You are on page 1of 6

A FICÇÃO COMO MÉTODO: UM CONTO DE FICÇÃO CIENTÍFICA E

A ONTOLOGIA ORIENTADA AOS OBJECTOS

Por Catarina Patrício Leitão

Patrício, C. 2014. “A Ficção como Método: Um Conto de Ficção Científica e a


Ontologia Orientada por Objectos”, in Interact: Revista On-line de Arte, Cultura e
Tecnologia, Julho 2014 (http://interact.com.pt/21/ficcao-como-metodo/)(ISSN: 2182-
1402)

Na tentativa de pensar a técnica como algo vivo e pulsante, como o vírus de


Burroughs em «Feedback de Watergate para o Jardins do Éden» (1970)
(http://realitystudio.org/texts/electronic‐revolution/), Steven Shaviro usa um conto
de ficção científica como método de acesso à Ontologia Orientada aos Objectos1 –
um contemporâneo movimento metafísico que integra várias linhas de pensamento
a convergir para uma crítica geral ao antropocentrismo. «The Universe of Things» de
Gwyneth Jones descreve o encontro entre os seres humanos e uma comunidade
extraterrestre, os «Aleutas», cuja presença na Terra se afigura altamente traumática
apenas porque detêm uma cultura técnica consideravelmente superior. Sem que
tenham infligido qualquer tirania para com os terráqueos, rasgam o
antropocentrismo entranhado na metafísica e ciência, lançando o início da era pós‐
humana.

Para os Aleutas, as ferramentas são extensões biológicas deles mesmos:


«They built things with bacteria… Bacteria which were themselves traceable to the
aliens’ own intestinal flora, infecting everything» – relata o conto (ver em:
www.shaviro.com/Othertexts/Things.pdf). Dotados de uma tecnologia

1
«The Universe of Things» de 2011 em www.shaviro.com/Othertexts/Things.pdf. O conto homónimo
de Gwyneth Jones data de 1993:
http://www.aqueductpress.com/books/UniverseOfThings.php. O artigo de Shaviro foi
apresentado no primeiro simpósio dedicado à Ontologia Orientada aos Objectos – Object Oriented
Ontology – contou ainda com a participação de Ian Bogost, Levi Bryant e Graham Harman, e
aconteceu a 23 de Abril de 2010 em Georgia Tech. Para mais consultar http://ooo.gatech.edu/
intrinsecamente viva, os Aleutas exteriorizam‐se sob todas as formas, trocando
informação e gerindo a memória quimicamente. A tão peculiar noção de totalidade
destes estranhos colonos é contrastante com nossa herança filosófica, que sublinha
a qualidade fáctica, demasiado alicerçada na cultura, que vê as máquinas como
objectos inertes e propriedade de alguém, um usuário qualquer isolado na sua
individualidade. Ademais, é sempre inquietante pensar que um objecto possa ser
«animado». Tem tanto de poético como de malicioso. Dizia‐o Paul Valéry: «Il me
souvient ici d’une féerie que j’ai vue enfant dans un théâtre étranger. Ou que je crois
d’avoir vue. Dans le palais de l’Enchanteur, les meubles parlaient, chantaient,
prenaient à l’action une part poétique et narquoise. Une porte qui s’ouvrait sonnait
une grêle ou pompeuse fanfare. On ne s’asseyait sur un pouf, que le pouf accablé ne
gémît quelque politesse. Chaque chose effleurée exhalait une mélodie»
(http://classiques.uqac.ca/classiques/Valery_paul/conquete_ubiguite/valery_conqu
ete_ubiquite.pdf). É essa inquietante presença vive nas fantasias de Walt Disney
(https://www.youtube.com/watch?v=MetM68Lr9U8).

No conto de Jones a acção começa com um extraterrestre que vai com o seu
automóvel a uma oficina mecânica. Para o ser humano que o recebe, o conserto é
tanto uma honra quanto motivo para as maiores inquietações, precisamente porque
irá consertar o carro ao mais técnico dos «clientes». E para se mostrar conhecedor
da arte do motor, o mecânico resolve reparar o automóvel «à mão», mantendo
assim aceso um último reduto do orgulho humano. São claras as suas intenções: é a
manualidade que restaura o seu papel enquanto indivíduo técnico, usando aqui as
notas simondonianas (http://interact.com.pt/20/notas‐simondon/). Sabemos como
antes da era da máquina, enquanto reparava ou construía o «mundo» à mão, o
sujeito experienciava‐se enquanto indivíduo técnico, um papel que perdeu aquando
do surgimento da máquina. É enquanto indivíduo técnico que o homem se
reconhece como fazedor de mundos, conhecendo‐se a si próprio. Ou melhor, como
diz Alexandre Kojève, «The man who works recognizes his own product in the World
that has actually been transformed by his work: he recognizes himself in it, he sees
in it his own human reality, in it he discovers and reveals to others the objective
reality of his humanity, of the originally abstract and purely subjective idea he has of
himself. By this act of finding itself by itself, then the [working] Consciousness
becomes its own meaning‐or‐will; and this happens precisely in work, in which it
seemed to be alien meaning‐or‐will»
(http://athemita.files.wordpress.com/2013/05/kojeve‐introduction‐to‐the‐reading‐
of‐hegel.pdf). Lembre‐se a libertação dos objectos técnicos que Simondon
recomendou. É que o trabalho é uma forma de libertação e, tal como o diz Kojève, o
trabalho que liberta o homem foi antes o trabalho do escravo. É por isso que que a
libertação humana implica libertar a máquina.

Voltemos ao mecânico. Um indivíduo técnico é aquele que opera com


ferramentas e tal manualidade requer conhecimento técnico. Daí que o mecânico
queira arranjar o carro à mão (sugerimos a leitura de um curioso livro: Shop Class as
Soul craft de Matthew B. Crawford, filósofo e mecânico norte‐americano. Ver:
http://matthewbcrawford.com/). Porém, na história de Jones, a manualidade que
assegura a desejada posição – a de indivíduo técnico – desencadeia uma experiência
terrível. Enquanto conserta o carro, o mecânico sofre uma alucinação e experiencia
o mundo perceptivo dos Aleutas: vê a chave inglesa tornar‐se numa espécie de
músculo, pleno de agenciamentos e vontades que o transcendem. Aterrorizado, o
ser humano deseja fervorosamente voltar à solidão e à segurança do mundo a que
estava habituado, um mundo no qual os objectos se mantêm a uma certa distância.

Seguindo Steven Shaviro, a história de Gwyneth Jones é um método de


entendimento e acesso à ontologia orientada aos objectos. A ficção evidencia como,
por um lado, as coisas, tal como os sujeitos, são actores (actant segundo Bruno
Latour). Por outro lado, sugere que, quando usamos determinados objectos, é
necessário que nos aliemos a eles. Aqui chegamos a Harman. Enquanto operadores,
esperamos sempre que as coisas se submetam aos nossos desígnios quando, na
verdade, não basta usá‐las. Com efeito, temos de nos ajustar à natureza das
ferramentas de forma a podermos rentabilizá‐las ao máximo.

Shaviro invoca Heidegger e seu conceito Zuhandenheit (manualidade), por


considerar que o conceito tool‐being (ser‐ferramenta) de Harman deriva do
primeiro. Para Graham Harman, autor associado ao realismo especulativo, todas as
entidades são tool‐being (ser‐ferramenta), o que se aplica a quaisquer
equipamentos, desde as ferramentas aos edifícios, e nenhuma pode ser reduzida à
sua vorhandenheit, portanto a ser simplesmente dada. Uma coisa não é uma mera
ocorrência nem pode ser reduzida a uma lista de propriedades. Com isto, Harman
critica a leitura mais comum do conceito heideggeriano, já que considera estar para
além da manipulação prática das coisas porquanto, por mais inúteis que possam
parecer, as coisas sempre exercem o seu princípio de realidade dentro da totalidade
do sistema das entidades: «Inevitably, we will have to leave the human world of
tools so as to advance on the truth of being itself. But the fact that Heidegger
generally aims his tool‐analysis only at lamps and tables and other human products
is irrelevant. Whatever his own examples may be, we can speak of the readiness‐to‐
hand even of dead moths and of tremors on a distant sun. As “useless” as these
things may be, they still exert their reality within the total system of entities.»
(http://www.scribd.com/doc/135574657/Graham‐Harman‐Tool‐Being)

Então, e se todas as coisas se encontram dissolvidas na ideia de ser‐


ferramenta sob a «capa geral» de equipamento, todas essas entidades se fundem
num sistema de referência único, que põe em risco a sua singularidade. É isto que
nos faz tomar as ferramentas por garantidas, sem termos em conta as suas
propriedades enquanto corpos únicos. Ou seja, o ser humano dá por garantido o seu
«efeito‐equipamento» sem notar como estão intrinsecamente constituídas de redes,
alianças, mediações e retransmissões. Mas ao mesmo tempo, e por outro lado, o
ser‐ferramenta também envolve a ligação inversa. Quando uma ferramenta falha
naquilo que lhe é esperado, então o seu «ser excessivo» é nos revelado. O que
Harman descreve, radicalizando Heidegger, é uma espécie de insurreição de
elementos distintos, que nos bombardeiam com a sua energia:: «But for Heidegger,
there is already an uprising of distinct elements from this all‐devouring context, a
surge of minerals and battle flags and tropical cats into the field of life, where each
object bears a certain demeanor and seduces us in a specific way, bombarding us
with its energies like a miniature neutron star.»
(http://www.scribd.com/doc/135574657/Graham‐Harman‐Tool‐Being). Sabemos
como essa libertação de energia em potência aflige Heidegger. Quando isto
acontece, a ferramenta está mais‐do‐que presente, isto é, está demasiado reactiva
ou agressiva para que se poder manusear em segurança. Lembre‐se como mecânico
de automóveis, assombrado pela pavorosa ideia da carne dos equipamentos, é
levado a sentir terror e náusea, sufocando perante a opressiva totalidade do ser‐
ferramenta e que abruptamente o asfixia com a sua ostensiva autonomia. Um
qualquer equipamento mais‐do‐que presente revela‐se afinal como as ferramentas
experimentadas pelo mecânico da história de Gwyneth Jones – daí que a ficção
alcance metaforicamente aquilo que a realidade tem de indizível.

É este desvelamento que se torna o fundamento da ontologia orientada ao


objecto, diz Steven Shaviro, para quem a proposta de Harman trata de descrever o
esforço «em fazer justiça à erupção de personalidades a partir do império do ser»
(www.shaviro.com/Othertexts/Things.pdf). Concluindo, o ser‐ferramenta não se
reduz ao uso nem à pura presença: dizê‐lo, isso sim, seria uma pura ficção.

Segundo Graham Harman, a relação entre objectos não é teórica ou prática,


nem mesmo epistemológica. É antes estética – «aesthetics becomes first
philosophy» (www.shaviro.com/Othertexts/Things.pdf). É a estética que abarca a
«singularidade» e a «suplementaridade» das coisas. Por mais que um determinado
objecto se gaste ou se consuma, existirá sempre algo que, no limite, não é passível
de ser incorporado. Apenas a estética poderá resolver tal relação, desvelando o
objecto por si mesmo, em si mesmo, para além do entendimento ou usabilidade que
possa servir. A esse «deslumbramento» induzido pelos objectos, Harman chama‐lhe
allure, isto é, uma fascinação que força o sujeito a reconhecer a sua integridade, a
partilhada sensação de que o objecto está para além das suas propriedades: «We
need a general term to cover both the comic and charming ways of encountering the
sincerity objects, and the best term I can think of is allure. […] Within the realm of
allure, there is a difference between humor, which feels superior to its object, and
charm, which feels enchanted by it. Finally, we have given passing descriptions of
many different sorts of charm, including metaphor, beauty in general, the hypnotic
experience of repetitious drumbeats or machine movements, as well as the cute
actions generally undertaken by small animals or children, or by strangers in new
contexts who misfire slightly in copying the locals»
(http://www.glissementsdeterrain.net/pdfs/harman‐graham‐‐guerrilla‐metaphysics‐
phenomenology‐and‐carpentry‐things.pdf). Um objecto é sempre mais do que a
soma das suas propriedades, sempre existindo e actuando independentemente da
forma particular em que o alcançamos. Harman reconhece em Heidegger uma saída
do correlacionismo, traçando a direcção para ontologia orientada ao objecto. Porém
parece‐nos altamente duvidoso que Heidegger possa fornecer tal quadro
interpretativo2.

2
Em Heidegger, o perigo acompanhava a técnica moderna porque esta opera na
captura do mundo natural. Entender a natureza inteiramente disponível para a
Humanidade é uma leitura correlacionista, da qual nos pretendemos distanciar. Para
a mecanologia de Simondon, e longe de avaliar a técnica como instaladora de
domínio e controlo do homem sobre o mundo natural, a técnica vive na ressonância
entre natureza e sujeito, e recompõe‐se enquanto mediadora. Simondon atenta
sobre a realidade dos processos através da sua teoria da individuação, quebrando a
clássica bipolaridade entre sujeito e objecto. Para além disso, reconhecer «o modo
de existência dos objectos técnicos» (Du Mode de Existence des Objets Techniques,
1958) passa por libertá‐los do regime de escravatura a que estão submetidos, e
poder assim descobrir como estes estranhos entes são afinal os reais mediadores da
relação humana com o mundo natural. Ver: http://interact.com.pt/20/notas‐
simondon/)

You might also like