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Christopher Bollas A Sombra do Objeto — Série Analytica — Diregao . JAYME SALOMAO Tradugio ROSA MARIA BERGALLO IMAGO EDITORA — Rio de Janeiro — 1 O Objeto Transformacional Sabemos que devido ao nascimento humano ser consideravel- mente prematuro, o infante depende da mie para sobreviver. Servindo como um ego suplementar (Heimann, 1956), ou como um ambiente facilitador (Winnicott, 1963), ela tanto mantém a vida do bebé quanto transmite ao infante, por meio de seu idioma préprio de maternagem, uma estética do ser que se torna uma caracterfstica do self do infante. A mancira da mae segurar a crianga, reagir A sua gesticulagao, selecionar os objetos € perceber as necessidades internas do infante re- presenta sua contr ibuigio para o meio de cultura infante-mie. Em um di lar que pode ser desenvolvido apenas pela mae ¢ pe a linguagem dessa relagio é a dos ges- tos, do olhar e do discurso intersubjetivo. Em seu trabalho sobre o relacionamento miic-crianga, Win- nicott enfatiza 0 que poderiamos chamar de tranqtiilidade — a mae prové uma continuidade do ser, “contém” o infante em um ambiente criado por cla e que facilita seu crescimento. E ainda, tendo como fundo essa tranqiiilidade reciprocamente intensificada, a mae ¢ a crianga negociam continuamente a ex- periéncia intersubjetiva que mantém cocsos os rituais da ne- cessidade psicossomiatica: a alimentagio, a troca de fraldas, 0 acalmar, o brincar ¢ 0 dormir. I. evidente que, como o “ou- tro” > edo infante, a mac transforma o ambiente i interno ¢ ex- bebé. Edith Jacobson propoe que SOSOS=~S~S 27 quando a mie coloca a crianga de brucgos, tira do bergo, troca sua fralda, segura nos bragos ou poe no colo, emba- la, acaricia, beija, alimenta, sorri, fala e canta para ela, ofe- rece-lhe, n&éo somente todos ostipos de gratificagao libidinosa, mas também estimula_¢ prepara o sentar, o fi- car de pé, 0 engatinhar, o andar, o falar ¢ tudo n ais, que é o desenvolvimento da atividade do ego funcional. (1965, p- 37) Winnicott (1963b) denomina essa mae abrangente de mie “ambiental” porque, para o infante, ela representa o am- biente em sua totalidade. Acrescentaria a essa idéia a de que a mée é menos significativa e identificével como um objeto do que como um pi », sendo este associado As transformagées inter- nas e externas cumulativas. Gostaria de identificar a primeira experiéncia subjetiva do infante com o objeto, como um obje- to transformacional, e este capitulo trataré do trago na vida adulta desse primeiro relacionamento. Um objeto transforma- cional é identificado experimentalmente pelo infante com processos que alteram a experiéncia do self. uma identifica- cdo que surge de um relacionar simbidtico, onde o primeiro objeto é “conhecido”, nao tanto por o colocarem em uma re- presentag4o objetal, mas como uma experiéncia recorrente do ser — um conhecimento mais existencial, em oposigao ao re- presentativo. Enquanto a mie ajuda a integrar o ser do infan- te (instintivo, cognitivo, afetivo, ambiental), os ritmos desse processo — da(s) nao-integracAo(des) para a(s) integragao(6es) — informam mais a natureza dessa relagao “objetal” do que as qualidades do objeto como objeto. Ainda nao totalmente identificada como um outro, a mae é experienciada como um processo de transformagao ¢ esta caracteristica dos primeiros tempos de vida perdura em certas formas da busca-do-objeto na vida adulta, quando_o objeto é procurado por sua fungao de indicador da transformagio. As- sim, na vida adulta, 0 que se procura nao é possuir 0 objeto; melhor dizendo, 0 objeto é perseguido para que se renda a 28 cele como um meio que altera o self, onde o sujeito-como-supli- cante sente-se agora como o receptor dos cuidados ambiento- somaticos identificados com as metamorfoses do self. Tratando-se de uma identificagdo que se inicia antes da mae ser representada mentalmente como um outro, € uma relagio objetal que nao emerge do desejo, mas de uma identificagao perceptiva do objeto com sua fungSo: o objeto como um transformador ambiento-somatico do sujeito, A meméria des- sa primeira relagao objetal manifestase na busca da pessoa por um objeto (uma pessoa, um lugar, um acontecimento, a ideologia) que promete transformar o self. Essa concepgao da mae sendo experienciada como uma transformagio é bascada em varios aspectos. Em primeiro lugar, assume a fungio do objeto transformacional porque altera, constantemente, 0 meio do infante para satisfazer as necessidades dele. Nio existe nenhum delirio interferindo na identificagAo que o infante faz da mae com a transforma- cao do ser através do conhecimento simbidtico; é um fato, pois ela realmente transforma seu mundo. Em segundo lu- gar, as proprias capacidades emergentes do ego do infante — mobilidade, percepgdo e integragao — também transfor- mam seu mundo. A aquisigéio da linguagem é, talvez, a transformacio mais significativa, mas aprender, a lidar com os objetos, a diferencia-los ¢ a lembrar-se daqucles que nao estao presentes sao realizagdes transformativas, pois resul- tam em mudanga do ego, que altera a natureza do mundo interno do infante. Nao é de surpreender que o infante identifique essas realizagées do ego com a presenga de um objeto, uma vez que a mie deixando de manter o meio faci- litador, devido a uma auséncia prolongada ou a cuidados er- rados, pode dar origem ao colapso do ego e precipitar a dor psiquica. Com a criagio pelo infante do objeto transicional, o pro- so transformacional é deslocado da mae-ambiente (onde se originou) para_intimeros objetos-subjetivos, de forma que a fase transicional seja a herdcira do periodo transformacional, u 29 uma vez que o infante evolui da experiéncia do processo para a articulagaéo da experiéncia. Usando o objeto transicional, o infante pode brincar com a ilusio de sua prépria onipoténcia (diminuindo a perda da mac-ambiental com delirios produti- vos e fasicos da criagéo do self-c-o-outro); pode alimentar a idéia de livrar-se do ser objetal, sobrevivendo, no entanto, a impiedade dessa idéia; ¢ pode achar nessa experiéncia transi- cional a liberdade da metafora. O que foi um processo real pode ser deslocado para equagées simbdélicas, as quais, se cor- roboradas pela mae, atenuam a perda do ambiente-mac origi- nal. Em certo sentido, 0 uso do objeto transicional _é_0 primciro ato criativo do infante, um fato que niéo demonstra simplesmente a capacidade do ego — tal como o apreender — mas que indica a experiéncia subjetiva do infante em relagio a essas capacidades. A PROCURA DO OBJETO TRANSFORMACIONAL NA VIDA ADULTA Creio que nao prestamos atengdo ao fendmeno da vida adulta que é a busca coletiva e de grande amplidao de um objeto, identificado com a metamorfose do self. Em muitas crengas re- ligiosas, por exemplo, quando o sujeito acredita na possibili- dade real de uma divindade transformar completamente o meio, ele est4 mantendo, dentro de uma estrutura mitica, os termos do vinculo com o primeiro objeto. Esse saber per- manece simbidtico (isto é, reflete a sabedoria da {é) e coe- xiste lado a lado com outras formas de conhecimento. No mundo laico, vemos como a esperanga investida em varios objetos (um novo trabalho, uma _mudanga para. outro pais, umas férias, uma troca de relacionamento) pode repre- sentar ao mesmo tempo, tanto demanda de uma experiéncia transformacional, quanto a continuagio do “relacionamento” com um objeto que signifique a experiéncia da transformagio. Sabemos que 0 mundo da propaganda vive do trago desse ob- jeto: o produto anunciado promete, geralmente, alterar o 30 meio externo do sujeito e conseqiientemente mudar o seu hu- mor interno, A busca de tal experiéncia-pode gerar_esperanga ¢ até mesmo um sentimento de confianga ¢ de perspectiva mas, em- bora parega estar fundamentada no futuro, buscando at alguma coisa para transformar o presente, é uma procura-de-objeto que, recorrentemente, desempenha o papel de uma meméria do ego pré-verbal. I. geralmente por ocasidéo do momento es- tético, a ser descrito no préximo capitulo, que o individuo sente uma comunicacio profunda csubjetiva.com.o objeto (uma pintura, um poema, uma aria ou sinfonia ou uma paisa- gem natural) e experimenta uma estranha fusdo com este, fato que torna a evocar um estado do ego que prevaleceu durante os primeiros tempos da vida psfquica. No entanto, essas oca- sides que poderiam ser tio significativas sio menos importan- tes como realizagées transformacionais do que o sio por sua qualidade singular — a sensagio de despertar lembrangas de alguma coisa, nunca apreendida cognitivamente mas conheci- da existencialmente, ¢ que seré mais a meméria do processo ontogenético do que o pensamento ou as fantasias que ocor- rem depois de estabelecido o self. Esses momentos estéticos nao sao responsdveis pela meméria de um determinado acon- tecimento ou relacionamento, mas evocam uma sensacio psi- cossomatica de fusaéo que é a recordagao do sujeito relativa ao objeto transformacional. Essa antecipagio de ser transforma- do por um objeto — este préprio uma meméria do ego do processo ontogenético — induz o sujeito a uma atitude reve- rencial para com o objeto de mancira que, a transformagio do self mesmo nao ocorrendo no futuro, na proporgio que al- cangou durante os primeiros anos de vida, leva o sujeito adul- to a rotular esses objetos de sagrados. Embora minha atengio aqui esteja voltada para a expe- riéncia estética positiva, é bom lembrar que uma pessoa pode procurar uma experiéncia estética negativa, porque esse mo- mento “marca” suas primeiras experiéncias do ego e registra a estrutura do conhecido-nio-pensado, Alguns pacientes fron- aL teiricos, por exemplo, repetem situagdes traumaticas porque, por meio destas, recordam-se existencialmente de suas ori- gens. Conseqiientemente, na vida adulta, procurar 0 objeto transformacional é relembrar uma primeira experiéncia obje- tal para rememorar, nao cognitivamente mas vivencialmente — através de uma experiéncia afetiva intensa — um relaciona- mento que foi identificado com as experiéncias transformacio- nais cumulativas do self. Sua intensidade como uma relagio objetal nao é devida ao fato de ser um objeto do desejo, mas pelo objeto ser identificado com essas poderosas metamorfo- ses do ser. No momento estético o sujeito reexperiencia, bre- /vemente, através da fusiio do ego com o objeto estético, uma \ sensagao da atitude subjetiva para com o objeto transforma- \cional, embora essas experiéncias sejam memérias que volta- \ram a desempenhar um papel ¢ nao recriagées. A busca de equivalentes simbélicos para 0 objeto transfor- macional e a experiéncia com a qual ele esta identificado pros- seguem na vida adulta. Desenvolvemos a crenga em uma divindade, cuja auséncia, ironicamente, é considerada de tanta importancia para a existéncia do homem quanto sua presenga. Vamos ao teatro, aos museus, ver paisagens da nossa escolha, em busca de experiéncias estéticas. Podemos imaginar o self como o facilitador transformacional e podemos nos cercar-de condigées para alterar aquele meio que nao somente impossi- bilite como também perturbe a reflexao. Nesses devaneios, o self, como objeto transformacional, encontra-se em algum lu- gar do futuro e mesmo o divagar sobre planos do futuro (o que fazer, aonde ir etc.) é, quase sempre, um tipo de prece psiquica para a chegada de um objeto transformacional: uma segunda vinda laica de uma relagio objetal experienciada no perfodo mais remoto da vida. Como diz Winnicott, néo deverfamos nos surpreender que diversas psicopatologias surjam da desilusio causada pelo fracasso desse relacionamento. O objetivo do jogador é esse objeto transformacional que ira metamorfosear seu mundo in- terno e externo, por completo. Um criminoso procura 0 cri- 32 me perfeito para transformar 0 self internamente (reparando as falhas do ego e satisfazendo as necessidades do id) e exter- namente (trazendo riqueza e¢ felicidade). Algumas formas de erotomania podem ser tentativas de estabelecer 0 outro como objeto transformacional. A procura do crime perfeito ou da mulher perfeita nao é somente uma busca do objeto idealizado, mas também 0 reco- nhecimento por parte do sujeito de uma deficiéncia na expe- riéncia do ego. A procura, mesmo que sirva para separar a ma experiéncia do self do conhecimento cognitivo do sujeito, é no entanto, um ato semioldgico que significa a busca da pessoa por uma determinada relacao objetal, associada 4 transforma- Gao do ego e A reparagio da “falta basica” (Balint, 1968). Também é possivel que as pessoas que se tornaram joga- doras reflitam a convicgio de que a mie (aquela que eles consi- deram como sua mie) nao ira chegar com as provisdes. A experiéncia do jogo pode ser vista como um momento estéti- co, no qual a natureza da relagéo dessa pessoa com a mae esta representada. EXEMPLO CL{NICO Uma das psicopatologias mais comuns da relagéo objetal transformacional ocorre no self esquizdide, o paciente que pode possuir um ego com riqueza de atributos (inteligéncia, talento, capacidade, sucesso), mas que pessoalmente é despo- jado ¢ triste, sem estar clinicamente deprimido. Peter é um solteiro de 28 anos cuja expressio triste, apa- réncia desgrenhada e roupas sem cor sao, em parte, ligeira- mente atenuadas por seu senso de humor sarcastico que nao Ihe traz alivio, pela inteligéncia e educagao que usa em bene- ficio dos outros, mas nunca em seu préprio. Foi diagnosticado por seu clinico geral como deprimido, mas seu maior proble- ma era uma tristeza implacdvel e a solidio pessoal. Desde seu rompimento com a namorada, tinha vivido sozinho em um apartamento, dispersando-se durante o dia em intimeros ¢ in- 33 definidos trabalhos. Embora seus dias fossem de uma ativida- de turbulenta e organizada, cle os atravessava de uma forma passivamente agitada, como se estivesse sendo manipulado agressivamente pela prépria organizagio de seu trabalho. Uma vez em casa, iria desabar desmazeladamente no conforto de seu apartamento, onde ancoraria diante da televisio, come- ria uma refeigio ja pronta ¢ insuficiente, se masturbaria e aci- ma de tudo ficaria ruminando obsessivamente sobre o futuro e lamentando sua atual “falta de sorte”. Todas as semanas, sem falta, ele iria em casa visitar sua mae. Tinha a impressio de que a vida dela era falar sobre ele, ¢ assim para manté-la fe- liz era necessario que cla o visse. Uma reconstituigéo dos primeiros anos de sua vida trouxe como resultado o seguinte: Peter nascera em um lar de traba- Ihadores, durante a guerra. Enquanto seu pai defendia o pais, o lar foi ocupado por numerosos parentes afins. Peter foi a primeira crianga nascida na familia ¢ era excessivamente idola- trado, particularmente pela mae que falava constantemente com os parentes de como Peter iria terminar com a miséria deles por meio de grandes feitos. Sonhadora inveterada de dias dourados por chegar, a verdadeira depressao da mae re- velou-se na forma apatica como cuidava de Peter, investindo toda a sua vivacidade nele como objeto mitico e nao como um verdadeiro infante. Logo depois que a andlise de Peter come- cou, percebi claramente que ele préprio sabia ser, essencial- mente, um mito compartilhado com a mae; na realidade, sabia que ela nio se dedicava a ele-verdadeiro, mas a ele como o objeto de seus sonhos. Como objeto mitico dela, ele sentia sua vida em suspenso € era essa, exatamente, a forma como vi- via. Ele parecia estar se preservando, cuidando das necessida- des somiaticas, esperando pelo dia que iria realizar 0 sonho dela. Mas, por ser o mito da mie, nada podia fazer, somente esperar que alguma coisa acontecesse. Parecia também esva- ziar-se compulsivamente das necessidades do seu verdadeiro self a fim de criar um espago interno para receber os sonhos da mae. Cada visita ao lar era cuidadosamente parecida com o 34 ato da mie alimentar seu filho com uma narrativa. Conse- qiientemente, ele se esvaziaria de desejos e necessidades pes- soais para realizar 0 desejo da mac e se manteria em um estado de suspensao da vida, esperando que 0 mito o chamas- se para uma realidade transformada. Em razao da mie lhe ter transmitido essa funcio crucial de seu objeto mitico, Peter nao experiencia seu espago psiqui- co interno.como seu préprio. O espaco mais profundo existe para o outro; dessa forma, reportando estados profundos do ser, Peter o faz através de uma narrativa despersonalizada, uma vez que essa regio nao é a “de mim” mas a “para ela”. existe uma auséncia marcante em Peter de qualquer sentido do self, nenhuma marca do “eu”, nem mesmo de um “me”. Em vez disso, a representagéo do seu self comporta mais a na- tureza de uma neutralidade em um plano existencial. Ser neu- tro significa para ele estar adormecido, suspenso, inerte. As associagées livres de Peter séo descrigées dos estados “neu- tros”: relatos que divagam sobre as ocorréncias do seu corpo como um objeto despersonalizado. A primeira preocupagio da mie foi o filho permanecer com boa satide para que pudes- se realizar seus sonhos em relagao a ele. Conseqiientemente Peter ficou obcecado com qualquer problema somatico, o qual relatava com um distanciamento quase clinico. Aos poucos, percebi que a estrutura mitica (existente mais na narrativa do que na realidade existencial) encobria o discurso secreto do meio cultural perdido do primciro relacio- namento de Peter com sua mie. Seus estados do ego repre- sentavam pronunciamentos para a mae, que Os usava como 0 vocabuldrio do mito, Se ele se sentia como um acidente devi- do as imperfeigdes do seu ego ¢ a falta de desejos do id, isso era atribufdo ao fato de ele ser o cavaleiro errante da mie, que guerreava por ela e precisava descansar para missdes futu- ras. Se ele se sentia esvaziado de suas relagdes pessoais, nova explicagao era dada a esse fato — a de ser um deus reveréncia- do, do qual nao se poderia esperar um intercambio bem-suce- dido com as massas. Se falava com a mie suspirando, esta, 35 sem buscar a origem do suspiro, Ihe respondia dizendo que nao se preocupasse porque em breve ganharia dinheiro, se tornaria famoso, apareceria na televisio ¢ traria para a familia toda a riqueza que eles mereciam. Seu desespero cxistencial era continuamente deslocado para a narrativa mitica, uma ordem simbélica na qual a reali- dade é usada para popularizar o fantistico. Nas poucas ocasiGes em que tentou obter da mie algum tipo de assisténcia verdadei- ra para a sua vida interior, ela tornou-se raivosa dizendo que 0 infortiinio dele ameagava suas vidas cuja salvagio dependia sé dele. Teria que permanecer a larva dourada, 0 heréi nao nas- cido, aquele que se nao danificasse a fungéo mitica com neces- sidades pessoais seria brevemente langado em um mundo de riquezas e fama além de sua imaginagao. Na transferéncia, Peter falou de si como um objeto que necessitava de cuidados: “meu est6mago esta doendo”, “estou com torcicolo”, “estou resfriado”, “nao me sinto bem”. Falou comigo em uma linguagem de suspiros, gemidos ¢ com uma risada obsessiva que atendia sua necessidade de esvaziar-se de um desejo tumultuado e de obter a minha maior atencao. Es- fregou as maos, olhou para seus dedos ¢ movimentou seu cor- po desajeitadamente como se fosse um saco. Quando percebi que essa atitude toda nao era um divagar obsessivo, servindo como resisténcia, mas sim um discurso secreto evocado do de- senvolvimento de suas primeiras relagdes com a mie, a aten- cao que dediquei a sua linguagem particular Ihe trouxe um alivio imenso. Senti que estava tentando compartilhar um se- gredo comigo através da transferéncia, mas era um proferi- mento secreto, anterior 4 linguagem ¢ mascarado por uma caracteristica enigmatica. Eu sé poderia “ter acesso” a esse meio de cultura apartado falando com ele em sua linguagem: ficar atento a todos os gemidos, suspiros, observagoes sobre 0 corpo etc. Acima de tudo deveria aprender que ele queria ou- vir a minha voz, a qual percebi, aos poucos, ser uma necessida- de sua de um bom som. Minhas interpretagdes eram apreciadas menos por seu contetido e mais por sua fungio de 36 estruturadoras de experiéncias. Raramente ele rememorava 0 contetido de uma interpretagéo. O que apreciava era a sensa- cao de alivio proporcionada pela minha voz. A linguagem de Peter, que compartilhei no inicio da and- lise, refletia os termos de uma mae minimamente transforma- tiva. Mais tarde, quando Peter me convidasse para ser um simples ctimplice do idioma transformacional da mae, eu re- cusaria esse tipo de transformagao (tal como a do mito da lar- ya dourada) em favor de outras mais exeqiiiveis. Enquanto eu analisava esse idioma transformacional, cle cedeu o seu lugar para um novo contexto das inter-relagées_miae-filho, O bri- Thante grupo tinha que ser dispersado pela andlise antes que um novo idioma do relacionar-se pudesse ser estabelecido en- tre eles. O sentido do destino em Peter, 0 seu permanecer como objeto transformacional em potencial para o outro, da a en- tender que nao somente o infante exige a separacio ¢ o de- sencanto da mae transformacional, como também ela deve sofrer um “afrouxamento” acarretado pelas verdadeiras neces- sicades do filho, as quais moderam o desejo inconsciente da mae de ter um infante para que seja seu objeto transformacio- nal. A mie de Peter seguidamente recusou vé-lo ¢ traté-lo como uma pessoa verdadeira, embora tenhamos que admitir possuir ela uma qualidade a qual poderfamos chamar de uma maternagem 4vida. Ela o possufa como um alquimista que guarda o refugo de suas experiéncias, 0 que para ela era o seu tesouro em potencial. As verdadeiras necessidades de Peter continuariam insatisfeitas enquanto a mie insistisse para que cle preenchesse sua sensacao de que o destino Ihe traria uma crianga-libertadora. DISCUSSAO A busca do objeto transformacional, quer no carter narcisi- co, quer no esquizdide, é na realidade um reconhecimento in- terno da necessidade de uma reparacdo do ego e, como tal, 37 algo como uma busca manjaca da satide. Ao mesmo tempo, o idioma de ambos reflete uma mae minimamente transformati- va, um fato que se torna claro na maneira quase sempre pobre com a qual usam o analista na transferéncia. Nos capitulos so- bre a contratransferéncia, debaterei a confrontagéo do analis- ta, frente a frente, ao transferir do idioma transformacional do paciente. Para ficar claro, uma das caracteristicas desses pacientes é a relativa inacessibilidade 4 relagio com o verdadciro outro — falta de percepgao e excessiva retragdo — mas, creio que essas caracteristicas, reflexos de bloqueios no desenvolvimento psi- colégico, também indicam a necessidade do paciente de con- firmar a parte doente como um apelo a chegada da relagaio objetal regressiva identificada com a reparagio basica do ego. Na anilise, isso pode resultar em uma quase total incapacida- de do paciente em relacionar-se com o analista como uma pes- soa real, mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de manter com ele uma relacio intensa, como um objeto transformacio- nal. O que é que o paciente esta tentando estabclecer? Como outros autores ja salientaram (por exemplo, Smith, 1977), esses pacientes procuram um clima especial com o ana- lista, onde as interpretagées dele sao, inicialmente, menos im- portantes pelo seu contetido € mais significativas pelo que é experienciado como uma presenga materna, um retorno em- patico. Na realidade, a chamada neutralidade clinica de ex- pressio — usada ostensivamente para atenuar o temor histérico ou obsessivo do paciente de se sentir criticado e para facilitar a associacao livre do analisando — trabalha de uma forma diferente com os pacientes narcisicos ou esquizdides: estes podem ficar enfeitigados por essa expressio e parecer desatentos ao verdadeiro contetido da interpretagio, desde que o canto da voz analitica permanega constante. Presente- mente, podemos considerar essa situagdo como uma dificulda- de no caminho da “analisabilidade”, ou aceitar que o espago analitico (o prover do meio continente) facilita, nesses pacien- tes, um processo que leva 4 evocacgaéo de um estado profunda- 38 mente regredido e que pode ser parte do caminho necessario para acura. Pela minha experiéncia com esses pacientes, pos- so dizer que uma regressao a essa forma do relacionar objetal acontece, muitas vezes, na primeira sessio de andlise, uma vez que a ecologia do espago analitico (o analista, as interpreta- 6es analiticas, o diva etc.) se torna uma espécie de refiigio. No meu ponto de vista, o paciente é regredido ao nivel da falta basica, mas da mesma forma que cada regressao indica a parte doente da pessoa, ela sugere também a necessidade. da cura. FE indispensavel uma experiéncia inicial das sucessivas transformagées do ego, que sao identificadas com o analista ¢ com o processo analitico, Nesses momentos, 0 paciente expe- riencia interpretagées basicamente pela capacidade que tém de corresponderem aos scus humores, sentimentos ¢ pensa- mentos internos, e esses momentos de comunicagio o levam a “re-experienciar” a relagéo objetal transformacional. Aprecia, também, a forma fundamental de nio ser intrusivo do analista (particularmente o analista que nao exige conformidade de idéias) néo porque propicia a associagao livre, mas porque é sentida como o tipo de relagao necessaria 4 cura. Pa mente, enquanto o paciente regride ao seu estado de necessi- dade, buscando uma transformacgao miraculosa, 0 trabalho costumeiro do analista de escutar, clarificar e interpretar intro- duz um idioma diferente, de vida psiquica em transformagao. Alguns clinicos podem ver esse uso do analista como uma forma de resisténcia, mas se for assim, creio que nos descuida- mos do clima inegavelmente excepcional que criamos para o relacionar. A proposta em si do tratamento faz muitos pacien- tes ansiarem pela regressao; é 0 que estudo nos capitulos 12, 13 € 14, mais adiante. Indicar 0 diva ao paciente, pode induzi- lo, além do mais, a uma sensagao de expectativa angustiante € dependéncia. Nossa credibilidade, nossa forma de nao sermos intrusivos, o uso que fazemos do pensamento empatico para atender as exigéncias do analisando sio, muitas vezes, mais maternais do que foram os cuidados da mae verdadeira. E, nesses momentos, a identificagdéo que o paciente faz do analis- 39 ta com o objeto transformacional nao é diferente daquela que o infante faz da mae com esses processos. Na verdade, exata- mente como a identificagio que o infante faz das transforma- ges do ego com a mie, que é uma identificagéo perceptiva — e€ nao um desejo —, também a identificagao feita pelo paciente nao parece refletir o seu desejo para que sejamos transforma- cionais, mas uma identificagdo perceptiva ¢ rigida que faz do analista um objeto transformacional. No tratamento dos tipos narcisicos, limitrofes (fronteirigos) e esquizdides, essa fase da anilise é tanto necessdria quanto inevitavel. Esse estégio do tratamento é muito dificil para o clinico porque, de certo modo, a andlise do paciente nao esta ocor- rendo e as observagées interpretativas podem se deparar com uma série de rejeigdes: indiferenga, contestagio educada e mesmo raiva. Um desses pacientes poderia até concordar poli- damente com um movimento de cabega, diria que sim, que sa- bia o que cu estava querendo dizer, que estava realmente impressionado com a precisao da minha observacao, mas inva- riavelmente terminaria dizendo: “Mas com certeza vocé sabe que o que vocé disse é sé tecnicamente correto. Nao vai me ajudar na vida pratica e, sendo assim, por mais correta que seja sua observacao nao sei o que vocé pensa que posso fazer com cla.” Estava convencido de que eu sabia como cuidar dele, e mesmo que fosse durante uma hora por dia, desejava que cu o acalmasse. A andlise propriamente dita era vista como uma intrusdo intelectual em sua tranqiiila experiéncia comigo ¢ eu era para ele um tipo de computador de ultima geracio, armazenando seus dados ¢ processando suas necessi- dades em meus bancos de meméria. Estava esperando por uma sessao definitiva, na qual eu surgiria subitamente com a solucio adequada e, em um minuto, resolveria sua vida. Vejo, hoje em dia, essa parte de sua andlise como aquele tipo de re- gressio que é uma re-encenacao da primeira experiéncia obje- tal e acho insensatez o analista negar o fato de que a elaboragio do espago analitico realmente facilita essas recor- dagdes. Se essas regressées so uma resisténcia 4 andlise do 40 self, elas s6 0 sio no sentido em que o paciente deve resistir 4 investigagéo analftica quando prematura, e portanto, irrele- vante. Na transferéncia — que é mais para 0 espago e processo analitico do que para a pessoa do analista — o paciente esta se relacionando com o objeto transformacional, isto é, experien- ciando o analista como mae-ambiental, uma memoria pré-ver- bal que nao pode ser percebida em um discurso que evoque a experiéncia, mas somente naquele que exige a correspondén- cia de seus termos: nao-intrusividade, “holding”, “fornecimen- to”, insisténcia em um tipo de saber simbidtico ou telepatico e facilitagéo de pensamento para pensamento ou de afeto para pensamento. Nessas sess6es, a primeira forma do discurso é ent&éo uma clarificagao que o paciente experiencia como um evento transformativo. As interpretagdes que demandam um pensamento reflexivo ou cuja andlise do self sio freqiiente- mente sentidas como uma exigéncia precoce da capacidade psiquica do paciente podem provocar nele uma reagao de in- tensa raiva ou uma stibita sensagao de inutilidade e desespero. Talvez porque a teoria psicanalitica tenha evoluido de um trabalho com um paciente histérico (que interpretava 0 espa- ¢o analitico como sedutor) ou com o paciente obsessivo (que o adotava voluntariamente como um outro ritual pessoal) ten- damos a considerar as reagGes regressivas ao espago analitico como resisténcias 4 alianga em andamento ou ao processo analitico. Nao obstante, a sexualizagao histérica da transferén- cia e a ritualizagio obsessiva do processo analitico (dissociagado livre?) podem ser vistas como defesas contra o préprio “convi- te” do espaco e do processo analitico para regressio. Assim, na anilise desses pacientes, 0 material psiquico estava facil- mente disponivel, o que podia trazer uma certa satisfagio pois verificava-se que havia bastante grao para o moinho analitico; mas, 0 tratamento, muitas vezes, prosseguia interminavelmen- te sem nenhuma mudanga aparente de qualidade, ou era subi- tamente invadido por material arcaico ou primitivo. Nesses casos, acredito que o analista estivesse desatento e nao visse como uma resisténcia o fato de o paciente nao experienciar a 41 situacio analitica como um convite a regressio. Na realidade, © processo analitico, enfatizando a mecinica da associacao li- vre e da interpretacao das defesas do paciente, poderia resul- tar muitas vezes em uma negagdo da verdadeira relagio objetal que foi “oferecida” ao paciente. Se o analista nao pode admitir que de fato est4 oferecendo um espaco regressivo ao paciente (isto é, um espago que o encoraje a reviver, na trans- feréncia, sua vida infantil), se ele insiste que, em face do convi- te, o “trabalho” deve ser levado a termo, nao é de se surpreender que nessas anilises, paciente e analista possam, tanto prosseguir para um tipo de dissociagéo muitua que nado leva a nada (conluio obsessivo), quanto para uma explosio sti- bita por parte do paciente, freqiientemente chamada de “atua- Gao”. Na minha opiniao, o analista funciona, entéo, como um trago mnémico evocativo do objeto transformacional porque a situagado tanto induzira o paciente a uma recordagio regres- siva dessa primeira relagao objetal, quanto a variagées de resis- téncia a ela: quer a negagio pela sexualizagio, quer a ritualizagio obsessiva, por éxemplo. Vista por esse angulo, a transferéncia é, antes de tudo, uma reagao transferencial a essa relagio objetal primaria ¢ nos ajudaré a observar como 0 paciente rememora sua prépria experiéncia daquela relagaio. Pode haver uma regressio profunda a uma demanda inflexi- vel para que o analista cumpra a promessa do convite ¢ fun- cione de uma maneira magicamente transformadora. Ou, o paciente pode ter bastante satide e insight (compreensao inter- na) das recordagées regredidas para prosseguir com o subse- qiiente trabalho de andlise, permanecendo em contato com os aspectos mais arcaicos do ser. Acredito realmente que, na maior parte do tempo, a passividade de um paciente, sua mu- dez ou expectativa de que 0 analista saiba o que fazer nao sig- nifica uma resisténcia a qualquer pensamento consciente ou préconsciente, mas uma recordacao do primeiro mundo pré- verbal do ser infante com a mae. Se nio reconhecermos que os psicanalistas compartilham da construgéo desse mundo 42 pré-verbal através de seu siléncio, do pensamento empatico e de uma total abstengao de instrugées didaticas, estaremos sen- do injustos com o paciente ¢ ele pode ter raz4o em ficar per- plexo e irritado. A transferéncia fundamenta-se no paradigma da primeira relagao objetal transformacional. Freud, tacitamente, reconhe- ceu isso quando estruturou 0 espago € o processo analiticos e, embora se encontre relativamente pouc isa sobre a relacio mae-crianga na teoria freudiana, poderfamos dizer que ao criar a estrutura analitica Freud transmitiu 0 reconhecimento dessa relagio. O processo psicanalitico constitui uma memoria dessa relagéo primaria ¢ 0 clinicar do psicanalista é uma for- ma de contratransferéncia, j4 que ele relembra por meio do desempenho de um papel a situagio do objeto transformacio- nal. O que Freud nao pode analisar em si préprio — sua rela- cao com a mae — ele representou através da criagéo do espago do processo analitico. Se nao pudermos perceber que, como analistas, estamos desempenhando o papel desse primeiro pa- radigma, continuaremos a agir segundo a cegucira de Freud na contratransferéncia. A busca da transformagao e do objeto transformacional é, talvez, a mais difusa e arcaica relacéo objetal e quero enfatizar que essa busca nao surge do desejo do objeto per se ou, pri- meiramente, do anseio ou da aspiragao. Surge da certeza da pessoa de que o objeto trard a transformagao; essa certeza esta baseada na reconhecida capacidade do objeto de ressuscitar a meméria da primeira transformagio do ego. Debatendo esse assunto, mantenho a idéia de que, embora nenhuma meméria cognitiva da experiéncia do infante com a mae esteja disponi- vel, a busca do objeto transformacional e a indicacao do libe- rador da transformagao ambiental sio uma memoria do ego. Curiosamente, isso é exclusivamente 0 objeto do ego e pode tornar-se do maior impacto ou da maior indiferenca para a experiéncia subjetiva da pessoa em relagio ao seu pré- prio desejo. Um jogador é compelido a jogar embora, subjeti- vamente, possa desejar nao jogar e até odiar sua compulsio 43 em fazé-lo. Em um trecho do livro Moby Dick, de Melville, Ahab sente-se compelido a ir em busca de uma baleia, embora desconhega a origem dessa compulsio interna, Ele diz: “O que é isso, que coisa anonima, inescrutavel, sobrenatu- ral é ela; qual é 0 trapaceiro € oculto mestre e senhor, 0 cruel e impiedoso imperador que me comanda; nesse mo- mento, contra todos os amores € desejos naturais, continuo avangando, forgando meu caminho e pressionando-me todo o tempo; sem descanso, preparando-me para fazer o que, segundo o meu préprio e verdadeiro coracio, jamais ousaria? & Ahab, Ahab? Sou eu, Senhor, ou quem levanta esse brago?” (1851, pp. 444-5) Existe alguma coisa de impessoal ¢ impiedosa na busca da baleia, e na realidade, na de todos os objetos indicados como transformacionais. Logo que as primeiras memérias do ego sao identificadas com um objeto que seja contemporaneo, a relacio do sujeito com o objeto pode tornar-se fanatica € creio que muitos movimentos politicos extremistas indicam uma certeza coletiva de que sua ideologia revolucionaria produzira uma transformacao total do ambiente, libertando cada um da gama de faltas basicas: pessoais, familiares, econdémicas, so- ciais e morais. Novamente, nao é um desejo do revolucionario pela mudanga, ou o desejo do extremista por cla, mas uma certeza de que o objeto (neste caso a ideologia revolucionaria) trar4 uma mudanga surpreendente para 0 observador. CONCLUSOES Trabalhando com certos tipos de pacientes (esquizdides ¢ nar- cisicos) que exageram em uma busca-de-objeto especifica, ¢ analisando alguns aspectos do meio cultural, penso que pode- mos isolar, no adulto, o trago da mais remota experiéncia de objeto: a experiéncia de um objeto que transforma 0 mundo interno ¢ externo do sujeito. Denominei esse primeiro objeto 14 de transformacional, uma vez que quero identificd-lo com um objeto — processo, vinculando assim o primeiro objeto a expe- riéncia do infante com ele. Antes da mie ser personalizada, para 0 infante, como um objeto total, ela funcionou como uma regiao ou fonte de transformagio e, sendo a propria sub- jetividade nascente do infante a experiéncia quase completa das integragées do ego (cognitiva, libidinal, afetiva), o primei- ro objeto é identificado com as alteragées do estado do ego. Com o crescimento do infante e o aumento de sua autocon- fianga, a relagéo com a mae muda — da mae com 0 outro que altera o self para o de uma pessoa que tem sua prépria vida e suas proprias necessidades. Como diz Winnicott, a mae desilu- de o infante em relagao a experiéncia com ele de tinica preser- vadora de seu mundo, um processo que ocorre quando o infante se torna cada vez mais capaz de satisfazer suas pré- prias necessidades e exigéncias. A experiéncia do ego de ser transformado pelo outro permanece como uma meméria que pode voltar a desempenhar um papel nas: experiéncias estéti- cas; em uma grande variedade de objetos transformacionais culturalmente desejados (tais como carros novos, casas, traba- Ihos e férias) e que prometem uma mudanga completa do meio interno e externo; em diversas manifestagdes psicopato- Idgicas dessa memoria, como, por exemplo, na relagao do jo- gador com seu objeto, ou na relagao do fanatico com seu objeto ideoldgico. No momento estético, quando uma pessoa envolve-se em uma comunicagao subjetiva profunda com um objeto, a Cultura personifica, nas artes, diversos equivalentes para a procura da transformagio. Na busca de uma experiéncia subjetiva profunda de um objeto, o artista tanto nos relem- bra quanto fornece ocasides para a experiéncia de memérias, do ego, da transformagio. De certa forma, a experiéncia dos momentos estéticos nado é nem social nem moral; é cu- riosamente impessoal e até mesmo impiedosa, visto que o objeto é procurado somente como o libertador de uma ex- periéncia. 45 Como sustentarei no préximo capitulo, o espago estético permite o desempenho de um papel criativo na busca dessa relagdo objetal transformacional ¢ poderiamos dizer que cer- tos objetos culturais proporcionam experiéncia do ego, que sAo, agora, momentos extremamente radicais. A sociedade, possivelmente, nao pode satisfazer as exigéncias do sujeito da forma como a mic satisfez as necessidades do infante, mas nas artes temos um lugar para essas recordagées ocasionais — as memérias intensas do processo de autotransformagao. Embora todos os analisandos iréo experienciar 0 espago analftico como um convite para regredir aos cuidados de um objeto transformacional e, embora, possa ser muito importan- te para o analista permitir ao paciente uma experiéncia pro- longada de regresséo 4 dependéncia (veja adiante, no capitulo 14), muitos pacientes, como retomarei na parte final deste li- vro, atrairao o analista para uma relacao transformacional pa- tolégica. Por exemplo, alguns analisandos criam confusaio para forgar o analista a inlerpretdé-los mal. Essa é uma transfor- magio negativa e pode representar o ato de transferéncia de uma relagéo patolégica mae-crianga. E claro que isso de- vera ser analisado no final, mas mesmo aqui, no vigoroso “trabalho” interpretativo do analista, acredito que o pacien- te, inconscientemente, o vivencia como um objeto transforma- cional produtivo. A transformagao nio significa gratificagao. O crescimento és6 parcialmente promovido pela gratificagao, ¢ uma das fun- ¢6es transformativas da mae deve ser a de frustrar o infante. Da mesma maneira, os momentos estéticos nao sio sempre ocasi6es bonitas e fascinantes — muitas sao feias e aterradoras, mas, nao obstante, profundamente comoventes por veicula- rem a meméria existencial. 46

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