucos, reduziu a vítima ao papel de


testemunha, constituindo a reparação da vítima sobretudo na punição do culpado.

Após longa caminhada, atingiu-se nos últimos anos uma perspectiva


vitimológica que se contrapõe aos ditos modelo médico e modelo criminológico, este
baseado no estudo da norma moral, social e jurídica, e aquele baseado no estudo da
personalidade do doente.

Em Portugal, a recém-criada Associação de Apoio à Vítima, aliada ao Instituto


de Reinserção Social, são fulcrais na reflexão científica da delinquência.

O delinquente é uma pessoa humana.

Ao tentar compreender a violência humana, hiper-agressiva, dos caídos nas


malhas da Justiça, é oportuna uma reflexão de nível biológico

Assim, a luliberina no hipotálamo do rato desencadeia a sequência completa do


seu comportamento amoroso; a saciedade sexual resultaria da acção inibidora da
libertação maciça de endorfinas no hipotálamo; a injecção destas neste provoca no rato
um comportamento de ingestão de alimentos; a sede excessiva nas hemorragias à devida
à libertação de angiotensina, a qual injectada no cérebro do rato, provoca imediatamente
um comportamento de beber; a injecção de ocitocina nos ventrículos cerebrais de rata,
provoca, em escassos minutos um comportamento material.

Recorda-se que a lagosta embora não tenha cérebro, ao ser injectada com
serotonina desencadeia uma postura característica do macho amoroso enquanto a
injecção de octopamina provoca a postura inversa.

Uma injecção de vasopressiva no hipotálamo do hamster provoca uma


reacção característica, levando a esfregar-se convulsivamente nas paredes da jaula.

É difícil analisar as diferentes fases do comportamento do homem criminoso


porque o modelo é metafórico, irreal, dependente de codificação social, com o crime, o
acto praticado, o incesto já foi crime, o adultério também, hoje não.

A agressividade é uma componente humana.

A supressão dos comportamentos ditos agressivos talvez seja ainda mais


espectacular do que a sua presença.

O hindu que, através do yoga e doutros meios, modela o seu comportamento, ao


ponto de suster enterrada a cabeça na areia durante uma hora, impressiona mais do que
aquele que reage agressivamente quando lhe pretendem meter a cabeça na areia.

117
J. Pinto da Costa

A agressividade e a violência estão estreitamente relacionadas com a fome, a


sede, a cólera, a alegria, cujo desenvolvimento se processa segundo uma sequência
invariável no que toca ao seu carácter explosivo, invasor e hegemónico.

O que caracteriza um comportamento pré-criminal é o estado de não necessidade


de cumprimento, o que leva a uma inaceitação de qualquer norma, o que origina uma
insubmissão genérica, que muitas vezes não tem grande repercussão prática porque tais
comportamentos não chegam às malhas da justiça, como cuspir na rua, ou por exemplo,
levar um cinzeiro do café.

Apesar de conservar a inteligência, muitas vezes de nível superior ao normal, o


delinquente é transformado pela ausência irredutível de um comportamento insubmisso
a qualquer disciplina indispensável à vida social na qual se encontra inserido
(não-desejo mais forte do que o desejo, anulação da necessidade, recusa de conhecer a
sua desinserção, receio obsessivo do ordenamento social), como exemplo passional
negativo que deixa a razão intacta, mas incapaz de contornar o obstáculo passional.

É inegável a importância dos factores sócio-afectivos, nomeadamente o papel da


família ou do grupo na génese da tendência criminal.

Mas temos dúvidas quanto à possibilidade, para além do plano teórico, da


existência de algum elemento de natureza bioquímica de actuação cerebral, para
determinadas reacções comportamentais, digamos para certos comportamentos
desviantes, mais ou menos esteriotipados.

Isto leva-nos a reflectir na questão de todos os condicionamentos sociais e


culturais que rodeiam a organizam a violência no homem serem de certa maneira
anulados por uma ausência fundamental do comportamento.

VITIMOLOGIA
Uma das grandes vitórias desta ciência, em termos de facilidade de penetração,
deve-se à simplicidade da palavra vitimologia. Ela é de tal modo forte que antes de se
saber o que é, já se conhece que é o estudo das vítimas.

Deve-se a Hans von Hentig (1948) a primazia de ter isolado o papel da vítima na
acção criminal. Poucos anos depois, Ellemberg (1959) sublinhava que a vítima e o
criminoso constituem uma dupla na qual uma das partes é feita à medida da outra, de tal
modo que, por uma, deduzia-se a personalidade da outra.

Em 1956, Benjamim Mendelsohn escreveu que o complexo criminológico era


constituído pela vítima e pelo criminoso. Este israelita, que participou no Simpósio
Internacional, em Muenster (Alemanha), em 1979, teve preponderância no
desenvolvimento da ciência vitimológica que fundamentou a criação da Associação
Mundial de Vitimologia.

118
J. Pinto da Costa

Se, etimologicamente, é evidente o sentido desta ciência, como estudo das


vítimas, já é mais difícil precisar o seu conceito. Muito restritivo para uns, a nível
criminal, seria alargado sem fronteiras, para outros ao ruído, à poluição, ao infortúnio,
ao desemprego e ao fim e ao cabo a todo o negativismo humano.

Vítimas de quê? De tudo, sobretudo da impreparação e da menor astúcia.

A vitimologia imprimiu à criminologia um carácter designadamente marcado de


extensão ao estudo da vítima e não apenas à questão limitada aos autores dos crimes e
às normas e leis definidoras do crime. O estudo do criminoso recebeu atenção há muito
tempo.

A criminologia, palavra inicialmente empregada por Garófalo, é o estudo do


delito no seu aspecto jurídico e social e o estudo do delinquente no aspecto médico e
biológico. Encarada numa óptica médico-legal, ela não é apenas o estudo científico dos
autores dos crimes, nem tão pouco e ainda do aspecto normativo e das leis que
determinam o crime, mas também é a ciência da vítima.

A vitimologia surge, em plena pujança de interesse científico, como um


mecanismo de compensação, retomando a vítima o seu lugar como elemento tripartido
do fenómeno criminal.

Embora admitindo a vitimologia em sentido lato, e porque o óptimo é inimigo


do bom, deve dar-se-lhe um âmbito mais limitado, mais concreto inicialmente de nível
criminal, sem enjeitar as outras perspectivas.

Entre nós a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima veio ocupar um espaço


vazio, até então tenuemente aflorado numa breve referência de reparação à vítima de
crimes, nos Códigos Penais mais recentes, contrapondo-se à clássica penalização do
autor.

A vítima não tem sexo, mas a mulher é mais vítima que o homem nas sociedades
machistas, evidentemente, embora também haja homens vítimas de mulheres. A mulher
é mais protegida, na ideia de que é mais fraca, mais provavelmente vítima.

A princípio a vítima era considerada como uma espécie de negativo fotográfico


da personalidade criminal.

É curioso sublinhar que a vítima foi de importância fulcral no fenómeno crime,


na Idade Média. Sobrepondo-se à punição, a compensação era, em regra, cinco vezes
maior do que a falta cometida. A perda do lugar cimeiro da vítima no aparelho
judiciário decorreu do aumento do poder do Estado que, aos poucos, colocou a vítima
na situação de testemunha, contribuindo para uma justiça fundamentalmente virada para
a reparação sobretudo pela punição do culpado. O facto dela ter sido despersonalizada
no processo judiciário, e reduzida a sua posição a simples testemunha, tem explicação
nos sacrifícios e ritos das sociedades primitivas, os quais têm por função essencial a
neutralização do espírito e da prática da vingança. Esta, com efeito, impõe-se por

119
J. Pinto da Costa

motivo do horror causado pelo homicídio, isto é, para impedir futuros assassínios, o
dever de vingança surge como necessidade.

É para notar que nas sociedades primitivas não há diferença entre o acto que a
vingança pune e a própria vingança. Esta implica represálias. O crime que a vingança
pune já não é o primeiro. Ele seria já vingança dum crime anterior e assim
sucessivamente. É precisamente devido a um círculo vicioso de vingança que o homem
primitivo tenta exorcizar, pelos ritos e por sacrifícios complexos, impondo terror
permanente na vida quotidiana das tribos. Foi para quebrar este círculo vicioso que as
sociedades saídas do estado tribal desenvolveram o sistema judiciário que aliás não
suprimiu a vingança. Este sistema limita-a de facto a represálias únicas, cujo exercício é
confiado a uma autoridade soberana e especializada no seu domínio. As decisões da
autoridade judiciária revestem assim o significado da última palavra em vingança.

A vingança pública das sociedades desenvolvidas substituiu a vingança privada


das sociedades primitivas, ficando assim afastado o perigo de escalada. É,
possivelmente, por este motivo que o ritual e o sacrifício desempenham um papel tão
importante, enquanto nas sociedades secularizadas eles se encontram em evidente
declínio.

Nas sociedades primitivas, os males que podem advir da violência são de tal
modo gravosos e as possibilidades de cura tão incertas, que o fulcro da questão
centrava-se essencialmente na prevenção. A questão preventiva em vitimologia foi,
acima de tudo, de ordem religiosa. Em certa medida, a violência e o sagrado são
inseparáveis. O homem utilizou meios diversos para tentar impedir a interminável
sucessão de vingança. Inicialmente destacaram-se os meios preventivos relacionados
com desvios de sacrifício do espírito de vingança, não prestando atenção ao culpado
mas sim às vítimas não vingadas, já que é delas que resultará o perigo mais imediato.

A necessidade de dar uma satisfação conveniente a estas vítimas, para apaziguar


o seu desejo de vingança, sem excitar outros desejos, constitui a essência da justiça
primitiva, não se tratando da mera questão do bem e do mal nem tão pouco da obrigação
de respeitar uma justiça abstracta. Trata-se de preservar a segurança do grupo, evitando
a todo o custo a vingança.

É para notar que os homens apenas se libertaram do terrível dever de vingança


quando a intervenção judiciária se tornou constrangedora, havendo pois uma ruptura
entre a vingança privada e a vingança pública institucionalizada.

O sistema judiciário funcionou tanto melhor quanto mais as pessoas


desconheciam o seu significado. Ele girava à volta do culpado e do princípio da
culpabilidade, sempre relacionado com a retribuição, a qual assentava no princípio da
Justiça abstracta que os homens seriam obrigados a respeitar. Assim, os processos
actuantes envolviam-se em mistérios, à medida que alcançavam eficiência e se esbatia a
sua primeira razão de ser que foi a de moderar a vingança. É óbvio que quanto mais a
retribuição judiciária se foi impondo à presunção religiosa, mais o desconhecimento que

120
J. Pinto da Costa

protegeu a instituição do sacrifício perdeu força, resultando envolvido pela organização


judiciária. É possível que o foco de atenção se tenha desviado do culpado porque o
homem temia alimentar uma vingança. O sistema judiciário racionalizou-a e manipula-a
sem aquele perigo, convertendo-a numa técnica eficaz de tratamento e prevenção da
violência. Sublinha-se que é pela independência do sistema judiciário que se concretiza
a garantia da limitação da vingança privada, garantindo a segurança de todos.

Há uma estreita identidade entre vingança, sacrifício e penalidade judiciária. A


não aceitação deste princípio pode levar ao recrudescimento da vingança privada por
recusa da autoridade da vingança pública. A vingança particular já existente em casos
mais ou menos isolados, generalizando-se, institui um regime de terror e conduz ao fim
de uma civilização.

A vitimologia deve colocar a vítima na sua dimensão própria do fenómeno


criminal, salvaguardando-se a possibilidade de, por excesso de zelo, ela poder vir a ser o
eclodir do fim de estados de direito.

O criminoso foi estudado sob múltiplos parâmetros. O mesmo estudo constitui o


objecto da vitimologia, incluindo a idade, o sexo, a profissão, o grupo social e o grupo
familiar entre muitos outros aspectos. Em princípio, a juventude e a debilidade
económica são dois factores importantes de vitimização. Quando falamos em
vitimização subentende-se a sua variabilidade em face da gravidade das consequências
temporárias e permanentes, bem como o melhor conhecimento da vitimologia feminina,
fruto da divulgação de organizações feministas sobre o assunto, bem como dos velhos
através de estudos sobre a terceira idade.

Não deve esquecer-se que na vitimologia se englobam também as vítimas de


fraudes, de roubos, de abusos de confiança, da corrupção dos serviços públicos, etc.

Fiquemos por aqui, hoje, à espera de mais espaço.

PASSADO E PRESENTE DAS VÍTIMAS


A criminologia tem-se ocupado do crime numa perspectiva multifactorial
(causas, formas, caracteres delinquências, etc.). Sublinha-se a importância de César
Lombroso (1836-1909), professor de medicina legal, cujos estudos determinaram uma
nova visão do conceito do crime e do criminoso com notável repercussão sobre a
legislação penal de toda a Europa, ficando a dever-se-lhe, em grande parte, os
fundamentos da moderna profilaxia da delinquência. Mário Carrara, que foi discípulo e
genro de Lombroso e seu sucessor na cátedra de Medicina Legal de Turim, referiu que a
antropologia criminal proporcionou os dados naturais para uma profunda reforma do
direito penal que aplicou o método experimental à ciência dos delitos e das penas e, que,
por isso, se chamou Escola Positiva de Direito Criminal. Henrique Ferri (1878)
proclamava as teorias de Lombroso no seu "I nuovi orizzonti del Diritto e della

121
J. Pinto da Costa

Procedura Penale", imprimindo-lhe um cunho de investigação psicológica, dando-lhe o


nome de sociologia criminal.

Em contrapartida, Garófalo estudou as implicações fundamentais técnicas


jurídicas da escola de Lombroso. Este e a sua escola foram atacados de pretender
substituir, por meio de antropologia criminal, o estudo do delito pelo do delinquente.
Mário Carrara (1901) referiu que a antropologia criminal, em vez de considerar o delito
como facto jurídico, pretendeu encará-lo como fenómeno natural e social, examinando
primeiro a pessoa que comete o crime e o ambiente em que o faz, para em seguida
apreciar juridicamente o delito praticado não como ente abstracto e existente por si, mas
como índice e manifestação da estrutura orgânica e psíquica do seu autor. Sem nos
alongarmos sobre o assunto, apenas se pretendeu focar a profícua e numerosa
investigação relativamente à figura do criminoso e o insignificante tratamento dedicado
à vítima.

A vitimologia não é referenciada apenas pela divisão numérica das vítimas. Há


que atender a circunstâncias particulares muito importantes para a análise dos resultados
encontrados.

Às vezes confunde-se vitimologia com vítimas de atentados sexuais. Isto tem a


sua explicação. Este sector da vitimologia tem tido uma grande difusão por parte dos
movimentos feministas da mais diversa índole espalhados pelos Estados Unidos, sendo
para notar que nesse país a maneira especial, como é encarada a sexologia, com seus
tabus, motiva uma importância muito maior a estas questões do que na Europa onde a
liberdade sexual de que as pessoas desfrutam ultrapassa aqueles problemas.

A APAV (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) é o espaço onde recorrem,


com acolhimento muito humanizado, as vítimas de crimes e de um modo geral as
vítimas da desorganização social que não tem resposta adequada.

A APAV inventa soluções, promove a esperança e conta com um regime de


voluntariado, angariando preciosa colaboração dos que fazem as coisas com brilho nos
olhos.

A vítima é encarada como uma parte do fenómeno criminal considerado na sua


totalidade, incluindo a importância da infracção jurídica no seu conjunto e o acto social
e a pessoa humana no seu perfil de agressora e de vítima. Este modo de ver é,
basicamente, uma situação de compromisso entre o Direito e a Medicina.

A vitimologia, na afirmação de ciência independente, não deixa de ser uma


ciência multidisciplinar.

A pesquisa vitimológica respeita, obviamente, às relações entre as vítimas e os


agressores. A vitimologia deve reportar-se ainda aos delitos sem vítimas como, por
exemplo, a questões relativas à prostituição, ao jogo e a certo tipo de actividade
comercial.

122
J. Pinto da Costa

O risco de cada um vir a ser vítima pode ser avaliado com uma certa segurança.
Para isso deverão fomentar-se estudos epidemiológicos para certos tipos de pessoas e
para diversas categorias de grupos sociais.

A investigação vitimológica numa sociedade é um indicador das características


da criminalidade, mostrando certos aspectos que nem sempre são facilmente evidentes.

Em 1975, no Australian Bureau of Statistics, iniciou-se uma pesquisa sobre um


levantamento nacional sobre vítimas de crime. Foram entrevistadas 18694 pessoas em
toda a Austrália. As perguntas eram as seguintes: se você for sozinho, a pé, na sua
vizinhança à noite, sentir-se-ia muito seguro, mais ou menos seguro, um pouco inseguro
ou muito inseguro? A partir destas informações tentou-se identificar as regiões da
comunidade australiana em que havia mais medo do crime. Apurou-se que os
australianos, geralmente, não têm muito medo. Concluiu-se que só em grupos isolados é
que o medo do crime era uma preocupação real. As mulheres constituem o grupo maior
e mais preocupado. Também particularmente susceptíveis ao medo do crime nas ruas
são as pessoas idosas, viúvos, desempregados e pobres e os habitantes das grandes
cidades.

É por meio de inquéritos bem elaborados que se pode conhecer o grau de


vulnerabilidade de certos estratos sociais. O perfil da vítima, delineado pelo inquérito, é,
não raras vezes, de indivíduo aterrorizado, ressentido da ofensa recebida, possuído de
sentimento de impotência em face do desencadear da violência impune da qual foi
vítima.

A vitimologia permite compreender, do ponto de vista psico-biológico, certos


excessos de zelo às vezes produzidos em legítima defesa. A exaustão do sistema
nervoso, conduzindo a estreitamento da consciência, é responsável por alterações do
comportamento de natureza variada. O sentimento de impotência é a base do desespero,
o qual conduz à acção irracional atávica de vingança privada.

O estudo sistemático das vítimas dos roubos permite a sua profilaxia, mercê da
adequada informação dos meios policiais. As próprias companhias seguradoras muito
têm a lucrar com as prospecções levadas a cabo, em populações de roubados
suficientemente válidas.

É óbvio que a administração da Justiça carece de análises de resultados


dimanados das comunidades sobre as quais recai a própria administração.

Há uma perspectiva vitimológica, dos últimos anos, que se contrapõe aos ditos
modelo médico e modelo criminológico, este baseado no estudo da norma moral, social
e jurídica, e aquele baseado no estudo da personalidade do delinquente.

A orientação da Justiça, naturalmente influenciada pelo cariz científico das


diferentes escolas variáveis no tempo, encontrará o melhor equilíbrio, aproveitando de
cada uma delas o que mais facilmente traduz o modo de viver em sociedade, consoante
o tempo e o espaço.

123
J. Pinto da Costa

Em regra, há uma grande aceitação para a compensação das vítimas,


reconhecendo-se o princípio da responsabilidade financeira do poder público em relação
às vítimas individuais.

Os regimes de compensação, a cargo do Estado, são, por vezes, morosos e pouco


operantes, em face da multiplicidade de demandas para resolver.

Augura-se que sendo as vítimas apoiadas pela APAV e o Estado sensibilizado


pelas intervenções desta benéfica associação, a reparação surja no mais curto período de
tempo e na justa medida da melhor valorização dos critérios humano e jurídico.

CRIMINOLOGIA
Ao falar de criminologia, salta, desde logo, a lembrança de César Lombroso
(1836-1909), professor de medicina legal, em Turim, cujos estudos proporcionaram
uma nova concepção de crime e de criminoso, repercutindo-se na legislação penal de
toda a Europa. Dimensionada de modo muito diversificado, numa perspectiva
multifactorial no espaço e no tempo, ela tem abarcado as causas, formas, caracteres
delinquenciais e muitos outros aspectos da criminalidade. Não é de hoje a discussão
sobre o seu conceito. No fim do século passado, Ferri (1878) impôs-lhe um campo de
investigação psicológica, chamando-lhe sociologia criminal. O estudo do delito era
substituído pelo estudo do delinquente. A criminologia, designação original de
Garófalo, é o estudo do delito no seu aspecto jurídico e social, do delinquente no sentido
médico e biológico, e da vítima.

Numa óptica médico-legal, a criminologia não é somente o estudo científico dos


autores dos crimes, nem sequer o aspecto normativo das leis que os determinam mas é
ainda a vertente vitimológica. Há assim um aspecto tripartido no qual o criminoso surge
em primeiro plano, a vítima como seu alvo, e a perspectiva teórica, jurídica, criminal,
tenta compreender e dar enquadramento normativo.

O ser humano constitui preocupação médica e jurídica, em múltiplos aspectos,


mormente na criminalidade, com dupla atenção no criminoso e na vítima. O indivíduo
violento, agressivo, caído nas malhas da Justiça, é uma espécie de modelo supervivente
do renegado criminoso nato de Lombroso.

No aspecto biológico da génese de certas acções humanas, criminais ou não, está


cada vez melhor estabelecida a sua dependência do funcionamento do diencéfalo, o
qual, quando estimulado intensamente, pode ocasionar descomedida sintomatologia
psicomotora dada a estreita relação daquele com funções corticais e neuro-endócrinas
em ligação com a vida afectiva e os instintos.

As disfunções entre a corticalidade e a subcorticalidade, entre o psiquismo


profundo e o cortical, constituem um dos factores que maior influência têm na conduta
individual.

124
J. Pinto da Costa

O melhor conhecimento do sistema nervoso constitui uma base sólida para a


compreensão etiológica da conduta, das determinações volitivas e, em termos práticos,
da criminogénese.

Certas lesões morfológicas corticais, sobretudo nos lobos frontais, estão


relacionadas com alterações funcionais do psiquismo superior como a vontade, a
consciência e a lógica, entre outras. É para notar que a relação entre lesões cerebrais e
criminalidade não se refere apenas à gravidade e à sua extensão. As pequenas e ligeiras
lesões decorrentes de asfixia neo-natal ou de outra etiologia, como os traumatismos
ligeiros, estão na base de certas alterações do comportamento. São clássicas as
referências da ligação entre criminalidade e endocrinologia. O hipertiroidismo e o
hiper-supra-renalismo seriam mais encontrados nos homicidas e nos autores de crimes
violentos. As disfunções das gónadas seriam frequentes nos crimes sexuais.

O delito é a fase de final de um processo biológico mais ou menos longo da


personalidade. Assim, como a estrutura normal desta, a componente genética e
ambiental são fundamentais, o mesmo surgindo na criminogénese.

Durante largos anos, o delinquente, psiquicamente são, foi, para o Direito Penal,
um mero elemento do processo delitivo, espécie de objecto muito secundário e quase
marginal a não ser para receber a pena. Era assim que o Direito Penal, numa perspectiva
antropológica criminal e patológica, preferia os doentes psíquicos. Modernamente, o
estudo da personalidade do delinquente assume um carácter fundamental. A
criminalidade tem mais sentido quando os aspectos médicos e jurídicos são encarados
como fenómenos biológicos da pessoa humana na sua totalidade.

Ao discernir sobre o enquadramento da criminologia na medicina legal, pode


pôr-se a questão de se realmente ela não estará já compreendida na perspectiva dos
serviços actualmente existentes nos Institutos de Medicina Legal designadamente de
Tanatologia (autópsias médico-legais obviamente relativas a crimes e outras), de Clínica
Médico-Legal (exames no vivo por motivo de lesões em sentido genérico,
compreendendo as ofensas corporais e outras de nível criminal, sexologia forense, sem
excluir a problemática civil e laboral), de Toxicologia Forense (crimes, doenças
profissionais e outras questões das drogas), de Psiquiatria Forense (que além da criminal
inclui toda a avaliação do comportamento humano perante a Justiça), de Biologia
Forense (que além da investigação laboratorial para o diagnóstico criminal inclui
grandemente as análises de investigação biológica da filiação e da identificação humana
de vestígios sem qualquer relação criminal) e de Anatomia Patológica e Histopatologia
que (entre os múltiplos exames efectuados para diagnóstico complementar de autópsias)
tanto interfere no diagnóstico de situações criminais como no diagnóstico da morte em
resultado de acidente de trabalho ou de causa natural, o mesmo se dizendo do acidente
de viação ou de outras situações do género.

A medicina legal deixou de ser apenas a medicina dos tiros e das facadas, o que
não significa que a criminologia tenha desaparecido dela. Antes pelo contrário, esta
encontra na medicina legal o substracto necessário e indispensável.

125
J. Pinto da Costa

Reduzir a criminologia ao fenómeno criminal é puro disparate.

A criminalidade no âmbito de aplicação de conhecimentos médico-biológicos ao


direito expressa-se no campo médico-legal do crime pela criminologia.

O que é então a criminologia?

Rebuscando no passado os conceitos de eminentes tratadistas, a noção é quase


intuitiva.

A criminalidade é a filha da miséria e surge como uma reacção biológica de


defesa da pessoa humana subalimentada e desesperada.

Mas há outro tipo de criminalidade, tocando estratos sócio-culturais diferentes


(colarinhos brancos e o chamado crime organizado). Enquanto o crime de colarinho
branco é praticado pelas sociedades comerciais por violação sistemática das leis da
actividade económica, com o fito do lucro, o crime organizado visa preencher um
espaço que a sociedade não consegue resolver pelas vias legais como, por exemplo, a
prostituição, a venda de armas, de drogas, e o jogo ilícito. Deve incluir-se ainda na
criminalidade, em termos humanos, toda uma actividade de nível político
revolucionário, abrangendo a violência em múltiplas formas, os desvios de aviões e a
questão dos reféns.

A sociedade actual, na dita civilização ocidental, não oferece aos jovens, para
quem tudo deveria ser empenho, ideal, paixão e mística, uma cultura susceptível de
encaminhar as suas energias e o seu dinamismo para níveis superiores.

É muito possível que a criminalidade juvenil actual, a nível de bandos, furto de


automóveis e violações colectivas, não se afaste muito do comportamento dos jovens da
nobreza medieval que se divertiam a perseguir os camponeses e a violar as suas
mulheres.

A criminalidade mais ligada ao subdesenvolvimento mantém-se nas sociedades


muito desenvolvidas, sendo para notar que os crimes de colarinho branco e o crime
organizado expandem-se nos países desenvolvidos com a delinquência de negócios e a
exploração da pornografia e do erotismo. Este, em última análise a nível político,
produz um efeito de imitação e de contágio hierárquico.

Não admira, pelo exposto, a violência dos jovens e o consumo de drogas, sendo
muito compreensível que a criminalidade revista um carácter lúdico em alguns dos seus
aspectos. A violência dos jovens não deverá surpreender, bem como o recurso aos
estupefacientes, uma vez que ambas as reacções têm natureza idêntica. Apenas se
distinguem pelas características pessoais e temperamentais de cada jovem.

Na Europa, a criminologia tem o seu cariz nitidamente médico-legal, como


transcorre em reuniões internacionais mediante as múltiplas intervenções de países da
União e inclusive de outros do velho Continente. É bom que a medicina legal

126
J. Pinto da Costa

portuguesa não esqueça isto e que se integre na Europa na qual já se encontra


teoricamente abrangida. Uma crise temporária necessariamente passageira não significa
a demissão da competência científica do estudo da pessoa humana na sua relação com o
fenómeno criminal.

O delinquente português, afastado de tipos estrangeiros deve ser estudado


mediante a realidade portuguesa, perspectivada no sentido médico-legal para que possa
ser melhor compreendido e posteriormente minorada a quantidade da delinquência.

Seria interessante que os Institutos de Criminologia, actualmente não funcionais,


fossem entregues aos respectivos Institutos de Medicina Legal, para os ressuscitar na
dimensão científica que outrora possuíram para glória da ciência, em Portugal,
projectada no estrangeiro no âmbito médico-legal, na concepção ao tempo dominante.

O CRIME
Há amnistias. Há criminosos que saem das cadeias, em liberdade. Há a
criminologia na multiplicidade de conceitos jurídicos e médico-biológicos. Há o crime.
Quid juris?

São tantas as definições de crime, de pessoas ilustres, que não cabem nestas
linhas. Thomas Hobes (1588-1679) define-o como o pecado que comete todo aquele
que por actos ou palavras faz o que a lei proíbe ou se abstém de fazer o que ela ordena.
Segundo o Código Penal espanhol (Artº 6º ), são crimes as infracções que a lei castiga
com penas graves. Em França, as infracções compreendem as contravenções, os delitos
e os crimes. Estes são infracções que a lei pune com penas "aflitivas e infamantes".

Crime é a violação da norma como contradição entre o comportamento do ser


humano e a ordem normativa do que deve ser. Ou, como refere o Código de Processo
Penal (Artº 1º), o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de
uma pena ou de uma medida de segurança criminais. Na maior simplicidade, digamos
que crime é uma coisa que vem no Código Penal. Daqui infere-se que acabaríamos com
os crimes se o rasgássemos.

O crime é tanto mais crime consoante maior é a pena aplicada. A avaliar pela
pena (ter de trabalhar, arrastando consigo o pecado original), os primeiros criminosos
teriam sido Adão e Eva. Na base do homicídio, crime paradigmático, a originalidade
caberia a Caim que matou seu irmão Abel. Em boa verdade, desconhecem-se dados
históricos do crime. Nas sociedades primitivas, encontram-se violadores da justiça,
mesmo antes da existência dos códigos. O homicídio é referenciado nos documentos
dos primórdios da humanidade.

Darwin, notabilíssima figura da cultura, proporcionou, mediante a sua noção de


horda primitiva, a clássica hipótese do primeiro crime que Freud nos apresenta na figura

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J. Pinto da Costa

de um pai violento, ciumento, que guarda para si todas as fêmeas e expulsa os filhos
adolescentes.

Vale a pena recordar como Sigmund Freud, para muitos apenas referenciado
como o pai da psicanálise, descreve o crime. Conta-nos (Tabu e ambivalência dos
sentimentos, 1903)) que, um dia, os irmãos expulsos reuniram-se, mataram e comeram o
pai, o que pôs fim à horda paterna. Uma vez reunidos ousaram e puderam realizar o que
cada um deles, individualmente, teria sido incapaz de fazer. O progenitor violento era,
com certeza, o modelo invejado e temido por cada um dos membros desta associação
fraterna. Ora, através do acto de absorção, realizaram a sua identificação com ele,
apropriando-se cada um deles duma parte da sua força. A refeição totémica, que é talvez
a primordial festa da humanidade, seria a reprodução e como que a festa comemorativa
deste acto memorável e criminoso que serviu de ponto de partida para tantas coisas:
organizações sociais, restrições morais e religião.

O crime é uma variável, no espaço e no tempo. As leis mudam, os crimes


desaparecem. Contudo, é muito mais fácil deitar fora uma coisa velha, do que
desfazermo-nos duma verdade. O criminoso é um fazedor de crimes não facilmente
ectógeno (capaz de viver independentemente) e daí a existência de bandos. O crime
funciona como válvula de segurança social. A condenação de uma pessoa equivale à
absolvição da outra em litígio. Do primarismo de que quando se é culpado é-se punido,
brota, espontaneamente, que quando não se é punido, está-se inocente. O crime é assim
visto por óculos diferentes, quando o criminoso é observado. A opinião pública é
favorável à recaptura do evadido da cadeia e a expressão caça ao criminoso traduz o
estatuto de fera que lhe é atribuído. Como animal, até poderá ser abatido, legitimando os
tiros contra os fugitivos. Na mesma senda se compreende o desejo da multidão
favorável à pena de morte para com os autores dos ditos atentados aos costumes, que,
entre nós, levam agora o nome de delitos sexuais. O fazedor de crimes é cada vez mais
o bode expiatório de uma culpabilidade colectiva e, quanto mais os contornos desta são
pouco nítidos, mais importante parece ser a descarga do seu peso sobre indivíduos
isolados e facilmente reconhecíveis.

A biologia do crime é algo controversa. Nos anos 60, um facto científico quase
renasceu o criminoso nato de Lombroso, agora num ângulo diferente. Três
investigadoras do Medical Research Council, de Edimburgo, as doutoras Patricia
Jacobs, M. Brunton e M.M. Melville publicaram, em 1965, um trabalho sobre conduta
agressiva, subnormalidade mental e cromossoma XYY (Agressive behaviour mental
and subnormality and the XYY male). Após a determinação do cariótipo em
delinquentes perigosos e anormais detidos em estabelecimentos prisionais, encontraram
uma percentagem de 4,56% de homens portadores de um cromossoma Y
supranumerário, coincidindo com a grande estatura e agressividade deles.

Uns anos antes (1959), Patricia Jacobs chamou superfêmea a uma mulher que
tinha uma trissosmia XXX. Por analogia, designou os homens XYY superhomens
agressivos, significando a sua elevada perigosidade e a conveniência de severas medidas

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J. Pinto da Costa

de segurança. Há que ponderar devidamente as ilações decorrentes de tais achados. É


facto que existem famílias nas quais se encontram delinquentes em cada geração, mas
tal não significa mais do que a preponderância de um certo tipo de personalidade
anormal, com maior tendência para delinquir que se herda, mas sim um determinado
tipo de personalidade mais propícia para cair na alçada da lei. Há criminosos que não se
cansam de delinquir. É evidente que o crime não se herda, mas as qualidades biológicas
individuais são determinantes indiscutíveis da conduta. As dúvidas levantadas pela
descoberta de Jacobs e colaboradoras levaram outros investigadores a rever a situação,
com destaque para os trabalhos de Dérobert, Lejeune e Lafon, em 1969. Estudos de
Price e Whatmore, em 1967, indicam, comparativamente, as percentagens de crimes em
delinquentes com carótipo XYY e delinquentes de carótipo normal XY,
respectivamente de 9% e 7,70% nos delitos contra a propriedade e de 0,90% e 2,60%
nos delitos contra as pessoas.

O Professor Léon Dérobert, titular de Medicina Legal na Faculdade de Medicina


de Paris, a propósito de um crime ocorrido naquela cidade, em 1965, estabeleceu a sábia
doutrina de que a comprovação de um cromossoma Y supranumerário não permite
concluir, por essa única circunstância, pela incapacidade para delinquir.

Interpretação curiosa sobre o crime é aquela que relaciona os relatos de situações


criminais com a pessoa que os lê, ouve ou vê noticiados. Parece demonstrado que quem
procura novidades e acontecimentos pára, lendo pormenorizadamente este ou aquele
crime, e tanto mais, consoante a violência que o acompanhou. Dizem alguns que esta
predilecção pela actualidade criminal indica que a leitura surge como um pretexto para
realizar, com boa consciência e sem perigo, mediante a sua imaginação, os homicídios,
as violações e as torturas que, pelos costumes, timidez ou mero recato, alguém não se
atreve a cometer na realidade. É habitualmente admitido que, na comunicação social,
uma secção do género permite uma realização imaginária e simbólica de perversões
inconfessáveis e que a sua leitura desencadeia um processo psicológico único,
consistindo na identificação de quem lê e de quem mata.

Toleramos que um jovem na idade da prestação do serviço militar aguarde o


comboio no fim-de-semana, lendo jornais do género. A nossa complacência não é
democraticamente extensível se for um adulto a fazê-lo. Parece irrefutável que embora
ávida de uma minoria, a imprensa sensacionalista goza de má reputação como, aliás, os
que a lêem. Com boa ou má reputação, o facto é que, quanto pior, mais se lê, às claras
ou às escondidas.

É possível que tudo isto seja demasiado simplista. Embora se admita que a
leitura de um semelhante tipo de literatura não seja totalmente inocente, é, contudo,
errado explicar, como motivação de tal atracção somente o desejo de matar ou torturar
em sonhos. Na hipótese de haver um processo de identificação, não é obrigatório que
ele se faça para com a figura do homicida. Pode relacionar-se com a vítima ou inclusive
com o polícia que conduz a investigação.

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J. Pinto da Costa

Merece uma breve referência o crime de guerra. Falar deste é puro eufemismo,
como se a guerra moderna pudesse ser combatida pela dissimulação ou a falsificação de
um resultado: o do imaginável. O crime, tornado total, aniquila a concepção que dele se
pode ter. Tal não é mais que a impotência das nossas concepções em face da situação
nuclear. São absurdas as queixas contra o prosseguimento das experiências nucleares,
pese a quem pesar. Uma decisão política que suprimisse todas as outras decisões do
mesmo género deixaria de ser uma decisão política.

A responsabilidade, no sentido convencional da palavra, extingue-se para um


acto que não dá lugar a perguntas. Não esqueçamos que o ser humano pode ser um
criminoso, mas é sobretudo um ser racional. O crime varia, faz e desfaz criminosos. Os
bilhardões já o foram (Artº 256º Código Penal, 1886). Hoje não.

O ex-l Presidente da República da África do Sul, Nelson Mandeça, foi criminoso


durante mais de vinte e cinco anos, encarcerado no seu próprio país. Continua idêntico a
ele mesmo e é o supremo magistrado da nação que o prendeu. Também o Exmº Senhor
Doutor Mário Soares foi condenado e preso pela justiça oficial do seu país. Mudam-se
os tempos, mudam-se as vontades.

Será que na viragem do século os criminosos se estão a tornar inocentes e que,


ao fim e ao cabo, a humanidade caminha para bons pais de família, amigos da natureza
e pessoas normais?

Prouvera a Deus.

RESPONSABILIDADE DOS CRIMINOSOS


Há uma tendência habitual, tão corrente que passou a normal, de defesa de quem
se sente ameaçado. Não será, por isso, de estranhar que alguém a contas com a Justiça,
por um crime cometido e confessado, pretenda que o seu gesto resultou quando estava
fora de si, isto é, marginalmente à sua personalidade. Tão legítimo, como humano, a
pessoa incriminada conseguir alguma atenuação da pena atribuível ao crime de que é
julgado. Já não legítima, e inclusive envolvendo questões éticas e deontológicas, quiçá
responsabilidade criminal, é o facto de sobre o mesmo indivíduo, para o mesmo caso,
contemporaneamente, surgirem duas opiniões, diametralmente opostas de dois clínicos,
exercendo, ocasionalmente, funções de peritos médico-legais. Acontece que na base de
tal discrepância reside o facto essencial de haver uma diferença abismal entre psiquiatria
clínica e psiquiatria forense.

É evidente que, do ponto de vista clínico, quem comete homicídios, e tanto mais
quanto a situação é insólita, não "está bem". Obviamente que, pelo menos, demonstra
uma inadaptação à ordem social pré-estabelecida e codificada em normas. Há uma
grande distância até ao ponto de interferência na conceptualidade da psiquiatria forense
como situação a despenalizar ou pelo menos a atenuar a falta cometida.

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J. Pinto da Costa

O aumento da criminalidade nos últimos anos é uma evidência. Não pode


concluir-se que resulta do acréscimo da população porque tal aumento é percentual.

As condutas delitivas e o nível de delinquência relacionam-se com o


desenvolvimento social porque interferem na estrutura dos padrões de convivência, do
respeito pelas liberdades individuais e colectivas e da estabilidade sócio-económica.

A delinquência é um fenómeno que afecta globalmente a sociedade. Nos últimos


anos as condutas individuais e colectivas têm sido alvo de múltipla diferenciação legal
por influência de ciências como a sociologia, a criminologia, a psicologia e a
psiquiatria. Esta, na forma de psiquiatria forense, tem sido referência habitual para
valorizar situações de nível criminal, para interpretar factos concretos, por vezes
monstruosos e irracionais, enquadrando os seus autores e o estado mental deles. É por
isso que, em face do conhecimento do modo como as pessoas claudicam, pelo menos do
ponto de vista psicológico, importa apreciar os factos, tendo presentes estes e os
intervenientes.

Não é fácil explicar uma conduta anti-normativa, mormente quando os factos


têm características irracionais e incompreensíveis, que habitualmente se traduzem pela
expressão de que "devia estar louco". Nesta expressão, contudo, cabem comportamentos
enquadráveis em alterações psicopatológicas da estrutura da personalidade que não
sendo doença mental propriamente dita a conferir inimputabilidade, justificam o
cometimento de certos crimes, resultantes de estímulos nessas mesmas personalidades.

Por mais estranho e monstruoso que possa ser um crime, não se pode deduzir
pelas características de que o autor deva ter necessariamente alterações psicopatológicas
importantes ou ser considerado doente mental.

A psiquiatria forense encara o criminoso como pessoa humana, com suas


virtudes e defeitos, na sua vulnerabilidade perante as possíveis pressões e seduções
existenciais da vida e do facto de viver. É facto que todos nós integramos e socializamos
as pulsões instintivas, biológicas e psicológicas, de grande intensidade e dinamismo. No
longo processo de desenvolvimento da humanidade fomos socializando-as na medida
em que era necessário para viver em grupo e em sociedade. Por vezes, o esquecimento
de tudo isto explica que, em circunstâncias especiais, as ditas pulsões escapem ao
controlo da racionalidade humana e se expressem de forma brutal. Não quer isto dizer
que o indivíduo não seja responsável criminalmente pelo acto cometido. Não raras
vezes, há discordância entre médicos e juristas, quando estão em jogo os problemas da
mente, porque os conceitos desta, sustentados por uns e por outros, são diferentes.

Quando se trata de definir a responsabilidade do comportamento na prática de


um crime, a divergência é ainda mais evidente. Isto porque ambos partem de conceitos
diversos. Enquanto para o médico, o fenómeno é nitidamente de compreensão biológica,
na perspectiva jurídica, clássica, radical, a mente é dominada pela razão e vontade,
resultando o comportamento de uma intenção conscientemente determinada.

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J. Pinto da Costa

O Direito Penal, como qualquer ciência, tem evoluído, e o caso da


imputabilidade não foge à regra. O aparente diferendo da vertente jurídica e psiquiátrica
do problema agudiza-se quando, para o psiquiatra, o delito pode resultar não de uma
"intenção" consciente determinada, mas de uma manifestação exterior de um distúrbio
psíquico mais profundo, uma indicação de ruptura no sistema de defesa psíquica
adaptativa, estabelecida para equilibrar conflitos internos. O psiquiatra passaria por
cima do delito em si e avaliaria a personalidade total tanto nos seus aspectos conscientes
como inconscientes. Ele reconhece o papel do intelecto, mas daria às emoções e ao
inconsciente um peso maior no equilíbrio de força na vida mental.

A questão da determinação da capacidade de motivação ou de culpabilidade não


é uma questão médica, mas sim estritamente jurídica.

O núcleo da inimputabilidade é constituído pela incapacidade de motivação a


nível individual e pela incapacidade para se motivar pelos critérios normativos.

Nunca poderá falar-se de culpabilidade quando a referida capacidade não chegou


a desenvolver-se por falta de maturidade ou por defeitos psíquicos de qualquer natureza.
Não pode, na perspectiva jurídica, entregar-se a questão da inimputabilidade aos
psiquiatras e aos psicólogos, aguardando o tribunal uma resposta, em plano de
qualidade, como a espera da opinião do cardiologista sobre o funcionamento do
coração, para efeito, por exemplo, duma ordem de despejo.

Não é sem uma certa dificuldade, e exigindo muita prudência simultaneamente,


que no plano jurídico se pode aceitar plenamente a opinião de uma psiquiatria,
contestada, internacionalmente, na forma anti-psiquiátrica.

Para o tribunal seria mais tranquilizador aceitar a verdade científica, da


psiquiatria e da psicologia, como valor indiscutível, mas tal não é possível. O critério do
psiquiatra, ou do psicólogo, expressa pareceres que aplicam conceitos cujo conteúdo é
discutível.

O juiz tem que confrontar-se com a contestação da anti-psiquiatria, segundo a


qual a psiquiatria é um instrumento de controlo social para dividir as pessoas em
normais e anormais, de forma semelhante à qual se rotula um indivíduo como criminoso
ou inocente.

Para a psiquiatria alternativa, a psiquiatria não é um saber humano que obedeça


forçosamente a uma base científica inquestionável, mas a um saber de conceitos
polémicos não raras vezes condicionados a critérios valorativos e sociopolíticos.

Actualmente, o juiz deve saber que o critério do psiquiatra, ou do psicólogo,


respeita a determinados pressupostos e valorações que não são inteiramente objectivos,
de tal modo que a classificação de imputável ou inimputável requer uma inevitável
valoração crítica que não pode alhear-se mediante a aplicação de uma perspectiva
discutível cientificamente. Este aspecto é importante porque, do ponto de vista jurídico,
perante uma decisão científica ela é facilmente aceite.

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J. Pinto da Costa

O psiquiatra e o juiz, ao definirem os limites entre o normal e o anormal, entre o


que é imputável ou inimputável, examinam um juízo de valor cujo conteúdo é
incompatível com uma perigosa objectividade na qual pareça que se degradaram os
valores. Afigura-se que neste aspecto o juiz encontra graves problemas para poder
realizar uma valoração, porque, tal como referem vários autores, a avaliação sobre a
inimputabilidade não é um problema médico, mas essencialmente jurídico. É o juiz
quem deve avaliar. O psiquiatra e o psicólogo apontam elementos de juízo, emitem as
suas apreciações sobre o problema, mas é ao juiz, no caso concreto, a quem corresponde
resolver.

É importante dizer que além da inimputabilidade ser um conceito polémico,


também deve tomar-se em consideração que a sua apreciação se transforma de acordo
com o tipo de crime ao qual se atribua. Assim, uma pessoa pode ser inimputável para
um delito económico e não o ser para um crime de lesões corporais. Isto explica-se pelo
facto de para um delito económico o infractor requerer uma estrutura de personalidade
totalmente diferente da que se exige para um delito de lesões. É possível que uma
pessoa possua capacidade de motivação para um delito de lesões corporais e imputável
para este delito, mas que seja inimputável e que não possua capacidade de motivação
referente a uma grande dissimulação. Não se trata de um problema relacionado com o
conteúdo conceptual da inimputabilidade, mas sim que também têm especial
importância as circunstâncias em que se produz o facto delitivo.

QUESTÕES DE MENORES
É menor quem não tiver ainda completado dezoito anos de idade. Assim reza o
Código Civil português ao referir a condição jurídica dos menores. Nem por isso
terminam neste limite etário os problemas do indivíduo que no dia seguinte deixou de
ser menor, oficialmente. Podem até as suas dificuldades serem maiores, em relação ao
cômputo das necessidades de resolução permanente de conflitos entre o sim e o não,
entre o bem e o mal.

Ultrapassando a definição legal dos menores de 16 anos serem penalmente


inimputáveis, isto é, não terem responsabilidade criminal, acumulam-se, de ontem e de
sempre, incertezas de maturação no espaço e no tempo.

Na imensidão de questões suscitadas pela integração sócio-cultural dos menores,


na previsão legal, é controverso que um deles esteja detido num estabelecimento
prisional destinado a adultos, sem que tenha atingido a idade consignada na lei.

Entre as múltiplas violências oriundas da sociedade para com os menores, a


primeira delas é não lhes proporcionar pais. É o caso dos recém-nascidos abandonados
desmercê de uma série de contradições histórico-culturais do sexo no fundamentalismo
do acto de conceber, deambulando no espaço e no tempo. Um homem, uma mulher e
um novo ser. Este, com outro homem ou outra mulher, e mais um ser. A identidade, o

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J. Pinto da Costa

processo de desenvolvimento, de maturação e o inevitável outro ser, no ciclo


biopsicológico da renovação humana.

Na modernidade dos remendos normativos, para colmatar dificuldades no


comportamento humano e na base da família, como ginásio de aprendizagem do filho,
todos têm que ter um pai. Embora, efectivamente, no sentido biológico, todos possuam
um pai, ainda que desconhecido.

Na teoria dos remendos, os filhos das mulheres casadas têm sempre um pai,
consoante nos propõe o Código Civil (Artº 1826).

Muito antes de Cristo, havia a noção da importância da hereditariedade,


mediante as observações de Hipócrates sobre o aparecimento do estrabismo e da
calvície em certas famílias, como ainda da epilepsia. Os gregos sabiam que haviam
pessoas com uma constituição morfológica que as tornava mais resistentes a contrair
doenças, enquanto outras, de constituição diferente, eram mais sensíveis para certas
enfermidades.

As possibilidades actuais da ciência no domínio da investigação biológica da


filiação, isto é, da paternidade e da maternidade são de tal modo aquisições recentes que
não é raro ver escritos de cientistas que, não sendo médicos-legistas, se encontram
perfeitamente desactualizados nesta área, e o que é mais complicado, constituem um
perigo pela antipedagogia médico-legal que fazem por se movimentarem num tema de
espacialização que não é o deles, pelo prestígio inegável que auferem fora do âmbito
médico-forense. É bom que se desfaçam dúvidas, pois que, em Portugal, como em
muitos outros países, é possível determinar positivamente, quem são os pais de certa
pessoa, do ponto de vista médico-legal. Não se trata, como alguns pensam, de uma falsa
notícia nem de um boato. A possibilidade de afirmação de uma paternidade ou de uma
maternidade é uma aquisição científica recente sendo esta afirmativa possível desde que
o número de marcadores genéticos seja o previsto pela ciência, perante os
condicionalismos variáveis.

Utilizam-se hoje múltiplos marcadores genéticos: antigénios eritrocitários


(ABO, Rh, MNS, Kell, Duffy, Kidd e Lutheran, etc), enzimas eritrocitárias
(fosfoglucomutase 1, adenilatocinase, 6-fosfatogluconato desidrogenase, adenosina
desaminase, glioxalase, esterease D, fosfatase ácida eritrocitária, etc), proteínas séricas
(haptoglobinas, proteína específica de grupo transferrina, alfa-1-antitripsina, beta-
glicoproteína, etc) e antigénios HLA (loci A,B, C, D, e Dr) e o polimorfismo do DNA.

No interesse dos menores é conveniente que a Justiça se adapte aos factos


científicos, para evitar discrepâncias, como a que ocorreu, em 1944, na Califórnia, já
que a despeito da evidência científica do exame pelo grupo ABO ter provado a
impossibilidade dum acusado ter sido o pai, este foi condenado a contribuir durante
vinte e um anos para o sustento de uma filha que não era dele.

134
J. Pinto da Costa

Mais do que a presunção de paternidade (Artº 1826º CC), como sendo pai o
marido da mãe, a verdade biológica iguala os filhos nascidos dentro do casamento e fora
deste, designadamente para os filhos concebidos antes do casamento (Artº 1828º CC) e
filhos concebidos depois de finda a coabitação (Artº 1829º CC).

A verdade biológica está na base da não indicação da paternidade do marido


quando a mulher casada faz a declaração de nascimento com a indicação de que o filho
não é do marido (Artº 1832º CC). O critério biológico prevalece ainda no que toca ao
fundamento e legitimidade do estabelecimento da paternidade (Artº 1839º CC) quando a
paternidade do filho é impugnada pelo marido da mãe, por esta, pelo filho, ou até pelo
Ministério Público (Artº 1841º CC).

A verdade biológica é também significativa para impugnação da paternidade


com fundamento em inseminação artificial ao cônjuge que nela consentiu.

O reconhecimento de paternidade de um filho nascido ou concebido fora do


matrimónio efectua-se por perfilhação ou decisão judicial em acção de investigação
(Artº 1847º CC) e quando a filiação não corresponder à verdade esta é impugnável em
juízo mesmo depois da morte do perfilhado (Artº 1859º CC).

Tudo isto na benéfica convicção dos superiores interesses do menor.

A investigação da paternidade, esquematicamente, pode ser apreciada em quatro


etapas. Inicialmente, a perspectiva jurídica não procurava a verdade nem a igualdade,
em conformidade com o Código de Napoleão (1804). Ainda se mantêm nesta fase a
Bélgica e o Luxemburgo. Numa segunda fase, já conta a verdade mas ainda não a
igualdade. Era a doutrina dos antigos Códigos Civis da Alemanha (1900) e da Suiça
(1912). Numa terceira fase, surgem a verdade biológica e a igualdade, como referem a
legislação alemã (1969), austríaca (1970), holandesa, francesa (1972), italiana (1975),
portuguesa (Código Civil 1977) e espanhola (Lei 11/81, de 13 de Maio).

Grosso modo, com ligeiras diferenças pontuais, os princípios fundamentais são


quase semelhantes. Assim, por exemplo, no que toca à filiação matrimonial, o filho não
será legítimo se a paternidade do marido em relação ao filho for impossível.

Na legislação alemã, predomina a verdade biológica, de forma que a Justiça


aceite as provas da hemogenética, em toda a sua extensão, quer na exclusão de
paternidade quer na não exclusão. Neste último caso, trata-se de uma previsão estatística
de probabilidade de paternidade em expressão numérica (Essen-Moller) ou nos seus
correspondentes predicados verbais (Hummel), em que não se chega à verdade
matemática dos 100% mas em que se alcançam valores de 99,99%, o que traduz que a
paternidade se encontra praticamente provada, com um grau de veracidade racional ou
biológico.

Numa quarta fase, para a qual contribui, grandemente, a mentalidade


escandinava, a paternidade, para efeitos práticos, jurídicos, concretos, pode ser afirmada
quando está em jogo a questão de saber se o filho era de um de quatro supostos pais, por

135
J. Pinto da Costa

exemplo. Tal afirmação é sempre possível desde que nenhum deles seja irmão gémeo
monozigótico (univitelino).

A vizinha Espanha, cujo desenvolvimento global, nesta matéria, não parece ser
contestável na Europa, como em outras partes do Mundo, tem uma concepção muito
actual da perspectiva médico-legal da verdade biológica. Recorda-se uma sentença do
Tribunal Supremo de Espanha, de 5 de Novembro de 1987, a propósito de um caso de
impugnação de filiação matrimonial e reclamação de filiação não matrimonial “... y
cuja verdadera filiación quedó demonstrada sin género de dudas por la prueba
biológica, además de ...” e mais adiante “En él existe una contundente prueba pericial
biológica que assegura al actor un 99,98% de probabilidades de ser el padre de la
niña, por el hecho básico de la paternidad biológica, no discutido expressamente por
otras pruebas, está demonstrado”.

Muita conflitualidade dos menores, entregues demasiadamente a eles próprios,


por desacompanhamento familiar e escolar, é geradora de comportamentos desviantes.
Sirva de excepção o exemplo dos clubes desportivos que, ocupando o lugar do Estado
por deficiência deste que não cumpre o seu dever, incentivam, mediante a prática de
modalidades amadoras, a cultura de preceitos éticos e morais e, não raras vezes, evitam
que os menores sejam apanhados na teia do vício pela desocupação resultante da
incompetência do máximo responsável.

Precisamos de rever as nossas atitudes e comportamentos. Os adultos que


estamos a futurar, pela incubação que proporcionamos aos menores, serão produtos de
resultado duvidoso, em face das contradições flagrantes do exemplo que lhes damos.

Recorde-se que há dias se matavam bezerros por serem filhos de mães infectadas
e que era mau comer gelatina e que a importação de cebo era proscrita.

Um miúdo não resistiu ao estímulo do que entendeu na pedagogia televisiva


quanto à apregoada doença das vacas e ao levantamento do bloqueio ao esperma, cebo e
gelatina: “Agora já se pode importar esperma de vacas loucas?”.

Bem-aventurada a ingenuidade das crianças e dos pobres de espírito que no meio


dos seus disparates nada fazem por mal. Quem sabe se o miúdo não estará cheio de
razão e se inconscientemente se arvorou em arauto de futura gafe: O esperma das
vacas!!!

Questões menores, de menores. A ingenuidade das crianças vai proliferando nos


adultos sob o manto periclitante das gafes.

PEDOFILIA
A assimilação do relato insistente do dramático caso das crianças mortas na
Bélgica trouxe ao conhecimento práticas muito difundidas e há muito tempo.

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J. Pinto da Costa

Mais uma vez se prova que a Comunicação Social é muito mais forte do que a
Moral, a Ética, as Leis e os Governos. Todos eles são remexidos por ela. Foi necessário
que a Televisão, a Rádio e os Jornais denunciassem, a pretexto da triste efeméride,
fenómenos universais, para que todos discutissem a questão.

Da tumultuosa abordagem do problema, relativamente ao qual não se têm


poupado erradas generalizações, não falta também quem queira colher dividendos
poderosos, colando a parte francófona e católica da Bélgica ao relato tão propalado em
__
contraste com a região flamenga do país que se pretende ela própria de mais
"civilizada", não francófona, e maioritariamente não católica. Questão de pormenor,
sem qualquer interesse, já que a confissão religiosa não torna, por esse facto, os
católicos mais aptos a prevaricarem neste sentido.

Na confusão do que se tem dito, resulta uma falta de nitidez entre tráfico de
crianças que a nossa lei contempla com uma certa ingenuidade, tendo em conta que os
responsáveis pela Governação não sabem quantos casos há do género. É muito provável
que, à boa maneira portuguesa "casa roubada, trancas à porta", não faltem comissões
para o levantamento nacional do problema. "Com sérias reservas", porque isto de
números não é a nossa especialidade. Atente-se, por exemplo, no embróglio entre o
Ministério das Finanças que dá um número para o PIB (produto interno bruto) e o
Instituto Nacional de Estatística que dá outro, diferindo em 400 milhões de contos o que
causa perplexidade na Comissão Europeia (Bruxelas). Então como é?

Prevê o nosso Código Penal que se o raptado for menor de 16 anos e surgir a
morte a pena a aplicar ao agressor será de 21 anos (Artº 160º). O tráfico de pessoas (Artº
169º) é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos que poderá ir de 1 a 8 anos se o
agressor tiver usado de violência ou se tiver aproveitado de incapacidade psíquica da
vítima. A pena (6 meses a 5 anos) (Artº 176º) para quem favoreça ou facilite o exercício
da prostituição de menor entre 14 e 16 anos é mais baixa do que a aplicar quando a
criança tiver menos de 14 anos (prisão de 2 a 10 anos).

A ligação do fenómeno belga à prostituição infantil é um campo de discussão


ampla, a nível ético-legal, tendo em conta que a prostituição e o proxenetismo são
comportamentos clássicos anti-sociais, de existência permanente.

As referências Bíblicas e do Corão denotam a relevância sócio-cultural do


problema, à luz de conceitos religiosos. Reconhecendo a existência da prostituição
infantil, a Igreja Católica condena qualquer tipo de prostituição, considerando que "é
sempre gravemente pecaminoso dedicar-se à prostituição, mas a miséria, a chantagem e
a pressão social podem atenuar a imputabilidade da falta". A Bíblia contém múltiplas
referências à prostituição.

Talvez a primeira seja o comentário de Simeão e Levi, após terem massacrado


toda a população masculina de Siquém, por a sua irmã ter sido raptada e violada ao
dizerem "Acaso trata-se a nossa irmã como uma prostituta?" (Genesis, 34:31). No
Corão, há referências sobre o comportamento que os homens devem ter em múltiplas

137
J. Pinto da Costa

circunstâncias da sua existência, sem exclusão da vida sexual. Dá-se mesmo conta da
sua origem: "O homem foi formado de um líquido emitido, que sai como resultado do
encontro das regiões sexuais do homem e da mulher" (Corão, 86, versículos 6-7).

Actualmente, entre nós, por lei, o abuso sexual de crianças, de adolescentes e


dependentes, o estupro e os actos homossexuais com menores só têm procedimento
criminal quando houver queixa, a não ser que tenha resultado a morte da vítima,
incluindo o suicídio. Contudo, quando a vítima, mesmo sem ter morrido, for menor de
12 anos, pode o Ministério Público dar início a processo "se especiais razões de
interesse público o impuserem". O mesmo se aplica aos crimes de coacção sexual,
violação, abuso sexual de pessoal incapaz de resistência, fraude sexual e procriação
artificial não consentida. Em face da discordância de muitos, para com o actual Código,
é possível que futuramente haja alguma modificação na criminalidade sexual se o
cidadão anónimo se manifestar, como é seu direito e dever moral, exprimindo a sua
opinião mediante propostas.

Aguardemos, pacientemente, o que a nova revisão do Código Penal nos dirá.

Um uso, menos apropriado, tem sido dado à palavra pedofilia. Na evolução da


expressão cultural do pensamento, é possível que esteja a criar-se um novo conceito de
pedofílico. O conhecimento convencional da pedofilia e o que recentemente se tem
afirmado à volta da palavra, criaram uma espécie de conflito psicológico do qual é
conveniente sair mediante uma tentativa de memorização do que ela tem sido, até agora.
Num raciocínio primário, muito elementar, por assimilação defeituosa do que se
propalou recentemente, um pedofílico seria um belga que sequestra crianças para as
vender para o estrangeiro para a prostituição.

Vamos tentar sair desta aberração, e à guisa de quem não sabe onde deixou as
chaves de casa, procuremos reconstituir os passos, à procura do automatismo dos
gestos, começando pelo princípio. Assim, pedofilia, à letra, seria a amizade pelas
crianças (do grego paidos-criança; philos - amigo). Não se trata efectivamente de
amizade propriamente dita, mas de uma tendência, exagerada, fugindo da média da
normalidade e com uma conotação sexual. Ao falar-se em pedofilia subentendem-se as
parafilias. Estas são condutas sexuais inaceitáveis pela sociedade. Fenómeno
obviamente variável no espaço e no tempo encontra aceitação cultural em grandes
regiões do globo, em conhecida geografia sexual.

A sexualidade humana define-se num contexto cultural móvel. As variações do


comportamento sexual têm de ser apreciadas duplamente segundo a natureza e a cultura.
No tempo, na civilização ocidental, condutas que outrora levavam ao inferno, hoje, para
além de consentidas, são aconselháveis para estabilidade matrimonial.
Pedagogicamente, a sexualidade criminal é aquele conjunto de comportamentos sexuais,
proibido pelo Código Penal, sempre em conformidade com os usos e costumes.

A homossexualidade, em certas culturas, momentos históricos e determinadas


condições sociais e jurídicas, foi considerada como uma alteração da sexualidade. Hoje,

138
J. Pinto da Costa

não. Entre nós o reflexo da diferença encontra-se no Código Penal, considerando que a
homossexualidade não é crime quando a idade do parceiro for superior a 16 anos.

Deixando a teoria muito erudita do assunto, apenas se recorda que a pedofilia se


encontra numa listagem complexa (fetichismo, travestismo, exibicionismo, voyeurismo,
etc). Entre as parafilías atípicas, as mais conhecidas são a necrofilia (excitação sexual
com cadáveres), a coprofilia e a urofilia (respectivamente a necessidade de manipular
fezes e urina para obter satisfação sexual).

Pedofilia é um conceito de sexualidade patológica. Esta é uma das questões


fundamentais no que toca a maturação para o desenvolvimento autónomo e social do ser
humano. As alterações sexuais podem ser ponto de partida para a manifestação de
outros problemas que dificultem a convivência e possam determinar condutas criminais.
Uma pulsão sexual é rapidamente intolerada, social e eticamente, quando ela
compromete a liberdade do parceiro ou transgride as barreiras do consentido. Rotuladas
classicamente como perversões, estas hoje são preferencialmente designadas alterações
da sexualidade. Quando se dizia que a pedofilia era uma perversão de objecto, isso
significava que o desejo sexual se dirigia para uma criança.

Em princípio, as pessoas com condutas sexuais desviantes sofrem de alguma


alteração psicopatológica, pelo menos de alterações da personalidade.

Que fazer de um pedofílico? Reconhece-se actualmente que haverá três


mecanismos a seguir (terapia condutista, psicoterapia analítica e terapia do cônjuge).
Como é óbvio, as melhorias significativas obtidas em alguns casos não querem dizer
uma "cura" milagrosa para todos os pedofilicos.

Será solução individual e social "meter" um pedofílico na cadeia?

A tendência internacional vai cada vez mais no sentido da aceitação de uma


referência psicopatológica para estas situações do que para a solução penal na
perspectiva da normalidade psíquica.

CRIMES PASSIONAIS
A conduta agressiva é um dos problemas mais importantes na sociedade actual.
A hostilidade familiar é causa de sofrimento. A criminalidade de rua causa mal-estar
social.

Forma diferente, antiga e controversa é o crime passional, como delito praticado


por pessoas mentalmente normais que actuam sob estímulos dominadores de estado
afectivos intensos.

As causas dos crimes passionais podem relacionar-se com situações de ideias


como crimes de tipo político, social e religioso, crimes amorosos por ciúme, abandono e

139
J. Pinto da Costa

amor não correspondido, ou um nível inferior do género de injúrias, ofensas ou


prejuízos económicos, designadamente a vingança, a cólera, o ódio e a injustiça.

É muito difícil, praticamente impossível, distinguir entre um crime passional e


um crime cometido por pessoas aparentemente normais mas com personalidades
paranóicas, apenas sendo possível o diagnóstico diferencial muito mais tarde quando
estas se revelam nitidamente patológicas.

Enquanto o criminoso passional sente tristeza após o acto cometido e na maioria


dos casos acaba por suicidar-se, o paranóico, pelo contrário, não se sente arrependido, e
tem orgulho por aquilo que fez.

As paixões são evidentemente o campo do psiquismo relacionado com este tipo


de crime.

Há diferenças muito grandes na disposição do modo de agir afectivamente


perante certos estímulos.

A pessoa dita normal, harmónica, equilibrada, não perde facilmente a


tranquilidade mesmo em face de um estímulo violento. É o género de pessoas que não
fervem em pouca água, mantendo o autodomínio. Contudo, certos factores como o
álcool, o cansaço ou situações relacionadas com o esgotamento, podem despertar
reacções violentas.

Noutras pessoas com alterações de personalidade (antigamente designadas


psicopatas) bastam estímulos ligeiros para despertar reacções violentas.

Os que sofreram traumatismos cranianos, alguns epilépticos e muitos doentes de


perturbações afectivas endógenas na forma maníaca são anormalmente irritáveis.

Existe estreita relação entre o sistema nervoso vegetativo, as glândulas


endócrinas e a afectividade. Por exemplo, a hiperfunção da glândula tiroideia acarreta
uma hipersensibilidade individual, enquanto a hipofunção conduz a uma deficiência na
capacidade de reacção afectiva.

Os surtos emotivos indicam, até certo ponto, a capacidade de resistência


cerebral. Em regra, os jovens reagem mais que os adultos. Os crimes relacionados com
a afectividade são, por isso, mais raros nos velhos do que nos jovens. Contudo, a
aterosclerose dos velhos aumenta muito a irritabilidade, sendo frequente nestas idades
uma oscilação da afectividade, habitualmente designada incontinência afectiva. São
doentes que choram ou riem com uma certa facilidade, perante estímulos menores.

Uma paixão forte repercute-se também grandemente no corpo e nas funções


psíquicas. Está demonstrado que um sentimento de simples agrado ou desagrado,
relativamente ao gosto de uma substância provoca modificações no sangue. Uma paixão
intensa provoca alterações facilmente observáveis. O medo causa palidez, a ira causa
vermelhidão. São por todos conhecidas a respiração ofegante, as palpitações, os suores

140
J. Pinto da Costa

frios, a debilidade muscular, o tremor e emissão involuntária de urina e de fezes. A


mímica facial modifica-se mediante o riso, o choro, a ira e muitas outras alterações. As
paixões violentas tendem a despertar descargas motoras, como, por exemplo, andar de
um lado para o outro rapidamente, sem parar, dar murros em mesas, ou proferir
repetidamente em voz alta “juro”. Tudo isto representa uma válvula de escape.

As pessoas reagem de modo diverso. O que a uns relaxa e distende a outros


dilata as paixões. É assim que com frequência se cometem crimes de ameaças, injúrias e
até de grande violência.

Nos crimes passionais há que distinguir os crimes pseudo-passionais e os crimes


passionais puros. Os primeiros devem ser encarados, pelo direito penal, sem restrições,
os segundos implicam já uma noção psicopatológica. São estes que caem no conceito
habitual de crimes passionais. Para os caracterizar é preciso atender à constituição do
criminoso, à potencialidade delituosa e à fraca resistência aos choques emotivos e aos
embates das paixões, a extensão e intensidade da ideia fixa, do estado emocional, e das
interpretações delirantes. É importante ainda distinguir se o indivíduo actuou
patologicamente, se o seu estado passional excedeu os limites fisiológicos.

Na base de muitos crimes passionais está o ciúme. O que caracteriza a convicção


ciumenta é que as representações amorosas interpõem-se entre o indivíduo e a realidade
e esta não é percebida pelo apaixonado senão através do secreto desejo de estar
convencido do erro. No raciocínio do amoroso há um mundo de representações sãs do
ponto de vista fisiológico e psicológico. Mas a vivência do ciúme é em si mesma penosa
e implica sempre o sentimento de dúvida ou de ruptura da sintonia amorosa, ou, pelo
menos, de intuição do perigo de perda definitiva. Há ainda a notar a sensação de
inferioridade ante o rival e o desprezo por parte do outro par amoroso. É importante não
descurar o papel relevante do ambiente social e dos costumes. O crime passional é um
acontecimento raro nos povos nórdicos, enquanto é endémico nos latinos e nos
meridionais.

Dá a impressão de que a essência psicológica do estado ciumento não é a


desconfiança nos outros, mas sim o julgamento que eles fariam do ciúme. Um indivíduo
pode reagir diversamente à vivência do ciúme, adoptando uma atitude de súplica, de
ameaça, de despeito ou de desconsolo, de fuga ou de agressão. A determinação de tais
atitudes é condicionada por vários e complexos factores objectivos e subjectivos.

Do ponto de vista moral e jurídico o criminoso por ciúme puro pode beneficiar
de uma certa atenuação da responsabilidade criminal desde que seja possível averiguar
que agiu em razão do erro de representação das circunstâncias e que tinha fundada
convicção de que actuou na situação de facto cuja licitude a lei reconhece.

A emoção é uma manifestação afectiva intensa e passageira em resposta à


satisfação ou frustração das necessidades naturais, orgânicas e primárias.

141
J. Pinto da Costa

A paixão é um estado emocional duradouro ou permanente. Uma pessoa sob


uma tensão emocional aguda apresenta uma reacção de emergência constituída por
espanto, medo, furor, reacção de orientação, reflexo de imobilização, tempestade de
movimento que constituem tentativas de atrasar o equilíbrio fisiológico perturbador.
Posteriormente, surge a reacção da luta ou ergotrópica, resultante da supremacia
simpática, ou a reacção de fuga própria da resposta parassimpática. Tais respostas, às
vezes, complicam-se com desmaio e tetania por hiperventilação. Em tais circunstâncias
há uma obnubilação da consciência mais ou menos profunda, responsável pela prática
de actos automáticos e involuntários.

Do ponto de vista legal é factor atenuante a prática do crime sob violenta


emoção, sobretudo quando a vítima injustamente provocou o agressor.

As paixões podem ser sociais e anti-sociais, morais e imorais, úteis e


prejudiciais. No âmbito das paixões contam-se os apaixonados que cometem os crimes
passionais e os fanáticos que praticam o terrorismo.

Há pessoas que, em diversas circunstâncias, têm emoções violentas,


acompanhadas de grande impulsividade, incapazes de refrear os seus impulsos, as suas
tendências. Assim, porque as emoções alteram a consciência e a vontade, elas
modificam a capacidade de imputação. Do ponto de vista médico-legal, a emoção e a
paixão, em princípio, não excluem a responsabilidade penal.

Em suma, os estados passionais atenuam a imputabilidade mas, por si só, não


conferem inimputabilidade.

Cada situação é um caso diferente, e assim deve ser encarada no exame


psiquiátrico médico-legal.

VIOLÊNCIA HUMANA
Ao respeitar os mortos, estamos a respeitar-nos a nós próprios, porque vivos
somos, mortos seremos. A base do problema está na projecção dimensional da
angustiante não existência terrena.

A violência humana culmina na morte como meta final da vida de cada um,
como bem superiormente protegido.

Matar a gente só Deus, ou a pessoa humana na guerra ou em legítima defesa.

Todos vivemos, todos morremos.

Na prática, a experiência das situações mostra que, embora todos sejamos iguais,
há uns que são mais iguais do que outros e que há filhos e enteados da vida.

142
J. Pinto da Costa

A morte é um acontecimento diversamente encarado. Há pessoas que não


perdem o sentido de humor perante ela.

A Sociedade, em regime de contemporização, sublima o símbolo da morte com


objectos utilitários: porta-chaves, "bibelots" de tamanho variado ou pequenos esqueletos
de bijutaria. Tudo serve de antídoto.

O eu desarticulado permite o sofrimento sobre-humano, como o coma, o delírio


ou a interrupção dos circuitos reversíveis. O sofrimento anestesiado pela fé, as
ferradelas dos leões no Coliseu, o amor cego exclusivista do egoísmo da felicidade
interna com o bem amado supremo, consentem a violência exagerada.

À desmitificação da morte cria-se uma nova edição mitificada, na modernidade


renascentista do retomar de todas as questões, com a relevância da pista do aeroporto
que, ao não ser abandonada, nos projecta na catástrofe da desintegração. Ou, vencida a
gravidade, nos dirige para o céu, ultrapassando a realidade terrena que vemos de cima.
Fugimos, assim, das trivialidades que nos impedem de atingir rapidamente o destino
desejado.

Não há segurança a julgar os loucos. Há pessoas que sob o pretexto da glória


divina, por zelo ou pelo sentido mágico-religioso do seu comportamento, são capazes de
tentar tudo e de se expor a todas as torturas, sem que, por isso, possam ser enquadradas
no âmbito da vulgar vezânia.

O limiar à dor, tão variável, individualmente, é diverso mesmo em relação ao


sexo.

Não falemos só da vítima, mas do prazer da contemplação do sofrimento alheio.


A população, de olhos esbugalhados, vê nos outros a projecção do seu próprio
sofrimento e castigo.

Não é a mesma a posição do condenado à morte judicialmente e a da vítima por


altruísmo, porque àquele falta a motivação mágico-religiosa ou o desvio pragmático da
verdade imposta.

A Inquisição, duplamente, pelas vítimas e pelos inquisidores, é uma fonte


inesgotável de reflexão sobre a temática da violência humana. O radicalismo fanático
começa quando a tolerância deixa de existir. A bondade exemplar de Jesus Cristo foi
substituída por uma agressividade desconforme, que encontra na Inquisição a sua
expressão formal. Antes da Santa Inquisição, as sanções que implicavam lesões
corporais eram da competência do poder civil. Pode dizer-se que, até ao século XIII, a
Igreja não era "oficialmente" responsável pelas múltiplas condenações algumas das
quais atingiam o suplício como pena.

Em face do crescente terrorismo internacional, o médico deve constituir uma


implacável barreira à tortura e outras penas e tratamentos cruéis, desumanos e
degradantes.

143
J. Pinto da Costa

A Inquisição constituiu, para os médicos, um conflito de princípios éticos. Não é


difícil admitir que tal conflito brotava da necessidade de cumprir as suas obrigações
para com a Santa Inquisição e para com a humanidade, na base do Juramento de
Hipócrates de conceder tratamento igual sem distinção de credos, de raça ou de
nacionalidade.

A tortura é conceptualmente definida pela dor corporal causada ao réu, ou a uma


pessoa detida legal ou ilegalmente, contra quem há indícios de probabilidade, para a
obrigar a confessar ou a declarar.

A tortura compreende todo o tipo de maus tratos e violências que causem dores e
sofrimentos de tal nível que, para os evitar, a vítima declare o que os torturadores
pretendem.

O capítulo "Direitos, liberdades e garantias pessoais" (Artº 25º do Código Penal


Português), define o direito à integridade pessoal: 1. A integridade moral e física das
pessoas é inviolável. 2. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas
cruéis, degradantes ou desumanas.

Pela Constituição da República Portuguesa em caso algum haverá pena de morte


(Artº 24º).

A morte violenta pode ser provocada no próprio quando a agressividade, por


razões diversas, tem a sua existência como alvo.

Dificilmente separáveis o homicídio e o suicídio, este segue-se, por vezes,


àquele. O suicídio não é sempre um desejo de morte. Ele pode representar uma forte
determinação de viver diferente e, como manifestação do comportamento humano, tem
sido exaltado e condenado consoante a ponderação de valores morais e éticos. Não deve
esquecer-se que o suicídio e o homicídio são a expressão de um mesmo fenómeno
agressivo. Quando a auto-violência aumenta, diminui a hétero-violência.

Os acidentes de trabalho mortais, por não serem observadas as regras de


segurança necessárias, continuam a surgir nas sociedades industrializadas.

O infanticídio e o aborto são formas de morte violenta altamente relacionadas


com o desenvolvimento sócio-cultural e a ética das populações.

As queimaduras em explosões e incêndios e a acção do frio são outras causas de


morte violenta. A violência humana acontece na submersão em água salgada e em água
doce.

A morte violenta pode resultar de múltiplas causas. Quando a harmonia


biológica é afectada por forças exteriores de ordem química ou física, ultrapassando a
estabilidade vital, a morte surge, como nas grandes catástrofes.

As relações sexuais seguidas de homicídio são o paradigma da violência


humana.

144
J. Pinto da Costa

Para quem deseja estudar, entre nós portugueses, a violência humana, encontra
forte oposição na colheita de dados que ofereçam credibilidade. Quando tais dados são
obtidos, após moroso trabalho, eles surgem de tal modo atrasados, tão desfasados no
tempo, que apenas reflectem o que se passou largos anos atrás e nunca a realidade do
momento que passa. O crescimento e o desenvolvimento do País exigem uma lavagem
de mentalidades.

A morte violenta obriga a autópsia médico-legal para descoberta da verdade


jurídica. Vai que, não há muito tempo, enterravam-se pessoas sem causa de morte
quando, perante um certificado de óbito sem tal causa indicada, era dispensada a
autópsia por apenas não haver crime! Hoje, independentemente da citada dispensa,
todos os cadáveres, no Porto, são autopsiados, enquanto não tiverem um certificado de
óbito a indicar qual foi a causa da morte.

A verdade biológica da questão será múltipla consoante o gesto cometido por


cada um. Uma verdade é inegável: o homem arrasta no percurso da vida, o peso do seu
caixão vazio. Que o aspecto positivo do sentido existencial da vida contribua para
aliviar o fardo, e lhe dê, com a humildade necessária, a alegria de viver.

E que morra, em paz, sem ter que passar pelo degrau da violência.

A DIMENSÃO DA AGRESSIVIDADE COMO RESPOSTA PSICOLÓGICA


O título da minha comunicação “A DIMENSÃO DA AGRESSIVIDADE
COMO RESPOSTA PSICOLÓGICA”, é uma espécie de compromisso com a existência
de uma resposta psicobiológica global.

Seria importante, desde já, concretizar a agressividade. Poderíamos


considerá-la com força na origem do dinamismo geral da personalidade numa
perspectiva de querer viver e querer sobreviver no pressuposto das acções positivas de
adaptação.

Talvez em vez de agressividade pudéssemos chamar-lhe combatividade. Mas,


por outro lado compreende-se como a agressividade uma disposição marcada sobretudo
pela hostilidade e pela destruição.

A relação neuroquímica e os comportamentos agressivos é hoje bem


conhecida.

As anfetaminas desencadeiam manifestações psicóticas mediante a


estimulação de certos comportamentos subjacentes.

As anfetaminas e as outras drogas como a cocaína produzem psicoses muito


semelhantes do tipo paranóide ou esquizofrénicas.

145
J. Pinto da Costa

As teses biológicas da criminalidade, nomeadamente as aberrações


cromossómicas e a constituição cromossómica permitiram um conhecimento novo no
estudo dos delinquentes. Contudo, estudos recentes não permitem comprovar uma
relação directa entre uma anomalia ao nível de um gene e uma conduta agressiva.

A inimputabilidade nem sempre tem um conteúdo físico-biológico, quer


dizer que o que poderia catalogar-se como inimputável é algo mais que um simples
somatório de anormalidades biológicas, já que pode referir-se à estrutura afectiva.
Também é mais complexo que o conceito nitidamente biológico.

O exame clínico do inculpado, que deve ser completo incluindo a abordagem


psiquiátrica e neurológica, deve ser completado com o exame electroencefalográfico e
bateria de testes tendo especialmente uma relação adequada entre as características
psicopatológicas do examinado e as do delito prático. O electroencefalograma tem
interesse particular nas epilepsias e psicoses orgânicas devendo ser interpretado em
conformidade com os sinais clínicos e o resultado dos testes. O exame clínico poderá
indicar uma eventual desestruturação da personalidade, uma descida do nível da
personalidade, representando um estádio inicial da síndrome psico-orgânica ou de um
processo orgânico demencial.

É possível, actualmente, mercê de uma larga gama de testes avaliar com


alguma exactidão a deterioração intelectual devida a uma lesão cerebral orgânica.

Nota-se que a personalidade ao baixar de nível por motivo de início de um


processo cerebral orgânico, torna-se permissiva, isto é, há libertação de forças
agressivas e sexuais que podem levar uma pessoa a cometer actos anti-sociais e
delitivos. Tal comportamento pode ser muito precoce e acontecer como primeira
manifestação de tumor cerebral.

Em regra, a perigosidade e a probabilidade de cometer delitos são maiores no


estádio inicial da doença mental do que no período de estado ou residual. É por isso que
se tem chamado período médico-legal às formas iniciais da paralisia geral progressiva e
da esquizofrenia.

Sabemos hoje que toda a emoção provoca uma mobilização do sistema


neuroendócrina que se traduz por uma resposta corporal.

Sabemos também que as emoções variam de qualidade segundo as situações,


e que a natureza da resposta varia consoante a proporção de várias substâncias como os
corticosteróides, a adrenalina e as hormonas sexuais. Mas é hoje adquirido que este
equilíbrio não é aparentemente o mesmo para toda a gente.

O comportamento é diferente consoante uma lesão afecta o cérebro. Digamos


que no hemisfério esquerdo está localizada a alegrai e no direito a tristeza. É o que
mostram estudos sobre a actividade eléctrica relacionada com emoções positivas e
negativas.

146
J. Pinto da Costa

Pode mediante o estímulo de certas zonas cerebrais específicas, despertar


uma determinada manifestação emocional, o que prova que há circuitos neuro-
anatómicos especializados na gestão das emoções. E porque não da agressividade?

Há uma estreita relação entre emoções e imunidade. Certos comportamentos


levam-nos a pensar: Porque é que o basquetebolista mundialmente conhecido Magic
Johson apresenta uma diminuição da sua taxa de HIV? É provável que a vontade firme
para se libertar da doença tenha favorecido o sistema imunitário e diminuído a doença.
Talvez que a interpretação actual da máxima de Juvenal Mens Sana in Corporae Sano se
aplique a este curto-circuito hipotalâmico.

DIMENSÃO HUMANA DO CRIME


Crime é a violação da norma como contradição entre o comportamento do ser
humano e a ordem normativa do que deve ser. Ou, como refere o Código de Processo
Penal (Artº 1º), o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de
uma pena ou de uma medida de segurança criminais. Na maior simplicidade, digamos
que crime é uma coisa que vem no Código Penal. Daqui infere-se que acabaríamos com
os crimes se o rasgássemos.

O crime é tanto mais crime consoante maior é a pena aplicada. A avaliar pela pena
(ter de trabalhar, arrastando consigo o pecado original), os primeiros criminosos teriam
sido Adão e Eva. Na base do homicídio, crime paradigmático, a originalidade caberia a
Caim que matou seu irmão Abel. Em boa verdade, desconhecem-se dados históricos do
crime. Nas sociedades primitivas, encontram-se violadores da justiça, mesmo antes da
existência dos códigos. O homicídio é referenciado nos documentos dos primórdios da
humanidade.

Darwin, notabilíssima figura da cultura, proporcionou, mediante a sua noção de


horda primitiva, a clássica hipótese do primeiro crime que Freud nos apresenta na figura
de um pai violento, ciumento, que guarda para si todas as fêmeas e expulsa os filhos
adolescentes. Conta-nos (Tabu e ambivalência dos sentimentos, 1903) que, um dia, os
irmãos expulsos reuniram-se, mataram e comeram o pai, o que pôs fim à horda paterna.
Uma vez reunidos ousaram e puderam realizar o que cada um deles, individualmente,
teria sido incapaz de fazer. O progenitor violento era, com certeza, o modelo invejado e
temido por cada um dos membros desta associação fraterna. Ora, através do acto de
absorção, realizaram a sua identificação com ele, apropriando-se cada um deles duma
parte da sua força. A refeição totémica, que é talvez a primordial festa da humanidade,
seria a reprodução e como que a festa comemorativa deste acto memorável e criminoso
que serviu de ponto de partida para tantas coisas: organizações sociais, restrições morais
e religião.

O crime é uma variável, no espaço e no tempo. As leis mudam, os crimes


desaparecem. O criminoso é um fazedor de crimes não facilmente ectógeno (capaz de

147
J. Pinto da Costa

viver independentemente) e daí a existência de bandos. O crime funciona como válvula


de segurança social. A condenação de uma pessoa equivale à absolvição da outra em
litígio. Do primarismo de que quando se é culpado é-se punido, brota, espontaneamente,
que quando não se é punido, está-se inocente. O crime é assim visto por óculos
diferentes, quando o criminoso é observado. A opinião pública é favorável à recaptura
do evadido da cadeia e a expressão caça ao criminoso traduz o estatuto de fera que lhe é
atribuído. Como animal, até poderá ser abatido, legitimando os tiros contra os fugitivos.

Na mesma senda se compreende o desejo da multidão favorável à pena de morte


para com os autores dos ditos atentados aos costumes, que, entre nós, levam agora o
nome de delitos sexuais. O fazedor de crimes é cada vez mais o bode expiatório de uma
culpabilidade colectiva e, quanto mais os contornos desta são pouco nítidos, mais
importante parece ser a descarga do seu peso sobre indivíduos isolados e facilmente
reconhecíveis.

Os grupos humanos, à medida que se fixam e morrem, formam as suas culturas


próprias cujos caracteres diferenciais mais ou menos acentuados, lhes asseguram
autonomia e individualidade. O Mundo é palco, pelo aproveitamento de recursos
humanos e naturais orientados pela cultura, de complexas mini- civilizações, de
ocorrências tanto simultâneas como sucessivas, decorrentes do desenvolvimento da
técnica e da ciência.

A crise mental brota do conflito de gerações, na dificuldade de adaptação à


sucessiva mudança ambiental.

A dimensão humana do crime na perspectiva médico-psico-biológica é controlada


por várias formas do direito. O crime passional, como delito praticado por pessoas
mentalmente normais que actuam sob estímulos dominadores de estados afectivos
intensos, é uma forma antiga e controversa.

As causas dos crimes passionais podem relacionar-se com situações de ideias


como crimes de tipo político, social e religioso, crimes amorosos por ciúme, abandono e
amor não correspondido, ou um nível inferior do género de injúrias, ofensas ou
prejuízos económicos, designadamente a vingança, a cólera, o ódio e a injustiça.

É muito difícil, praticamente impossível, distinguir um crime passional e um


crime cometido por pessoas aparentemente normais mas com personalidades
paranóicas, apenas sendo possível o diagnóstico diferencial muito mais tarde quando
estas se revelam nitidamente patológicas.

Enquanto o criminoso passional sente tristeza após o acto cometido e em grande


número de casos acaba por suicidar-se, o paranóico, pelo contrário, não se sente
arrependido, e tem orgulho naquilo que fez.

As paixões são evidentemente o campo do psiquismo relacionado com este tipo de


crime. Há diferenças muito grandes na disposição do modo de agir afectivamente
perante certos estímulos.

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J. Pinto da Costa

A pessoa dita normal, harmónica, equilibrada, não perde facilmente a


tranquilidade mesmo em face de um estímulo violento. É o género de pessoas que não
fervem em pouca água, mantendo o autodomínio. Contudo, certos factores como o
álcool, o cansaço ou situações relacionadas com o esgotamento podem despertar
reacções violentas. Noutras pessoas com alterações de personalidade (antigamente
designadas psicopatas) bastam estímulos ligeiros para despertar reacções violentas.

Os que sofreram traumatismos cranianos, alguns epilépticos e muitos doentes de


perturbações afectivas endógenas na forma maníaca são anormalmente irritáveis.

Existe estreita relação entre o sistema nervoso vegetativo, as glândulas endócrinas


e a afectividade. Por exemplo, a hiperfunção da glândula tiroideia acarreta uma
hipersensibilidade individual, enquanto a hipofunção conduz a uma deficiência na
capacidade de reacção afectiva.

Os surtos emotivos indicam, até certo ponto, a capacidade de resistência cerebral.


Em regra, os jovens reagem mais que os adultos. Os crimes relacionados com a
afectividade são, por isso, mais raros nos velhos do que nos jovens. Contudo, a
arterosclerose dos velhos aumenta muito a irritabilidade, sendo frequente nestas idades
uma oscilação da afectividade, habitualmente designada incontinência afectiva. São
doentes que choram ou riem com uma certa facilidade, perante estímulos ligeiros.

Uma paixão forte repercute-se também grandemente no corpo e nas funções


psíquicas. Está demonstrado que um sentimento de simples agrado ou desagrado,
relativamente ao gosto de uma substância provoca modificações no sangue. Uma paixão
intensa provoca alterações facilmente observáveis. O medo causa palidez, a ira causa
vermelhidão. São por todos conhecidas a respiração ofegante, as palpitações, os suores
frios, a debilidade muscular, o tremor e emissão involuntária de urina e de fezes. A
mímica facial modifica-se mediante o riso, o choro, a ira e muitas outras alterações. As
paixões violentas tendem a despertar descargas motoras, como, por exemplo, andar de
um lado para o outro rapidamente sem parar, dar murros em mesas ou proferir
repetidamente em voz alta “juro”. Tudo isto representa uma válvula de escape.

As pessoas reagem de modo diverso. O que a uns relaxa e distende, a outros dilata
as paixões. É assim que com frequência se cometem crimes de ameaças, injúrias e até
de grande violência.

Nos crimes passionais há que distinguir os crimes pseudo-passionais e os crimes


passionais puros. Os primeiros devem ser encarados pelo direito penal sem restrições, os
segundos implicam já uma noção psicopatológica. São estes que caem no conceito
habitual de crimes passionais. Para os caracterizar é preciso atender à constituição do
criminoso, à potencialidade delituosa e à fraca resistência aos choques emotivos e aos
embates das paixões, a extensão e intensidade da ideia fixa, do estado emocional e das
interpretações delirantes. É importante ainda distinguir se o indivíduo actuou
patologicamente e se o seu estado passional excedeu os limites fisiológicos.

149
J. Pinto da Costa

Na base de muitos crimes passionais está o ciúme. O que caracteriza a convicção


ciumenta é que as representações amorosas interpõem-se entre o indivíduo e a realidade
e esta não é percebida pelo apaixonado senão através do secreto desejo de estar
convencido do erro. No raciocínio do amoroso há um mundo de representações sãs do
ponto de vista fisiológico e psicológico. Mas a vivência do ciúme é em si mesma penosa
e implica sempre o sentimento de dúvida ou de ruptura da sintonia amorosa, ou, pelo
menos, de intuição do perigo de perda definitiva. Há ainda a notar a sensação de
inferioridade ante o rival e o desprezo por parte do outro parceiro amoroso. É
importante não descurar o papel relevante do ambiente social e dos costumes. O crime
passional é um acontecimento raro nos povos nórdicos, enquanto é endémico nos latinos
e nos meridionais.

Dá a impressão de que a essência psicológica do estado ciumento não é a


desconfiança nos outros, mas sim o julgamento que eles fariam do ciúme. Um indivíduo
pode reagir diversamente à vivência do ciúme, adoptando uma atitude de súplica, de
ameaça, de despeito ou de desconsolo, de fuga ou de agressão. A determinação de tais
atitudes é condicionada por vários e complexos factores objectivos e subjectivos.

Do ponto de vista moral e jurídico, o criminoso por ciúme puro pode beneficiar de
uma certa atenuação da responsabilidade criminal desde que seja possível averiguar que
agiu em razão do erro de representação das circunstâncias e que tinha fundada
convicção de que actuou na situação de facto cuja ilicitude a lei reconhece.

A emoção é uma manifestação afectiva intensa e passageira em resposta à


satisfação ou frustração das necessidades naturais, orgânicas e primárias. A paixão é um
estado emocional duradouro ou permanente. Uma pessoa sob uma tensão emocional
aguda apresenta uma reacção de emergência constituída por espanto, medo, furor,
reacção de orientação, reflexo de imobilização, tempestade de movimento que
constituem tentativas de atrasar o equilíbrio fisiológico perturbador. Posteriormente,
surge a reacção da luta ou ergotrópica, resultante da supremacia simpática, ou a reacção
de fuga própria da resposta parassimpática. Tais respostas, às vezes, complicam-se com
desmaio e tetania por hiperventilação. Em tais circunstâncias há uma obnubilação da
consciência mais ou menos profunda, responsável pela prática de actos automáticos e
involuntários.

Do ponto de vista legal, é factor atenuante a prática do crime sob violenta emoção,
sobretudo quando a vítima injustamente provocou o agressor.

As paixões podem ser sociais e anti-sociais, morais e imorais, úteis e prejudiciais.


No âmbito das paixões contam-se os apaixonados que cometem os crimes passionais e
os fanáticos que praticam o terrorismo.

Há pessoas que, em diversas circunstâncias, têm emoções violentas,


acompanhadas de grande impulsividade, incapazes de refrear os seus impulsos, as suas
tendências. Assim, porque as emoções alteram a consciência e a vontade, elas
modificam a capacidade de imputação. Do ponto de vista médico-legal, a emoção e a

150
J. Pinto da Costa

paixão, em princípio, não excluem a responsabilidade penal. Os estados passionais


atenuam a imputabilidade mas, por si só, não conferem inimputabilidade.

Partindo da possibilidade de todo o ser humano, potencialmente, ter alguma


reacção de doente mental no seu percurso vital, é útil destacar os delinquentes por
agressividade, por descontrolo sexual, por tendência criminal, por reacções primitivas e
os delinquentes por convicção.

Delinquência dos doentes mentais é uma designação muito abrangente, de


limitações pouco nítidas, desmercê da definição de doente mental que, modernamente,
extravasa a psiquiatria clássica. Nos primórdios da humanidade, o delito era um
acontecimento natural, posteriormente transformado em fenómeno social e, por fim,
jurídico, sem contudo perder o seu carácter fundamental de facto biológico. A
perspectiva psiquiátrica da delinquência implica o traçado biológico do delito em
confronto com a sua definição actual de conceito jurídico-social.

Grarófalo sustentava que em todos os criminosos existia uma doença ou uma


anormalidade psíquica. Do ponto de vista psiquiátrico, é insustentável que o delinquente
seja sempre um ser psiquicamente anormal ou doente, já que, em muitos deles, não
surgem nenhuns dos dados que permitam afirmar a existência de doença psíquica. O
delinquente não é, pois, necessariamente, um doente psíquico.

Sendo a anormalidade psíquica um desvio importante do termo médio, ela é um


conceito estatístico. Toda a alteração psíquica, que reduz o coeficiente de liberdade de
ser e se acompanha de estruturas vivenciais psicopatológicas, tem um significado
diverso das outras alterações que não atingem este nível. Em certos casos, o tratamento
psiquiátrico pode ser obrigatório. As técnicas terapêuticas de maior aplicação aos
delinquentes são de nível psicoterapêutico e baseiam-se na psicologia e na psiquiatria,
com destaque para a psicoterapia de grupo e vários processos de socioterapia, devendo o
tratamento continuar após a libertação. Deve prestar-se um cuidado especial, no sentido
de atender à responsabilidade individual, à auto-confiança, à capacidade de
comunicação e aos hábitos de trabalho.

Que o sistema prisional actual precisa de mudança é lugar comum


universalmente aceite. Se é certo que a delinquência não deve ser psiquiatrizada,
também é verdade que a prisão não deve colidir com a saúde mental do recluso. Desde a
detenção até à saída da cadeia, após o cumprimento da pena, o delinquente experimenta
uma sequência vivencial plurifacetada. Na detenção, predomina o medo, o temor, a
incerteza e a desconfiança.

Há um conjunto de reacções regressivas a comportamentos fortemente agressivos


ou a condutas relacionadas com a angústia paranóide. Os sentimentos de culpa e
reacções posteriores, ou frustração por interrupção das actividades habituais, são
consequências normais da detenção. Todas estas alterações psíquicas poderiam ser
evitadas ou minoradas se a fase policial e judicial fossem mais abreviadas e o detido
tivesse o maior nível de informação possível de forma a quebrar-lhe o isolamento.

151
J. Pinto da Costa

Para além da detenção inicial, já durante o desenvolvimento do processo, o


delinquente muitas vezes sofre de angústia paranóide, temor, incerteza ou sentimento de
culpa. Durante o cumprimento da pena, pode predominar na prisão um ambiente de
medo e de humilhação. O tratamento dos delinquentes por um número ou alcunha é
despersonalizante, com nefastas consequências. A conservação da saúde do delinquente
exige um âmbito amplo e bem diversificado entre os espaços psicológicos e sociais. A
saída da prisão representa, para um delinquente abandonado, sem emprego, sem
dinheiro e sem família, uma porta sem saída. A prisão aberta, como período de
transição, pode contribuir para a reinserção familiar do ex-delinquente.

São múltiplas as circunstâncias psiquiátricas que alteram o peso jurídico-social


da delinquência. Não basta verificar a existência de uma doença psíquica para admitir a
inimputabilidade, sendo necessária a comprovação de dois vínculos entre a doença
psíquica e o delito, isto é, um vínculo cronológico e um vínculo de adequação. O
transtorno mental transitório previsto na classificação da OMS é uma realidade que deve
ser encarada como alienação passageira.

Na perspectiva psiquiátrica da delinquência é clássica a problemática da


responsabilidade dos neuróticos, cuja criminalidade é muito diminuta, e dos psicopatas.
A propensão destes para o crime atinge proporções extremas e a prática mostra que, em
regra, quando um delinquente é autor de muitos delitos semelhantes, há doença
psíquica. Embora o psicopata seja um doente psíquico, ele quase nunca é alienado
completo no sentido médico-legal, podendo beneficiar de uma diminuição da
imputabilidade.

A interpretação biológica na perspectiva morfo-funcional, no plano dos limites


da normalidade ou anormalidade, pelo melhor conhecimento do sistema nervoso,
constitui uma base sólida para a compreensão etiológica da conduta, das determinações
volitivas e, em termos práticos, da criminogénese.

Certas lesões morfológicas corticais sobretudo nos lobos frontais estão


relacionadas com alterações funcionais do psiquismo superior como a vontade, a
consciência e a lógica, entre outras. É para notar que a relação entre lesões cerebrais e
criminalidade não se refere apenas à gravidade e à extensão daqueles. As pequenas e
ligeiras lesões decorrentes de asfixia neonatal ou de outra etiologia, como os
traumatismos ligeiros, estão na base de certas alterações do comportamento.

O crime, em grande número de casos, é, do ponto de vista biológico, a expressão


dinâmica externa de um comportamento da unidade sómato-psíquica, em face de certas
situações-estímulo da sua própria personalidade e do perimundo, condicionado e
colorido por múltiplos factores derivados de ambos. O delito é a fase final de um
processo biológico mais ou menos longo da personalidade. Assim como na estrutura
normal desta, a componente genética e ambiental são fundamentais, o mesmo surge na
criminogénese. Toda a acção humana obedece, etiologicamente e quanto ao seu
desenvolvimento e configuração, ao ajustamento e configuração dos dois parâmetros
referidos, em condições muito diversas, do ponto de vista qualitativo e quantitativo.

152
J. Pinto da Costa

A perspectiva clínica psiquiátrica e a médico-legal, para efeito jurídico-penal, não


são perfeitamente coincidentes. Mas o objectivo considerado é sempre a pessoa
humana. É inegável que em certo tipo de crimes considerados como não envolvendo
síndromes de transtornos psíquicos, não haveria dificuldade em contá-los neste grupo.
Em certos casos, a conduta criminal assemelha-se a processos mórbidos crónicos.
Noutros casos, esse comportamento significa um episódio agudo de um processo
anormal do ponto de vista psicológico.

Por vezes, pessoas absolutamente normais, não aguentando certos estímulos


psicológicos emocionais muito intensos, reagem por estreitamentos de consciência,
como, por exemplo, uma pessoa apresentar a sua demissão quando, em boa verdade,
não seria o caso disso, mas apenas e quando muito, pedir escusa do desempenho do
cargo. Uma retomada da consciência, a cem por cento, leva-as a uma reflexão,
mantendo-as em exercício.

Um conhecimento profundo da pessoa humana, no sentido da personalidade


biológica, permite-nos prever como essa personalidade agirá, em determinadas
circunstâncias, perante estímulos intrínsecos e extrínsecos. Poderemos, assim, contribuir
para uma melhor compreensão da delinquência e um aproveitamento mais eficaz na
desejável recuperação do delinquente, como homem perturbado no desvio
comportamental em erro de representação das circunstâncias e que tinha fundada
convicção de que actuou na situação de facto cuja ilicitude a lei reconhece.

A criminalidade é diversa consoante a diferenciação sócio-cultural e económica


de uma certa região. O acesso à cultura é igual para todos, mas é muito mais igual para
uns do que para outros.

O criminoso é um reflexo e um motivo de progresso. Na primeira hipótese, o


crime surge da inadaptação a circunstâncias novas por inaceitação do desafio no tempo.
Na segunda, o estudo da conduta humana e a tentativa do seu reajustamento à nova
ordem são o efeito positivo do fervilhar do comportamento humano.

Não vamos insistir na problemática do criminoso político pois, devido à


alternativa do poder político, o mau de hoje é o bom de amanhã. Do seu perfil resulta
sobretudo um inconformismo com as estruturas sociais vigentes.

Quanto maior é a desorganização social, mais frequente é o crime, aumentando


com a inflação, instabilidade política e económica. Encontram-se nas grandes cidades
vários tipos característicos de delinquentes.

Os homicídios e as ofensas corporais, como exemplos de crimes violentos, são o


resultado do endeusamento da força, como processo válido de solução dos conflitos
humanos, em face de ausência de adequada educação e de meio de transmissão cultural.
Os atentados terroristas são um reflexo do retorno à vingança privada. A punição, pura e
simples, nem diminui a criminalidade nem recupera o criminoso. O que falta é a
humanização da pessoa.

153
J. Pinto da Costa

Que o crime tem relação com o álcool é uma evidência comprovada há largos
anos. O alcoolismo é a toxicodependência por excelência para nós portugueses.

Na perspectiva criminológica, o álcool actua como elemento causal directo,


originando alterações psíquicas que podem constituir, por si só, causa de delitos, mas
que pode também ser um elemento indirecto, como acontece quando revela certas
tendências criminais latentes ou acentua uma predisposição para a delinquência.

Há muita semelhança entre os criminosos e os alcoólicos na sua atitude para com


a sociedade e desta para com eles. Ambos são infractores das normas sociais aceites
como padrão. Nesta infracção aos códigos sociais, a sociedade reage contra eles,
rejeitando-os e adoptando medidas punitivas que muitas vezes levam os infractores a
descerem até padrões mais anti-sociais. Factores psicológicos, sociais e possivelmente
constitucionais indicam a etiologia destes tipos, sendo multifactoriais na sua origem,
mas os factores predisponentes podem ser comuns a ambos. São frequentes histórias de
passados pobres, lares desfeitos e más relações familiares. Estes factores conduzem a
uma insegurança, ansiedade, culpa e agressão.

Tanto o alcoolismo, a delinquência, como qualquer perturbação mental ou


distúrbio nervoso, são vulgares entre filhos de pais alcoólicos, proporcionando um mau
exemplo, um clima doentio e emocionalmente desequilibrado que interfira com o
desenvolvimento emocional das crianças e da sua capacidade para ter relações
emocionais satisfatórias.

Há que distinguir entre duas possibilidades. Nos criminosos alcoólicos, o distúrbio


básico é devido a alterações da personalidade, enquanto no caso dos alcoólicos
criminosos a perturbação é um processo doentio imposto pelo alcoolismo, que vai
gradualmente alterando e minando a personalidade primitiva numa tal extensão que um
certo número originalmente muito diferente de tipos de personalidade assume um tipo
semelhante de personalidade alcoólica. Felizmente, estas alterações da personalidade
são reversíveis, incluindo as ideias criminosas, se o indivíduo deixar de beber.

Entre os alcoólicos excessivamente criminosos há muitas variedades: alguns


basicamente psicóticos, outros mentalmente subnormais ou com personalidades
inadaptadas, que se tornam alcoólicos agressores crónicos, e ainda alcoólicos que foram
caindo em condutas anti-sociais e a maioria são criminosos que evidenciam tendências
criminosas antes de se tornarem alcoólicos. As linhas de demarcação entre os vários
tipos nem sempre são muito claras.

Num estudo comparado das características de alcoólicos internados em hospitais e


alcoólicos detidos em prisões concluiu-se que ambos os grupos provêm das classes
sociais mais baixas, havendo diferenças acentuadas quanto às implicações criminais e
médico-sociais, no que respeita à idade, personalidade e ao meio ambiente. Esta
diferença relativa à maneira de pensar, de sentir e de se comportar afasta-se das normas
sociais tanto para os criminosos como para os alcoólicos e constitui uma personalidade
característica, mas enquanto esta modificação precede o acto de beber nos criminosos

154
J. Pinto da Costa

alcoólicos e constitui a sua personalidade própria, ela é secundária e adquirida


posteriormente nos alcoólicos criminosos. Em regra, 60% dos crimes estão relacionados
com o álcool embora o alcoolismo contribua mais para crimes menores do que para
grandes crimes.

Os delitos cometidos por pessoas alcoólicas são praticados, em muitos casos, por
razões económicas, incluindo a passagem de cheques sem cobertura. Outros crimes
maiores, como os roubos à mão armada e os homicídios, são praticados por indivíduos
não alcoólicos mas que beberam em excesso na ocasião do crime.

Os alcoólicos jovens, com uma história de comportamento anti-social, podem


surgir, em regra, como indivíduos que cometem piores crimes que os alcoólicos de
meia-idade. O aparecimento do alcoolismo na idade jovem pode mostrar um grau mais
grave de desajustamento, precedendo e conduzindo ao abuso do álcool. Estes alcoólicos
jovens internados revelam-se personalidades psicopáticas com grandes dificuldades em
integrarem-se numa terapêutica de grupo e que reincidem após o tratamento ou mesmo
durante ele. Outros doentes internados, como, por exemplo, os de meia-idade, que
nunca tinham mostrado tendências anti-sociais, começaram a beber durante uma década
e tornaram-se infractores. Em alguns destes indivíduos surgem condutas delinquênciais.

A maioria dos criminosos sob a influência do álcool situa-se em idades jovens.


Admite-se que a maioria das infracções destes não seria cometida se as suas tendências
agressivas não tivessem sido libertadas pela acção do álcool. É natural que do mesmo
modo que para os alcoólicos criminosos, de um modo geral, também os jovens
criminosos alcoólicos constituam um grupo muito heterogéneo. Alguns, basicamente
com personalidades psicopáticas, também criariam problemas com a lei sem beberem e
outros seriam influenciáveis por más companhias. Por alteração grave e instabilidade da
personalidade, pelo abuso do álcool, o criminoso alcoólico tem, teoricamente, uma
tarefa mais árdua do que o alcoólico criminoso pois as suas tendências já vêm de trás. O
criminoso alcoólico deve ser fortemente encorajado e ajudado a deixar de beber, pois,
enquanto continuar a fazê-lo, qualquer tentativa de lidar com a sua personalidade
alterada será inútil.

O álcool está intimamente relacionado com a mendicidade e o desemprego, pois


que a preguiça, a instabilidade ou a inaptidão social levam à vagabundagem, à
ociosidade, ao parasitismo, ao abandono da família e ao furto de alimentos por falta de
meios económicos. Estas formas menores de furto e de vagabundagem, por vezes,
causam protestos violentos, com fraseado obsceno dos alcoólicos, ao serem presos.

O álcool influencia o desenvolvimento dos vários comportamentos anti-sociais e


delituais, havendo uma criminalidade específica relacionada com condutas criminais do
tipo explosivo. Em certos estados de excitação alcoólica em que há impetuosidade
sexual e relaxamento da frenação inibidora, verifica-se sexualidade agressiva como
violações e exibicionismos. As vítimas de tal agressividade são, por vezes, os próprios
filhos. Não encontrando solução satisfatória nas actividades do seu ambiente, algumas
pessoas procuram refúgio no álcool.

155
J. Pinto da Costa

O álcool liberta o indivíduo das inibições controladas no estado de sobriedade e


permite a emergência de desejos latentes para actividades sexuais anormais como, por
exemplo, a pedofilia. A luxúria sexual é, muitas vezes, aumentada pelo álcool e conduz
à prática sexual com crianças. No caso de violação, o álcool é um factor adjuvante
comum neste tipo de relação sexual. Qualquer resistência normal da mulher pode
desaparecer sob a influência do álcool, havendo casos de homens que, intencionalmente,
levam as mulheres a beberem em excesso, para as violar com mais facilidade. Entre as
situações de alcoolismo crónico destaca-se o delírio de ciúme, frequentemente
responsável por numerosos homicídios.

Em muitas ofensas corporais, os agressores e a vítima estão sob a influência do


álcool em grau variável. É de lamentar que um grande número de jovens use facas e
navalhas quando sai à noite, alegando que é para auto-protecção, sendo no entanto para
ameaçar ou ferir quando surgem discussões.

A estreita relação entre o álcool e o crime é evidenciada pela incidência masculina


(30%) e feminina (17%) de doentes alcoólicos com cadastro criminal (7%). Calcula-se
que a percentagem de presos recidivantes, dependentes do álcool em crimes ligeiros, é
cerca de 34%.

A dipsomania desempenha um papel importante na delinquência juvenil, sendo


para notar o aumento do consumo alcoólico nos últimos vinte anos. O consumo de
bebidas alcoólicas deixou de ser mero passatempo dos grupos juvenis, passando a ser
um meio para atenuar a sua aversão perante as próprias acções anti-sociais ou delituais
já que só muito raramente o jovem delinquente tem capacidade suficiente para as
empreender entregue a si próprio. É sob a influência do álcool que se cometem actos de
vandalismo, que se incomodam as pessoas que passam na via pública, que se furtam
automóveis ou motorizadas, que se agridem pessoas e praticam roubos maiores.

É fundamental ensinar os jovens a beber, já que se é facto que um radicalismo


abolicionista é intolerável não é menos certo que as grandes doses são manifestamente
más para o próprio e para os outros.

A agressividade e a violência estão estreitamente relacionados com a fome, a


sede, a cólera, a alegria, cujo desenvolvimento se processa segundo uma sequência
invariável no que toca ao seu carácter explosivo, invasor e hegemónico.

O que caracteriza um comportamento pré-criminal é o estado de não necessidade


de cumprimento, o que leva a uma inaceitação de qualquer norma, o que origina uma
insubmissão genérica, que muitas vezes não tem grande repercussão prática porque tais
comportamentos não chegam às malhas da justiça como cuspir na rua ou, por exemplo,
levar um cinzeiro do café.

Apesar de conservar a inteligência, muitas vezes de nível superior ao normal, o


delinquente é transformado pela ausência irredutível de um comportamento insubmisso
a qualquer disciplina indispensável à vida social na qual se encontra inserido

156
J. Pinto da Costa

(não-desejo mais forte do que o desejo, anulação da necessidade, recusa de conhecer a


sua desinserção, receio obsessivo do ordenamento social), como exemplo passional
negativo que deixa a razão intacta, mas incapaz de contornar o obstáculo passional.

É inegável a importância dos factores sócio-afectivos, nomeadamente o papel da


família ou do grupo na génese da tendência criminal. Há dúvidas quanto à possibilidade,
para além do plano teórico, da existência de algum elemento de natureza bioquímica de
actuação cerebral, para determinadas reacções comportamentais, digamos para certos
comportamentos desviantes, mais ou menos estereotipados.

Isto leva-nos a reflectir na questão de todos os condicionamentos sociais e


culturais que rodeiam e organizam a violência humana serem de certa maneira anulados
por uma ausência fundamental do comportamento.

Na dimensão humana do crime importa recordar que a maior parte da conduta


relaciona-se com a sobrevivência. O cérebro é alertado e mobilizado de múltiplas
maneiras para permitir que o organismo satisfaça as suas necessidades, resista aos
inimigos e neutralize as ameaças. Ele intervém na motivação e nos aspectos emocionais,
provavelmente como o mecanismo mais antigo e mais importante ao serviço da
sobrevivência.

A motivação implica o conhecimento do equilíbrio físico-químico corporal, para


que toda a situação que origine a fome ou outras necessidades básicas prossiga a
conduta ou sequência de condutas que satisfaçam a necessidade e mantenham a
integridade corporal. O sistema nervoso primitivo estava organizado e era adequado
para transformar os impulsos básicos (fome, sede, impulso sexual e de conservação) na
correspondente forma de conduta (alimentação, bebida, reprodução e, conforme as
circunstâncias, defesa, hostilidade e agressão).

Qualquer forma de conduta de cidadão normal cumpridor dos códigos deriva de


forças bipolares de recompensa (satisfação, gratificação, prazer) e de castigo
(insatisfação, frustração, dor), cujo objectivo é evitar o castigo e conseguir a satisfação.
O desequilíbrio desta bipolaridade equilibrada pode despromover a pessoa humana a
criminosa, debatendo-se nas malhas da lei.

A emoção amplia muito as respostas da conduta, tornando-as mais específicas e


mais adaptadas às solicitações do ambiente. O medo, ao motivar a pessoa, fazendo-a
cautelosa, tende à preservação da espécie. O irado elimina os obstáculos que se opõem à
sobrevivência. Também pelo medo surge a atitude amistosa que promove a
socialização. As condutas anti-sociais relacionam-se com dois sistemas etiológicos
interactivos. O interno, devido a psicopatologia e à sua conflitualidade e, outro, externo,
proveniente das normas sociais dialecticamente transmitidas pela comunidade. Ainda
que marcadas por actuações, por vezes violentas, as condutas anti-sociais não são
sempre criminosas nem mesmo agressivas, podendo ser provocantes, isto é,
interrogativas. Elas levantam a questão dos interditos e das transgressões que cometem,
individual ou colectivamente, como em certas famílias acontece.

157
J. Pinto da Costa

As conflitualidades subjacentes intrapsíquicas e interpsíquicas permitem a


passagem ao acto na forma de desorientação ou sideração, quer se revelem por quadros
depressivos, neuróticos ou psicóticos. Com o devido respeito pelo Direito, o crime não é
apenas um fenómeno jurídico-social, mas sobretudo um fenómeno biológico da
personalidade humana. A pessoa humana é una. Corpo e alma, soma e psique, matéria e
espírito são palavras sinónimas. É sobre cada pessoa, individualmente, que actuam
factores endógenos recebidos da carga hereditária dos antepassados e exógenos que o
ambiente e o peri-mundo introduzem no corpo e no espírito, factores que originam e
moldam a disposição criminógena e configuram a morfologia biológica, social e jurídica
do crime. Este nos primórdios da humanidade era exclusivamente um fenómeno natural,
que depois se transformou em social, a seguir em jurídico, mas sem deixar de ter sempre
um cariz de facto biológico.

O crime, como acção humana, é a resposta normal ou anormal (patológica),


preferencialmente mais anormal do que patológica, consciente ou inconsciente, de uma
pessoa, a uma situação-estímulo duplamente endógena e exógena. Por outras palavras, é
uma resposta da personalidade e do mundo circundante, simultaneamente, de um modo
transitório, permanente ou periódico.

A criminalidade é tão antiga como a própria sociedade. A compreensão do delito,


como fenómeno de patologia social, implica o conhecimento do comportamento
humano. O essencial para entender o fenómeno criminal na sua totalidade consiste em
considerar, por um lado, a infracção jurídica e o acto social e, por outro, a pessoa
humana e o seu estado perigoso.

A defesa da sociedade exige que o fenómeno criminal seja considerado numa


perspectiva dupla, como abstracção jurídica e como realidade humana e social. Um
conhecimento profundo do ser humano, no sentido da personalidade biológica,
permite-nos prever como a personalidade agirá, em determinadas circunstâncias,
perante certos estímulos intrínsecos e extrínsecos. Podemos, assim, contribuir para uma
melhor compreensão da criminalidade e um aproveitamento mais eficaz na desejável
recuperação social do delinquente, como pessoa perturbada no desvio comportamental.

Para além do delito como entidade jurídico-social, ele encerra, na perspectiva


psicológica da delinquência, um envolvimento biológico sómato-psíquico, da
personalidade humana. É sobre esta unidade que actuam os factores intrínsecos do
património genético individual e os exteriores provenientes do ambiente e que o
peri-mundo projecta e dá forma à disposição delictógena e se enquadram, caso a caso, a
morfologia biológica, social e jurídica do delito.

O facto delitivo representa biologicamente o acto terminal, como resultante final


de uma estruturação habitualmente anormal da personalidade. Ele é, também, o início
de um outro processo jurídico, que pretende averiguar se aquele facto representa uma
acção ou omissão voluntária, típica, anti-jurídica, culpável e punível. É assim que o
delito é uma unidade biológico-social juridicamente estabelecida convergente de dois
aspectos essencialmente distintos.

158
J. Pinto da Costa

A existência de um crime depende de uma lei que o tipifique e o sancione, pois


que a pena é o seu carácter predominante como fenómeno jurídico. Trata-se, por isso, de
um conceito relativo, que surge como consequência lógica de factos considerados
nocivos para o indivíduo e para a sociedade e que o Estado, na defesa de ambos, tipifica
e estabelece as respectivas sanções e medidas de segurança.

Numa abordagem simplificada da questão, recorda-se que foram os crimes que


criaram as leis que os definem e não a inversa. O legislador ordenou, classificou,
tipificou todo um conjunto de acções ou omissões voluntárias, considerado nocivo, para
o indivíduo e para a sociedade, no espaço e no tempo.

O crime, como acção humana, é uma resposta normal ou patológica consciente ou


não, de uma determinada personalidade, a uma situação duplamente estimulante, de
cariz intrínseco e extrínseco. O crime é assim. Na personalidade unitária individual e na
ambiental, latu sensu, encontram-se o fundamento etiológico e circunstancial que
condiciona a conduta criminal e a morfologia geral da acção.

Assim como "não há doenças, há doentes" significa que a doença é um episódio


de carácter individual, que não se repete exactamente do mesmo modo noutro doente,
também "não há crimes, há criminosos". Para compreender o crime temos que
aprofundar o estudo da personalidade do autor.

Não é possível valorizar um acto apenas pelo seu exame, por mais típico que
aquele seja, sem um pormenorizado estudo das causas, motivos e circunstâncias que
moveram a vontade, sem uma análise da intencionalidade que impulsionou o seu autor.

Deduzir a intenção, pelo estudo externo do fenómeno, poderia conduzir-nos a


erros grosseiros. É por isso que ao discernir sobre a intenção de matar, o nível
conclusivo deve ser prudente, pois o fenómeno é essencialmente subjectivo.

A "tendência criminal" não é um estado ou fase final, mas, antes pelo contrário é
um aspecto inicial susceptível de evolução e desenvolvimento e, portanto, submetido a
influências do meio.

A biologia do crime é algo controversa. Nos anos 60, um facto científico quase
renasceu o criminoso nato de Lombroso, agora num ângulo diferente. Três
investigadoras do Medical Research Council, de Edimburgo, as doutoras Patrícia
Jacobs, M. Erunton e M.M. Melvilie publicaram, em 1965, um trabalho sobre conduta
agressiva, subnormalidade mental e cromossoma XYY (Agressive behaviour mental
and subnormality and the XYY male). Após a determinação do cariótipo em
delinquentes perigosos e anormais detidos em estabelecimentos prisionais, encontraram
uma percentagem de 4,56% de homens portadores de um cromossoma Y
supranumerário, coincidindo com a grande estatura e agressividade deles.

Uns anos antes (1959), Patrícia Jacobs chamou superfêmea a uma mulher que
tinha uma trissomia XXX. Por analogia, designou os homens XYY superhomens
agressivos, sublinhando a sua elevada perigosidade e a conveniência de severas medidas

159
J. Pinto da Costa

de segurança. Há que ponderar devidamente as ilações decorrentes de tais achados. É


facto que existem famílias nas quais se encontram delinquentes em cada geração, mas
tal não significa mais do que a preponderância de um certo tipo de personalidade
anormal, com maior tendência para delinquir que se herda, mas sim um determinado
tipo de personalidade mais propícia para cair na alçada da lei. Há criminosos que não se
cansam de delinquir.

É evidente que o crime não se herda, mas as qualidades biológicas individuais são
determinantes indiscutíveis da conduta, As dúvidas levantadas pela descoberta de
Jacobs e colaboradoras levaram outros investigadores a rever a situação, com destaque
para os trabalhos de Dérobert, Lejeune e Lafon, em 1969. Estudos de Price e Whatmore,
em 1967, indicam, comparativamente, as percentagens de crimes em delinquentes com
cariótipo XYY e delinquentes de cariótipo normal XY, respectivamente de 9% e 7,70%
nos delitos contra a propriedade e de 0,90% e 2,60% nos delitos contra as pessoas.

O Professor Léon Dérobert, titular de Medicina Legal na Faculdade de Medicina


de Paris, a propósito de um crime ocorrido naquela cidade, em 1965, estabeleceu a sábia
doutrina de que a comprovação de um cromossoma Y supranumerário não permite
concluir, por essa única circunstância, pela incapacidade para delinquir.

Interpretação curiosa sobre o crime é aquela que relaciona os relatos de situações


criminais com a pessoa que os lê, ouve ou vê noticiados. Parece demonstrado que quem
procura novidades e acontecimentos pára, lendo pormenorizadamente este ou aquele
crime, e tanto mais, consoante a violência que o acompanhou. Dizem alguns que esta
predilecção pela actualidade criminal indica que a leitura surge como um pretexto para
realizar, com boa consciência e sem perigo, mediante a sua imaginação, os homicídios,
as violações e as torturas que, pelos costumes, timidez ou mero recato, alguém não se
atreve a cometer na realidade. É habitualmente admitido que, na comunicação social,
uma secção do género permite uma realização imaginária e simbólica de perversões
inconfessáveis e que a sua leitura desencadeia um processo psicológico único,
consistindo na identificação de quem lê e de quem mata.

Toleramos que um jovem na idade da prestação do serviço militar aguarde o


comboio no fim-de-semana, lendo jornais do género. A nossa complacência não é
democraticamente extensível se for um adulto a fazê-lo. Parece irrefutável que embora
ávida de uma minoria, a imprensa sensacionalista goza de má reputação como, aliás, os
que a lêem. Com boa ou má reputação, o facto é que, quanto pior, mais se lê, às claras
ou às escondidas.

É possível que tudo isto seja demasiado simplista. Embora se admita que a leitura
de um semelhante tipo de literatura não seja totalmente inocente, é, contudo, errado
explicar, como motivação de tal atracção somente o desejo de matar ou torturar em
sonhos. Na hipótese de haver um processo de identificação, não é obrigatório que ele se
faça com a figura do homicida. Pode relacionar-se com a vítima ou inclusive com o
polícia que conduz a investigação.

160
J. Pinto da Costa

Merece uma breve referência o crime de guerra. Falar deste é puro eufemismo,
como se a guerra moderna pudesse ser combatida pela dissimulação ou a falsificação de
um resultado: o do imaginável. O crime, tornado total, aniquila a concepção que dele se
pode ter. Tal não é mais que a impotência das nossas concepções em face da situação
nuclear. São absurdas as queixas contra o prosseguimento das experiências nucleares,
pese a quem pesar. Urna decisão política que suprimisse todas as outras decisões do
mesmo género deixaria de ser uma decisão política.

A responsabilidade, no sentido convencional da palavra, extingue-se para um acto


que não dá lugar a perguntas. Não esqueçamos que o ser humano pode ser um
criminoso, mas é sobretudo um ser racional.

O crime não pode, assim, ser distanciado da perspectiva humana que lhe
representa a estrutura nuclear.

Bibliografia
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Rocha, J.L.M. e colab – (2005) – Entre a reclusão e a liberdade. Vol I, Almedina, p.11

161
J. Pinto da Costa

Traumatologia forense - lesões corporais


1 - CONCEITO JURIDICO DE TRAUMA

2 - CONCEITO DE LESÕES CORPORAIS

3 - TIPOS DE LESÕES CORPORAIS

3.1 – LEVES

3.2 - GRAVES,

3.3 - GRAVÍSSIMAS

3.4 - SEGUIDAS DE MORTE

3.5 – LESÕES CORPORAIS produzidas por energias mecânicas – contusões e feridas;

3.6 – LESÕES produzidas por instrumentos perfurantes, cortantes, contusos e mistos

4 – CONCLUSÃO

A Medicina Legal é a área da Medicina onde são estudados os meios de auxiliar a justiça na elucidação dos

fatos, que só podem ser desvendados com o conhecimento médico, sendo esta composta de regras

médicas, jurídicas e técnicas, para realização de perícias, as quais irão elucidar a verdade sobre um fato

em que a justiça está interessada em descobrir toda a verdade.

O nosso tema de estudo são as lesões corporais, sendo esta uma das mais importantes, a Traumatologia

Médico-Legal, chamada por doutrinadores de Traumatologia Forense, tem vital importância, pois é

responsável em fornecer elementos fundamentais que levam a compreender as causas que produziram

lesões a um individuo, analisa as características e o grau do dano causado, mostra qual a forma de

energia , e os objetos utilizados .

1 – CONCEITO DE TRAUMATOLOGIA FORENSE:

A Traumatologia Médico Legal é responsável pelo estudo das lesões e estados patológicos, que são

produzidos na forma de violência sobre o corpo humano, sendo elas recentes ou tardias, com maior

interesse nas áreas, penais e trabalhistas, e menor na área cível.

Para Hélio Gomes, ¨ Estuda as lesões corporais, que são infrações consistentes no dano ao corpo ou à

saúde, física ou mental, e resultantes de traumatismos, tanto materiais como morais".

O estudo da Traumatologia forense para FRANÇA (2008) é o ramo da Medicina Legal que estuda a ação

de uma energia externa sobre o organismo do indivíduo (FRANÇA, 2008), ou seja, é o estudo das lesões e

estados patológicos, imediatos ou tardios, produzidos por violência sobre o corpo humano.

2 – CONCEITO DE LESÃO CORPORAL:

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J. Pinto da Costa

É o que atinge a integridade física ou psiquica dos ser humano, representam os elementos que

determinaram o crime, determinadas legalmente no Código Penal Brasileiro no art.129 e parágrafos , são

classificadas quanto a sua intensidade em : leve, grave e gravíssimas.

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa

Sujeito passivo é o que padece da lesão.

Para Nelson Hungria no Direito penal, a lesão corporal é "toda e qualquer ofensa ocasional à normalidade

funcional do corpo ou organismo humano, seja do ponto de vista anatômico, seja do ponto de vista

fisiológico ou psíquico".

Para FRANÇA, (2008) as lesões corporais são, vestígios deixados pela ação da energia externa ou agente

vulnerante, que podem ser , fugazes, temporárias ou permanentes, podendo ser superficiais ou

profundas.

3. TIPOS DE LESÃO CORPORAL: As lesões Corporais podem ser de natureza:

3.1 – LESÃO LEVE

A lesão de natureza leve é aquela onde há ausência das lesões grave e gravíssima, onde é registrado de

forma pericial a existência da ofensa, consubstanciada em dano anatômico (comprometimento da

integridade corporal) ou perturbações funcionais (comprometimento da saúde). Usualmente a lesão

apurada no primeiro exame ( corpo de delito) requer novo exame dentro de 30 dias ( exame

complementar), para se confirmar a inexistência das conseqüências mencionadas nos parágrafos do artigo

129 do CP, concluímos assim que é configurada como lesão leve, as lesões não tidas como grave ou

gravíssima.

A pena para esses casos é de três meses a um ano de detenção, e, conforme a Lei n o 9.099/95, em seu

art.88, a instauração de inquérito policial e a ação penal dependem da representação da vítima.

As conseqüências das lesões leves são são equimoses, escoriações e feridas contusas, o percentual em

relação ao total das lesões corporais é de 80%.

3.2 - LESÃO GRAVE:

Lesão Corporal Grave ocorre quando o agente utiliza-se de culpa, a vontade de causar e ofender à sua

vitima, será considerada grave se causar: Incapacidade para as ocupações habituais normais durante 30

dias, ou Debilidade permanente de membros, sentido ou funções.

A debilidade é a perda de força o enfraquecimento,resultado de um dano anatômico ou funcional,

portanto, as funções passíveis de debilitação são as atividades de órgão ou aparelhos do corpo Humano.

(rins,coração,olhos,ouvidos e mastigação).

A determinação legal encontra - se no § 1o do art.129, CP, que em seus incisos resultem em: I -

incapacidade para as ocupações habituais, por mais de 30 (trinta) dias; II - perigo de vida; IV - aceleração

de parto:

O perigo de vida, antes não era considerada uma lesão grave, por a recuperação ocorrer menos de um

163
J. Pinto da Costa

mês, se enquadrando nas lesões leves, com o advento do Código Penal de 1940 esta falha foi corrigida,

sendo relacionado a gravidade com o risco que o paciente estaria correndo , decorrente da ofensa

recebida.

Aceleração de Parto, trauma físico ou psíquico, existe a antecipação do parto com expulsão do feto,

desrespeitando o período fisiológico, quando ocorrer o óbito fetal, e o resultado for aborto, a lesão

transforma-se em gravíssima.

A perícia médica deve ser realizada logo após a lesão no menor espaço de tempo, e pode ser repetida

após trinta dias, buscando constatar se a vítima já está apta a exercer suas atividades e ocupações

habituais.

Para a doutrina, e essa é uma posição majoritária, a incapacidade cessa quando a vítima reúne condições

razoáveis de retomar suas ocupações, sem que haja risco de agravamento da lesão.

Conforme estudos, as lesões causadas por fraturas, são as que mais incapacitam, alcançando período

superior a trinta dias, com exceção das fraturas nasais, onde a recuperação da vítima é menor.

3.3 - LESÃO GRAVÍSSIMA:

A definição doutrinária para lesões corporais de natureza gravíssima é decorrente do agravamento

punitivo elencado no § 2o do art.129 do Código Penal brasileiro, e vinculam-se com as lesões que venham

a causar: I - incapacidade permanente para o trabalho; II - enfermidade incurável; III - perda ou

inutilização de membro, sentido ou função; IV - deformidade permanente; V – aborto.

As lesões com maior probabilidade de colocar em risco a vida da vítima são:• Feridas penetrantes do

abdômen e do tórax; • Hemorragias abundantes; Estados de choque;Queimaduras generalizadas; •

Fraturas de crânio e da coluna vertebral, sendo assim, só cabe ao perito determinar se há risco que levem

o paciente a morte por se tratar de um prognóstico médico.

Debilidade permanente de membro, sentido ou função, ocorre quando há perda de força, o

enfraquecimento, resultante de um dano anatômico ou funcional. Inclui-se ainda nesta categoria a perda

de um ou dois dedos, os membros, braços e pernas, são os apêndices do corpo, podendo ficar debilitados

permanentemente em conseqüência de lesões.

Os Sentidos são visão, audição, tato, olfato e paladar, mecanismos sensoriais responsáveis pelo

relacionamento do indivíduo com o mundo, podem ser afetados causado por traumas direto sobre um

desses órgãos, ou no crânio, embora, os órgãos como, rins, coração, olhos, ouvidos, mastigação, também

ficam passiveis de parcial debilitação.

A Incapacidade pode ser permanente para o trabalho, sendo definitiva, porem a Lei trata de qualquer

atividade, não apenas ao trabalho específico da vítima. A enfermidade Incurável, é qualquer estado

mórbido de lenta evolução,que venha a resultar na morte da vítima ou que, mesmo tendo cura, está se dê

a longo prazo. Perda ou Inutilização: de membros, sentido ou função: Decorre da Mutilação ou

Inutilização permanente de membro,sentido ou função. Mesmo que continue existindo o apêndice físico

164
J. Pinto da Costa

sua inoperância,ou perda de funcionamento,caracterizam o tipo penal. Deformidade Permanente: Os

danos aparentes,estéticos,que afetem a subjetividade da vítima,aborrecendo ou causando-lhes incômodo;

podendo inclusive afetar sua auto-estima.Aborto: A situação aqui descrita faz referência ao aborto

preterintencional,quando o agente quer apenas lesionar a vítima,mas acaba provocando o aborto.

3.4 - LESÃO SEGUIDA DE MORTE:

Quando correr a lesão corporal e o resultado for morte, o artigo 129 § 3º - e as evidencias apontarem que

o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo, a Traumatologia Médico Legal será,

essencial para oferecer os elementos técnicos e científicos ao juízo, pois esta fornece dados objetivos de

que forma a à pessoa foi efetuada, observados a natureza e os resultados graves.

3.5 - AS LESÕES PRODUZIDAS POR AÇÃO MECÂNICA:

Energia mecânica é aquela capaz de modificar um corpo em seu estado de repouso ou de movimento,

produzindo neste, lesões. Podem ser causados por armas, punhais, revólveres, facas, foices, machados,

ou por punhos, pés, dentes, ou qualquer outro meio, máquina, animais, veículos, explosões.

Os resultados podem repercutir interna ou externamente, podendo ocorrer com o impacto de um objeto

em movimento contra um corpo parado, ou o contrário, ou ainda, com os dois em movimento.

FERIDA PUNCTÓRIA. Os instrumentos perfurantes, como chave de fenda, é capaz de produzir uma lesão

punctória

FERIDA INCISA: A faca é instrumento cortante, contem gume e produz a ferida incisa.

FERIDA CONTUSA: O choque de superfícies pode se dar de forma ativa ( quando o instrumento é

projetado contra a vítima) ou passiva ( quando a vitima vai de encontro ao objeto, como ocorre numa

queda). Devido à elasticidade da pele, esta se conserva íntegra e a lesão se produz em nível profundo.

São várias: escoriação: quando o atrito do deslizamento lesa a superfície da pele- raspão -arrastamento,

atropelamentos etc. sendo a equimose a contusão mais freqüente causada pelo soco, que geram bossas e

hematomas, que podem ser sanguíneas.

AS LESÕES MISTAS são aquelas causadas por instrumento que reúnem dois lados, o Pérfuro cortante

( punhal- canivete) Lesão pérfuro-incisa, Instrumento corto contundente ( machado-foice) Lesão

cortocontusa, Instrumento pérfuro contundente ( projétil) Lesão pérfurocontusa, causam Fraturas –

cicatrizes – Infecção

Os Instrumentos cortantes, atuam pelo deslizamento de um gume sobre uma linha, seccionando os

tecidos. Ex. lâmina de barbear, bisturi, já os Instrumentos contundentes, agem pela pressão exercida

sobre uma superfície pelo seu peso ou energia cinética de que estejam animados, esmagando os tecidos.

Ex: porrete, solo, pedra arremessada;

A mesma energia que lesa as estruturas superficiais do corpo humano, pode ser transmitida às estruturas

profundas. Dependendo de sua intensidade, da resistência natural das estruturas profundas e da sua

condição momentânea, fisiológica ou patológica, a energia transmitida pode ser suficiente para dar causa

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J. Pinto da Costa

a lesões das estruturas profundas (fraturas ósseas, luxações, rupturas ou contusões de órgãos internos).

4 - CONCLUSÃO:

O presente trabalho teve como objetivo explicar a verdadeira função da traumatologia forense onde a sua

principal função e buscar respostas para o meio jurídico em elucidações de casos onde o ser humano

venha sofrer em seu organismo lesões ocasionadas por forças externas que proporcionam anomalias

funcionais do mesmo.

Para muitos, é uma especialidade médica, embora com um corpo próprio de conhecimentos, que reúne o

estudo não somente da medicina, como também do direito. uma especialidade, que serve mais ao Direito

que propriamente à Medicina.

Ela busca definir em seu estudo, os efeitos das agressões físicas e morais, também a determinação de

seus agentes causadores, gerando parâmetros como, quanto tempo e o momento em que a lesão foi

gerada, de que forma foi cometida e qual instrumento utilizado, ou seja todos os modos operante da

ação. Este reconhecimento é feito através do exame pericial na vítima e no local do fato, sendo

posteriormente denominado de exame de corpo de delito.

O corpo de delito não é feito apenas na vitima, mas em todo o local em questão e no instrumentos

utilizados para a pratica do delito. Esta forma de prosecimento deve ser adotada para que as autoridades

solicitantes possão definir suas conclusões.

Sendo assim a traumatologia forense e de fundamental importancia para o ramo do direito ou meio

judiciario principalmente para os casos tipificados no art. 129, do C.P

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