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1 ' ~

CRlflCA DA ArLIAl RHSfRUIURAÇAO PRODUllVA


1
Uma organização social
nunca desaparece antes
que se desenvolvam todas
as forças produtivas
que ela é capaz de conter:
nunca relações de produção
novas e superiores se lhes
substituem antes que
as condições materiais de
existência destas relações
se produzam no próprio seio
da velha sociedade.
Épor isso que a humanidade
s6 levanta os problemas que é
capaz de resolver e assin, mana
~ atenta, descobrir-se-á
que o próprio problema só ugiu
quando as condções materiais
para o resolver lá existiam
ou estavam, pelo menos,
em vias ele aparecer.

K.Mcrx

·,
Outros fflulos ecltados:

VITRAL DO TEMPO
Vinicius Caldevlla

·. :~ POESIAS 1968-1969
• · Wolney de Allil

FILTROS, MEZINHAS ETRIACAS


As drogas no mla\do moderno
Henrique carneiro

MARXISMO HOJE
James Petras, Jacob Gorender,
Michael lowy, Clauclo Katz,
Osvaldo Cogglola (org.)
NOVAS
TECNOLOGIAS
CRÍTICA DA ATUAL REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
CRÍllCA DA ATUAl RH~lRUJURAÇÃO PRODUllVA

Claudio ~atz
~uy ~1aga
OsvalCo Coggiola
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1
© 1995 - Xamã Editora
1• edição

Edição: Expedito Correia e Carlos Alvarez


Capa: Expedito Correia
Revisão: Álvaro Bianchi e Nenê Leão
Editoração Eletr6nlca: Xamã Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do livro, SP, Brasil)

Katz, Claudio
Novas Tecnologias : critica da atual reestruturação produtiva/ Claudio Katz,
Ruy Braga, Osvaldo Coggiola. - São Paulo: Xamã, 1995.
ISBN 85-85833-01-7
1. Inovações tecnológicas 2. Tecnologia - Aspectos Sociais I. Braga, Ruy. li.
Coggiola, Osvaldo, 1950- Ili. Título.

95-0266 CDD-306.4

Índices para catálogo sistemático:


1. Tecnologia: Aspectos sociais 306.4

Xamã VM Editora e Gráfica Ltda


R. Loefgreen, 943 - V. Mariana
04040-030 - São Paulo - SP
Tel/Fax: (011) 575-2378

Impresso no Brasil
janeirÓ/95
ÍNDICE
Nota dos editores, 7

Claudio Katz
Evolução e Crise do Processo de Trabalho, 9
Origem e Função do Controle Patronal, 11
Inviabilidade e Crise, 23
Pós-Taylorismo, 31

Ruy Braga
luta de Classes, Reestruturaç/Jo Produtiva e Hegemonia, 45
A Crise Contemporânea como Crise Orgânica do Capitalismo Tardio, 53
O Fordismo e sua Crise: Elementos Históricos e Vertentes do
Debate Atual, 83
Forças Produtivas, Hegemonia e Imperialismo, 107
Considerações Finais, 129
Bibliografia, 133

Osvaldo Coggiola
Marxismo e Clas!.es Sociais na Atualidade, 137
A Classe Operária Hoje, 147
A "Civilização do Tempo Livre", 157
Nota dos editores

A oportunidade do lançamento deste livro dando conta do


impacto da aplicação dos .novos métodos de organização da pro-
dução, não poderia ser maior.
Vivemos o momento em que os empresários brasileiros anunciam
um ganho de 30 % na produtividade industrial num período de três
anos, a partir da adoção das novas técnicas de gerenciamento e
produção, sem contratação significativa de mão-de-obra. Ao mesmo
tempo, cresce a inquietação dos trabalhadores diante da terceiri-
zação, da flexibilização, da jornada estafante, entendidas pelos
mesmos como ataques ao emprego, à abertura de novas vagas na
indústria, à condição digna de vida.
A adoção pelas empresas das novas tecnologias e métodos,
acarretam também uma alteração nas relações com os sindicatos. A
negociação diferenciada empresa a empresa, que vem ganhando
força nos pólos industriais, introduz mais um elemento de pertur-
bação neste quadro, podendo levar à descaracterização do papel dos
sindicatos, abrindo, por conseguinte, outra frente. par~ a mesma
crise.
Para discutir os aspectos constitutivos da realidade da produção
capitalista foram reunidos os ensaios que fazem parte deste livro. Os
autores, enfocando o problema de maneiras distintas, conseguem
construir uma crítica consistente e essencial para o entendimento do
mundo de hoje, sendo eles próprios, militantes ativos pelas suas
convicções, em suas respectivas áreas.
Osvaldo Coggiola é doutor em Histórià pela Universidade de
Paris e professor livre-docente de História Contemporânea na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo. É membro do conselho de redação da revista En
Defensa dei Marxismo-, editada pelo Partido Obrero, na Argentina.
Autor dos livros A Revolução Chinesa, A Revolução Francesa e seu
Impacto sobre a América Latina, O Trotsquismo na América Latina
e Questões de História Contemporânea, entre outros. Formado

7
também em Economia pela Universidade de Paris, iniciou seus
estudos em Córdoba, Argentina, sendo obrigado a interrompê-los
perseguido pela ditadura militar.
Ruy Braga é um novo valor, estreando com a competência dos
cientistas sociais experimentados. Formado em Sociologia pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) cursa atualmente o
programa de mestrado da referida universidade. Militante do Partido
dos Trabalhadores, foi coordenador do Diretório Central de Estudan-
tes na gestão 91-92 e atualmente é membro discente junto ao
Conselho Universitário da Unicamp.
Claudio Katz é professor de Economia da Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade de Buenos Aires. Autor de Ecooomia
Latinoamericana - de la Decada Perdida a la Nueva Crisis, colabo-
rador regular de revistas econômicas na Argentina e em toda a
América Latina é também dirigente do Partido Obrero. Trabalhou
para o Instituto de Cooperação Ibero-Americano, na Espanha e como
pesquisador no Conicet (Conselho Nacional de Ciência e Tecnolo-
gia).
Temos certeza de que esta coletânea vai contribuir para despertar
no leitor um senso crítico mais apurado, fundamental para tentar
compreender ~s processos que estão ocorrendo na sociedade con-
temporânea.

8
~
EVOLUÇAO E CRISE DO
PROCESSO DE TRABALHO

Claudio' Katz
ORIGEM E FUNÇÃO DO
CONTROLE PATRONAL

O processo de trabalho constitui o fundamento último de toda


mudança tecnológica. Ao contrário do animal, o intercâmbio
que o homem realiza com a natureza mediante o trabalho não é um
ato instintivo-biológico, mas uma ação consciente. Diante da cone-
xão entre concepção e execução de um trabalho, a tarefa pode
dividir-se e a atividade concebida por um indivíduo pode ser mate-
rializada por outro. A exploração baseia-se nessa ruptura interior do
processo de trabalho, que permite a certos indivíduos planejar,
ordenar e usufruir da tarefa executada por outros.
No capitalismo, essa fragmentação gera o controle patronal sobre
o processo de trabalho, que resulta no divórcio entre a propriedade
e o produto fabricado, no qual se sustenta o processo de valorização.
Se, para acumular capital, é necessário que o assalariado venda sua
força de trabalho por um salário inferior ao produto criado, para que
o operário fabrique as mercadorias também é indispensável que perca
os direitos de pré-conceber seu trabalho, para realizá:-lo eµ1 harmonia
com este planejamento prévio.
Contratando a força de trabalho, quer dizer, utilizando a capaci-
dade muscular e cerebral dos assalariados, o capitalista se apropria
simultaneamente do produto acabado e da forma como será elabo-
rado. Sem esse controle sobre como se trabalha não poderia brotar
mais-valia da atividade manufatureira nem se poderiam realizar
lucros com as· mercadorias que são elaboradas como objetos já
alienados dos produtores durante a fabricação. O processo de
valorização e o processo de trabalho sustentam-se na d~pla expro-
priação do trabalhador, despossuído de uma parte da remuneração
do seu trabalho e do domínio da atividade que realiza durante a
jornada de trabalho.-
Para os neoclássicos, o controle patronal não tem existência
relevante, já que seria um resultado natural do contrato estabelecido

11
entre o "fator trabalho" e o "fator capital". Ao aceitar converter seu
esforço em input do processo manufatureiro, o trabalhador cederia
espontaneamente ao empresário a atribuição de decidir como se
produz o objeto. Os marginalistas esquecem que semelhante con-
vênio seria inconcebível se o trabalhador não tivesse sido proletari-
zado, quer dizer, privado dos meios para uma existência
independente. Mas, uma vez alienadas formalmente suas capaci-
dades, o controle patronal não deriva automática e naturalmente da
relação patrão-assalariado. Trata-se de uma longa luta, sistemati-
camente recriada, entre a apropriação capitalista e a reapropriação
operária do domínio sobre o processo de trabalho. Esta batalha -
que, segundo descreve Andrev 1, é a principal preocupação dos
marginalistas contemporâneos - desmente que exista uma transferên-
cia acordada e voluntária de direitos acerca do controle da atividade
do trabalho.
Os neokeynesianos e cambridgeanos enfocam o problema do
controle patronal como um simples componente da relação operário-
empresa. Constatam que evolui em função das relações cambiantes
de força entre as classes, mas - como os neoclássicos - desconhecem
que o domínio capitalista fundamenta-se na propriedade das empre-
sas.
Para Marx,• o- controle patronal nasce com a sub.missão formal
do proletário ao burguês, que surge com a formação do mercado de
trabalho, com a transformação da força de trabalho em mercadoria,
com a monopolização dos meios de produção e com a concentração
do poder coercitivo da sociedade em mãos dos grandes industriais.
Dessa submissão social e jurídica emerge a subjugação real do
operário à tirania das máquinas, que operam fora de seu controle,
produzindo cbnjuntos de mais-valia institucionalizadores do controle
capitalista.
A Grã-Bretanha, durante a acumulação primitiva, foi cenário do
modelo mais conhecido de conversão do camponês despossuído de
sua terra em operário, e da transformação do artesão em assalariado,
uma vez que seus conhecimentos específicos foram neutralizados.
Esta primeira e segunda expropriação dos trabalhadores foi acpm-
panhada do êxodo rural para as cidades e da pauperização destas

12
mesmas cidades. Ambos os processos alimentaram a formação da
força de trabalho, que protagonizou a passagem da cooperação
simples à manufatura e em seguida à grande indústria.
O controle patronal sobre o processo de trabalho foi alcançado
quando se assegurou a polarização entre proprietários e assalariados.
Antes de dominar o "saber fàzer", o capitalista comprava o produto
terminado, subcontratava, organizava o trabalho em domicílio ou
comercializava artigos pagos por peça. Quando os assalariados
foram reunidos em oficinas de trabalhos manuais, começou o
prolongado e meticuloso processo de absorção patronal de co-
nhecimentos e fixação autoritária de novos padrões de fabricação.
Em alguns ensaios2 descreve-se como a divisão parcelada do tra-
balho, primeiro no putting out system, e logo após no factory system,
não correspondeu às necessidades técnicas, mas indicou exclusi-
vamente a incrementação da vigilância e da disciplina, na qual se
forjou o controle patronal.
A divisão do trabalho, do modo como é organizada no interior
das fábricas, não constitui uma extensão da divisão social do trabalho
por ramos ou profissões. Tampouco tende à especialização natural
que inicialmente imaginou Adam Smith. O aperfeiçoamento deri-
vado da complexidade do processo econômico ou. a fragmentação
que produz o mercado são fenômenos distintos da divisao de tarefas
que se instaurou na fábrica.
As ordens de um capataz para subdividir tarefas não se inspiram
em critérios de melhora do produto, mas no propósito patronal de
fragmentar o trabalho para barateá-lo, convertê-lo em gerador puro
de trabalho abstrato e, principalmente, colocá-lo sob a supervisão
direta do capitalista.
O controle patronal foi imposto durante a Revolução Industrial
através de uma .guerra da burguesia contra os artesãos. Retiraram-se
dos grêmios seus conhecimentos corporativos e foram domesticando
os operários à exploração fabril. Esse confisco aparece descrito em
O Capital como uma das páginas mais sangrentas e opressivas da
história. As fábricas se levantaram sobre um chão crivado de crimes
contra os càmponeses, num ambiente de reformatórios, cárceres,

13
roubos a camponeses, epidemias de fome, escravização de crianças
e migrações forçadas. O controle patronal se impôs como um chicote
e se alicerçou aprisionando os operários ao ritmo das máquinas.

Taylorismo

O caráter específico do controle patronal do proceso de trabalho


apareceu nitidamente com o taylorismo nos Estados Unidos, no
princípio do século XX. Se~undo relata Montgomery3, o significa-
tivo poder dos artesãos em~eus locais de trabalho havia se conver-
tido, naquela época, em um obstáculo à valorização do capital. Os
trabalhadores qualificados detinham o controle integral de suas
tarefas, gozavam de plena autonomia no tempo e na forma da
produção e defendiam sua influên~ia através de um severo código de
ética solidária. ·
.,,
O taylorismo surgiu para quebrar esse domínio artesanal e
submeter todo o processo de fabricação à autoridade indiscutível dos
patrões. O confisco das atividades artesanais foi mais visível que na
Grã-Bretanha porque efetivou-se contra uma força de trabalho já
proletarizada e divorciada da condição camponesa. A segunda ex-
propriação, nesse caso, não ·coincidiu com a primeira, e adotou a
forma de um programa premeditado de subtração· patronal das
habilidades e técnicas manejadas pelos artesãos.
O taylorismo se implantou numa guerra aberta e declarada.
Mediante a estandardização forçada e a direção minuciosa, os
capatazes impuseram a nova modalidade de trabalho repetitivo e
designaram as tarefas segundo as ordens patronais. Os cronômetros
se instalaram sobre os ombros dos operários qualificados para
descobrir seus tempos e movimentos. Com estes índices, logo se
elaboraram tábuas de produção sujeitas a ritmos muito mais intensos.
Através do roubo explícito do saber artesanal, o taylorismo trans-
feriu, em bloco, o conhecimento das operações e os projetos à
gerência. A "organização científica do trabalho" (OCT) desen-
volveu-se inidalmente nas indústrias metalúrgica e automobilística,
onde o peso das capacidades artesanais era maior.

14
Para Gordon, Edwards e Reich4 , este processo marcou o passo
da "proletarização inicial" - baseado no trabalho em grupo mas não
transformado - até a "homogeneização" taylorista. A classe capita-
lista assumiu a expropriação dos artesãos enquanto objetivo central
em um país onde o extraordinário crescimento econômico e a
possibilidade permanente de- reconverter-se em rendeiro havia do-
tado os trabalhadores qualificados de uma força excepcional. Re-
a
duzir todos os trabalhos existentes um denominador comum foi o
meio para quebrar a dependência do capital em relação aos ofícios
tradicionais. A cadeia de montagem apareceu pela primeira vez nos
matadouros em 1870/80 e converteu-se no símbolo do taylorismo
logo que Ford a aplicou à industria automobilística em 1909/12.
Braverman5 - no melhor ensaio que se escreveu sobre o tema -
demonstra porque o taylorismo não pode ser interpretado como uma
simples inovação administrativa para melhorar a organização do
trabalho. Converteu-se na essência da gerência moderna ao desen-
volver a tendência capitalista e ao apropriar-se do controle no
processo de trabalho. O taylorismo adquiriu staJus de "ciência no
trabalho" pelo programa de dominação do esforço alheio, com o qual
brindou os acumuladores de mais-valia.
A OCT estabeleceu rigidamente cada uma das t:arefas dos ope-
rários, seguindo três princípios: deslocar o trabalho das especiali-
dades para tomá-las autônomas dos ofícios e permitir assim a
realização rápida de atividades; separar a concepção da realização
de tarefas formalizando "cientificamente" esta ruptura; concentrar
todos os conhecimentos nas mãos da gerência. É evidente que esse
plano de brutalização dos operários não tinha nada em comum com
uma otimização da organização produtiva.
Braverman destaca que o taylorismo não é comparável a outras
escolas de psicologia e sociologia industrial, já que estabeleceu os
princ(pios industriais da administração do trabalho, que estas cor-
rentes assimilariam posteriormente. Com Taylor se produziu a
organização parcelapa e cronometrada do processo de trabalho,
enquanto que as escolas subseqüentes estudavam como habituar o
operário a uma estruturação já consumada. A O.C.T. provocou a
mudança nas ·condições de trabalho, enquanto que os estudiosos do

15
trabalho posteriores analisaram o grau de "satisfação" ou "insatis-
fação" individual que gerava essa transformação. Taylor não reali-
zava pesquisas para detectar os sentimentos entre os operários,
porém atuou diretamente sobre o processo de trabalho para debilitar
o operário frente ao patrão. Não formulava conselhos sobre como
tornar aceitável a jornada de trabalho, mas promoveu a amputação
do acervo de conhecimentos empíricos em poder dos trabalhadores.
Estas diferenças explicam porque a sociologia do trabalho durante
várias décadas cumpriu um papel acessório e subordinado ao tay-
lorismo.
Os atropelos da "organização científica" desencadearam profun-
das reações dos trabalhadores, que Montgomery descreve como uma
das batalhas sociais mais importantes do século. As grandes greves
e rebeliões antitayloristas foram a base da grande sindicalização
norte-americana entre 1900 e 1920. Mas a resistência ao cronômetro,
à desqualificação e à individualização do salário reapareceram em
cada movimento posterior de taylorização, transformando a batalha
entre a apropriação patronal e a reapropriação operária do controle
do processo de trabalho em um conflito central da luta de classes.
"Quem governa as fábricas?", perguntaram-se obsessivamente os
managers diante de cada movimento de reivindicação dos operários.
Noble destaca que assegurar a vigência dos métodos·cronometrados
contra a resistência sindical foi um dos objetivos básicos da classe
patronal norte-americana no pós-guerra, e que o macartismo foi um
instrumento deste processo.

Gerência científica e reforma empresarial

A tendência a submeter o processo de trabalho às normas da


"gerência científica" é própria do capital, mas só em princípios do
século XX apareceram os meios técnicos e econômicos para possi-
bilitar a prática do taylorismo. A monopolização e o aumento do
tamanho dos projetos favoreceram uma despersÓnalização do pro-
cesso produtivo, que resultou indispensável para converter o artesão
em um apêndice da máquina.

16
..
A transformação tecnológica introduzida pela eletricidade e o
motor a combustão interna dotaram a cadeia de montagem de um
fluxo regular de energia e mecanização, ausente durante a primeira
fase do maquinismo e decisivo para um funcionamento ininturupto
da linha de produção. A eliminação do inventor independente, a
formação de "escolas de empresas", a estruturação da investigação
como uma atividade da corporação, consolidaram no plano intelec-
tual a substituição taylorista da iniciativa criativa dos artesãos pela
inovação programada da gerência.
Os engenheiros interiorizaram, como necessidades técnicas de
produção, o imperativo de submeter o operário ao cronômetro e
reduzir as qualificações a um esquema de custos estabelecido pela
gerência. O taylorismo chegou pela mão das grandes corporações e
deu origem contemporaneamente a monopólios como Bell, General
Electric, Du Pont, Union Carbide, Allied Chemical, Ford, General
Motors - que continuam hoje em dia dominando grande parte da
economia mundial.
O taylorismo surge num momento em que a ciência começa a
ser utilizada de forma planejada pelas corporações, para orientar a
mudança tecnológica. No mesmo período em que todas as fases do
processo produtivo foram reduzidas ao denominador ·comum de
regras estabelecidas pelo capital, a ciência também subordinou-se às
exigências de valorização, convertendo-se em mercadoria e trans-
formando-se num pilar da acumulação.
O taylorismo se nutre da estandardização da ciência, que acom-
panha a estandardização industrial. Pretende apresentar a objeti-
vação do trabaJ.ho em um "fator de produção", a codificação dos
movimentos corporais e a maquinização do homem como aplicações
da ciência ao mundo do trabalho.
A função patronal do taylorismo foi parcialmente mascarada nas
primeiras décadas do século pela organização administrativa geral
das empresas que se realizou sob o mesmo emblema de "gerencia-
mento científico". A monopolização, a produção em massa, a
dilatação dos. mercados, que permitiram o confisco das qualificações
artesanais, impuseram ao mesmo tempo novas formas de coorde-

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nação do processo de fabricação e circulação de mercadorias. A
subdivisão taylorista do trabalho projetou-se para o conjunto da
"empresa moderna" através da departamentalização técnica (plane-
jamento, controle de qualidade, manutenção), comercial (venda,
publicidade, compras) e financeira (crédito, caixa, cobranças).
Chandler6 descreve essa reforma empresarial como um
fenômeno tão substancial quanto o taylorismo. A empresa multi-
unitária apareceu inicialmente como um método de coordenação nas
estradas de ferro e telégrafos, estendendo-se às companhias que
integravam a produção com a distribuição, e consolidou-se com a
monopolização horizontal e vertical da economia.
O management e o taylorismo compartilham a mesma origem
temporal e a mesma perdurabilidade no funcionamento da empresa
porque expressam a mesma transformação do capitalismo competi-
tivo em monopolista, dominante desde o princípio do século. O
mesmo gerente atuou como agente da taylorização fabril e da reforma
administrativa. Sob sua condução fixaram-se os ritmos de produção
e definiram-se o peso e as funções de cada departamento na estrutura
das companhias.
A própria gerência taylorizou-se em uma diversidade tão ampla
de especialidaqes que só a· diretoria conservou a unidade de con-
cepção do conjunto de atividades de cada empresa. Tal como ocorreu
com o próprio Taylor - cujos biógrafos descreveram como um
homem que cronometrava sua vida cotidiana-, a obsessão fragmen-
tadora alcançou os próprios gerentes de cada departamento, alienou
sua conduta e empobreceu sua capacidade diretiva global.
Chandler opina que, com o management, uma hierarquia de
executivos substituiu a atribuição mercantil espontânea de recursos
pela previsão organizativa e o ordenamento piramidal. Opõe-se, por
isso, a "mão visível" da reforma empresarial à "mão invisível" do
mercado. Esse reconhecimento da necessidade imperiosa da planifi-
cação interna das gigantescas corporações demonstra, contra o
liberalismo simplista - tão em voga na atualidade·-, até que ponto o
merq1do tornou-se incompatível com o desenvolvimento da pro-
dução. ·

18
Mas, da mesma forma que a fratura taylorista dentro do projeto
não é a projeção da divisão social do trabalho, a rigorosa organização
de setores dentro da corporação contrasta com a anarquia que domina
a economia a partir do momento em que o produto sai da fábrica.
Os critérios de "rentabilidade" que a gerência geral exige de cada
departamento da mesma companhia são ficções estatísticas de con-
trole que se evaporam fora da companhia, na realidade "invisível"
do mercado.
Chandler também equivoca-se quando, seguindo Burnham e
Galbraith, sustenta que o management converteu os gerentes nos
novos donos das empresas, consagrando a substituição do "capita-
lismo tradicional ou financeiro" pelo "capitalismo gerencial". A
existência deste divórcio entre propriedade e direção das companhias
não está demonstrado em casos significativos, enquanto que são
abundantes as provas do poder de decisão dos grandes acionistas
associados à alta gerência. A reforma empresarial gerou - como o
taylorismo - uma imagem superficial de gerente todo poderoso,
omitindo que seus atos não são autônomos mas expressam os
interesses e as necessidades dos proprietários da empresa.
O management converteu-se em uma atividade com ambições
acadêmicas. Os experts em administração pretenpem explicar a
inadaptação da gerência tradicional às situações de crise econômica
mediante analogias com disciplinas científicas. D. Freeman7 , por
exemplo, opina que, inicialmente, a "gerência científica" sofria
influência da ciência tradicional e da concepção newtoniana de
previsibilidade e controlabilidade dos fenômenos. As interpretações
modernas desta visão, baseadas no peso da casualidade e no papel
das probabilidades, obrigariam à atualização da administração de
empresas com 'métodos de "pós-gerenciamento" flexíveis.
Mas a substituição dos critérios organizativos usuais por ajustes
permanentes, descentralizações e mecanismos decisórios mais rápi-
dos provém da anarquia do mercado, .da superprodução ou da queda
da taxa de lucro. O management esgota-se pelo choque periódico e
crescente entre a planificação interna da fábrica e a desordem
mercantil externa. Sua crise não tem nada a ver com a atualização
dos princípios gerais da ciência.

19
Além de um conjunto de regras administtativas, o "gerencia-
mento" é um fenômeno econômico, político e social, que só se pode
entender em função do processo de valorização do capital.
A essência opressiva do taylorismo e do management foi resu-
mida recentemente por Drucker8• O famoso expoente da "gerência
científica" afirma que o objetivo central de toda a administração é
potencializar a autoridade inquestionável dos diretores para garantir
o lucro. Fazer valer essa hierarquia - fechando inclusive escolas,
hospitais ou promovendo dispensas em massa - é para Drucker a
função básica da gerência e a causa de sua vigência na economia
capitalista. O experiente administrador não se equivoca.

Universalidade da OCT

O taylorismo encarna uma tendência geral do capitalismo ou foi


uma modalidade do processo de trabalho nos Estados Unidos?
Lazinick9 considera que, sob a influência da obra de Braverman,
exagerou-se o real alcance da "organização científica do trabalho",
desconhecendo-se, por exemplo, a diferença entre o alto controle
patronal que prevalecia nos Estados Unidos e o baixo domínio
capitalista que havia imperado na Grã-Bretanha.
Sem dúvida ·é incontestável que, logo após sua adoção na
América do Norte, a "gerência científica" converteu-se em um
modelo internacional de organização fabril incorporado em todos os
processos industriais do mundo. A linha de produção e a superfrag-
mentação do trabalho foram assimiladas por todas as economias
capitalistas, demonstrando que o taylorismo tem um sólido compo-
nente universal. Para valorizar o capital, o empresário deve dominar
a forma como se produz, e, para que o trabalho assalariado gere
mais-valia, o operário deve ser uma peça intercambiável da cadeia
de produção.
A generalidade do taylorismo revelou-se em sua propagação
sobre o trabalho não industrial. A OCT passou aceleradamente das
fábricas ao~ escritórios, onde provocou a proletarização dos empre-
gados dt? "colarinho branco". O ingresso do cronômetro, a repeti-

20
tividade e o fluxo contínuo nas tarefas administrativas fizeram
evaporar-se o profissionalismo dos empregados. A rapidez e a
destreza tomaram o lugar do engenho e da instrução em um processo
de fácil entendimento das atividades burocráticas.
O taylorismo expandiu-se. velozmente neste setor porque adapta-
se às grandes estruturas de comercialização e financiamento, próprias
da época monopolista. A gerência científica se apresenta como uma
11 11

forma de organizar a massa de controladores e o exército de papel


requeridos para a contabilização do valor. Esta função é vital em um
período de aumento do peso do crédito em relação à massa de bens
produzidos.

O taylorismo acompanhou também a conversão do trabalho


improdutivo, quando as atividades comerciais e de serviço foram
transformadas em ramos da acumulação capitalista. Quanto mais se
universaliza o mercado e mais se mercantiliza o consumo, maiores
são os contingentes de assalariados enganados nas regras da gerência
11

científica". Atividades pouco equiparáveis à rotina fabril, como a


venda, padronizaram-se estritamente.

Os engenheiros e os novos técnicos qualificados, que na origem


do taylorismo haviam atuado como artífices da "organização cien-
tífica", converteram-se com o tempo em vítimas dos métodos super-
especializados. A racionalização, a divisão de tarefas, a simplificação
de funções e a mecanização de trabalhos introduziram-se em suas
tarefas cotidianas. A invasão taylorista nas profissões universitárias,
nas atividades educativas ou na investigação científica constitui o
mais recente escalão da tendência para a monotonia fragmentária do
mundo do trabalho, que começou na indústria em 1900/1920.

Nos âmbitos mais qualificados, a taylorização entra em choque


com o impulso ·espontâneo do desenvolvimento tecnológico até a
integração do processo de trabalho. As inovações, que tendem a
recompor a unidade entre a concepção e a realização de tarefas, são
submetidas pela OCT às velhas divisões do. trabalho. O taylorismo
se intromete inclusive em uma zona tão adversa à despersonalização
como é o universo das secretárias e da gerência.

21
Ao passar em revista todo este processo de taylorização extra-in-
dustrial - que abarca indistintamente o trabalho administrativo,
comercial ou profissional-, a obra de Braverman expõe convincentes
argumentos a favor do caráter universal do taylorismo no capita-
lismo contemporâneo. O "gerenciamento científico", longe de cir-
cunscrever-se à economia norte-americana do princípio do século
acompanhou a expansão geral do capital. A monopolização do saber
pela gerência resulta essencial para aumentar a extração de mais-
valia.

NOTAS

1 Andrev, Albert. Capicalismo y formas de concrataci6n laboral. Colecci6n Tesis Dc,ctorales,


Ministério de Trabajo y Seguridad Social, Madri, 1988.
2 Marglin, Stephan. What do bosses do?, ín Gorz, André. Critica de la divisi6n capitalista
dei trabajo. LAIA, Madri, 1977.
3 Montgomery, David. - El concrol obrero en Estados Unidos, Ministerio de Trabajo e Seguri-
dad Social, Madri, 1985.
4 Gordon, D. M.; Edwards, R.; Reich, J. M. Trabajo segmencado, crabajadores divididos.
Ministerio de Trabajo e Seguridad Social, Madri, 1985.
S Braverrnan, Harry. Trabajo y capitál nwnopolista, Nuestro Tiernpo, México, 1980.
6 Chandler, Alfred. La mano visible - La revoluci6n en la direcci6n de empresa norteameri-
cana. Colecci6n Historia Social. Ministerio de Trabajo e Seguridad Social, Madri, 1987.
7 Freeman, D. Is management still a science?, Harvard Business Review, outubro/novembro,
1992.
8 Drucker, Peter. The new society of organizations, Harvard Business Review, setembro/ou-
tubro, 1992.
9 Lazinick, Willian; Zeitlin, Jonathan; Elbaum, Bernard; Wilkinson, Frank. The labour pro-
cess, market structure and marxist theory. Cambridge Journal of Economícs, vol.III, 1979.

22
INVIABILIDADE E CRISE

O taylorismo leva ao limite o caráter mercantil da força de


trabalho ao pretender que, em troca do salário, o operário se
transforme na prolongação da máquina. Sem dúvida, a força de
trabalho não é uma mercadoria qualquer. Na determinação de seu
valor influem, além do componente fisiológico, fatores histórico-so-
ciais gerados pela luta, educação e instrução da classe operária. Estes
elementos histórico-sociais resultam incompatíveis com a brutali-
zação imposta pela "gerência científica" .
O taylorismo enfrentou' desde seu início uma contradição in-
solúvel: buscou reduzir a mero gasto fisiológico uma atividade
como o trabalho que, por sua natureza humana e consciente, resiste
à degradação. A oposição dos operários ao trabalho cronometrado
foi a manifestação mais direta desse fenômeno e demonstrou
antecipadamente a inaplicabilidade da OCT nos termos concebidos
por Taylor.
Gordon assinala que, já nos anos 40, a política de controle
patronal nos Estados Unidos havia sido em grande ~edida neutrali-
zada pelo acúmulo de greves. Essas ações deram lugar aos contratos
coletivos, à legalização dos sindicatos e à seguridade social.
Coriat1 opina que em todas as economias desenvolvidas, desde
princípios dos anos 60, as críticas ao taylorismo se tornaram
habituais no âmbito patronal e governamental, como eco da rebelião
operária. A imprensa começou a descobrir os efeitos negativos da
"fábrica-prisão''. e o descrédito da OCT se estendeu à sociologia
industrial. Os questionamentos acadêmicos concentravam-se in-
variavelmente na "desumanização" do tràbalho e apresentavam
como.alternativa diferentes programas de "democracia industrial"
ou "participação operária" na direção das empresas.
Alguns estudiosos2 deduzem desse fracasso que o taylorismo "foi
derrotado" e "nunca chegou a impor-se". Não se entende neste caso
por que a "gerência científica" adotada pelo conjunto da classe
capitalista pôde internacionalizar-se e expandir-se a todos os setores

23
do trabalho. A inviabilidade intrínseca do taylorismo em termos
absolutos não implicou jamais na sua eliminação, já que os capita-
listas não podem renunciar a reforçar seu controle sobre o processo
de trabalho, se desejam valorizar seu capital. A contradição aparece
de modo pleno justamente em que algo tão irrealizável como o
taylorismo deva continuar sendo aplicado apesar de seus resultados
negativos.
No plano estrito do rendimento do trabalho, a "gerência
científica" enfrenta outro obstáculo insustentável: nenhum
aumento da produtividade pode sustentar-se no tempo com base
no desalento e maus tratos impostos aos trabalhadores. A sín-
drome do escravismo é outro aspecto que corrói o taylorismo. O
trabalho desqualificado, opressivo e puramente compulsivo pro-
voca a reação do trabalhador, cuja produtividade decai na mesma
proporção em que cresce o desinteresse pelo trabalho que está
realizando.

Esta reação contra a monotonia e a fragmentação das tarefas


- que se manifesta no aumento das ausências - foi fartamente
documentada ·pelos sociólogos críticos da OCT. O taylorismo é
antagônico à qualidade da produção, já que a repetitividade das
tarefas sempre resulta em ·defeitos e desperdício de materiais. O
trabalho em cadeia tampouco é compatível com o uso de equi-
pamentos complexos e delicados. que requerem grande atenção
dos operários.

É óbvio que um operário taylorizado não tem a menor


predisposição para este tipo de cuidados. Coriat assinala,
além disso, que existe um limite puramente técnico para o
uso crescente dos métodos da OCT, já que com o fraciona-
mento do trabalho se produz um aumento dos "tempos de
transferência" entre cada operação, afetando a otimização
do processo produtivo. A conjunção de todos esses obstácu-
los políticos, técnicos e econômicos que o taylorismo cria
na produção generalizou a opinião de que a OCT é defini-
tivamente oposta à melhoria da produtividade na econo_rnia
contemporânea.

24
Consentimento e subjetividade

O ensaio de Braverman desencadeou numerosas críticas à concepção


marxista de controle patronal. Burawoy3 resumiu grande parte destas
objeções ao assinalar que, na relação de trabalho cotidiana, nao pre-
dominam os confiscos opressivos e unilaterais dos capitalistas, mas as
formas de convivência. A própria rotina taylorista geraria este consenso
ao estabelecer um "consentimento" entre os operários em relação à
hierarquia patronal. Como contrapartida os empresários aceitariam as
astúcias e "jogos" desenvolvidos pelos operários para moderar a mono-
tonia do trabalho. O trabalho cronometrado ficaria, assim, parcialmente
neutralizado, anulando-se, paradoxalmente, o conflito introduzido pelo
"gerenciamento científico".
À diferença de Braverman, Burawoy não fundamenta suas
opiniões na dinâmica econômica ou social do capitalismo, nem em
nenhuma interpretação da ação política em geral da classe traba-
lhadora. Suas conclusões baseiam-se em sua grande experiência de
trabalho e seus exemplos são generalizações de vivências pessoais.
Esta metodologia é característica da sociologia do trabalho norte-
americana, propensa ao enfoque individualista e empirista.
Provavelmente Taylor teria se surpreendido ao sáber 'que, com o
tempo, a cadeia de montagem, a fragmentação de tarefas ou a subordi-
nação de operações ao relógio se tomariam consenso. A coerção é tão
intrfuseca à "gerência científica" quanto a rotina. Não só a OCT surgiu
como um atropelo premeditado das qualificações, como também o
desenvolvimento posterior do management girou em tomo do aper-
feiçoamento dos sistemas de autoridade, ordem e disciplina.
Diluiram-se estes princípios com o esgotamento do taylorismo?
Burawoy sustenta implicitamente que sim, ainda que sua conclusão
se fundamente na dedução de um costume natural entre as partes e
não na inviabilidade da "gerência científica" .. Além de sua experiên-
cia, não apresenta .exemplos significativos, até porque, com os
métodos enganosos das sondagens, a sociologia pós-Taylor acumu-
lou dados inquestionáveis sobre a insatisfação dos trabalhadores com
suas tarefas. ·

25
O que Burawoy apresenta como uma convivência, de fato, é
simplesmente uma constatação de que as fábricas tendem a funcionar
sob condições de maior ou menor domínio patronal sobre o processo de
trabalho, segundo a resistência que opõem os trabalhâdores ou a própria
inutilidade do taylorismo extremo que detectam os capitalistas. Em
qualquer dessas situações, o poder de decisão - investimentos, de-
missões, transferências, inovações técnicas - permanece nas mãos dos
capitalistas, que contam com o direito de propriedade para fixar o que
se pode "tornar consenso" e o que se deve "consentir".
Mas as condições de revalorização do capital modificam-se
permanentemente e tampouco existem acordos estáveis e definitivos
nas condições de trabalho. Uma situação inversa, na qual os traba-
lhadores conseguiram "um bom acordo" para conquistar o domínio
do processo de trabalho sob os olhos tolerantes dos empresários, não
pode ser o estado habitual que imaginava Burawoy. Significa, de
fato, que vingou o controle operário frente à propriedade patronal,
o que corresponde a momentos de excepcional convulsão política,
que se negociam em curto prazo: ou se restitui o controle patronal
ou se elimina a propriedade capitalista.
Mendoza4 concorda com Burawoy ao assinalar que a inte-
riorização da forma de trabalho por parte dos assalariados e a
conseqüente "legitimação" do controle patronal são. um traço do
capitalismo contemporâneo. Diferentemente da época coercitiva em
que Marx viveu, a complexidade do processo econômico moderno
tenderia a reduzir o autoritarismo patronal durante o processo de
trabalho. Para Kern5, isto significava que as noções de "exploração",
"insegurança", ou "controle capitalista", devem ser abandonadas em
função do reconhecimento da melhoria das condições de trabalho.
A idéia de uma crescente aceitação, por parte dos operários, dos
métodos reinantes nas fábricas está associada, assim, ao pressuposto
de que a jornada de trabalho tornou-se mais tolerável.
Mas esta imagem evolutiva não se encaixa na realidade do controle
patronal. O taylorismo não surgiu junto ao capi~smo · nem foi se
extinguindo no século XX. Apareceu muito depois da Revolução
Industrial e se recriou depois da obra de Marx. A tendência capitalista
de expropriar saberes dos trabalhadores é necessariamente periódica

. 26
e recorrente, na medida em que acompanha o movimento ondulatório
do capital. Implica recapturas patronais cíclicas dos conhecimentos
assimilados pelos operários em função dos investimentos tecnológicos.
A idéia de um "gerenciamento científico" único e eterno que,
uma vez cumprida sua missão, inaugura um capitalismo competitivo,
é completamente fictícia. Durante as etapas do aparente status quo
entre o controle patronal e o trabalho diário dos operários, os
capitalistas - forçados pela ação da concorrência e o decréscimo dos
ganhos - preparam "racionalizações" que apontam no sentido de
reforçar seu domínio sobre o processo de trabalho.
As manifestações de rebelião operária desmentem a existência
de um "consentimento" dos assalariados com um destino opressivo.
É evidente que se os trabalhadores tivessem "interiorizado" o
controle patronal - como um Tato imutável ou benéfico -, também
teriam abandonado as explosões de descontentamento e as greves
sistemáticas e organizadas.
Navarro6 opina que a aparência de "consentimento" surge das
pressões paralisantes que impõe a sobrevivência diária ou das di-
ficuldades políticas para perceber saídas alternativas. Esse tipo de causa,
e não a "aceitação" da supremacia patronal, pode manter o descontente
em estado submisso. De qualquer maneira, trata-se-de um problema
político completamente alheio a observações sociológicas abstratas.
Edwards7 acusa Braverman de depreciar o papel da luta de
classes, concebendo os operários como artefatos passivos do tay-
lorismo e não como sujeitos atuantes. Montero 8 também crê que a
teoria do controle patronal reduz os trabalhadores ao papel de
simples vítimas manipuladas e despossuídas. Mas não é uma teoria
o que acorrenta os operários à máquina e sim a expropriação objetiva
dos gerentes. As idéias de Braverman não escravizam ninguém mas,
pelo contrário, tentam qespertar a consciência geral sobre o inferno
taylorista. Não tem sentido acusar aqueles que denunciam esta
opressão, de concordarem com ela.
Braverman estudou a OCT para invalidar sua pretensão científica
e para desmascarar sua função confiscatória de mais-valia. Tentou,
com esta demonstração, favorecer a emancipação dos trabalhadores

27
e não eternizar sua condenação. Seus críticos, ao contrário, estimam
que o controle patronal constitui um dado irreversível da realidade,
aceito com resignação pelos trabalhadores. São eles, portanto, os
merecedores da acusação que formulam contra o notável opositor ao
taylorismo.

lnformática e trabalho

Tal como ocorreu no passado com as grandes inovações tec-


nológicas, a principal função que os capitalistas designam atualmente
à informática na indústria é aumentar seu controle sobre o processo
de trabalho. Durante a Revolução Industrial, esse objetivo se per-
petrou mediante a destruição do artesanato, e, sob o taylorismo,
através da degradação geral dos ofícios. A introdução contem-
porânea dos computadores aponta no mesmo sentido: incrementar o
domínio físico e mental dos empresários sobre o conjunto da
atividade do trabalho. Por isso, a difusão da informática está
associada a distintos tipos de atropelos em relação ao nível de vida
e às condições de trabalho dos operários.

A "flexibilização do trabalho", as perdas de empregos, a inten-


sificação dajornapa de trabalho, as subcontratações ou a eliminação
da antiga hierarquia são freqüentemente apresentadas como
inevitáveis conseqüências da informatização, na realidade porém,
não se originam de necessidades técnicas das máquinas computadori-
zadas nem formam parte natural da modernização industrial. Os
conjuntos de máquinas representam um evidente progresso técnico
que não pode constituir em si mesmo uma regressão social. Infor-
mática e deterioração do trabalho são sinônimos porque viabilizam
um maior controle patronal do processo de trabalho.

A informática aparece para a classe dominante como um recurso


restaurador da corrosão criada pelo esgotamento do taylorismo. A
inviabilidade da "gerência científica" não desmoronou a produtivi-
dade e a qualidade de artigos fabricados. Shaikeó9 descreve ainda
que, nos lugares onde essa crise fortaleceu social, política. ou
sindicalmente a classe operária, os trabalhadores recapturaram par-

28
cialmente um maior controle de sua atividade de trabalho. Reverter
essa situação é o objetivo central da inovação tecnológica em curso.
Os computadores não exigem nenhuma das mudanças na legis-
lação trabalhista que se proclamam como indispensáveis para a, nova
etapa. O que tem em comum a informatização com a atribuição
patronal de modificar o posto de um trabalhador, transferi-lo fisi-
camente de um lugar para outro, modificar-lhe os horários, anular-
lhe os descansos e reduzir-lhe as indenizações? O empresário tenta
introduzir esse tipo de alteração com o objetivo puramente social de
aumentar o controle patronal, como resultado direto da mutabilidade
permanente do operário no processo fabril. Noble10 ilustra este
fenômeno nos Estados· Unidos durante a introdução das primeiras
máquinas-ferramentas de controle numérico. A nova tecnologia abria
duas opções de desenvolvimento: o record play back, que concen-
trava as decisões de programação no operário e o método de ajuste
finalmente eleito que derivava este poder para a gerência.

A opção selecionada foi amputar ao operário as faculdades para


incidir nas formas de trabalho, deixando-o à margem de qualquer
consideração técnica. Foi desprezada a idéia de ampliar o co-
nhecimento e a criatividade do operário para potencializar as
atribuições da programação central. A nova tecnologia foi estru-
turada como um sistema de digitação centralizada e gerencial da
informação, que se transmite aos trabalhadores como ordens formali-
zadas para serem passivamente obedecidas.

Aplicada desta maneira, a informática implica em uma nova


quebra entre a concepção e a realização de tarefas e um incremento
do monopólio gerencial do saber. Drucker destaca abertamente este
caráter taylorista adotado pela atual incorporação de ordenadores.

Kaplinsky 11 assinala que a definição de quem programa a


máquina não foi ameaçada com o surgimento das primeiras máquinas
de controle numérico e que o problema continua dominando os atuais
processos de informatização industrial. As formas mais avançadas
desse tipo de máquina (CNC), por exemplo, voltaram a estabelecer
a necessidadé de sua reprogramação pessoal direta nos locais de

29
trabalho, em oposição a outros sistemas vigentes de concentração
destas atribuições em mãos da gerência central (CN).
Ciborra12 assinala que o controle patronal implica apossar-se da infor-
mação contraditória através do uso e das possibilidades da tecnologia
computadorizada. Se, na "idade da informação", o "fator-chave" deve
circular mais livremente, acessível a um maior número de operários e
facilitar com a transparência de dados a aceleração do processo produtivo,
o controle taylorista inibe a utilização plena das novas máquinas e permite
apenas um aproveitamento insignificante de suas possibilidades.
A estrita supervisão da informação por parte da gerência implica
um desperdício estrutural das novas tecnologias. O computador
ingressa na fábrica prometendo aliviar o trabalho e aumentar a
eficiência, mas o domínio patronal atropela o operário e instaura a
subotimização permanente.
NOTAS
1 Coriat, Benjamin. El Ta/ler y e/ Cronómetro, Siglo XXI, Madri, 1982.
2 Ver resenha em: Harvey, David. Los limites dei Capitalismo y la Teoria Marxista. Fondo
de Cultura Económica, México, 1990.
3 Burawoy, Michael. E/ Consentimiento en la Producdón. Ministerio de Trabajo y Seguri-
dad Social, Madri, 1989.
4 Mendoza, Carlos A. Castillo. Contrai y Organizaci6n Capitalista dei Trabajo. Sociologia
dei Trabajo, nº 9, Madii, primavera 1990.
5 Kern, H. e Schumann, M. Trabajo y Caracter Social in La Automadón y el Futuro dei Tra-
bajo, Ministerio de Trabajo y Seguridad Social, Madri, 1988.
6 Navarro, V. Producci6n y Estado de Bienestar. Sociologia dei Trabajo, nº 12, Madri.
7 Edwards, P.K. HomoGenise, Divide and Rule: an Essay on Segmented Work, Divided
Workers, Cambridge Journal of Economics, vol.8, 1984.
8 Montero, Cecília. La Sociologie de M. Burawoy. Sociologie du Travai/, Paris, 2-1986.
9 Shaiken, H. Computadoras y Relaciones de Poder en la Fábrica. Cuademos Políticos, nº
36, México, outubro 1981.
10 Noble, David. Forces of Production, A Social History of Machine Too/ Automation.
A.Knopf, Nova Iorque, 1984.
11 Kaplinsky, Raphael. Microelectrónica y Empleo. Ministerio de Trabajo y Seguridad So-
cial, Madri, 1987.
12 Ciborra, Cláudio. Intercambio, Poder y Coordinaci6n: El Debate Reciente Sobre el De-
sarollo de la Empresa, in La Automación y e/ Futuro dei Trabajo, Ministerio d~ Trabajo y
Seguridad Social, tl.1adri, 1988.

30
PÓS-TAYLORISMO

A rotação de tarefas é o eixo da flexibilização do trabalho porque


serve para aumentar o cpntrole patronal. Dina1 exemplifica esse
mecanismo ao demonstrar que a mutabilidade nos postos de trabalho
não guarda a menor relação com as estratégias da informatização.
Argumenta-se, contudo, que a readequação constante de tarefas
contribuiria para eliminar a rotina taylorista e recriar o interesse por
sua atividade. Mas nenhum estudo sério comprova que a monotonia
mecânica da "gerência científica" diminui com a rotina da infor-
mática. Pelo contrário, os imperativos da rigorosa estandardização
que aparecem com a fabricação informatizada mantêm a repetitivi-
dade do trabalho.
O caráter compulsivo das "reconversões industriais" em curso
revela em si mesmo que o reconhecimento da importância do
trabalhador não é o objetivo dos novos procedimentos de "enri-
quecimento de tarefas". A diversificação de trabalhos não é dirigida
para contrapor o enfado mas para melhorar os lucros mediante o
incremento da produtividade.
A geração de mais-valia relativa aumenta não somente em função
do número de máquinas que cada trabalhador atende, mas também
pela multiplicidade de operações realizadas. A atenção requerida e
o desgaste físico-psíquico da força de trabalho guardam uma relação
direta com a variedade de tarefas. A "automação flexível" permite
um usufruto patronal desse esforço que resultava difícil de obter na
etapa pré-informática.
Muitos sociólogos contrapõem o parcelamento individual de
tarefas - próprio do "gerenciamento científico" - à organização
grupal em "círculos de qualidade",· que caracterizaria o pós-tay-
lorismo. Sem dúvida, Perrin 2 demonstra que esse contraste é fictício
em todos os casos em que subsiste a cadeia de montagem. É a forma
de supervisão patronal, que passa do controk individual ao coletivo,
a única coisa que se altera com estas reconversões. Freqüentemente
os "grupos autônomos" coexistem com a fabricação fragmentária

31
tradicional, conformando um esquema justaposto de pessoas e gru-
pos submetidos à mesma subordinação departamental e ao mesmo
controle gerencial do passado. A seqüência despótica dos ritmos e
movimentos que Taylor implantou, desenvolveu-se aqui mediante
sofisticados sistemas computadorizados.
O surgimento de "círculos de qualidade" implica um reco-
nhecimento de que a fragmentação taylorista resulta inoperante e de
que o "saber fazer" é um processo coletivo. Mas, como a valorização
do capital fundamenta-se no controle patronal, esta constatação só
acrescenta uma contradição à acumulação capitalista. Os "grupos
autônomos" são colocados em prática para resistir à deterioração da
qualidade e à multiplicação dos desperdícios, mas devem atuar como
retentores da informação técnica que os operários assimilaram e
como disciplinadores de novos ritmos de trabalho. Estes dois ob-
jetivos são contrapostos e não podem ser alcançados simul-
taneamente.
É falsa a crença de que os "grupos autônomos" acabam com o
taylorismo. "Círculos de qualidade" interconectados em tomo da
linha de montagem e sujeitos aos tempos do transportador central
enquadram-se plenamente nos princípios da OCT. A gerência fixa
as tarefas e os tempos mas. a escala do grupo propugna a autodisci-
plina coletiva.. Estabelece, além disso, a responsabilidade visível
frente aos defeitos, para diminuir os custos de vigilância. Os
reorganizadores pós-tayloristas falam a mesma linguagem do gestor
do "gerenciamento científico": controlar tempos mortos, reduzir
trabalhos indiretos e diminuir estoques.
A polivalência é uma modalidade de retaylorização porque, ao
incrementar o esforço e o cansaço na realização de múltiplas tarefas,
reduz a possibilidade de se entender aquilo que está se realizando.
Para Freyssenet3 , existe uma trivialização do trabalho na "automação
flexível", que sugere o modelo do automóvel ou dos eletrodomésti-
cos cujo usuário desconhece por completo o funcionamento. Só o
pessoal de manutenção, encarregado de consertar as máquinas, tem
uma compreensão global do equipamento, enquanto que os traba-
lhadores em geral limitam-se a realizar as operações demandadas
pela gerência.

32
Freyssenet apresenta vários e,cemplos desse "taylorismo infor-
mático", especialmente na automação da vigilância de incidentes, no
diagnóstico de avarias e na mudança de ferramentas. Nestes casos se
produz uma anulação das funções do sujeito responsável e competente
e banaliza-se o conteúdo intelectual das tarefas.

Child4 resume em quatro características o taylorismo informático:


diminuição da mão-de-obra direta, difusão da subcontratação, dis-
solução das categorias tradicionais, degradação global do conteúdo
do trabalho. Rojas 5 agrega: emprego de tempo parcial, educação
modular, trabalho familiar para compensar baixos salários e auto-em-
prego sem controle do conteúdo do trabalho. A informatização
reforça em qualquer plano o trabalho encadeado.

A flexibilização do trabalho pretende conseguir uma adapatação


da mão-de-obra a esta circunstância e o caráter taylorista deste
processo manifestou-se prematuramente no próprio campo da mi-
croeletrônica. Manacorda6 , por exemplo, destacou como a difusão
dos conjuntos automáticos recriou desde o começo a fragmentação
do trabalho entre analistas que concebem a operação, programadores
que a traduzem às máquinas e operadores que a instrumef).talizam. O
computador estabeleceu o ritmo e a velocidade do trabalho e, a cada
novo movimento, acentuou a ruptura entre a concepção e a realização
das tarefas. O operador converteu-se em supervisor passivo, o
programador foi anulado pela estandardização de códigos e lin-
guagens, o analista passou a manejar arquivos de dados em lugar de
uma ação criativa. As novas gerações de conjuntos de máquinas
incrementam esta desproporção entre o volume dos conhecimentos
desenvolvidos e seu acesso ao trabalhador.

O ·taylorismo· informático é responsável, além disto, por novos


tipos de doenças visuais, de postura e psicológicas, que substituem
as patologias físicas tradicionais. Pesquisas recentes7 demonstram a
nocividade das atividades que exigem do trabalhador maior atenção
sem lhe permitir o domínio sobre a tarefa que realiza.

33
Toyotismo

Numerosos pesquisadores opinam que o taylorismo desaparece


com a "automação flexível". A "economia de variedade", o aumento
na qualidade e a produção just in time provocariam uma diminuição
nas tarefas de transformação e um incremento nas atividades de
programação, ajuste e diagnóstico. Essa redução das fronteiras entre
o trabalho direto e indireto e as barreiras entre a administração e a
oficina desatualizaria o "gerenciamento científico".
No Japão, estaria muito avançada uma transformação deste tipo
a partir da reassociação de tarefas e da pluriespecialização. Coriat8 ,
por exemplo, assinala que nos "círculos de qualidade" nipônicos
prevalece a mutação enriquecedora de tarefas. O toyotismo impli-
caria numa substituição do sistema de designar e impor tempos pelo
novo método grupal do "tempo compartilhado".
A hipótese central de que o taylorismo despótico, coercitivo e
repetitivo está sendo paulatinamente ~ubstituído por formas volun-
tárias, "qualificadoras" e gratificantes de trabalho não se verifica na
realidade econômica. O mesmo Coriat relata que o toyotismo se
implantou duramente no Japão a partir de 1949/50, ao fim de uma
longuíssima greve que terminou com a demissão em massa dos
operários. Sem· a destruição dos sindicatos por categoria e sua
substituição por organizações de grêmios debilitadas e circunscritas
ao âmbito de cada empresa, as inovações trabalhistas japonesas não
teriam ido adiante.
Barrier Lynn 9 cita a terrível descrição do "inferno Toyota",
elaborada pelo japonês Satochi. Sob a aparência do consenso volun-
tário e do paternalismo patronal protetor, Satochi descreve a coerção
permanente a que está submetida a força de trabalho, o que desen-
cadeia o karoshi ou morte por "overdose de trabalho". Meio milhar
de trabalhadores morre ao ano em conseqüência das jornadas de
trabalho de 15/16 horas, da ausência de férias, das agoniantes viagens
de horas aos centros fabris e da existência diária em habitações
minúsculas. Estas condições de vida popularizam o ditado: "triturar-
se a si mesmo até converter-se em pó".

34
Não é casual que Ohno - o teórico mais citado do toyotismo
- seja um declarado admirador de Taylor. O sistema fabril do
pós-guerra se ergueu no Japão recriando formas primitivas do
taylorismo norte-americano. Desvaneceram-se esses traços origi-
nais no transcurso do grande crescimento industrial das últimas
décadas? ·
Para Lojkine 10 a resposta é afirmativa. Considera que o processo
de trabalho toyotista assumiria - em oposição à fragmentação taylo-
rista - um caráter "integrador". Mas Coriat - defendendo um ponto
de vista semelhante - relata que a absorção de tarefas é só uma forma
do trabalho no Japão e que essa modalidade coexiste com todas as
variantes conhecidas da OCT. Mais ainda, a aplicação crescente da
tecnologia computadorizada expande o "gerenciamento científico" a
um amplo espectro de fábricas que aplicam a "linha taylorizada
informatizada".
Nestes casos, a cadeia de produção funciona com base num
sistema de carretilhas guiadas, cujo ritmo é fixado eletronicamente
pelo cronômetro. Coriat destaca inclusive que nas tarefas mais
integradoras e formalmente opostas ao taylorismo, os mecanismos
típicos de controle se informatizaram. Regem a escala grupal ou
individual mediante o andon (supervisão visual computadorizada de
tarefas), ou o poka yake (controle coercitivo das normas de quali-
dade).
A essência do taylorismo não é o caráter repetitivo das tarefas
mas o controle patronal do processo de trabalho, e este traço é
dominante na produção japonesa. Sob o toyotismo, a fabricação
baseada no "tempo compartilhado" pelo grupo implica um controle
gerencial sobre tempos e movimentos tão intenso como a designação
fragmentária individual de tarefas. ·
O taylorismo é uma característica de toda produção capitalista
contemporânea, independente das opções de organização adotadas
no processo de trabalho. As peculiaridades do toyotismo não inaugu-
ram uma época pós-taylorista porque preservam ou reforçam o
controle patronal. Toyotismo e taylorismo · não representam dois
modelos opcionais de "automação flexível", como afirma Coriat, da

35
mesma formá que a "economia de variedade" não é oposta à
produção em massa e que a fabricação por "qualidade" não supera
o princípio do lucro. O toyotismo é uma tentativa de paliar a
improdutividade crescente do "gerenciamento científico" diante da
mudança tecnológica acelerada, da saturação de mercados e da maior
rotação do capital. Por isso, desenvolveu-se inicialmente na
economia japonesa, a qual enfrentou estes obstáculos de forma mais
acentuada que seus competidores mais industrializados.
O toyotismo não é uma eleição de "operários fabris, tecnológi-
cos e administradores", quer di~er, responsáveis e capacitados,
frente ao taylorismo clássico de "operários detectores, rotineiros
e trivializados". Os dois tipos de trabalhadores existiram nas
fábricas modernas desde o surgiq,ento do taylorismo tradicional.
A instauração, por exemplo, da linha de montagem, fez aparecer
novas qualificações, como o calibrador, e elevou a importância
de tarefas mais complexas, como aquelas realizadas pelo
mecânico ajustador. Essa necessidade de grupos de trabalhadores
capacitados é obviamente maior na atualidade e, por isso, o
esgotamento do "gerenciamento científico" aumenta com a infor-
matização da produção e resulta incompatível com a automação
crescente.

Mas, sob o regime de controle patrnnal, não há a opção de se


construir fábricas com um ou outro tipo de trabalhadores. Em todo
caso, utilizam-se ambas as formas e desenvolve-se uma idêntica
sujeição ao domínio gerencial. O fato de o peso das tarefas repetitivas
ser maior em comparação ao trabalho de diagnóstico, conserto ou
manutenção de alguns ramos industriais em certas economias, é
simplesmente uma manifestação do desenvolvimento desigual e
combinado que caracteriza o capitalismo. O toyotismo mistura com
o taylorismo trabalhos de diferentes graus de qualificação, adaptados
a uma .fase mais complexa da produção. Não responde a peculiari-
dades culturais asiáticas mas a traços universais da economia capi-
talista e, por isso, tem sido assimilado rapidamente por outros países
desenvolvidos. Esta mundialização repete, em espaços notavelmente
mais curtos, a mesma expansão internacional que o taylorismo teve
no passado:

36
LUTA DE CLASSES,
~
~EESTRUTURAÇAO PRODUTIVA
E HEGEMONIA

Ruy Braga
Para meus pais, Ruy e Nádia.
Para Angela e Edmundo.
Abreviaturas de obras clássicas utilizadas:
CDH - Concepção Dialética da História
MPE - Maquiavel, a Política e o Estado Moderno
PP - Passado y Presente
PRÓLOGO

N os últimos anos têm tomado corpo inúmeras reflexões cen~radas


nos impactos das transJormações provocadas pelo processo
acelerado de reestruturação das forças produtivas, a partir das quais
desenvolveram-se algumas conclusões que convergiram para a tese
da dissolução tendencial da "sociedade do trabalho" (ver, sobretudo,
Habermas, 1987; Gorz, 1988; e Offe, 1989). Tal maneira de refletir
sobre as recentes transformações no interior do modo de produção
capitalista envolveu os mais diversos espectros ideológicos, o que
demonstra a inegável profundidade dessas alterações. A difusão
massificada das novas tecnologias com base na microeletrônica (a
chamada automação flexível) e, sobretudo, as iniciativas patronais
no sentido da reelaboração das bases material e ideológica do
consentimento operário ao nível do chão-de-fábrica, através das
inovações organizacionais, configuram um campo para o debate
teórico, com evidentes implicações práticas, onde as mais diversas
manifestações e interpretações se encontram.
Uma série de importantes autores do pensamento social contem-
porâneo, tais como Habermas e Gorz, no decorrer da década de 70
e no auge da grande crise, proclamaram, cada um a seu modo, a
falência da categoria sociológica do trabalho (Habermas enfatizando
a necessidade de se reconstruir o materialismo histórico e Gorz
anunciando o advento da "não-classe dos não-trabalhadores"). Já na
década de 80, Offe proclama as bases sociológicas de tal falência da
categoria do trabalho a partir de uma articulação entre as conclusões
de autores como Bell, Drucker e Wright Mills sobre a emergência
de uma sociedade pós-industrial de serviços, e os impactos imediatos
da crise iniciada na década de 70 em relação, particularmente, ao
desem_prego estrutural e à difusão massificada do "trabalho precário"
(e que tenderiam a minar a ética e a racionalidade específicas do
trabalho, segundo Offe) 1•

Primeiramente, vale a questão sobre quais as razões que levaram


Offe a não mais considerar o trabalho enquanto a categoria so-

49
ciológica fundamental. Nesse sentido, um dos principais argumentos
utilizados por Offe na justificativa da perda de centralidade do
trabalho é o declínio do modelo de pesquisa social centrado no
trabalho. Para ele, o trabalho deixou de ser preocupação temática
para os cientistas sociais nos últimos anos, o que demonstra que a
esfera do trabalho não mais pode ser considerada a pedra-de-toque
da teoria social tal como ocorreu nas origens da teoria sociológica
·que, em sua natureza, foi moldada pelo princípio da sociedade do
trabalho 2 • Apesar de todas as críticas possíveis e desejáveis à
perspectiva de Offe, ao menos ela detém o mérito de expressar a
brutal defensiva em que hoje se encontram aqueles autores que fazem
de sua reflexão um instrumento no processo de transformação dos
limites da ordem estabalecida, isto é, os teóricos marxistas. Coe-
rentemente, na medida em que se entende o marxismo como a teoria
revolucionária dos trabalhadores, tal defensiva teórica corresponde
à defensiva política do movimento de massas organizado dos traba-
lhadores frente às imposições e desafios históricos dessa verdadeira
contra-ofensiva da ordem no sentido da reelaboração dos fundamen-
tos de sua hegemonia ao nível das forças produtivas.
Tal contra-ofensiva, que condicionou uma completa reviravolta
na correlação de forças estabelecida entre trabalhadores e o patronato
no final da déca~a de 60, sobretudo em países imperialistas (e cujos
traços mais gerais pretendo analisar neste trabalho)", detonou, sem
dúvida, uma das mais sérias crises .do movimento operário em toda
sua história. Sob o ponto de vista estratégico o movimento operário
ocidental, principalmente nos países imperialistas, encontra-se atual-
mente "despido" (a expressão é de Bihr, 1991).

As estratégias revolucionárias de tipo anarco-sindicalista elabo-


radas no final do século passado ou de tipo leninista não resistiram
ao apelo do compromisso fordista3 que fundamentou o projeto
hegemônico das classes dirigentes para o caso do desenvolvimento
ocidental no pós-guerra. O reformismo de caráter social-democrata
no decorrer deste período constituiu, aparentemente, a única
alternativa viável para o quadro do compromis'so fordista. Mas,
inegavelmente, este tornou-se superado com a crise dessa or~em
social hegemônica.

50
Nessas condições, as organizações políticas, sindicais e associa-
tivas do movimento operário conhecem, talvez, sua mais profunda
crise de representatividade, expressa pela baixa nas taxas de sindi-
calização, crise do militantismo, incapacidade de mobilizar os
trabalhadores ...
Em nosso entendimento, -a crise de representatividade pela qual
·passam as organizações do movimento dos trabalhadores advém,
essencialmente, do processo mais geral que se encontra encerrado
nos movimentos de contratendência erigidos pelas classes dominan-
tes, sobretudo o expresso pela aqui chamada "estratégia de grande
período-revolução passiva das forças produtivas", no sentido de
recompor a unidade entre as exigências do processo de valorização
do capital e as demandas por legitimação da moderna ordem bur-
guesa, produto, no limite, de um acirramento da luta de classes já
no final dos anos 60.
Assim, nosso esforço vai no sentido de uma atualização das
categorias gramscianas presentes nos Cadernos do Cárcere, notada-
mente os conceitos de crise orgânica, revolução passiva e hegemonia,
objetivando uma interpretação mais sistemática daquilo que estou aqui
chamando de o atual processo de reestruturação das forças produtivas,
representando um conjunto de contratendências ao nível da produção,
mercados de trabalho e Estado, materializadas sob a forma de um projeto
hegemónico sintetizado pela expressão "acumulação flexível".

NOTAS

1 Ver, neste sentido, Alves (1993).


2 Cf. Offe (1989).
3 O chamado compromisso fordista realizava, através da intervenção reguladora do Estado
burguês de tipo 1•,eljare, a conexão entre a produção de massa e o consumo de massa crescen-
tes. Tal compromisso g!obal organizado entre patronato e sindicatos permitia a redistribuição
dos ganhos de produtividade aos assalariados realizando, em parte, o ideal keynesiano de
crescimento econômico acompanhado por harmonia social. Por um lado, reconhecia-se opa-
pel da direção, no tocante à qrganização do processo produtivo e na tomada de decisões es-
tratégicas quanto aos mercados e investimentos, à classe patronal e, por outro, os sindicatos
lutavam para conquistar a maior parcela dos ganhos de produtividade, associados à difusão e
consolidação das n?rmas fordistas de produção e consumo.

51
A CRISE CONTEMPORÂNEA
COMO CRISE ORGÂNICA DO
CAPITALISMO TARDIO
A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente
os instrumentos de produção, e, por conseguinte,
as relações de produção, portanto, todo o conjunto das relações sociais . .. O
contínuo revolucionamento das relações de produção, o abalo constante de
todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época
burguesa de todas as precedentes.

Karl Marx, Manifesto do Partido Comunista.

Raízes históricas da crise contemporânea:


o processo de expansão imperialista do pós-guerra

A crise contemporânea 1 constitui-se naquilo que poderíamos


chamar de um elo no movimento de expansão do modo de produção
capitalista em escala mundial através do qual pode se operar uma
transformação qualitativa das relações sociais sobre ·as quais se
assenta o processo de acumulação a nível internacional (rude de
Souza, 1993). Tal crise indicaria, para alguns, apenas o esgotamento
do padrão de acumulação característico do crescimento econômico
do pós-guerra. Entretanto, do nosso ponto de vista, a crise contem-
porânea resulta do amadurecimento das contradições engendradas
ao longo do processo de internacionalização das relações capitalistas
de produção no curso dos anos 1945-68/702 •
O mundo do pós-guerra emerge, dado o contexto da guerra fria,
marcado pelo signo de grandes transformações na economia capitalista
a nível internacional: o avanço do bloco coletivista de estado, o
processo de independência política das ex-colônias na África e na
Ásia, os esforços cie afirmação da soberania nacional por parte de
Estados já independentes e a ofensiva das pressões sociais internas

53
aos próprios países imperialistas configuram a necessidade destes de
empreender uma política de ocupação de novos espaços, conhecida
como estratégia de abertura de novos mercados, expressão, em
última instância, do incremento do processo de internacionalização
dos mercados e da produção capitalista que se efetivou, dentre outras
maneiras, pela relocalização da indústria em países do Terceiro
Mundo3 •
Assim, o principal sentido da expansão capitalista do pós-guerra
foi o processo de reconstrução da Europa arrasada, assim como a
industrialização de países do Terceiro Mundo, com base nas relações
industriais mais características às sociedades de produção e consumo
de massas. Tal expansão se fez com base num brutal aumento da
produtividade do trabalho social para o conjunto dos países desen-
volvidos e, particularmente, para as cinco mais importantes
economias capitalistas da época (EUA, Grã-Bretanha, França, Ale-
manha Ocidental e Japão) 4 •
No caso dos países do chamado Terceiro Mundo, o ciclo de
valorização do capital se baseia, então, na expansão de setores e
tecnologias de segunda geração industrial, notadamente ligadas à
produção de alumínio, eletricidade, petróleo e derivados, bem como
à indústria automobilística. De maneira geral, a concorrência capi-
talista, no perío.do, estava bâlizada pela capacidade de inovação dos
monopólios em produtos e processos, assim como "pelo grau e a
coerência da política governamental de intervenção sobre a
economia e a sociedade" (ibidem, p. 4).
Sob o ângulo da organização dos processos de valorização, o
principal vetor da expansão capitalista do pós-guerra foi a ampliação
das escalas (grandes valores fabris e grandes linhas de montagem) e
o trabalho rotinizado, em cadeias automatizadas voltadas à produção
em série e volumes de produtos padronizados. O aumento da
produtividade fordista resulta, desse modo, da conjugação de vários
fatores, tais como: "A submissão formal de produtores inde-
pendentes, a subcontratação e a empreita de trabalhos e serviços
temporários (fonnas de intermediação de mão-de-obra), o uso
precário dQ trabalho de imigrantes e de trabalho feminino por
produção a domicílio, a difusão de sistemas de rorinizaçoo e

54
prescrição do trabalho e da produção em série em linhas de
montagem, e a intensificação do trabalho através dos regimes de
trabalho em turnos (indústria de processo, sobretudo), bem como,
em serviços, bancos e escritórios que integram os chamados serviços
industriais. Tudo conduzindo, portanto, à apropriação de f1Jassas
cada vez maiores de sobretrabalho, e à uma elevação da taxa de
utilização dos equipamentos e tecnologias de produção e de infor-
mação" (ibidem, p. 5; grifos do autor).
Este conjunto de elementos responsáveis, em última instância,
pela elevação da produtividade fordista define, desde logo, os
fundamentos da crise na qual o mundo capitalista encontra-se mer-
gulhado desde o final dos anos 60. O emprego cada vez mais intenso
do trabalho precário, de mulheres e imigrantes, com consequente
flexibilização do uso da força de trabalho, por exemplo, é adotado
como contrapartida à elevação dos custos sociais do emprego,
produto das pressões por melhoria das condições de vida e de
reprodução da classe trabalhadora a partir da regulamentação das
conquistas trabalhistas pelo Estado burguês de tipo welfare.
O valor de reprodução da força de trabalho expressa, portanto,
a correlação de forças estabelecida entre o capital e o trabalho em
cada formação social e cada época5 • Outras manifestações podem ser
encontradas na recusa operária à desqualificação do· trabalho, à
imposição de cadências, à adoção indiscriminada da rotatividade e
formas de usura precoce dos trabalhadores (Tude de Souza, ibi-
dem). Também ao final dos anos 60 eclodem, principalmente nos
países imperialistas, um conjunto de novas contestações e fontes do
conflito classista (ibidem). Emergem movimentos de consumidores
(auto-redução de tarifas, boicote de produtos ... ), de mulheres,
negros, imigmntes, homossexuais, ambientalistas e antinucleares;
somando-se, ainda que inconsciente e desarticuladamente, aos tradi-
cionais movimentos operário e estudantil, na contraposição à expan-
são das bases da acumulação intensiva (de tipo fordista).
A crise contemporânea representa, neste sentido, a incapacidade
do imperialismo internacional e dos Estados-nação (de tipo welfare,
notadamente) em coordenar as exigências da valorização do capital
às exigênciás de legitimação da moderna ordem burguesa. A incom-

55
patibilidade entre as necessidades da acumulação e as formas de
representação caracteriza a materialização histórica de um período
de crise orgânica6 •
Na concepção grarnsciana, períodos de crise orgânica (isto é,
períodos de grandes alterações históricas, tais corno a passagem de
um regime de acumulação para outro, corno foi o caso do fascismo
na Itália e do fordisrno nos EUA) são marcados pelo progressivo
afastamento dos grupos sociais em relação a seus representantes e,
conseqüentemente, pela instauração de um acentuado contraste entre
representantes e representados. Esse processo de erosão dos fundamen-
tos do consentimento, diferente em cada país, sustenta um mesmo
conteúdo histórico, a crise de hegemonia das classes dirigentes
tradicionais que, segundo Grarnsci, ocorreria "(... ) ou porque a
classe dirigente faliu em determinado grande empreendimento
político pelo qual pediu ou impôs pela força o consentimento das
grandes massas, como a guerra (do Vietnã ou as sucessivas guerras
de libertação nacional, Argélia, Angola, Moçambique ... ,
poderíamos acrescentar), ou porque amplas massas (especialmente
de camponeses e de pequenos burgueses intelectuais) passaram de
repente da passividade política a certa atividade e apresentaram
reinvidicações que, no seu complexo desorganizado, constituem uma
revolução. Fala-se de crise de autoridade, mas, na realidade o que
se verifica é a cifre de hegemonia ou crise do estado no seu conjunto"
(Gramsci, MPE, p. 55).

As classes dorninantes 7 devem ser capazes de elaborar urna


estratégia de grande período, isto é, erigir contra-tendências para
retardar as conseqüências da tendência à queda da taxa de lucros.
"O problema.fundamental é o produtivo" (Grarnsci). Neste sentido,
toma-se necessário intensificar os métodos de trabalho, modificar as
formas de vida operária, inventar, em suma, via os chamados
processos de reestruturação das forças produtivas, urna programação
econômica compatível com a reprodução das relações sociais de e
na produção 8 • Para Grarnsci, nessas situações, é mais fácil as classes
dominantes, mudando "homens e programas", e·pelo fato de pos-
suírem "numeroso pessoal preparado", retornarem o controle que
lhes fugia, do que o controle transitar para o interior .das cla·sses

56
subalternas (idem, ibidem). O processo de crise orgânica que acom-
panhou o crescimento econômico capitalista do pós-guerra agudiza-
se em 1973 com o colapso do petróleo e estende-se, de uma forma
ou de outra, até os dias atuais. A derrocada dos regimes stalinistas
do Leste Europeu pareceu propor uma solução orgânica para a crise,
na medida que "unificou tropas de muitos partidos sob a bandeira
de um único" (Gramsci), ou seja, sob a bandeira da economia de
mercado9 • Mas esta mostrou-se uma falsa alternativa já que, no
momento seguinte, com a difusão do desemprego, da miséria e da
carestia, a necessária ':fusão de todo um grupo social sob uma só
direção, considerada a única capaz de resolver um problema existencial
dominante e afastar um perigo mortal" (Gramsci, ibidem), torna-se
uma ficção não só para o Leste, mas para toda a esquerda no mundo
contemporâneo.
A estratégia de grande período das classes dominantes consiste
em traduzir em uma possibilidade real a previsão das possíveis
alternativas de saída da crise para, desse modo, impor a reprodução
do mesmo modo de produção, do mesmo mundo, sem a percepção
de sua modificabilidade. Em síntese, poderíamos dizer que, confron-
tadas à emergência tendencialmente hegemônica dos produtores, as
classes dominantes dirigem contra as massas a sua própria guerra de
posição, tentando quebrar toda construção de um bloco social,
intelectual e moral (verdadeiro sujeito da transformação para Grams-
ci), suprimindo o elemento ético-político e obrigando a contradição
a uma retraída sobre o terreno econômico-corporativo, ele mesmo
orientado segundo suas contra-tendências (luta contra a tendência à
queda da taxa de lucros, resistência às políticas anticíclicas ... )'º·

Gramsci ar.aba por descobrir que a guerra de posição imposta às


massas subalternas no Ocidente a partir do início deste século é
dirigida sob sua forma própria pelas classes dominantes: racionali-
zação da esfera produtiva, programação estatal da economia capita-
lista, novas formas de controle das massas e recomposição da
subalternidade política ... Se as classes dominantes não mais podem
desenvolver suas possibilidades além de um certo equilíbrio sempre
incerto, torna-se impossível a previsão das possibilidades alternati-
vas, tornam-se invisíveis e imodificáveis os limites do mundo. Desse

57
modo, a guerra de posição materializa-se enquanto revolução passiva
para as classes dominantes. 11

Notas sobre o conceito de


revolução passiva em Gramsci

Passaremos agora a tratar do conceito de revolução passiva


segundo a formulação gramsciana dos Cadernos do Cárcere, bus-
cando explorar sua atualidade enquanto critério interpretativo do
atual processo de reestruturação das forças produtivas. De maneira
geral, é possível dizer que o conceito expressa uma modalidade de
transição, isto é, busca apreender, primeiramente, a passagem para
o capitalismo naquelas formações onde esta questão encontrou uma
solução "pelo alto": elitista e antipopular. Formações que experi-
mentaram a modernização capitalista sem por isso serem obrigadas
a realizar uma revolução democrático-burguesa segundo o modelo
jacobino. A transformação capitalista traduz-se, pois, no acordo
estabelecido entre frações das classes dominantes, na exclusão das
forças populares e na utilização permanente de aparelhos repressivos
e da intervenção econômica do Estado sobre a sociedade.

Como é sal;>iào, o conceíto de revolução passiva é um instrumento


conceituai e estratégico forjado por Gramsci para a análise do
Risorgimento italiano (processo de constituição do Estado burguês
na Itália que culminou com a unidade nacional ). Ou, nas palavras
de Brum Torres, "Gramsci introduz o conceito de revolução passiva
como um recurso''(eórico destinado a esclarecer ao mesmo tempo as
peculiaridades do processo de resolução da questão nacional na
Itália e as condições peculiares do desenvolvimento capitalista que
ali teve lugar" (1980, p. 210).
É certo, contudo, que o conceito é posteriormente estendido e
generalizado na medida em que Gramsci o aplica nas análises do
fascismo e do fordismo. Sua extensão o torna um princípio de
elucidação de todas as ações reativas e auto-acomodativas do capi-
talismo tardio caracterizado, por assim dizer, por um estado de crise
e transformação permanente (idem, p. 211). Serve, pois, à interpre-

58
tação da passagem do capitalismo italiano e americano para sua fase
monopolista, tomando o fascismo e o fordismo como formas da
revolução passiva 12 •
O processo de revolução passiva implicaria sempre na presença
de dois momentos, o da conservação, que constitui uma reação à
efetiva possibilidade de uma radical mudança "de baixo para cima",
e o da inovação, à medida que demandas populares são assimiladas
e postas em prática pelas velhas camadas dominantes. O aspecto
restaurador não anula o fato de que também ocorram modificações
efetivas 13 • Em síntese, teríamos a revolução passiva como a via
antijacobina de transição ao capitalismo (caso do Risorgimento) e
também dentro do capitalismo (fascismo e fordismo ou a passagem
de um regime de acumulação concorrencial para um monopolista).
No caso da transição no interior do capitalismo, os conceitos de
revolução passiva e de hegemonia se articulariam 14 •

A preocupação principal de Gramsci em relação ao Risorgimento


é elucidar o sentido social e histórico da ação e das relações
recíprocas dos dois principais partidos envolvidos no processo de
unificação do Estado nacional italiano, os Moderados e o chamado
Partido da Ação. O projeto moderado tinha como base histórica as
iniciativas "progressistas" de Cavour no reino de Sardenha e
Piemonte após 1852, principalmente no que tange à instalação de um
governo parlamentar, à reorganização do exército, à abolição dos
privilégios eclesiásticos e à prática de uma política econômica ao
mesmo tempo liberal e preocupada com o provimento da infra-estru-
tura necessária ao desenvolvimento econômico. ·

Nesse sentjdo, os objetivos dos Moderados centravam-se em


ampliar os limites políticos e econômicos da ação modernizadora
capitalista e, assim, garantir a posição privilegiada das regiões mais
desenvolvidas qo Norte. Na análise de Gramsci para o caso do
Risorgimento: "O traço mais.fundamental de todo o processo reside
no.fato de que obtém-se a unificação, resolve-se a questão nacional,
sem atacar o que era o problema social mais importante da Itália
de então, o problema do atraso histórico do campo italiano, espe-
cialmente no Mezzogiorno e nas ilhas" (Torres, ibidem, p. 126).

59
Gramsci esforça-se, pois, em responder porque não houve na
Itália um processo de tipo jacobino autêntico, como no caso dos
vizinhos franceses, para a resolução das questões envolvidas na
constituição de uma economia capitalista nacional, bem como na
consolidação de um Estado nacional italiano. Buscará a resposta na
debilidade das classes dirigentes tradicionais, do mesmo modo que
no "pânico" destas ao assistirem aos acontecimentos de 1793 asso-
ciados ao 1848 francês 15 • O Risorgimento traduz-se no momento
inicial do longo e irregular, porém exitoso, processo de consolidação
do capitalismo italiano. O Estado "empurra" o desenvolvimento e,
assim, "fabrica o fabricante" (Gramsci). Na Itália, a questão princi-
pal era, segundo Gramsci, criar as condições gerais para que as
forças econômicas pudessem nascer e se desenvolver segundo o
modelo histórico dos outros países.
Na verdade, em sua exposição do que viria a ser o conceito de
revolução passiva associado ao que ele próprio chama dialética
"inovação-conservação/revolução-restauração", Gramsci parte de
uma proposição presente no Prefácio à Contribuição à Crítica da
Economia Política (1859) onde Marx dirá que "uma organização
social nunca desaparece antes que se desenvolvam todas as forças
produtivas que ela é capaz de conter; nunca relações de produção
novas e superio_res se lhés substituem antes que as condições
materiais de existência destas relações se produzam ·no próprio seio
da velha sociedade. É por isso que a humanidade só levanta os
problemas que é capaz de resolver e assim, numa observação atenta,
descobrir-se-á que o próprio problema só surgiu quando as con-
dições materiais para o resolver já existiam ou estavam, pelo menos,
em vias de aparecer" (1977, p. 25).
Gramsci constrói o conceito de revolução passiva a partir destes
dois princípios fundamentais da ciência política enunciados acima.
Originalmente concebida como uma fórmula crítica por Vicenzo
Cuoco (ou seja, enquanto denúncia/advertência do processo contra-
revolucionário, esta crítica deveria criar uma "moral nacional" de
maior energia e iniciativa revolucionária popular), o conceito de
revolução passiva converteu-se em uma concepção afirmativa, um
verdadeiro programa político e uma moral restauracionista oposta a

60
·,
qualquer possibilidade de intervenção ativa das grandes massas
populares como fator de progresso histórico. A reelaboração afir-
mativa da concepção revolução-restauração toma-se, pois, a ex-
pressão do conservadorismo reformista sustentado tanto pelos
políticos moderados italianos quanto pelos historiadores de en~o.
Em relação ao conceito de revolução passiva, Gramsci opera, na
verdade, um resgate do sentido dado a este por Cuoco ao tratar do
primeiro periodo do Risorgimento italiano. O debate com a tradição
historiográfica representada por Croce deve ser entendido enquanto
um desdobramento teórico cuja base fundamenta-se no terreno da
história italiana na virada do século. Neste sentido, Gramsci denun-
cia Croce por desenvolver o aspecto passivo da Revolução Francesa,
na tentativa de criar um movimento ideológico correspondente ao
movimento de revolução-restauração expresso pelo reformismo que
garantiu a permanência dos velhos regimes europeus até 181 O, como,
por exemplo, o liberalismo conservador16•
Gramsci recusa, assim, o conceito de revolução passiva como
programa, tal como o defendido pelos liberais italianos do Risorgi-
mento, e propõe empregá-lo "como critério de interpretação, ante
a ausência de outros elementos ativos dominantes (por conseguinte,
luta contra o morfinismo político que exala Croce e seu histori-
cismo)" (PP, p. 13). · ·
Desta forma, é possível aproximar a iniciativa ideológico-pro-
gramática de Croce à natureza do movimento fascista- na Itália
contemporânea, segundo a hipótese, confirmada, de que haveria sob
o fascismo, "uma revolução passiva no fato de que, por intermédio
e intervenção legislativa do Estado e através da organização corpo-
rativa, seriam introduzidas na estrutura econômica do país modifi-
cações mais ou menos profundas para acentuar o elemento 'plano
de produção' ,isto é, seria acentuada a socialização e cooperação
da produção, sem·com isso tocar (ou limitando-se tão somente a
regular e controlar) a apropriação individual e grupal do lucro"
(Gramsci, CDH, p. 223; grifo do autor).
O fascismo seria entendido como termo da "única solução" para
desenvolver ·as forças produtivas da indústria sob a direção das

61
classes dirigentes tradicionais, em concorrência com as mais
avançadas formações industriais de países que monopolizavam as
matérias primas e acumulavam gigantescos capitais. O sentido dado
por Gramsci ao movimento fascista na Itália é o de um esforço
modernizador 17 segundo uma via brutalmente conservadora: "esta
ideologia (o fascismo) serviria como elemento de uma guerra de
posiçlio no campo econômico (a livre concorrência e a livre troca
corresponderiam à guerra de movimento) internacional, assim como
d revolução passiva é este elemento no campo político" (Gramsci,
CDH, p. 224) 18 •
Ainda quanto a questão da revolução passiva, Gramsci funda-
menta sua crítica à concepção político-historiográfica de Proudhon
na mesma ordem de argumentos dirigidos à corrente historiográfica
neo-guelfa: a "mutilação" do hegelianismo e da dialética. Ou seja,
para Gramsci, Proudhon mutila o hegelianismo e a dialética na
medida em que, no processo dialético, a tese (pressuposta mecani-
camente) deve ser conservada pela antítese a fim de não destruir o
próprio processo, o qual, portanto, é previsto como uma infinita
repetição mecânica e arbitrariamente pré-fixada 19 • Vale realçar que
a crítica à concepção político-historiográfica de Proudhon feita por
Gramsci é da mesma natureza que a contida na Miséria da Filosofia
de Marx (1841): para Proudhon, os trabalhadores não deveriam se
organizar politicamente, por exemplo, em partidos, já que, imitando
as formas de organização das classes dirigentes tradicionais, fatal-
mente se colocariam à mercê delas .. O inimigo, sendo mais experi-
mentado em táticas políticas, tiranizaria, por meios financeiros ou
subornos sociais, os líderes revolucionários, provocando a inoperân-
cia do movimento. De qualquer modo, mesmo vitoriosos, os re-
beldes dariam (adquirindo e preservando o controle de formas
políticas do governo autoritário) novo alento à contradição da qual
buscam escapar20 • Os operários e a pequena burguesia devem,
portanto, impor por via, principalmente, da pressão puramente
econômica, seus projetos sobre o resto da sociedade. Tal processo
seria gradual e pacífico21 •

Com Proudhon, conservaríamos na síntese aquilo que ainda é


vital na tese, superada e desenvolvida pela antítese22 • Em Croce,

62
igualmente, a ideologia reformista tende a enfraquecer a antítese (não
mais enquanto negação radical da tese), fragmentando-a em uma
longa série de momentos, reduzindo a dialética a um processo
evolutivo do tipo "revolução-restauração". Gramsci propõe-se a
aplicar ao conceito de revolução passiva, documentando-se no
Risorgimento italiano, "o critério interpretativo das modificações
moleculares que, na realidade, modificam progressivamente a com-
posição precedente das forças e, portanto, transformam-se em matriz
de novas modificações" (MPE, p. 77).
O conjunto das contradições histórico-concretas do capitalismo
é, pois, reproduzido segundo modificações moleculares (produto da
fragmentação da antítese) que desenvolvem a tese (dominação capi-
talista) sem superá-la historicamente. Na verdade, da oposição
dialética entre tese e antítese s(, a tese desenvolve suas possibilidades
de luta, até o ponto de atrair pé'.ra si os chamados representantes da
antítese23 •
Retomando a origem dos termos "revolução passiva" (Vicenzo
Cuoco) e "revolução-restauração" (Edgar Quinet), Gramsci dirá que
estas fórmulas exprimem, talvez, o fato histórico da ausência de uma
"iniciativa popular unitária" (conseqüentemente, ausência de gran-
des enfrentamentos de classe) no desenvolvimento ~a história
italiana, bem como o fato de que o desenvolvimento verificou-se
como "(... ) esporádico, elementar, desorgânico das massas popu-
lares, através de restaurações que acolheram uma parte, qualquer
das exigências de baixo" (Gramsci, CDH, p. 250).
Esta dialética "inovação-conservação/revolução-restauração"
enunciada acima é entendida por Gramsci fundamentalmente en-
quanto método· de ação política (estratégia de grande período) das
classes dirigentes e cuja expressão teórica pode ser encontrada no
historicismo croceano, moderado e reformista, que busca entre
outras coisas contrapor, por exemplo, o jacobinismo anti-histórico
e irracional à razão das classes dirigentes que atuaram nos processos
restauracionistas, notadamente após 1815 e 1848. Empreendendo
uma crítica radical a este tipo de historicismo, Gramsci busca definir
a própria noção de progresso segundo esta dialética inovação-con-
servação/revolução-restauração: um processo onde a inovação con-

63
serva o passado ao modificá-lo e aquilo que será conservado do
passado resultará no próprio progresso, sustentando um caráter de
"necessidaqe histórica".
Mas todo progresso pressupõe uma certa força inovadora que
não pode deixar de estar já imanente no passado, "não pode deixar
de ser, ela mesma, em certo sentido, um elemento do passado, o que
do passado está vivo e em desenvolvimento" (Gramsci, CDH, p.
251). Uma força inovadora cuja assimilação a dada dialética ino-
vação-conservação contém em si o passado digno de desenvolver-se
e perpetuar-se infinitamente, visto estar o pólo da antítese fragmen-
tado e racionalizado pela ordem.
Assim, ao retomarmos o conceito de revolução passiva em
Gramsci enquanto formulação crítica é preciso também esclarecer:
a) sua utilidade como interpretação da época do Risorgimento e
de "toda época complexa de alterações (crises) históricas" (Grams-
ci, PP, p. 73; grifo do autor); e
b) seu perigo referente ao derrotismo histórico, indiferentismo e
fatalismo que o conceito carrega consigo.
Faz-se necessário ainda dizer que Gramsci entendia estas "épocas
complexas de alterações históricas", isto é, períodos de crise or-
gânica, como processos com muitas manifestações e onde causas e
efeitos se complicam e se superpõem. Processos contraditórios e não,
simplesmente, fatos únicos repetindo-se de diversas maneiras por
uma causa e origem únicas. As crises referidas por Gramsci tratam-
se de desenvolvimentos e não de meros eventos.Ou, nas palavras de
Gramsci, ''pode-se dizer que a crise como tal não tem um começo,
senão somente algumas manifestações ruidosas que se identificam
com a crise, errônea e tendenciosamente" (CDH, p. 114).
A crise de 1929, especificamente, enquanto um momento deste
processo contraditório, dirá Gramsci, inicia-se com a Primeira
Grande Guerra, mas não é esta sua manifestação mais primitiva. Tal
crise remete-se às origens internas do modo de produção e não aos
fatos político-jurídicos tomados isoladamente24 • No limite, o que
temos novamente é uma crítica ao economicismo redu_cionista que

64
confere a tais acontecimentos (períodos de crise orgânica ou de
grandes alterações históricas) uma definição única, ou seja, uma
causa e uma origem únicas. Neste caso, a simplificação significaria
"desnaturalização e falsificação" 25 •
Temos, pois, até o momento exposta a oposição de Gramsci ao
reformismo conservador crociano, segundo uma denúncia teórico-
filosófica de implicações práticas: Croce, assim como Proudhon,
mutila o hegelianismo e seu método, a dialética, afirmando um dos
pólos da oposição (a tese) e fragmentando-racionalizando-assimi-
lando o outro (a antítese) com o claro objetivo de, na síntese,
conservar o que de mais fundamental existe na tese. A contradição
entre tese e antítese não é superada mas reproduzida e desenvolvida
mecanicamente. Chamamos a atenção principalmente para o fato de
que a própria noção de progresso capitalista é entendida por Gramsci
nos termos desta "dialética mutilada" (inovação-conser-
vação/revolução-restauração).
Neste espírito diríamos, analisando a estrutura produtiva con-
forme este método de ação política (estratégia de grande período),
"(... ) que o americanismo e o fordismo derivam da necessidade
imanente de organizar uma economia programática e que os diversos
problemas examinados deveriam ser os elos da cadeia que assinalam
exatamente a passagem do velho individualismo econômico para a
economia programática. Esses problemas surgem em virtude das
diversas formas de resistência que o processo de desenvolvimento
encontra na sua marcha, resistência provocada pelas dificuldades
inerentes à societas rerum e à societas hominum. Um movimento
progressista iniciado por uma determinada força social não deixa
de ter conseqüências fundamentais: as forças subalternas, que
deveriam ser manipuladas e racionalizadas de acordo com os novos
objetivos, resistiriam inevitavelmente. Mas também resistem alguns
setores das forças dominantes, ou pelo menos aliados das forças
dominantes" (Giamsci, MPE, p. 365-6).
E Gramsci propunha:
a) ver se o americanismo poderia efetivamente determinar um
processo ("desenvolvimento") do tipo revoluções passivas, e

65
b) ver se o "desenvolvimento" deve ter o seu ponto de partida
no interior do "mundo da indústria e da produção" ou se poderia se
verificar a partir do exterior, "através da construção cautelosa e
maciça de estrutura fonnal que oriente de fora o processo de
desenvolvimento necessário do aparelho da produção" (Gramsci,
MPE, p. 376).
Na verdade, Gramsci se propõe a analisar (ao menos enquanto
hipótese de trabalho) um processo de desenvolvimento econômico,
produto da necessidade de se organizar uma economia planejada
(programática) 26 , segundo a problemática do tipo revolução passiva
do século passado. Isto é, ver se na dialética inovação-conservação
o papel do enfraquecimento (fragmentação) da antítese classes
subalternas poderia caber ao movimento progressista de racionali-
zação econômica, determinado pelos interesses inerentes às classes
dirigentes tradicionais.
Sobre a questão, cabe ainda realçar dois pontos a nosso ver
bastante relevantes. O primeiro diz respeito à natureza do objeto
tratado que detém uma imediaticidade econômica, a organização da
produção, mas cujas determinações fundamentais não podem nunca
estar remetidas somente à esfera econômica tomada autonomamente.
E o segundo refere-se a out~a hipótese levantada por Gramsci de que
seria o fordismo o ponto extremo (dada a época, claro) do processo
de tentativas sucessivas da burguesia para "superar alei tendencial
da queda da taxa de lucro" (MPE, p. 376).
O movimento da racionalização das forças subalternas serviria,
pois, aos desejos de fragmentação e assimilação da antítese, bem
como desenvolveria a tese (dominação capitalista) na síntese (o
"modo americano de vida"). Novamente vale lembrar que este
processo fundamenta-se no movimento progressivo de fragmen-
tação-racionalização/recomposição-assimilação/integração da con-
dição de subalternidade das massas à ordem estabelecida, cujo
resultado é passível de ser apreendido pela análise histórica: a
emergência da sociedade de massas, do Estado burguês burocrati-
zado de tipo welfare, dos grandes sindicatos atrelados às estruturas
de dominação, da postura participativa dos partidos social-de-
mocratas ... É possível dizer, em resumo, que os problemas anàlisa-

66
dos sob o título geral de "Americanismo e Fordismo" por Gramsci,
expressos pela ofensiva racionalizadora da ordem capitalista, encon-
tram-se no interior do campo de estudo daquilo que este chamou de
revolução passiva.
Retomando, teríamos: o conceito de revolução passiva relaciona-
se com o conceito de "guerra-de posição", em oposição aos conceitos
"iniciativa popular/guerra manobrada" (e cuja última manifestação
histórica teria sido a Revolução Bolchevique de 1917), na medida
em que estes conceitos surgiram depois da Revolução Francesa como
produto do pânico das classes dirigentes, criado pelo Terror em 1793
e, posteriormente, com os massacres de Paris de 1871. Dentro, pois,
dos limites da perspectiva onde o essencial é evitar que as massas
populares atravessem um período de experiências políticas similares
às da França, principalmente nos anos do jacobinismo. É exatamente
nesta "formulação teórica de implicações práticas", onde os elemen-
tos da antítese são atraídos pela tese e a síntese não representa uma
superação mas sim um desenvolvimento daqueles, que devemos
considerar a passagem para a luta política de guerra de movimento
para guerra de posição, ocorrida na Europa após 184827 •
Passaremos agora a tratar da oposição estabelecida por Gramsci
entre aquilo que ele entende por "guerra de posição" e "guerra de
movimento". A crítica elaborada por este ao conceito de "revolução
permanente" de Trotsky é exemplar neste sentido. Em Trotsky,
temos a teoria sobre a "permanência do movimento" tomada como
um reflexo político da teoria da guerra de movimento·, ou seja,
reflexo das condições gerais sócio-econômico-culturais de um país,
a Rússia, onde "os quadros da vida nacional são embrionários e
relaxados e não se podem tornar "trincheira" ou ''fortaleza". Neste
caso poder-se•ia dizer que Bronstein (Trotsky), que aparece como
um "ocidentalista", era, ao contrário, um cosmopolita, isto é,
supe,jicialmente nacional e supe,jicialmente ocidentalista ou
europeu" (Gramsci, MPE, p. 74).
Ao contrário, Lênin, profundamente "nacional e europeu",
parece ter compreendido "que se verificara uma modificação da
guerra manobrada, aplicada vitoriosamente no Oriente em 1917,
para a guerra de posição, que era a única possível no Ocidente (onde

67
os quadros sociais eram capazes de se tornarem trincheiras muni-
ciadíssimas)" (Gramsci, MPE, p. 74).
O que se repõe aqui é a dicotomia entre um Oriente, onde o
"Estado era tudo" e a sociedade civil era "primordial e gelatinosa",
e um Ocidente, onde existiria uma "justa relação" entre Estado e
sociedade28 • Sua crítica avança através da formulação dada ao
conceito político de revolução permantente, agora como expressão
cientificamente elaborada das experiências jacobinas de 1789 em
Termidor, Gramsci considerava ser esta própria de um período
histórico onde inexistiam ainda grandes partidos políticos de massa
e os grandes sindicatos econômicos de caráter corporativo, ou seja,
um período caracterizado pela moderna sociedade burguesa de
consumo, produto, em grande medida, do americanismo e fordismo.
Contrariamente, a fórmula da revolução permanente seria
própria àquele momento no qual a sociedade ainda estava, por assim
dizer, no estado de fluidez sob muitos aspectos. Com as mudanças
advindas da expansão colonial, onde os elementos da sociedade em
estado de fluidez modificam-se a ponto de se tornarem relações
complexas e maciças, a fórmuta jacobino-revolucionária da
revolução permanente é superada pela da hegemonia civil e a guerra
de movimento transforma-s_e cada vez mais em guerra de posição29 •
A guerra de posição é imposta pela relação das forças em choque,
ou seja, pela situação histórica, produto dos processos de revolução
passiva30 , na qual a sociedade civil transformou-se numa estrutura
muito complexa e resistente às irrupções catastróficas do elemento
econômico imediato (crises, depressões, etc). Este é um ponto
central que Gramsci sintetiza na seguinte formulação: "As superes-
truturas da sociedade civil são como d sistema de trincheiras na
guerra moderna" (idem, p. 73) 31 •
A distinção entre uma estratégia e outra decorre da diferença
entre realidades distintas. No Oriente foi possível uma vitória rápida,
segundo o padrão de guerra de movimento. No Ocidente, devido à
"justa medida" 32 estabelecida entre o Estado e .a sociedade, uma
vitória nestes moldes seria inviável33 •

68
Hegemonia em Gramsci

É preciso esclarecer, no momento, com qual conceito de


hegemonia estamos lidando e, para isto, recorremos, novamente, às
formulações presentes nos Cadernos do Cárcere onde Gramsci
explicita seu entendimento do conceito e da "constelação" (Tosei)
que este movimento (crise orgânica, revolução passiva, hegemonia)
encerra. Primeiramente, vale dizer que pretendo desenvolver a
discussão sobre o conceito de hegemonia através, principalmente,
da relação de oposição entre o que singulariza este conceito, o
consentimento ativo, e a subordinação ideológica, ou consentimento
passivo. Para isto, tentarei identificar, ainda que esquematicamente,
qual a importância reservada por Gramsci à relação entre uma
concepção de mundo unitária e coerente e a prática unitária e
coerente que aquela informa e assegura, o fundamento, no limite,
do consentimento ativo.
Gramsci parte da constatação de que todos os homens são
filósofos, pois dotados de uma dada concepção de mundo (CDH, p.
11-14). Assim, podemos avançar no sentido da superação de um
estado anterior caracterizado pela existência de uma filosofia espon-
tânea peculiar a todo o mundü3 4 para o segundo momento, isto é, o
momento da crítica e da consciência35 • Criticar a própria filosofia,
isto é, a propria concepção de mundo, significa torná-la "unitária e
coerente até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais desen-
volvido "36 • Este início de elaboração crítica pressupõe a consciência
daquilo que somos realmente, não podendo alcançar uma concepção
de mundo criticamente consciente, aquele que não alcançar a efetiva
consciência de sua própria historicidade. Isto implica dizer que a
concepção de mundo crítica tem por base a consciência do conjunto
concreto (real) das determinações históricas, no qual todos estamos
inseridos.
Se um sujeito, ativamente, elaborar sua própria concepção de
mundo, isto é, criticá-la até o ponto desta tomar-se unitária e
coerente, romperá com as características da "filosofia espontânea"
(linguagem, senso comum e folclore) e, no limite, eliminará o
contraste entre o pensar e o agir, alcançando, assim, a unidade entre

69
teoria e prática. Através do processo de elaboração crítica do próprio
pensamento, a coexistência de duas concepções de mundo, uma
afirmada em palavras, a outra na ação efetiva, seria superada por
uma concepção de mundo unitária e coerente.
A filosofia popular, enquanto conjunto desagregado de idéias e
opiniões, deve ser superada, pois é incapaz de dotar a ação do homem
qe uma direção consciente37 • Temos, pois, a importância da ação
(informada pela concepção de mundo) unitária e coerente no
movimento de transformação da realidade. Essa unidade teórica e
prática, elaborada sistematicamente pela reflexão crítica dos agentes
transformadores, permite a efetiva elevação intelectual daqueles que
a conquistam.
Trataremos, agora, de discutir em que medida este esforço
integra-se à constituição do bloco social, intelectual e moral, ver-
dadeiro sujeito da transformação social para Gramsci. Do ponto de
vista gramsciano, um movimento filosófico só merece este nome na
medida em que permanece em contato com os "simples" e, melhor
dizendo, encontra neste contato a fonte última dos problemas que
devem ser estudados e resolvidos. Nas palavras de Gramsci, "(... )
a organicidade de pensamento e a solidez cultural só poderia ocorrer
se entre os intelectuais e _os simplórios se verificasse a mesma
unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os
intelectuais fossem, organicamente, os intelectuais daquela massa,
se tivessem elaborado e tornado coerentes os princípios e os proble-
mas que aquelas massas colocavam cem a sua atividade prática,
constituindo assim um bloco cultural e social" (Gramsci, CDH, p.
18).
A "filosofia da práxis", portanto, deve ser apresentada como
crítica do senso comum., tornando crítica uma atividade sensível já
existente (basear-se no senso comum para demonstrar que todos são
filósofos). Caberia, então, à política assegurar a relação entre senso
comum e a filosofia superior, isto é, frente à ação crítica sobre
aquele, procurar elevá-lo até o ponto atingido por esta38 •
Forjar-se-ia, desse modo, ou seja, segundo a ação crítica sobre
o senso comum e através de um vínculo indissociavelmevte orgânico

70
entre o novo filósofo e os simplórios, um verdadeiro bloco social,
intelectual e moral que tomaria politicamente possível o progresso
intelectual das massas, e não apenas de pequenos grupos intelectuais.
A elaboração superior da própria concepção do real seria atingida
mediante a compreensão crítica de si mesmo. E a luta entre hegemo-
nias políticas, nesse sentido, representaria esta própria elaboração
superior, pois o desenvolvimento político do conceito de hegemonia
supõe uma unidade intelectual e ética adequada à concepção do real
que superou o senso comum e tomou-se crítica.
A preocupação de Gramsci em superar o senso comum refere-se
fundamentalmente a sua preocupação com a ação histórica do bloco
social, intelectual e moral. A constituição desse bloco, o sujeito da
transformação para Gramsci, demanda um grande esforço em
romper com o determinismo economicista e o reducionismo de
classes/corporativismo, presentes no marxismo (principalmente o da
II Internacional) de então. A ruptura/superação se dará ao nível
prático-crítico, através do conceito de hegemonia.
Antes de entrarmos propriamente na discussão deste conceito e
sua relação com a reforma intelectual e moral, devemos nos deter
primeiramente na questão da filosofia criadora. Em certa altura da
CDH, Gramsci questiona-se sobre se seria o mundo exterior (a
realidade humana) uma "criação do pensamento". ·Responder afir-
mativamente significaria identificar por qual pensamento e o que o
produz. O problema, responde Gramsci, deve ser colocado de uma
maneira histórica e reconhecida, na base deste pensamento criador,
a existência de uma vontade racional. Tal vontade só poderá reali-
zar-se concretamente enquanto corresponder às necessidades históri-
cas objetivas.
Com isso, Gramsci aP9nta a importância histórica (a realização
da vida) de uma filosofia. É possível, pois, dizer que o valor histórico
de uma filosofi_a pode ser calculado a partir de sua eficácia prática
(efeitos positivos e negativos) sobre a sociedade. O espaço reservado
à questão da importância da filosofia expressa, em última instância,
o próprio esforço de Gramsci para romper com o determinismo das
"leis positivas" da história, afirmado pelo marxismo metafísico do
início do século. A ação humana é, então, concebida no sentido de

71
não haver uma separação entre o verdadeiro filósofo e o político. A
identificação entre o político e o filósofo representaria a própria
atividade transformadora do homem39 •
Esta concepção ampliada da política permite a Gramsci afastar-se
da concepção epifenomenalista das superestruturas, opondo-se radi-
calmente ao d~terminismo economicista e ao reducionismo de
classes/corporativismo (economicismo reducionista), como já sali-
entado. Na representação da "vontade concreta do homem", ou seja,
a aplicação efetiva do querer abstrato aos meios concretos que
realizam essa vontade, Gramsci expõe o próprio processo de criação
da personalidade, conferindo uma direção racional à vontade. Com
isso, a conquista das forças materiais toma-se um modo de conquistar
a personalidade. Novamente temos, através da associação entre
formas materiais e personalidade, a unidade entre teoria e prática.
Pelos elementos enunciados acima, creio ser correto dizer que o
conceito de hegemonia em Gramsci movimenta uma problemática
anti-reducionista da ideologia, sendo esta sua condição de inteligi-
bilidade. Gramsci considera o economicismo (entendido como uma
concepção epifenomenalista e reducionista da ideologia e de sua
natureza) a "fonte última" das derrotas sofridas pelos movimentos
operários, italiano e alemão, fundamentalmente, na década posterior
à Primeira Grande Guerra. Particularmente, a II Internacional
afirmava a inevitabilidade da revolução proletária; dadas as con-
dições econômicas do modo de .produção capitalista. Todos os
elementos ideológicos apresentavam, necessariamente, conotações
de classe, sem nenhuma influência ativa no desenvolvimento do
processo, porque opostos à científicidade das "leis" históricas. A
classe operária deveria defender seus próprios interesses, desenvol-
vendo assim as contradições econômicas. O colapso do capitalismo
seria simples resultado destas forças.
A experiência da Revolução Russa desarruma este "mecanismo".
A prática política demonstra ser uma força transformadora, em
oposição ao exclusivismo econômico. Gramsci enxerga nessa
revolução o produto da irrupção da consciência e da vontade na
História. Repensa, então, o conjunto dos problemas centrais do
marxismo desde uma perspectiva anti-economicista radical. Assim,

72
o desenvolvimento do conceito de hegemonia em Gramsci se dá
através de uma fusão total de objetivos econômicos, políticos,
intelectuais e morais, efetuada por uma classe fundamental com o
consentimento ativo de outras classes ou frações de classes, através
da ideologia. Esta determina objetivos, não somente econômicos e
políticos unificados, e tamb_ém, a unidade intelectual e moral do
"bloco", agente histórico da transformação. Através do sacrifício de
parte de sua natureza corporativa, a classe fundamental que con-
seguir articular aos seus interesses os de outras classes ou frações,
tornar-se-á hegemônica40 •
Temos, a partir da distinção entre a hegemonia em Lênin e em
Gramsci, que a concepção gramsciana introduz, relacionada à di-
reção política, a direção intelectual e moral. Segundo este, a hegemo-
nia envolve a criação de uma síntese mais elevada, de modo que
ocorra a fusão de seus elementos em uma vontade coletiva que se
constitui no novo sujeito da ação política. Entretanto, a formulação
da vontade coletiva e o exercício da direção política depende da
existência de uma direção intelectual e moral. Existe, pois, uma
necessidade de se formar uma nova vontade coletiva através da
reforma intelectual e moral. A ideologia é "positiva", no sentido de
que os homens adquirem "consciência de suas contradições no
terreno das superestruturas" (Marx, Prefácio à .Contribuição à
Crítica da Economia Política, 1977).
Este terreno superestrutura! onde os homens movem-se,
adquirem consciência de sua posição e lutam, tem por àgentes de
uma prática específica os intelectuais. E constitui o critério segundo
o qual Gramsci diferencia aquilo que chama intelectuais orgânicos,
dos intelectuais tradicionais, a própria inserção de cada um destes
nas relações sociais de produção de uma dada formação social. Assim
sendo, somente a análise do modo pelo qual o intelectual se articula
à produção, reprodução material e espiritual de um sistema
específico, pode identificar o intelectual orgânico, em oposição ao
intelectual tradicional. O vínculo estabelecido pelo intelectual or-
gânico com as massas, o chamado vínculo orgânico, é caracterizado
pela elaboração coerente dos princípios e dos problemas que surgem
da atividade-prática destas massas. Dito de outra forma, a singulari-

73
dade do intelectual orgânico advém da "prática", no sentido de
atividade humana transformadora (unidade prático-crítica) conjunta
com as massas (Gramsci, CDH, p. 18).
O vínculú de tipo tradicional, ao contrário, é marcado pelo
elemento da mediação, ou seja, o intelectual ocupa o papel de
elemento intermediário entre o Estado e os interesses da classe ao
qual ele procura representar. Deste modo, os chamados intelectuais
de tipo tradicional colocam em contato as massas com o aparelho de
Estado. Esta intermediação entre o Estado e a respectiva classe social
corresponde, em última instância, a um amortecimento dos atritos
existentes entre os diversos interesses, geralmente contraditórios, no
interior do conjunto da sociedade.

A superação do corporativismo é fundamental para o entendi-


mento do conceito de hegemonia, pois, sem aquela, é impossível
pensar o consentimento ativo (elemento diferenciador do conceito)
e sua relação com o "processo de universalização". Esta questão diz
respeito ao exercício da direção intelectual pela classe hegemônica,
na medida em que constitui a autonomização do sujeito histórico,
agente potencial da transformação social.

Podemos dizer que a elevação intelectual das massas juntamente


com a elaboraçãó de uma concepção de mundo unitária e coerente
(processos concomitantes) são, em essência, os elementos constitu-
tivos do "bloco social, intelectual e·moral", bem como instrumentos
indispensáveis do processo de superação do corporativismo e re-
ducionismo de classe.

Sobre a distinção estabelecida por Gramsci no interior do con-


ceito de hegemonia, é possível dizer que uma classe fundamental
pode se tomar hegemôníca através de duas formas: o transformismo
e a hegemonia. Aquele é marcado pela integração gradual e contínua,
via o "critério interpretativo das modificações moleculares" (Grams-
ci, MPE), dos elementos ativos que haviam surgido das classes ou
frações aliadas e até de oposição (caso da revolução passiva, como
visto anterjormente). Ao contrário, a hegemonia será expansiva se
fundada no consentimento ativo (vontade coletiva), produto de·uma

74
genuína adoção dos interesses das demais classes subalternas por
parte da classe hegemônica.
Para entendermos melhor este ponto, primeiramente vale lem-
brar que Gramsci questionou a concepção reducionista que convertia
a ideologia em mera função da situação de classe dos sujeitos. Assim,
é (re)afirmada a possibilidade de se pensar uma unidade ideológica
entre distintos grupos sociais. A importância da reforma intelectual
e moral traduz-se na criação de uma nova vontade coletiva sobre a
base de uma visão de mundo comum: a classe fundamental e seus
aliados fundem-se na vontade para formar um "novo homem
coletivo" (Gramsci, CDH). Em outras palavras, da fusão, num
objetivo, de múltiplas vontades sobre a base de uma única e superior
vontade coletiva, temos exatamente a distinção entre hegemonia (e
consentimento ativo), de um lado, e transformismo (e subordinação
ideológica), de outro.
Nesse sentido, a criação de uma nova hegemonia implicaria na
transformação do terreno ideológico anterior e na criação de uma
nova visão de mundo que serviria de princípio unificador para uma
nova vontade coletiva. A formação de uma consciência autônoma e
transformadora demanda, pois, a própria crítica ao conjunto
ideológico anterior e mudanças no peso relativo dos elementos na
velha ideologia. Este processo de transformação ideológica é
chamado por Gramsci de reforma intelectual e moral das massas.
Esta não significa, para Gramsci, a destruição de toda uma visão
de mundo anteriormente existente, substituindo-a por uma outra
completamente nova e já reformulada. Gramsci entende a reforma
como um processo de transformação e rearticulação dos elementos
ideológicos já yxistentes. O objetivo dessa luta, que deveria integrar
tanto a ideologia quanto a economia e a política, não é negar
totalmente o sistema hegemônico dominante e sim rearticulá-lo de
modo que este. possa expressar a nova situação. A perspectiva
reducionista, ao postular a existência de ideologias para cada classe
social, opõe-se a este entendimento da reforma intelectual e moral
das massas. Ao aceitar a hipótese reducionista, a reforma intelectual
e moral consistiria tão somente em reimplantar uma ideologia de
classe em substituição_ a uma outra41 •

75
A hegemonia consiste, efetivamente, no exercício de liderança
política, intelectual e moral, solidificada por uma concepção unitária
e coerente de mundo (ideologia orgânica). Esta direção não se
confunde com a subordinação à ideologia da classe hegemônica pelos
grupos aliados. Toda relação hegemônica é, necessariamente,
pedagógica e se dá entre as distintas forças que a compõem. Esta
concepção de mundo que unifica o bloco hegemônico é realmente a
expressão orgânica de todo o bloco.
Sobre o caráter de classe de uma ideologia, podemos dizer que
o princípio unificador de um sistema ideológico, isto é, o que articula
os elementos ideológicos, é o "princípio hegemônico". E este caráter
de classe de uma ideologia provém do princípio hegemônico que a
articula. A questão da vontade coletiva nacional-popular42 consiste
na luta de uma classe pela hegemonia (intento de articular em seu
discurso e sua prática todos os elementos ideológicos nacional-popu-
lares). O caminho até a hegemonia deve compreender, além de uma
consciência de si mesmo enquanto grupo autônomo, a criação de uma
base de consenso entre a classe fundamental e as demais classes e
frações subalternas, através do consentimento ativo.
Em síntese, temos que uma classe é hegemônica quando chega a
articular em seu discurso e em sua prática a grande maioria dos
elementos ideológicos, políticos e econômicos característicos de uma
determinada formação social. Assim, ao sistema de valores próprios
de uma classe somam-se outros elementos ideológicos existentes em
uma determinada conjuntura histórica.
Finalmente, Gramsci concebe a revolução como um processo
global que, embora opere através da conquista progressiva de espaços
e posições, tem como meta a transformação da totalidade social.

76
NOTAS

1 Refiro-me aqui, notadamenti:, à crise pela qual passa o moderno capitalismo desde o final
dos anos 60 e que,com modificações, se estende até os dias atuais.

2 "Essa crise se instaura no cenário da expansão imperialista que se opera através da interna-
cionalização das forças em presença, a nível de cadafonnação nacional" (Tude de Souza,
op. cit., p. 1)

3 "Entre 1970 e 1977, a caxa (média) de crescimento anual da indústria foi na Coréia do Sul
de 17%, na Indonésia, 13%, na China Nacionalista, 12%, na Tailândia, 10%, entre outros
países do sudeste asiático; e similarmente, na América Latina a situação era a seguinte:
Equador (13%), Brasil(] 1%), México(6%)" (idem, p. 4). Obviamente, estes dados devem ser
relativizados, afinal, mesmo pequenos montantes de investimento de capital (quando compara-
dos a países imperialistas) assumem proporções assustadoras em países de capitalismo depen-
dente. Contudo, estes servem perfeitamente para demonstrar-nos como a forma da
industrialização dos países do Terceiro Mundo permaneceu atrelada às demandas do processo
de internacionalização do ciclo de acumulação do capital nos últimos 20 anos.

4 Este período foi marcado ttunbém pela aplicação intensificada da ciência e da indústria na
manutenção do equilíbrio entre os blocos de nações capitalistas e coletivistas de Estado (o
chamado Bloco Socialista): "A importância da Guerra Fria consistia, exatamente, em sua ca-
pacidade de coordenar afonna de expansão econômica com o processo de consolidação do
moderno Estado-nação, simultaneamente no Velho e no Novo Mundo. Assim, enquanto osgas-
tos com annamentos somavam mundialmente algo em torno de 400 bilhões de dólares, em
1978, 40% de todo investimento em pesquisa científica estava voltado à defesa nacional"
(Beaud, 1987, pp. 308 e 315; citado por Tude de Souza, op. cit., p. 3).

S "De modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou cada vez ,nais evidente a incapaci-
dade do fordismo e do keynesianis,no de conter as contradições inerentes-ao Cqpitalismo. Na
superficie, essas dificuldades podem ser melhor apreendidas em uma palavra: rigidez. Havia
problemas com a rigidez dos investimentos de capital .fixo em larga escala e de longo prazo
em sistemas de produção em massa que impediam muita flexibilidade de planejamento e presu-
miam crescimento estável em mercados de consu,no invariantes. Havia problemas_ de rigidez
nos mercados, na alocação e nos contratos de trabalho (especialmente no chamado setor 'mo-
nopolista') e toda tentativa de superar esses problemas de rigidez encontrava a força aparen-
temente invencível do poder profundamente entrincheirado da classe trabalhadora --- o que
explica as ondas de greve e os problemas trabalhistas do período 1968--1972" (Harvey, 1992,
p. 135). Contudo, é preciso que se diga que, neste particular, Harvey compartilha a base da
concepção economicista dos teóricos da regulação já que para além da elevação dos custos so-
ciais do emprego diretamente produtivo, o modo de acumulação intensivo abrigava em seu in-
terior uma tendência inflacionária determinada por financiamentos ao consumo, à pesquisa e
ao desenvolvimento e gastos com armamentos.

6 O conceito de crise orgânica nos apontaria situações onde um conjunto complexo de determi-
nações histórico-concretas "fraturam" o aparelho de hegemonia do grupo dominante. Este
mesmo grupo é obrigado a lançar mão de um conjunto de contra-tendências expresso no que
Gramsci chama estratégia de grande período ou estratégia da revolução passiva - guerra de
posição. Esta modalidade de intervenção no real traduz-se em· um modo renovado de unifi-
cação (constituiçãp) da classe dirigente (reagrupamento de um grande número de partidos sob
a bandeira de um único).

77
7 Em períodos de crise orgânica parece ser mais apropriado falar cm dominação - supremacia
do elemento econômico-corporativo, do que em direção - ênfase no aspecto ético-político.
8 Cf. a importante distinção analítica empreendida por Burawoy, 1985, p. 87.

9 O trotskista inglês Alex Callinicos elabora em seu livro (A Vingança da História, 1ª


edição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,1992), recentemente traduzido para o português,
um interessante painel ideológico dos sentimentos de conservadores e progressistas durante o
desenvolvimento do processo revolucionário que derrubou os regimes stalinistas do Leste
europeu. Particularmente a inrelligenrzia liberal de esquerda, quase de modo absoluto, tendeu
_a perceber a derrocada do stalinismo enquanto consumação da vitória do capitalismo sobre o
seu rival histórico, o socialismo (na verdade, o bloco coletivista de estado). A tranformação
dos antigos PCs em partidos social-democratas (cujo exemplo clássico é o curocomunismo)
foi abruptamente acelerada pelos acontecimentos de 1989. As conclusões apocalípticas repro-
duziram-se rapidamente por entre a esquerda socialista em quase todos os países do mundo
onde esta se encontrava razoavelmente organizada. Um certo "espírito de consenso" foi for-
jado tanto no campo da esquerda quanto no campo da direita apontando para uma conclusão
razoavelmente clara: o capitalismo triunfara e o marxismo, se não inteiramente liquidado, en-
contrava-se no que bem poderia se tornar uma "crise terminal". Aos defensores das virtude
dessa nova ordem (imperialista), fundada no capitalismo "desregulamentado" (para os traba-
lhadores, sobretudo) resta, como última saída, "defender o mercado com uma face humana".
10 "Le fascisme er l 'americanisme sont indilidualisés, comme autanr de fonnes de ceue révo-
lution passfre" (Tosei, 1981, p. 35).

11 Gramsci chega mesmo a indicar a "superioridade" da forma americana da revolução pas-


siva que permitiu destruir as organizações de combate operário (o sindicalismo de base territo-
rial) e incorporá-las ao sistema, paralelamente ao desenvolvimento das forças produtivas no
seio de uma democracia representativa (ver, para isso, "Americanismo e Fordismo•, in MPE,
pp. 375-412).
12 Já Glucksmann e Thcrborn (1981, citados por Coutinho, 1988) haviam empreendido uma
análise da ação da sgcial-democracia européia no período posterior à II Guerra Mundial
partindo do conceito de revolução passiva.
13 "Como reações a moiimentos pop1dares reais e potendais, as classes dCRninantes empenharam-
se em "resiaurações" que, em última instância, produziram importantes modificações na com-
posição das classes e prepararam o caminho para novas tranfonnações reais" (Coutinho,
ibidem, p. 109).

14 Dessa forma, seria possível nos referirmos ao conceito num sentido restrito (caso do Risor-
gimento) e ampliado (caso do fascismo, fordismo e, talvez, a acumulação flexível).
15 "Toda singularidade e interesse hislÓrico do risorgimento radica nessa impossibilidade/im-
po1ência do jacobinismo, pois é dela - do fracasso de uma revolução burguesa de tipo francês
- que emerge a 'ria italiana', a rerolução passiva como forma política específica do desen-
vollimento capitalista na Itália" (Torres, op. cil., p. 218).

16 A este respeito, dirá Gramsci: "As exigências que encontraram na França uma expressão
jacobino-napoleónica foram (na lrália) satisfeitas em pequenas doses, de uma maneira legal e
reformista, conseguindo-se assim salvar a posição política e econômica das velhas classes feu-
dais, elitar a refonna agrária e, notadamente, eviiar que as massas populares atrm·essassem
wn período de-experiências políticas similares às da França nos anos do jacobinismo, em
1831, em 1848" (CDH, p. 223). .

78
17 Fundamentalmente orientado pelo grande desenvolvimento das maiores nações imperialis-
tas da época.

18 Vale lembrar que a distinção empreendida por Gramsci entre campo econômico e campo
político é puramente analítica, servindo às condições determinantes da análise no momento.
Tal distinção de modo algum deve ser interpretada como uma separação orgânica entre ases-
feras econômica e política (a tarefa de desvincular a esfera da produção econômica, onde atua
o trabalhador sob o controle da racionaliqade técnica, da esfera da circulação e distribuição,
onde atua o cidadão, foi, no limite, realizada pela economia política burguesa); ao contrário,
a unidade entre o político e o econômico afirma-se na própria crítica de Grrunsci à concepção
de Croce da paixão como elemento fundamental da política: "A política é ação permanente e
dá origem a organizações pennanentes (partidos, exércitos nacionais, Estados-maiores... ),
na medida em que efetivamente se identifica com a economia. Mas também tem sua distinção,
e por isso pode-se falar separadamente de economia e de política e pode-se falar de 'paixão
política' como um impulso imediato à ação, que nasce no terreno pennanente e orgânico da
vida econômica, mas supera-o,fazendo entrar em jogo sentimentos e aspirações em cuja
atmosfera incandescente o próprio cálculo da vida humana individual obedece a leis diversas
daquelas do proveito individual" (MPE. p. 14).

19 Esta concepção foi definida por Edgar Quinet como revolução-restauração que nada mais
é, segundo Gramsci, "do que a tradução francesa do conceito de revolução passiva 'interpre-
tado positivamente' pelos moderados italianos" (MPE, p. 215).

20 A crítica de Marx foi arrasadora e veio, como todos sabem, na forma de um livro, Miséria
da Filosofia, surgido em 1841. Nesta obra, Marx acusa Proudhon de interpretar a contradição
dialética como mera luta entre o bem e o mal, o que levaria à falácia que ':basta remover o
mal para que o bem predomine". No procei.so dialético materialista, para Marx, ambos os as-
pectos, a afirmação (tese) e a negação (antítese}, são igualmente indispensáveis ao desen-
volvimento da sociedade. A verdadeira superação histórica é constituída não pelo triunfo de
um lado e pela derrota de outro, mas pelo duelo que envolve necessariamente a destruição de
ambos, no caso, a destruição da dominação capitalista e das classes subalternas çnquanto tal.

21 Gramsci, tal como Marx, opõe a esta operação de mutilação filosófica (cujas raízes são
práticas) a própria história real onde "(... ) a anrítese tende a destruir a tese, a síntese será
uma superação, mas sem que se possa estabelecer a priori o que será conservado da tese na
síntese, sem que se possa medir a priori os golpes como em um ring convencionabilente regu-
lado" (CDH, p. 216).

22 Novamente, em relação aos teóricos da revolução passiva em seu sentido afirmativo: "(... )
neles, a incompreensão teórica era a expressão prática das necessidades da tese desenvolver-
se integralmenre, até o ponto de conseguir incorporar uma parte da própria anrítese para não
se deixar superar" (Gramsci, MPE, p. 77).

23 "Exatamente nessa formulação consiste a revolução passiva ou revolução-restauração"


(Gramsci, MPE, p. 78)

24 O problema fundamental é o produtivo "e, na produção o desequilíbrio entre indústrias


progressirns (nas qlll1is o capital constante foi awnentado) e estacionárias (onde conta muito
a mão de obra imediata)" (Gramsci, CDH, p. 115).

25 Para Gramsci, a I Guerra Mundial demonstraria que;: "(... ) na prática, é difícil separar a
crise econômica da,s crises políticas, ideológicas etc, se bem que isto é possível cientifi-
camente, ou seja, mediante um trabalho de abstração" (CDH, p. 114).

79
26 Diríamos um movimento progressivo de fragmentação-racionalização/recomposição-assimi-
lação/integração da condição de subalternidade das massas à ordem estabelecida, tal como se
constituiu o americanismo e fordismo no início do século.

27 De modo diverso: "Eis um exemplo sobre como deveria ser compreendida a dialética apre-
sentada em a Miséria da Filosofia: que cada membro da oposição deve procurar ser integral-
mente ele mesmo e lançar na luta todas as suas reservas políticas e morais, e que só assim se
consegue uma superação real, nada disso era compreendido nem por Proudhon, nem por
Mal.Zini" (Gramsci, MPE, p. 77).

· 28 O estado no ocidente seria, pois, ao contrário da realidade no oriente: "apenas uma


trincheira avançada, por trás da qual se situava uma robusta cadeia de fortalezas e
casamatas" (Gramsci, MPE, p. 75).

29 "Na estrutura de massa das democracias modernas, tanto as organizações estatais co,rw o
complexo de associações da lida chi/ constituem para a arte política o mesmo que as trinchei-
ras e as fortificações permanentes da frente na guerra de posição: elas fazem com que seja
apenas parcial o elemento do movimento que antes constituía toda a guerra" (Gramsci, MPE,
p. 92)

30 Daí a impossibilidade de se pensar separadamente revolução passiva-guerra de posição.

31 O elemento econômico imediato, contudo, na guerra de movimento é considerado "como a


artilharia de campo que na guerra abre a brecha na defesa inimiga, brecha suficiente para
que as tropas irrompam e obtenham um sucesso definitivo (estratégico), ou pelo menos um
sucesso imponante rw sentido da linha estratégica" (Gramsci, MPE, p. 72).

32 Produto da assimilação de parte dos interesses das classes subalternas pelas dirigentes de
acordo com o padrão das revoluções-restaurações.

33 "Da mesma forma que ocorria na g.uerra (de posição), quando um nutrido fogo de artilharia
parecia ter destruídQ todo o sistema defensivo do adversário, mas, na realidade, só o atingira
na sua superfície externa, e no momento do ataque os assaltantes defrorilavam-se com uma
linha defensiva ainda eficiente, assim ocorre na política durante as grandes crises econômi-
cas; nem as tropas atacantes, em virtude da crise, organizam-se rapidamente no tempo e no
espaço, nem muito menos adquirem um espírito agressivo; reciprocamente, os atacados não
se desmoralizam, nem abandonam as defesas, mes,rw entre ruínas, nem perdem a confiança
na sua força e rw seu futuro" (Gramsci, MPE, p. 73).

34 Contida na linguagem, no senso comum, no bom senso e folclore, como o conjunto tradi-
cional de crenças e superstições populares (Gramsci, CDH, p. 11).

35 O pensamento, assim,deve ser elaborado de uma maneira: "crítica e consciente e, por-


tanco, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de ativi-
dade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo ... "
(Gramsci, CDH, p. 12).

36 Como dirá Gramsci, significa criticar, também, "toda a filosofia até hoje existente, na
medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular" (ibidem).

37 Enten<!a-se por consciente a consciência de nossa própria historicidade (nossas relaçpes so-
ciais e inserção no mundo), que por sua vez informa e assegura uma prática transformadora.

80
38 "A.filosofia da práxis não busca manter os 'simplórios' na sua.filosofia primitiva do senso
comum (como o faz a ação católica), mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção
de vida superior" (Gramsci, CDH, p. 20).
39 Esta identidade talvez esteja melhor colocada na seguinte passagem: "Cada um transforma
a si mesmo, se modifica, na medida em que transfonna e modifica todo o conjunto de re-
lações do qual ele é o ponto central" (idem, ibidem, p. 40).
40 É verdade que o exercício da hegemonia leva a sacrifícios corporativos; contudo estes
sacrifícios jamais podem chegar ao ponto de comprometer os interesse básicos da classe
fundamental.
41 Bem distante, portanto da "síntese mais elevada" defendida por Gramsci.
42 Definida no sentido moderno, ou seja, "vontade como consciência atuante da necessidade
histórica, como protagonista de um drama histórico real e efetivo" (Gramsci, CDH, p. 7).

81
O FORDISMO E SUA CRISE:
ELEMENTOS HISTÓRICOS
E VERTENTES-DO DEBATE ATUAL
A tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um
pesadelo. E, mesmo quando estes parecem ocupados a revolucionar-se, a si e às
coisas, mesmo a criar algo de ainda não existente, é precisamente nestas épocas
de crise revolucionária que esconjuram temerosamente em seu auxílio os espíritos
do passado, tomam emprestado os seus nomes, as suas palavras de ordem
de combate, a sua roupagem, para, com esse disfarce
de velhice venerável e essa linguagem emprestada,
representar a nova cena da história universal.

Karl Marx, O 18 Brumário de Luís Bonaparte.

Notas sobre o conceito de fordismo

Muito da polêmica existente em torno do debate sobre a crise


atual e o processo de reestruturação das forças produtivas deriva da
forma altamente indeterminada pela qual os diversos autôres empre-
gam o conceito de fordismo - ou, nas palavras de Wood: "Os autores
não usam os conceitos da mesma forma. Em particular, o termo
central do debate, o fordismo, pode ser, e é efetivamente; utilizado
de maneiras bastante diferentes. Para alguns, ele é aproximadamente
sinônimo de taylorismo, produção em massa e linha de montagem.
Para outros,fordismo se refere a um modo de vida global. Enquanto
uns limitam sua aplicação ao processo de trabalho e aos métodos de
gestão, outros querem assentá-lo num conjunto de conceitos gerais
que servem para entender as sociedades em sua totalidade. Real-
mente, para os teóricos da Escola da Regulação, o fordismo é uma
premissa científica que, empregada no âmbito de seu aparato con-
ceituai geral permite identificar uma época particular do capitalismo
- aquela em que a produção em massa prosperou, as rendas reais
aumentaram.regularmente e o consumo em massa desenvolveu-se em
ritmo acelerado" (1991, p. 31).

83
De modo resumido, podemos afirmar que o conceito de regulação
fordista nasceu a partir da obra Regula,çoo e Crises do Capitalismo
(1979) do economista francês Michel Aglietta que, no caso, escrevia
sobre e nos Estados Unidos 1• Contando com Boyer e o principal
vulgarizador da Teoria da Regulação, Alain Lipietz, entre outros, foi
formada uma equipe que orientou seus esforços, após a segunda metade
dos anos 70, à análise do chamado "modo de desenvolvimento" seguido
pelo capitalismo ocidental no período do pós-guerra. Como indica
claramente a denominação pela qual ficaram conhecidos, a "Escola
Francesa da Regulação", estes economistas não estavam preocupados
somente em compreender o motivo pelo qual o capitalismo ocidental
havia podido conhecer vinte e oito anos de crescimento econômico quase
ininterruptos e relativamente sustentados, mas também por que os
mecanismos reguladores (no caso, adequação às normas de produção e
consumo) que haviam possibilitado tal crescimento pareciam desinte-
grar-se brutalmente após 1973.
Os regulacionistas decompõem o conceito de fordismo em dois
grandes níveis de significação: um nível mais global (modo de
desenvolvimento) e um mais restrito (o princípio de organização da
produção). A nível global, o conceito de fordismo estaria designando
o modo de desenvolvimento_, articulação entre um regime de acumu-
lação (intensivo) e um modo de regulação (monopolista), que marca
uma determinada fase do capitalismo, sobretudo nos países imperia-
listas (a chamada "Era de Ouro" .do sistema, isto é, os anos de
prosperidade sem precedentes do pós-guerra). Tal modo de desen-
volvimento pode ser apresentado no tocante a suas características
básicas pelo chamado "círculo virtuoso" da acumulação. O eixo
central da engrenagem deste círculo consistia no tipo de barganha
entre capital e trabalho estabelecida no âmbito dessas formações
sociais. A "barganha" pode ser apresentada, essencialmente, da
seguinte forma: "(... )de um lado, reconhecia-se o papel de dirigen-
tes e proprietários de empresas na liderança e iniciativa no tocante
à organização do processo produtivo e na tomada de decisões
estratégicas quanto aos mercados e investimento_s. De outro lado,
os sindicatos lutavam para conquistar a maior parcela dos ganhos
de produtividade associados à difusão e consolidação das normas
fordistas de produção e consumo" (Boyer, 1989, p. 8). ·

- 84
A organização e atuação dos sindicatos dos trabalhadores tiveram
importância crucial no processo histórico de formação e consoli-
dação da norma salarial fordista (o modo de regulação da norma
salarial faz desta o centro do regime de acumulação). De modo geral,
é possível destacar duas caracteósticas básicas das relações de
trabalho tipicamente fordistas:
a) o amplo reconhecimento, por parte da sociedade, das organi-
zações sindicais como interlocutoras sociais e,
b) a generalização dos procedimentos de negociação coletiva,
traduzindo uma crescente regulamentação das relações de emprego2•
Entretanto, é preciso que se diga que esta definição de fordismo
encontra-se impregnada de economicismo, manifesto notadamente
pelo sistemático privilégio conferido às transformações
econômico/institucionais em detrimento das transformações soei.ais,
ideológicas e políticas do capitalismo no pós-guerra e, sobretudo,
por uma relativa ignorância do processo de luta de classes na
explicação definitiva quanto ao nascimento, à dinâmica e à expressão
da crise desta ordem hegemônica (Bihr, 1991).
O nível menos global do fordismo estaria remetido a um princípio
de organização da produção, compreendendo um paradigma tecno-
lógico, forma de organização do trabalho e estilo de gestão. Nesse
nível, podem ser destacados os seguintes traços característicos ou
princípios constitutivos do fordismo:
a) racionalização taylorista do trabalhü3, ou seja, profunda divisão,
tanto horizontal (parcelamento das tarefas) quanto vertical (separação
entre concepçã? e execução), e a especialização do trabalho;
b) desenvolvimento da mecanização através de equipamentos
altamente especializados;
. .
e) produção em massa de bens padronizados;
d) a norma fordista de salários relativamente elevados e crescen-
tes, incorporando ganhos de produtividade (ao menos para a parcela
sindicalizada do operariado industrial), para compensar o tipo de
processo de trabalho predominante4 •

85
Neste sentido, a noção de linha de montagem fordista (Coriat,
1976) poderia ser definida como uma técnica especificamente capi-
talista de extorsão do sobretrabalho, traduzida em um poderoso
instrumento da maior extração possível de mais-valia em um dado
momento da relação de forças entre capitalistas e trabalhadores. Para
o próprio Ford, por exemplo, as tarefas de manutenção deveriam ser
assumidas, sempre que possível, pelo maquinismo, fixando desse
modo o operário em seu posto de trabalho. Também nesse espírito,
a cadência do trabalho seria regulada de forma mecânica, exterior-
mente aos operários e impondo-se a eles.
Coriat constrói, pois, sua concepção da linha de montagem
fordista a partir destes dois princípios fundamentais de organização
da produção imediata e que poderiam ser assim resumidos:
a) por um lado, monta-se um sistema mecânico baseado sobre
o movimento e a circulação constante de peças, ferramentas e
materiais de trabalho; e, por outro, toda a circulação é concebida
com a finalidade de fixar o trabalhador num posto de trabalho bem
preciso. Acentua-se, desse modo, a característica despótica da
organização do trabalho na medida em que, longe de constituir-se
numa simples inovação (organizacional), a linha de montagem
fordista visa, sobretudo,· aliviar as tarefas de manutenção e
comprimir as márgens de iniciativa e de autonomia-que as técnicas
taylorianas não haviam ainda reduzido, e,
b) introduz-se máquinas mais e mais complexas e especializadas,
de maneira que as operações requeridas por parte dos trabalhadores
sejam crescentemente simplificadas e executadas por operadores não
qualificados (aqui, note-se, é afirmado o princípio da intercambiali-
dade do trabalhador individual).
Assim descrito, o fordismo apareceria como um "gigantesco
dispositivo" (Coriat), sustentando uma aparência eminentemente
técnica (e portanto racional), cujo objetivo fundamental seria o de
obter do trabalhador o máximo possível de sobretrabalho durante o
transcorrer de sua jornada. A organização fordista do trabalho
permite, desta forma, economizar despesas improdutivas de força-
de-trabalho e aumentar os produtos obtidos pela intensificação da

86
produtividade do trabalho social (aumento da taxa de exploração da
força-de-trabalho). Crescentemente, a atividade dos trabalhadores
técnico-científicos é absorvida pelos "sistemas técnicos" o que
possibilita acentuar de forma aguda o domínio do capital sobre a
produção imediata (processos de trabalho e de valorização), aumen-
tando a extorsão do sobretrabalho.
As exigências do processo de valorização atuaram na produção
concreta (processo do capital para a produção de mais-valia), favore-
cendo a concepção das técnicas mais adequadas à reprodução de um
"certo sistema de lugares e funções destinado aos diferentes agentes
que concorrem na produção capitalista" (Coriat, idem). Temos,
pois, que o processo de apropriação da ciência e da técnica pelo
capital recobre, no limite, três séries de problemas:
a) o da separação do trabalho manual do trabalho intelectual;
b) a oposição entre estes dois tipos de trabalho; e
c) a consideração das forças produtivas sob seu duplo aspecto de
métodos de organização do trabalho mas, também, de meios de
produção portando a marca das relações sociais nas quais elas estão
inscritas e onde são produzidas (processo de materialização das
relações de produção nas forças produtivas).

Americanismo e fordismo em Gramsci

Os regulacionistas, ao tomarem o fordismo como uma categoria


totalizadora (estruturada em dois grandes níveis) demarcando um
período de expansão econômica do pós-guerra e que se estende até
a crise de 1973·, fornecem-nos, apesar do acentuado economicismo,
um aparato conceituai de fundamental importância para o entendi-
mento da mudança estrutural pela qual passa o capitalismo contem-
porâneo, dada ·a emergência de um novo padrão de relações
industriais e de acumulação. Contudo, é somente a partir da con-
tribuição gramsciana presente nos textos sobre americanismo e
fordismo (MPE, 1978) que a problemática das grandes alterações
históricas to~na-se mais clara.

87
A estrutura metodológica de "Americanismo e Fordismo" segue,
passo a passo, aquilo que se encontra delineado nos textos relativos às
"Análises de Situações e Relações de Força" (MPE, 1978, pp. 43-63).
Neste sentido, dirá Gramsci, os elementos de observação empírica
deveriam começar a ser analisados pela "relação das forças internacio-
nais" passando, em seguida, às "relações sociais objetivas", ao grau de
desenvolvimento das forças produtivas, às relações de força política e
de partido (sistemas hegemônicos dentro do Estado nacional) e às
relações políticas imediatas (potencialmente militares). O estudo de uma
estrutura deveria sempre distinguir entre os elementos orgânicos (rela-
tivamente permanentes) e os elementos de conjuntura (que se apresentam
como ocasionais, imediatos, quase acidentais) 5•
Em termos analíticos, Gramsci decompõe a situação das relações de
força em três momentos necessários: o momento da relação das forças
sociais, estritamente ligado à estrutura objetiva, isto é, à base do grau
de desenvolvimento das forças produtivas, onde estruturam-se os agru-
pamentos sociais representando uma função e ocupando uma posição
determinada na produção. O momento da relação das forças políticas,
que pode ser analisado e diferenciado em vários graus, correspondendo
aos diversos instantes da consciência política coletiva, segundo suas
formas de manifestação histórica6 • E o momento da relação de forças
militares, imediatamente decisivo em determinados instantes, articulado ·
em dois graus particulares: o· militar no sentido restrito e o político-mili-
tar (como, por exemplo, a relação de opressão militár de um Estado
sobre uma nação que buscava alcançar a sua independência estatal). Por
fim, é preciso dizer que Gramsci considerava a observação mais
importante a ser feita a propósito de qualquer análise concreta das
relações de força, que esta só adquire um significado caso sirva para
justificar uma atividade prática7 •

Neste espírito, Gramsci empreende a análise do "novo meca-


nismo de acumulação" que se afigurava a partir da implantação da
estrutura fordista de produção, ou, em outras palavras, da passagem
do "velho individualismo econômico para a economia programática"
(mudança de um regime de acumulação concorrencial para um
monopolista). Como um dos problemas mais 'importantes a ser
enfrentado estava o de ver se "o americanismo pode determinar um

88
desenvolvimento gradual do tipo, já examinculo, das 'revoluções
passivas' próprias do século passado, ou se, ao contrário, repre-
senta apenas a acumulaçiio molecular de elementos destinados a
produzir uma 'explosão', uma transformação de tipo francês"
(Gramsci, MPE, p. 376).
Temos, pois, que Gramsci tratou de analisar o novo equilíbrio de
forças políticas instaurado em pleno período de crise orgânica, conforme
vivia o mundo capitalista da época, e onde o fundamental seria c~.rii,
preender as estratégias de grande período (revolução passiva-moderni-
zação conservadora) empreendidas pelas classes dominantes na Itália e
nos EUA, tomadas principalmente como resposta a um processo dessa
natureza. No limite, essas estratégias visavam recompor a unidade entre
as relações sociais de produção, as novas exigências da acumulação do
capital, então francamente comprometidas pela que.da tendencial da taxa
de lucro, e seus aparelhos de hegemonia. Assim, segundo as imposições
de um período de crise orgânica, a classe dominante busca reconduzir
o movimento operário (e, no caso, obtém êxito), bem como o conjunto
mais geral das classes subalternas, ao terreno das lutas econômico-cor-
porativas.

Americanismo e fordismo são entendidos nos termos de uma


nova ordem política e social, verdadeira resposta implementada por
setores do patronato industrial da época à natureza dos conflitos
econômicos e culturais que germinaram na sociedade norte-ameri-
cana de então. O primeiro passo dado nessa direção foi, sem dúvida,
a difusão de um novo modelo de relações industriais que, em última
instância, visava recompor o trabalhador coletivo de acordo com as
novas exigências da racionalidade produtiva e suas demandas por
controle e eficiência8 • Os próprios conceitos empregados por Grams-
ci de crise orgânica, revolução passiva e hegemonia, detêm um
caráter, a um só tempo, analítico e estratégico, e são, na verdade,
meios para se designar determinadas situações onde "a classe domi-
nante organiza toda a vida nacional (social, cultural) construindo em
tomo do Estculo um sistema de aparelhos (privculos, semi-públicos e
públicos) que constituem as diversas projeções da função de direção
política na ~ociedade civil" (Gramsci, 1983, p. 310).

89
Com isso, o fordismo exprimiria as formas da revolução passiva
e da guerra de posição tal como estas se materializaram na história
norte-americana:

a) a racionalização do trabalho e a organização de uma economia


planejada (monopolista);

b) a montagem de uma vasta rede de aparelhos "hegemônicos"


privados, semi-públicos e públicos;
c) a difusão e a inculcação de ideologias puritanas; e,
d) a constituição de uma nova classe média integrada pelos quadros
técnicos e gestionários da produção racional (Tude de Souza, idem).
Gramsci preocupou-se fundamentalmente em recuperar a capaci-
dade de intervenção estratégica do marxismo face às transformações
provocadas pela emergência de uma nova· estratégia política e
ideológica de construção da hegemonia do bloco histórico no poder
(EUA e Itália). O fordismo traduzia-se, pois, nesta nova tentativa de
construção da hegemonia do grupo dirigente, cujo resultado mais
importante foi o alargamento da base operária nas alianças entre a
direção econômica e cultural e os grupos subalternos9 •
Neste sentiqo,. as modifiéações introduzidas com a linha de mon-
tagem fordista foram vistas por Gramsci como expressões extremas das
"modificações moleculares" já contidas pelo desenvolvimento das forças
produtivas na economia capitalista americana 10 • De uma maneira geral,
o fordismo expressou uma nova composição das forças produtivas
através dos chamados processos de modernização conservadora". À
racionalização da produção correspondia um novo ajuste entre estruturas
e superestruturas (fude de Souza, ibidem) 12 , sempre no sentido de
recompor a unidade entre relações sociais de produção e aparelhos de
hegemonia. O capital, assim, conseguia, através dos altos salários,
recriar as formas de organização do consenso e da adesão, trazendo-as
para o interior da corporação industrial: "A racionalização do trabalho
associada à diversificação da concessão de meios çl.e consumo, e aos
altos salários, elevou a um novo patamar as relações de força entre a
burguesia e· o operariado levando por conseguinte ao enfra.quecimento

90
e à destruiçiio das organizações de combate e defesa dos traba-
lhadores" (Tude de Souza, ibidem, p. 28).
A hegemonia da qual fala Gramsci para o caso do fordismo foi
aquela que soube articular a coerção (liquidação do sindicalismo de
base teritorial) e o consenso (altos salários e outros benefícios) de
modo a recompor e reproduzir as bases da legitimação (modificada)
da estrutura capitalista da época e, assim, encontrar uma resposta
compatível com o período de crise orgânica. A resolução da questão
dos altos salários foi decisiva para o sucesso da ofensiva fordista: "A
adaptação aos novos métodos de produçiio e de trabalho não se pode
verificar apenas através da coação social... A coerção deve ser
sabiamente combinada com a persuasão e o consentimento e isto
pode ser obtido nas fonnas adequadas de uma detenninada so-
ciedade por uma maior retribuiçiio que pennita um detenninado
nível de vida, capaz de manter e reintegrar as forças desgastadas
pelo novo tipo de trabalho" (Gramsci, MPE, pp. 404-5).
Contudo, a não resolução da contradição fundamental sempre
recoloca em novas bases o conflito que é reproduzido mas não superado
(caso da revolução passiva materializada no fordismo). Como bem
salienta o próprio Gramsci, a indústria americana que paga altos salários
desfruta do monopólio que lhe foi proporcionado pela primazia na
implantação dos novos métodos. Aos lucros de monopólio correspon-
dem os salários de monopólio. Com a difusão dos novos métodos e sua
generalização, os lucros elevados primeiro serão limitados -e, depois,
destruídos, bem como os altos salários 13 • Por fim, é preciso salientar,
tal como faz Gramsci, que americanismo e fordismo não podem ser
tomados por um novo tipo de civilização, tratando-se apenas de um
prolongamento. orgânico da civilização européia (capitalista) e que
adquiriu uma "nova pele" no clima americano.

Fordismo: as forças produtivas


e os aparelhos de hegemonia

Em oposição à abordagem economicista dos teóricos da "Regu-


lação", entendemos o fordismo como um "projeto hegemônico" 14 de

91
elaboração de uma nova organização social articulada a uma dada
configuração das forças produtivas, no interior da qual as classes
subalternas e, particularmente, o contingente masculino 15 , branco e
sindicalizado do operariado fabril, é tendencialmente integrado,
conferindo sustentação à estrutura hegemônica e aos interesses do
grupo dirigente. É neste sentido que devemos entender a particular
combinação entre a forma como se desenvolvem as forças produtivas
no interior de uma formação social dada (relações de apropriação
real) e os aparelhos hegemônicos materializados no modo pelo qual
a ordem busca conter o processo de luta de classes em nível nacional
e internacional (caso, por exemplo, do Estado burguês de tipo
welfare, então emergente).
Cabe, no momento, esclarecer com qual estatuto teórico do
conceito de forças produtivas estamos lidando. Primeiramente,
devemos afastar toda e qualquer definição puramente enumerativa
das forças produtivas, ao estilo: as forças produtivas da sociedade
dividem-se em materiais, quer dizer, os instrumentos de trabalho,
os materiais, energia, terra; e sociais, isto é, o homem, a formação-
qualificação, os hábitos ... Estas definições enumerativas das forças
produtivas tomadas independentemente das relações sociais de pro-
dução e, portanto, do conjunto das determinações histórico-concre-
tas ao qual estão sujeitas, pressupõem que se pos~a considerar o
desenvolvimento das forças produtivas como a força propulsora
relativamente autônoma do movimento histórico.

Esta problemática das forças produtivas exprime-se de maneira


P ,<emplarnas chamadas teorias da revolução técnico-científica (ou
da Terceira Revolução Industrial) 16 • Considerada segundo sua
natureza própria, a revolução técnico-científica aparece sempre
como uma revolução autônoma das forças produtivas, manifestando-
se por toda parte, sejam quais forem as relações de produção
dominantes. Sua lógica de desenvolvimento, nesse sentido, contradiz
a lógica da acumulação capitalista na medida em que implica uma
crescente tendência para a sobre-acumulação .do capital e uma
redução da produtividade global do trabalho ligada à limitação do
consumo é das despesas sociais gerais, ou despesas para o homem.
Em vista disso, é possível concluir que a revolução técnico-científica

92
desenvolve-se em sua natureza própria o suficiente para que se possa
encarar nos países imperialistas, uma passagem pacífica para o
socialismo, apoiando-se nas novas forças produtivas 17 •
Tal perspectiva fundamenta-se em uma concepção geral do
desenvolvimento, expressa por uma filosofia do progresso humano
em geral, que reduz a história óa humanidade à história da dominação
progressiva do homem sobre a natureza 18 • As forças produtivas,
nesse sentido, opõem-se, dada sua mobilidade natural, às rela,;ôes
sociais de produção (elemento relativamente estável da uase
econômica). É possível admitir que as relações de produção ajam,
por seu lado, sobre o desenvolvimento das forças produtivas;
contudo, esta ação é pensada, sempre, como exterior, representando
estímulos ou entraves ao desenvolvimento das forças prcxiutivas 19 •

Contrariamente, entendemos o conceito de forças produtivas en-


quanto uma relação de determinado tipo no interior do mcxio de
prcxiução (relações de apropriação real). Isto implica dizer que as forças
prcxiutivas são determinadas em sua natureza e tipo de desenvolvimento
pelas relações de prcxiução dominantes e pela luta de classes que estas
relações condicionam. O sistema das forças produtivas traduz-se, pois,
na materialização de relações de prcxiução antagônica,s ou, em outras
palavras, um sistema contraditório. O conceito de forças' produtivas
designaria a unidade das relações sociais, econômicas, ideológicas e
políticas, na medida em que interviesse de modo eficaz na apropriação
social da natureza (Balibar, 1976). ·

Podemos tomar enquanto marco inicial do fordismo o ano de


1914, quando Henry Ford introduziu seu dia de oito horas e cinco
dólares como r~ompensa para os trabalhadores da linha automática
de montagem de carros que ele estabelecera no ano anterior em
Dearborn, Michigan20 • Todavia, o processo de difusão geral do
fordismo foi muito mais complexo. Deixando, por hora, de lado os
vários aspectos históricos da implantação (lenta) do fordismo até
1945, é possível dizer que este só alcança sua maturidade enquanto
modalidade de reprodução salarial a partir da resolução da complexa
problemática da configuração e uso próprio dos poderes do Estado21
no pós-guerra22 • Esta forma de desenvolvimento constituiu a base de

93
um longo período de expansão que se manteve mais ou menos intacto
até 1973.
Ao longo desse período, o capitalismo nos países imperialistas
alcançou taxas de crescimento econômico expressivas, embora rela-
tivamente estáveis. Os padrões de vida se elevaram, as tendências
de crise foram, grosso modo, adiadas, a democracia de massas
preservada e a ameaça de grandes guerras intercapitalistas, tornada
remota pelo contexto da Guerra Fria (Harvey, ibidem, pp.126-127).
O fordismo se aliou firmemente ao keynesianismo e o capitalismo,
como já salientado, dedicou-se a um surto de expansões internacio-
nalistas de alcance mundial que atraiu para sua rede inúmeras nações
descolonizadas23 • A derrota dos movimentos operários radicais que
ressurgiram no período do pós-guerra imediato preparou o terreno
político para os tipos de controle de trabalho e de compromisso que
possibilitaram o fordismo 24 •
Contucfo, e este é um ponto de fundamental importância, nem
todos eram atingidos pelos "benefícios" do fordismo, existindo
numerosos sinais de insatisfação, mesmo no auge do sistema. A
negociação salarial fordista, por exemplo, estava restrita a determi-
nados setores da economia e determinados Estados-nação onde o
crescimento estável da demanda podia ser acompanhado por inves-
timentos de larga escala na tecnologia de produção em massa. Outros
setores da produção ainda estavam submetidos, por sua vez, aos
baixos salários e à precariedade do emprego, enquanto os chamados
setores fordistas recorriam à subcontratação não-fordista. Segundo
O'Connor (1977), os mercados de trabalho dividiam-se num "setor
monopolista" e num "setor competitivo", mais diversificado e em
que o trabalhador estava longe de obter privilégios. Os chamados
"excluídos" 25 do fordismo geraram sérias tensões e fortes movimen-
tos sociais que giravam em tomo da maneira pela qual a idade, o gênero
e a origem étnica26 costumavam determinar quem tinha ou não acesso
ao emprego privilegiadü27 • O conjunto das desigualdades tendia, por sua
vez, a ser agudizado diante das elevadas expectativas geradas por um
tipo de sociedade fundada no consumo de massas28 • •
A própria diferenciação da força-de-trabalho fordista era dada
por um núcleo central (corporativo) predominantemente branco,

. 94
masculino e fortemente sindicalizado, e um grupo periférico, geral-
mente composto por negros e mulheres, desagregados, subempre-
gados, tendo de se sujeitar à baixa remuneração e a condições .de
trabalho degradantes. O poder dos sindicatos estava fundado em sua
capacidade de resistir à perda de habilidades, ao autoritarismo, à
hierarquia e à perda do controle do processo de trabalho 29 • Mas coube
ao Estado suportar a carga de um descontentamento crescente que,
por vezes, culminou em desordens civis por parte dos excluídos.
Como a condição do fornecimento de bens coletivos era determinada
pela aceleração da produtividade do trabalho social no setor corpo-
rativo, "o Esta.do tinha de tentar garantir alguma espécie de salário
social a.dequa.do para todos ou engajar-se em políticas redistributi-
vas ou ações legais que remediassem ativamente as des(gualda.des,
combatessem o relativo empobrecimento e a exclusão das minorias.
A legitimação do poder do Esta.do dependia cada vez mais da
capacida.de de levar os benefícios do fordismo a todos e de encontrar
meios de oferecer assistência médica, habitação e serviços educa-
cionais em larga escala, mas de modo humano e atencioso" (Harvey,
ibidem, p.133).
Os movimentos de contra-cultura dos anos 60, paralelamente aos
movimentos das minorias excluídas, traduziam-se em correntes de
oposição que começaram a se fundir num forte movimen~o político-
cultural, que, no limite, questionava as bases da legitimação fordista.
A todos esses movimentos contestatórios ao nível dos países impe-
rialistas devem ser acrescentados os insatisfeitos das economias
dependentes (ferceiro Mundo), com um processo de modernização
que prometia desenvolvimento, emancipação das necessidades e
plena integração ao fordismo, mas que, na prática, ''promovia a
destruição, de culturas locais, muita opressão e numerosas formas
de domínio capitalista em troca de ganhos bastante pífios em termos
de padrão de vida e serviços públicos (por exemplo, no campo da
saúde), a não ser para uma elite nacional muito afluente que decidira
colaborar ativamente com o capital internacional" (idem, ibidem).
Os movimentos de libertação nacional (alguns socialistas, mas
com maior freqüência burgueses-nacionalistas) mobilizavam muitos
dos insatisfeitos sob formas que, por vezes, pareciam bem

95
ameaçadoras para o bloco histórico então hegemônico. Entretanto,
apesar de todo descontentamento e das tensões manifestas, o núcleo
central do fordismo permanece firme até 1973, favorecendo, em última
instância, o trabalho sindicalizado. Os padrões materiais de vida para a
massa da população nos países imperialistas se elevaram e um ambiente
relativamente estável para os lucros corporativos prevalecia.

A crise do fordismo

Como já vimos anteriormente, após a Segunda Guerra Mundial


o capitalismo experimenta um período de crescimento econômico
nunca antes observado pelos países imperialistas. Tal crescimento
foi sustentado, relativamente, por aquilo que denominamos nova
ordem hegemônica fordista-keynesiana, ou simplesmente fordismo,
que correspondia, grosso modo, a um tipo de compromisso global
acordado entre o patronato e os grandes sindicatos corporativos,
garantindo a redistribuição dos ganhos de produtividade aos as-
salariados (condição da intensificação do trabalho) que integrassem
o núcleo deste "círculo virtuoso" 3º.
O compromisso fordista assegurou, entre outros benefícios sociais,
uma legislação social referente ao salário mínimo; a generalização das .
convenções coletivas de trabalho (induzindo os capitalistas a conceder
aos assalariados· ganhos anuais de poder aquisitivo .correspondentes
ao crescimento da produtividade nacional); um Estado burguês de
tipo welfare com um sistema de previdência social desenvolvido, que
permitiu aos assalariados continuar como consumidores até no caso
de estarem impedidos de se integrar à produção por motivo de
doença, velhice, aposentadoria ...
Esse período de crescimento acelerado e relativamente susten-
tado encerra-se em 1973, quando a economia capitalista conhece sua
primeira recessão generalizada desde a Segunda Guerra Mundial. A
partir daí, o capitalismo internacional mergulha num longo período
de dificuldades econômicas e sociais crescentes, caracterizado pela
crise do Estado burguês de tipo welfare e demais instrumentos de
regulação das formas de sociabilidade próprias do fordismo e seu
compromisso de crescimento sustentado.

96
A competição internacional intensifica-se e, determinada pela
queda de produtividade e lucratividade corporativa (bem como pela
crise fiscal do Estado burguês), condiciona a abertura de novos
mercados onde o contrato social com o trabalho fosse frouxamente
respeitàdo ou inexistente31 •
Na verdade, a chamada crise do fordismo pode ser, e é
efetivamente, interpretada segundo os mais diversos pontos de
vista. Existem aqueles, como os regulacionistas, que a interpre-
tam enquanto o esgotamento de um dado regime de acumulação
(intensivo), somado ao colapso do modo de regulação (monopo-
lista); há aqueles que trabalham com a perspectiva da crise como
esgotamento de um dado paradigma tecnológico e a circuns-
crevem ao âmbito estrito das relações na produção. A crise do
fordismo também é entendida nos termos da crise de governabili-
dade contida na problemática nacional3 2•
Partindo de nossa interpretação inicial da crise contemporânea
como crise orgânica do capitalismo tardio, é possível avançar em
direção a uma análise da crise do fordismo que busque superar as
interpretações economicistas, reducionistas e politicistas, presentes,
em grande medida, no debate acerca do atual processo de reestru-
turação das forças produtivas.
Mas, para respondermos de modo mais sistemático à- questão
sobre a natureza da crise do fordismo, expressa, sobretudo, pela
quebra do compromisso que deu sustentação ao Estado burguês de
tipo welfare33 , é preciso ter presente a forma pela qual este mesmo
fordismo resolvia (relativamente) as tendências de crise, conforme
os limites da ordem capitalista.
Até 1945, faltando-lhe o aparato institucional apropriado, posteri-
ormente desenvolvido pelo Estado interventor, o fordismo (não de todo
desenvolvido, vale dizer) contornava as crises através de desvalorizações
selvagens do tipo alcançado nos anos 30 e 40. Após 1945, e até como
uma das conseqüências mais relevantes do detalhado planejamento da
época da guerra, com o fordismo se instituiu um forte sistema de controle
macrosocial que dosava o ritmo da mudança tecnológica e organi-
zacional (por" meio do monopólio corporativo), restringia a luta de

97
classes (por intermédio da negociaçao coletiva e das formas de
intervenção do Estado) e equilibrava aproximadamente a produção
e o consumo de massa através do gerenciamento estatal.
Em outras palavras, o fordismo conseguia, de maneira relativa,
articular as exigências da reprodução ampliada do ciclo de acumu-
lação às exigências de legitimação da chamada hegemonia fordista.
Contudo, a profunda recessão de 1973 detona, como imposição
histórica, um conjunto de processos (diríamos, contratendências
próprias à estratégia de grande período-revolução passiva das forças
produtivas) que, no limite, tende a solapar as bases do compromisso
fordista de crescimento com harmonia social, bem como as bases do
consentimento das classes subalternas (ou, ao menos, sua parcela
branca, masculina e sindicalizada) ao projeto hegemônico expresso
pelo fordismü3 4 • A crescente regulamentação das conquistas traba-
lhistas por parte do Estado burguês de tipo welfare foi, sem dúvida,
um elemento determinante no processo de elevação dos custos sociais
do emprego, que tão negativamente influiu nas sucessivas tentativas
de retomada da alta lucratividade a partir de 73. Todo o consenso
político fordista podia ser traduzido pelo pressuposto de que as
redistribuições deveriam estar fundadas no crescimento econômico
significativo e a redução do crescimento implicava em sérios proble-
. . burguês de tipo welfare35 •
mas para o Estado
Como já foi salientado, entendemos a crise contemporânea como
o produto da incapacidade do imperialismo em articular as demandas
por legitimação da moderna ordem burguesa, atualizada no interior
de cada Estado-nação, às exigências do processo de valorização do
capital ao nível das relações internacionais (em grande medida,
determinadas pelo encarecimento dos custos de manutenção do
imperialismo; ver Beaud, 1987 e Clarke, 1988).
É justamente no interior desta perspectiva que nos propomos a
apreender o atual processo de reestruturação das forças produtivas
conforme o "critério interpretativo das modificações moleculares"
(revolução passiva), que alteram a correlação de forças estabelecida
(no caso, a partir do final de 70), produzindo importantes alterações
na composição das classes e preparando o caminho para ~ovas
transformações reais (Gramsci, MPE).

98
·,
Nossa proposta de interpretação deste processo tem por base
tomar o desdobramento mais presente da reestuturação produtiva,
isto é, a chamada acumulação flexível, enquanto revolução passiva
ao nível das forças produtivas em suas articulações com os aparelhos
de hegemonia (principalmente o Estado burguês).
O desenrolar dos anos 70-e 80 encerra um período de profunda
reestruturação produtiva36 , bem como de alterações sociais e políti-
cas. Um conjunto de experiências nos domfuios da organização indus-
trial e da vida social e política toma forma,' sendo acompanhado,
sobretudo, pelo aumento do desemprego estrutural, a rápida destruição
e reconstrução de habilidades, alguns ganhos modestos de salários
reais para alguns setores e o retrocesso do poder sindical (talvez, a
grande coluna política do período fordista).
Com o enfraquecimento do poder sindical, o patronato passa a
impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis, determinando
uma verdadeira reestruturação do mercado de trabalho. O que passa
a valer são os sistemas de trabalho como o de nove dias corridos ou
também as jornadas de trabalho que têm em média 40 horas semanais
ao longo do ano, mas obrigam o empregado a trabalhar bem mais
em períodos de pico da demanda (compensando com menos horas
nos períodos de redução da demanda). Mas há também o contrário:
anualização do trabalho (concentrado em determinados. meses, as
brigadas de fim de semana, as brigadas volantes, etc).
Outro elemento de fundamental importância nesse processo é a
redução do emprego regular por tempo integral, favorecendo o' crescente
uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratadü37•
Progressivamente vai diminuindo aquele grupo de trabalhadores empre-
gado em tempo integral, estabilizados ou gozando de maior segu-
rança no emprego, com perspectivas de promoção e reciclagem
profissional, de uma pensão, um seguro e outras vantagens indiretas.
Somente esta tendência já aponta, de modo claro, p~a as dificuldades
pelas quais passà hoje o outrora "núcleo duro" da força de,trabalho
ford 1.sta. A engrenagem do círculo virtuoso foi rompida38 • E preciso
dizer que as formas· de organização da classe trabalhadora, princi-
palmente os sindicatos, extremamente importantes durante o período
fordista (1945-1973), dependiam do acúmulo de trabalhadores nas

99
fábricas para serem viáveis (sendo peculiarmente difícil obter o
acesso aos sistemas de trabalho familiares e domésticos, como nos
informam os exemplos de organização industrial baseada na subcon-
tratação e na desconcentração territorial).
As estruturas do mercado de trabalho que vão surgindo após 1973
aumentam a facilidade de exploração da for~a de trabalho feminina em
ocupações de tempo parcial de modo a substituir os trabalhadores homens
melhor remunerados e menos facilmente demitíveis. Fazem retornar,
também, os antigos sistemas de trabalt doméstico e familiar subcon-
tratados (agora mesclados à microeletrôri•.:a), permitindo o ressurgimento
de práticas e trabalhos de cunho parcial feitos em casa39 •
Contudo (e é obvio), afirmar que o fordismo, enquanto projeto
hegemônico predominante na maioria dos países imperialistas entre 1945
e 1973, encontra-se hoje em sua fase terminal, não implica necessaria-
mente dizer que aspectos deste mesmo fordismo não sobrevivam sob uma
suposta nova configuração da estrutura capita-lista de produção.
A conjuntura atual caracteriza-se por uma combinação da pro-
dução fordista altamente eficiente (nuançada pela tecnologia e pelo
produto flexível) em alguns setores e regiões (como os carros nos
EUA, no Japão ou na Coréia cio Sul~ e de sistemas de produção mais ·
tradi:;ionais (com.o em Cingapura, Taiwan ou Hong-Kong), apoiados
em relações de trabalho artesanais, paternalistas· ou patriarcais,
implicando em mecanismos bem qistintos de controle do trabalho.
Na verdade, esta conjuntura nada mais é do que uma nova configu-
ração das velhas forças capitalistas: "a sindicalização e a polftica de
'esquerda' tradicional tornaram-se muito difíceis de manter diante
de, por exemplo, sistemas de produçã,o patriarcais (familiares)
caracterfs:icos do Slf.deste Asiático, ou de grupos imigrantes em Los
Angeles, Nova York e Londres. As relações de gênero também se
tornaram muito mais complicadas, ao mesmo tempo que o recurso
à força de trabalho feminina passou por ampla disseminação. Do
mesmo modo, aumentou a base social de ideologias de empreenden-
tismo, paternalismo e privatismo" (Harvey, ibidem, p. 179).
O conjµnto de pressões por garantias sociais e benefícios para os
trabalhadores através da regulamentação estatal acaba pqr determinar

100
um processo, já no final dos anos 60, em que as finanças do Estado
estavam, segundo O'Connor, muito além de suas receitas, gerando
uma profunda crise fiscal e, no limite, contribuindo com a crise da
legitimação40 • A crise geral do Estado burguês de tipo welfare confunde-
se, após o aprofundamento da internacionalização da produção capita-
lista nos anos 70, com a crise pela qual passa a própria noção de Estado
na~ional. Com efeito, o Estado nacional é, cada vez mais obrigado a se
limitar a tarefas de contenção da força de trabalho organiza.da e outros
movimentos sociais. O Estado perde sua capacidade de investir em
políticas públicas e sociais mas permanece cobrindo as perdas dos
grandes grupos corporativos e do capital financeiro.

O compromisso com a competição livre no mercado e as tendências


pela desregulamentação (sobretudo no que tange às conquistas trabalhistas)
abriram arenas de conflito entre o Estado nacional e o grande capital
transnacional, comprometendo a fácil acomodação entre grande capital e
grande governo tão típica da era fordista. A erosão do compromisso social
entre o grande trabalho e o grande governo, pois, é elevada à condição
de regra na maioria dos países imperialistas.

O Estado nos dias de hoje vive a dura realidade de ser obrigado, por
um lado, a regular as atividades do capital corporativo no interesse das
classes dominantes nacionais e, por outro, criar um clima favorável aos
negócios no sentido de atrair o capital financeiro transnacional·, contendo
a fuga de capitais para zonas mais lucrativas. Por todo o mundo
capitalista é possível encontrar exemplos comprovando a idéia de que
os alvos e a capacidade de intervenção do Estado !:.:ofreram uma
significativa alteração após 1973. Entretanto, isto não quer dizer que o
intervencionismo estatal tenha 'diminuído absolutamente, visto em al-
guns casos (com_o, por exemplo, o controle do trabalho) a intervenção
do Estado alcançar graus bem mais expressivos. Mesmo ameaçado como
poder autônomo, o Estado nacional retém grande poder de disciplinar
o trabalho e de intervir nos fluxos de mercados financeiros (enquanto
se torna muito mais vulnerável às crises fiscais e à disciplina do dinheiro
internacional).

101
NOTAS

1 A obra de Aglietta, apesar da complexidade de análise e algumas "obscuridades", per-


manece sendo a melhor formulação teórica da abordagem da regulação. O modelo de Aglietta
foi formulado tendo em vista a experiência norte-americana como um tipo ideal construído
para medir o desenvolvimento incompleto do fordismo em determinados países e, por con-
traste, poder avaliar a profundidade da crise do fordismo. Isso deveria permitir a elaboração
de uma gama de tipologias históricas comparativas dos "regimes de acumulação" e dos "mo-
dos de regulação". Dada a impossibilidade de identificar as formas puras do fordismo no ter-
rçno do real, os regulacionistas tomaram como certo o fato de que a crise dos anos 20 teria
sido uma crise do modo de acumulação extensivo, enquanto que a dos anos 70 foi uma crise
da regulação fordista (ver Clarke, 1988, pp. '62-3).

2 Com isso, não queremos dizer que o fordismo se apresentou homogeneamente nas diversas
formações nacionais. A partir de grandes traços comuns, verificam-se diferenças substanciais
entre os países imperialistas. Baseando-se nessas diferenças, Boyer (idem, p. 14) sugere uma
tipologia de configurações nacionais ou variantes do fordismo: "fordismo genuíno" (EUA),
"fordismo híbrido" (Japão), "flex-fordismo" (ex-Alemanha Ocidental), ''fordismo impul-
sionado pelo estado" (França), "fordismo democrático" (Suécia). O autor aponta, ainda, os
seguintes traços como característicos do "fordismo genuíno" (EUA):
a) A organização tipicamente fordista do processo de trabalho;
b) acentuada estratificação das qualificações;
e) alta mobilidade dos trabalhadores entre firmas e regiões;
d) na formaçiio de salários, a indexação de preços é parcial e/ou lenta e, em relação à produ-
tividade, existe mas não é explícita;
e) em comparação com as outras configurações nacionais do fordismo, o impacto do desem-
prego sobre os salários é médio e a magnitude do salário indireto e dos benefícios da previdên-
cia social em relação ao salário direto é baixa;
f) o estilo de vida é marcado pelo consumo de massa largamente individualizado.

3 Desenvolvida nos primeiros decênios do século XX nos EUA como uma solução que permitia
restringir o poder dos operários de ofício nos processos produtivos e nos tem{>os de fabricação em
favor da entrada de operários não-qualificados nas fábricas, a racionalização taylorista do trabalho
impõe-se progressivamente como uma norma de organização do trabalho baseado nos tempos alo-
cados, especialmente adaptado à produção de grandes séries a baixo custo.

4 Em um nível intermediário, teríamos a norma de relação salarial que, em termos analíticos,


pode ser desdobrada em cinco componentes:
a) a organização do processo de trabalho;
b) a hierarquia das qualificações;
e) a mobilidade dos trabalhadores (dentro e fora da empresa);
d) a regra de formação do salário (direto e indireto); e,
e) o modo de utilização da renda salarial (notadamente, a norma de consumo vigente).

5 A distinção entre movimentos e fatos orgânicos e movimentos e fatos de conjuntura ou oca-


sionais, isto é, a efetiva construção da justa relação entre o que é permanente e o que é oca-
sional, presta-se à superação daquelas análises que caem no exagero economicista ou no
excesso de ideologicismo: "Também os fenômenos de conjunJura depehdem, é claro, de
movimentos orgânicos, mas seu significado não tem.amplo alcance lústórico: eles dão lugar a
uma crítica política miúda, do dia-a-dia, que investe os pequenos grupos dirigentes e as per-
sonalidades imediatamente responsáveis pelo poder. Os fenômenos orgânicos dão margem à

102
crítica histórico-social, que investe os grandes agrupamentos, acima das pessoas ime-
diatamente responsáveis e acima do pessoal dirigente" (Gramsci, MPE, pp. 45-6).
6 Gramsci identifica a existência de três desses instantes: o primeiro corresponde ao "plano
econômico corporativo", traduzindo-se na mais elementar forma da consciência política
coletiva (unidade homogênea do grupo profissional). O segundo instante, mais elaborado, se-
ria o da "consciência da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo :l<>cial",
ainda que no campo meramente econômico. O terceiro é o da "fase mais abertamente política"
(assinala a passagem nítida da estrutura'para a esfera das superestruturas complexas) onde é
possível alcançar além da unidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelec-
tual e moral: "(Este instante) coloca rodas as questões em torno das quais se ascende à luta
não num plano corporativo, mas num plano "universal", criando assim a hegemonia de um
grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados" (Gramsci, MPE, p. 50).
Cabe ainda dizer, como bem salienta Gramsci, que na história real esses instantes se confun-
dem reciprocamente.
7 "O elemento decisivo de cada situação é a força permanentemente organizada e antecipada-
mente predisposta que se pode fazer avançar, quando se manifestar uma situação favorável (e
só é favorai·el na medida em que esta força exista e esteja ca"egada de ardor combativo)"
(Gramsci, MPE, p. 54)
8 "A crítica às alternativas abertas pelo fordismo deveria levar, de acordo com Gramsci, à re-
incorporação do ele,nento ético-político capaz de imprimir uma direção à luta pela emanci-
pação proletária" (Tude de Souza, 1992, p.5).
9 Em outros termos, o fordismo seria entendido como uma verdadeira arma política das
classes dominant•!s contra a combatividade e a unidade operária, operando a construção de um
novo tipo de trabalhador coletivo, através do qual se erigiu uma nova classe operária e uma
nova classe média (Gramsci, MPE).
10 "Na realidade, não se trata de noi•idades originais, trata-se somente da fase mais re-
cente de um longo processo que começou com o próprio nascimento do industrialismo, fase
que é apenas ma; s intensa do que as precedentes e manifesta-se sob forinas mais brutais, mas
que também será superada" (Gramsci, MPE, p. 397; grifos do autor).
11 Em muitos sentidos, o novo padrão das relações industriais introduzido ·pelo fordismo an-
tecipava o Estado burguês de tipo welfare do período fordista-keynesiano.
12 "Mas, logo que os novos métodos de trabalho e de produção se generalizarem e difundi-
rem, logo que o tipo novo de operário for criado universalmente e o aparelho de produção ma-
terial se aperfeiçoar mais ainda, o turnover excessivo será automaticamente limitado pelo
desemprego em larga escala, e os grandes salários desaparecerão" (Gramsci, MPE, p. 405).
13 Ou ainda: "A raâonalização da produção, tomada como ponta de lança das reformas so-
ciais que atingiam o conjunto da iida nacional, determinava assim a necessidade de elaborar
um novo tipo humano, conforme o novo tipo de trabalho, capaz de por si mesmo levar a cabo
o estrangulamento e a liquidação das antigas orga/'lizações de defesa.dos interesses operários
na sociedade americana" (Tude de Souza, idem, p. 17).
14 Produto, como todo projeto, de uma determinada correlação de forças estabelecida entre o
grupo dirigente e as classes subalternas. Ver, acima, o sub item referente a americanismo e
fordismo em Gramsci. ·
15 No entanto, vale lembrar que.a linha de montagem e, sobretudo, a indústria taylor-fordiana
dos anos 50/60 (é de lá para cá, mais ainda) deu lugar a um importante processo de (re)incor-

103
poração da força de trabalho feminina: o trabalho feminino de montagem, fragmentado, repeti-
tivo e desqualificado, para além de mal remunerado e precário, não conhece perspectivas de
ascensão ocupacional nem investimentos em qualificação.

16 "A revolução científico-técnica consiste essencialmente em que a produção material de-


penda cada vez mais intimamente <ÚJ desenvolvimento da ciência transformada em 'força pro-
dutiva direta' e, de um mo<ÚJ mais geral, <ÚJ trabal/i,J intelectual ligaoo às tarefas de
concepção, de controle e de regulação do processo de produção" (Magaline, l<n7, p. 28).

17 No limite, temos que o desenvolvimento das forças produtivas aparece como o motor das
_transformações históricas, tomando assim o lugar da luta de classes, que se vê relegada a um
plano secundário: "o socialismo realizar-se-á à escala mundial, e em condições de relativa fa-
cilidade a partir do momento em que ele tenha surgido para a imensa maioria dos povos
como o único quadro adequado ao pleno desenvolvimento das forças produtivas modernas"
(Magaline, idem, p. 31).

18 Ver crítica do próprio Marx àquilo que chamou "materialismo intuitivo" de Feuerbach e
cuja principal característica também era a de tomar o homem e a natureza de forma abstrata,
independentemente do conjunto das relações histórico-concretas determinadas (K. Marx e F.
Engels, A Ideologia Alemã, 6ª Edição, São Paulo, Hucitec, 1987, 138 pp.).
19 "Nos tennos de um autor smiético (W, G. Marac/i,Jw), as forças produtivas são a ex-
pressão da liberdade do Mtnem em relação às forças da natureza e a 'fonte principal" do de-
senvolvimento das forças produtivas é a interação contraditória emre o trabalho humano e a
natureza" (Magaline, idem, p. 21).

20 Ver, para isto, notadamente, Beaud (1987), Beynon (1984), Harvey (1992) e Tude de
Souza (1992).

21 Na verdade, não só o estado, mas principalmente as formas do estado burguês correspon-


dem às individualizações distintas da forma institucional assumida pela luta de classes no âm-
bito de cada formação nacional.
22 "De desenvolvimento tenro fora dos Estados Unioos antes de 1939, o fordismo se implan-
tou com mais.firmeza na Europa e no Japão depois de 1940, como parte" do esforço de
guerra. Foi consolidaoo e expandi<ÚJ no períooo do pós-gue"a, seja diretamente, através de
políticas impostas na ocupação (ou, ,nais paradoxalmente, no caso francês, porque os sindica-
tos lide-rados pelos comunistas iiam o fordismo como a única maneira de garantir a
autonomia econômica nacional diante do desa.fio a,nericano), ou indiretamente, por meio do
plano Marshall e do investitnento direto americano subseqüente" (Harvey, ibidem, p.131).

23 "O crescimento do após guerra é o maior já conhecido pelo conjunto de países capitalis-
tas. Mais lento na Grã-Bretanha, apreciável nos Estados Unioos dado o elevado nível de pro-
dução no fim dos anos 40, ele é particularmente considerável na França e na Alemanha, e
mais ainda no Japão. Ele se baseia principalmente na elevação da produtividade do trabal/i,J
que, por sua vez, apóia-se no au,nento dos meios de produção postos à disposição de cada
trabalhaoor, e implicando uma intensificação do trabalho solicitado a cada um" (Beaud,
1987, p. 314).

24 "Armstrong, Glyn e Harrison (1984) oferecem detalhada análise de como se preparou o


ataque às fonnas tradicionais (orientadas para ofícios) e radicais de organização <ÚJ trabalho
tanJo nos territórios ocupaoos <ÚJ Japão, da Alemanha Ocidental e da Itália, como nos territórios
supostatnenle livres da Grã-Bretanha, da França e·oos Países Baixos. Nos EUA, onde a Lei Wag-
ner de 1933 tinha dado aos sindicatos poder no mercado (com reconhecimento _explícito de que

104

..
os direitos de negociação coletiva eram essenciais para a resolução do problema da demanda
efetiva) em troca do sacrifício no campo da produção, os sindicatos viram-se sob um ataque
virulento nos anos do pós-guerra por uma pretensa infiltração comunista e tenninaram por
ser submetidos a uma disciplina legal estrita pela Lei Taft-Hartley de 1952 (lei promulgada
no auge do período macarllústa cf Tomlins, 1985)" (ibidem, p. 128).

25 Faz-se necessário esclarecer que a exclusão à qual nos referimos não é incidental e sim
estrutural, pois o próprio modo de desenvolvimento é excludente. Sob o rótulo de excluídos
estão os "novos homens" do capital moQopolista: os operários massa, intercambiáveis, qualifi-
cados e não qualificados, instabilizados ou estabilizados. O que importa é reafirmar a unidade
entre beneficiários e excluidos, mostrando que se trata, na verdade, de uma estratégia de
gestão da força de trabalho combinada a uma dada forma de reprodução social (a classe ope-
rária mais heterogênea e diferenciada).
26 Seria possível indicar que estas determinações naturais foram utilizadas a partir de então
como elementos de afirmação das desigualdades, configurando uma verdadeira estratégia de
divisão no interior da classe trabalhadora.
27 Vários são os exemplos das ruidosas manifestações por parte dos excluídos do fordismo
como o movimento pelos direitos civis nos EUA ou o movimento feminista (imediatamente
após o surgimento de mulheres como assalariadas mal remuneradas).
28 "O choque da descoberta de uma terrível pobreza em meio à crescente afluência (exposta,
por exemplo, em The Other America, de Michael Harrington) gerou fones contramovimentos
de descontentamento com os supostos benefícios do fordismo" (Harvey, ibidem, p. 132).
29 "As lutas traballústas não desapareceram, pois os sindicatos muitas vezes eram forçados a res-
ponder a insatisfações das bases. Mas os sindicatos também se viram cada vez mais atacados a par-
tir de fora, pelas núnorias excluídas, pelas mulheres e pelos desprivilegiados" (idem, p. 133).
30 Em nosso entendimento, o chamado círculo virtuoso do fordismo se define pela grande in-
tegração e proporcionalidade dos investimentos entre os diferentes departamentos da produção
capitalista. É a partir desta dinâmica que advêm as duas diferentes explicações das crises capi-
talistas: a da superprodução (ênfase atribuída ao crescimento do capital fixo) e 'do sub-con-
sumo (ênfase na esfera do consumo operário, ou crise das normas de consumo salarial). Ver,
neste sentido, Clarke (1991).
31 "A rigidez dos compromissos do estado foi se intensificando à medida que programas de
assistência (seguridade social, direitos de pensão ele.) aumemavam sob pressão para manter
a legitimidade num momento em que a rigidez na produção restringia expansões da base fis-
cal para gastos públicos (... ); por trás de toda rigidez específica de cada área estava u,na
configuração indomável e aparentemente fixa de poder político e relações recíprocas que unia
o grande trabalho, o grande capital e o grande governo no que parecia cada vez mais uma de-
fesa disfuncional de'interesses escusos, definidos de maneira tão estreita, que solapavam, em
vez de garantir, a acumulação do capital" (Harvey, 1992, p; 136).
32 Muitas abordagens poderiam ser listadas, como as que percebem a crise do fordismo en-
quanto crise de superacumulação, crise de subconsumo, crise da forma espacial e temporal,
crise do imperialismo e outras. Ver, principalmente, Bihr (1991), Clarke (1989), Harvey
(1992), Ferraris (1989) e Piore e Sabei (1985). Partindo de nossa interpretação inicial da crise
contemporânea como crise-Ori:ânica do capitalismo tardio é possível avançar em direção a
uma análise da crise do fordismo que busque superar as interpretações economicistas, re-
ducionistas e politicistas, presentes, em grande medida, no debate acerca do atual processo de
reestruturação das forças produtivas.

105
33 Tomado enquanto materialização institucional da forma assumida pela luta de classes e
cujo objetivo seria a reprodução dos antagonismos, bem como a integração da classe traba-
lhadora, particularmente.
34 É neste contexto de desdobramentos da estratégia de grande período-revolução passiva das
forças produtivas que emerge o uso massificado da automação de base microeletrônica, os no-
vos ciclos de mudanças tecnológicas, novos produtos e nichos de mercado, a dispersão
geográfica para zonas de controle do trabalho mais fáceis e as formas de flexibilidade (produ-
tiva, dos mercados de trabalho, da jornada de trabalho, do consumo ... ).
35 "Este processo detemunou uma gradual retirada de apoio ao Estado burguês de tipo
·welfare e o ataque ao salário real e ao poder sindical organizado, que começaram como ne-
cessidade econômica na crise de 1973-1975 e foram simplesmente transformados pelos neo-
conservadores numa virtude governa,nental. Disseminou-se a imagem de governos fortes
administrando fortes doses dç remédios não palatáveis para restaurar a saúde de economias
moribundas" (Harvey, ibidem, p. 158).
36 Expressa na articulação entre a reestruturação das forças produtivas e os aparelhos de
hegemonia (sobretudo o Estado burguês) aliados às mudanças nos mercados e processos de
trabalho, envolvendo o conjunto das transformações tecnológicas (como exemplo, poderíamos
citar a automação flexível) e organizacionais (Kan-Ban e outras). O fundamental a serre-
alçado no momento é que a crise pela qual passa o capitalismo tardio e a reestruturação produ-
tiva são dimensões inseparáveis das forças em presença, apontando para uma aguda alteração
da correlação de forças entre as classes subalterna e dirigente, através de uma nova com-
posição da classe trabalhadora.
37 Cf. Beynon (1993), aproximadamente 40% da força de trabalho inglesa já se encontra su-
jeita a contratos de trabalho de tipo temporário ou por tempo parcial.
38 "A atual tendência dos mercados de trabalho é reduzir o número de trabalhadores 'cen-
trais' e empregar cada i·ez mais uma força de trabalho que entra facilmente e é facilmente
demitida sem custos quando as coisas ficam ruins. Na lnglate"ª• os 'trabalhadores flexíveis'
aumentaram em 16%, alcançando 8,l milhões entre 1981 e 1985, enquanto os empregos per-
manentes caíram em' 6%, ficando em 15,6 milhões" (Financial Times, 27, de fevereiro de
1987; citado por Harvey, ibidem, p.144). "Neste período, ainda, um rerço dos dez nu/hões de
novos empregos criados nos EUA estavam na categoria do temporário" (New York Times, 17
de março de 1988; idem, ibidem).
39 "Uma das grandes vantagens do uso dessas fonnas antigas de processo de trabalho e de
produção pequeno-capitalista é o solapamento da organização da classe trabalhadora e a
transformação da base objetiva da luta de classes (.. .). A luta contra a exploração capitalista
na fábrica é bem diferente da luta contra um pai ou rio que organiza o trabalho fanu/iar num
esquema de exploração altamente disciplinado e competitivo que atende às encomendas do
capital multinacional" (Harvey, ibidem, pp. 145-6).
40 Data dessa época (início dos anos 70) a publicação do já clássico estudo de James O'Con-
nor, intitulado no Brasil USA: A Crise do Estado Capitalista, Paz e Terra, 1977.

106
FORÇAS PRODUTIVAS,
HEGEMONIA E IMPERIALISMO
As idéias da classe dominante são: em cada época, as ideias dominantes; isto é, a
classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua
força espiritual dominante (... ). As idéias dominantes nada mais são do que a
expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais
dominantes concebidas como idéias; portanto, a expressão das relações que
tomam uma classe a classe dominante: portanto as idéias de sua dominação.

Karl Marx, A Ideologia Alemã.

A ofensiva neoconservadora

A década de 80 foi marcada por profundas transformações


políticas, sociais e econômicas, dentro e fora das fábricas. Os países
imperialistas experimentaram índices de desemprego nunca antes
vistos e estatísticas oficiais da ONU apontam para 50 milhões de
desempregados entre as nações ricas. Em países de capitalismo
dependente as cifras já chegam à marca de 500 milhões. de desem-
pregados'. A ofensiva burguesa, cuja reestruturação das forças
produtivas2 é a ponta-de-lança vivida no decorrer dos anos 80,
resultou num brutal alargamento do abismo que hoje separa países
ricos e pobres3•
O acirramento do processo de luta de classes internacional,
conseqüência direta da internacionalização do capital desde o pós-
guerra, reflete-se, também de maneira aguda, nos EU A e demais
países imperialistas, onde os salários reais caíram, na última década,
para o nível de meados dos anos 604. Ao que parece, o mundo
contemporâneo ·sujeita-se cada vez mais a um movimento que
aumenta a pobreza do Terceiro Mundo ao mesmo tempo que "ter-
ceiromundiza" setores da população dos países imperialistas. Emerge
deste processo uma verdadeira sociedade dual (Mandel) 5 dividida em
grupos sociai~ cada vez menos protegidos ou simplesmente despro-

107
tegidos pela teia de seguridade social e grupos que ainda conseguem
ter acesso a essa rede.
Como efeito necessário das políticas econômicas neoconser-
vadoras que acompanham esta ofensiva, estimativas apontam para
um número de 35 a 70 milhões de seres humanos vivendo abaixo da
linha de pobreza nos países ricos. Somente nos EUA, o número de
desempregados pode chegar a 20 milhões, e cerca de 75 % destes
empregos estão perdidos em caráter permanente, aumentando, as-
sim, o desemprego estrutural (Chomsky, ibidem) 6 • As próprias
estruturas de governo nacionais passaram a aglutinar-se em torno do
poder econômico internacionaF. Como conseqüência temos o go-
verno mundial de facto assumindo a forma do FMI, do Banco
Mundial, do grupo dos sete países mais industrializados, do GATT
e demais instituições criadas para servirem aos interesses transna-
cionais, dos bancos e empresas de investimento8 : "A 'Nova Era
Imperial' marca um deslocamento em direção à extremidade
reacionária do espectro anti-democrátjco" (Chomsky, ibidem) 9 •
Vivemos nos dias atuais uma fase superior do processo de
internacionalização do capital cuja determinação específica encon-
tra-se na recomposição das- bases do Imperialismo e da hegemonia
burguesa. Esta· nova ordem imperial (Chomsky) expressa-se através
de um duplo movimento de, por um lado, ascenção de novas
instituições governantes para servirem aos interesses do poder
econômico privado transnacional e, por outro lado, difusão do
modelo social terceiro mundista, com ilhas intensamente privile-
giadas em meio a um mar de miséria 10 • Em resumo, poderíamos dizer
que os acordos comerciais que substancializam essa nova ordem
imperial passam por cima dos direitos dos trabalhadores e consumi-
dores e ajudam a "manter a opinião pública em seu· devido lugar"
(Chomsky). Expressam, pois, a derrota momentânea da resistência
do movimento organizado dos trabalhadores e de massas em se
contrapor à presente ofensiva neoconservadora da ordem burguesa 11 •
Neste sentido, a atual reestruturação das forças prÓdutivas configura-
se no mecanismo-chave do processo de recomposição das bases da
dominação imperialista (internacional) e da hegemonia burguesa (ao

. 108
nível de cada Estado-nação) conforme as exigências históricas de um
período de crise orgânica.

A automação flexível: mercados de trabalho,


inovações tecnológicas e organizacionais

Historicamente, a segunda metade dos anos 70 é marcada por


um processo irreversível na indústria manufatureira em geral (e, é
óbvio, não somente na indústria manufatureira, mas também em
outros ramos industriais e de serviços), referente ao avanço da
automação de base microeletrônica 12 • No decorrer dos anos 70,
assiste-se ao surgimento de uma nova geração de equipamentos que
abre à automação domínios consideravelmente ampliados e múltiplos
de aplicação 13 •
No âmbito das relações na produção, o atual processo de
reestruturação das forças produtivas materializa-se, grosso modo,
sob a forma de tecnologias de automação programável com base na
microeletrônica (automação flexível associada à chamada
"revolução" informática) e um complexo conjunto de inovações
organizacionais que envolve desde os modelos participativos (CCQs,
grupos semi-autônomos ... ) de organização do trabalho até os novos
métodos de controle do fluxo de informações produtivas, como o
kan-ban, entre outros. Nossa proposta é abordar um pouco mais
detidamente alguns dos impactos desse conjunto de inovações (mui-
tas das quais não representam, senão, aperfeiçoamentos de técnicas
já bastante utilizadas) para a composição e a organização dos
trabalhadores, particularmente no que se refere às máquinas-ferra-
menta com cootrole numérico (MFCN) e ao kan-ban 14 •
Particularmente, no caso da automação flexível é bastante di-
fundida a idéia de que esta confere à base técnica maior flexibilidade
e versatilidade na intensificação da taxa de exploração do trabalho,
na medida em que concentra ainda mais o poder sobre a produção
nas mãos dos quadros técnicos, bem como tende a aumentar o ritmo
da produção aos níveis do fluxo contínuo com a integração de tarefas
e homogeneização de atividades. Podemos perceber, ppis, que a

109
reorganização da produção é caracterizada pela transferência do
controle sobre o processo produtivo, do âmbito da fábrica para os
escritórios de planejamento.
Estudando o caso da implantação de MFCN no Brasil, Tauile
(1984) dirá que, após este processo, os antigos oficiais mecânicos,
cuja formação traduzia-se num longo e complexo período, por isso,
muito valorizados no mercado de trabalho (e freqüentemente encon-
trados entre os mais militantes do movimento sindical), têm suas
tarefas desqualificadas em favorecimento de um processo coletivo
de trabalho 15 • Parte do conhecimento e das informações necessárias
à antiga produção com base na técnica eletro-mecânica é, pois,
incorporada às novas máquinas automatizadas. As atividades de
planejamento e operação do novo equipamento passam a ser exerci-
das por programadores e não mais pelos oficiais mecânicos 16 •
Conseqüentemente, a importância do operador de máquinas cuja base
técnica é microeletrônica, medida pela sua capacidade de interferir
no curso do processo e determinar o ritmo de sua atividade, decai
consideravelmente• 7 •
Um novo segmento da força de trabalho é formado a partir de
uma cultura profissional distinta da dos operários tradicionais (inter-
venção direta no processo produtivo), passando ao planejamento e
controle do pro_c~sso fabril ·à distância. As manifestações de con-
tradição entre o capital e o trabalho são também alteradas. Desse
ponto de vista, a mudança tecnol_ógica afirma a separação e a
oposição, caracteristicamente taylorista, entre os trabalhos de con-
cepção (escritórios) e execução (fábrica). Afirma, também, a reor-
ganização ·do processo coletivo de trabalho conforme a difusão da
automação flexível se realiza, na medida em que o poder de decisão
sobre a produção acentua-se sobre as atividades de programação, em
detrimento das atividades de execução 18 •
Tal processo redefine, na verdade, o padrão de subordinação
(separação-oposição) das atividades de execução às atividades indi-
retamente produtivas. Temos, pois, a proeminência das novas de-
mandas de mercado (marketing), bem como o acentuado
desenvolvimento dos departamentos -de pesquisa (novos produtos e
processos), ·das atividades envolvidas com a programação (reorde-

110
namento dos estoques ... ) e as tarefas de execução subordinadas aos
programas de qualidade total 19 •
Em relação ao desemprego massificado (e muitas vezes estrutural)
e suas causas, é difícil distinguir entre aquele resultado das ~titicas
monetária e fiscal neocons~rvadoras que praticamente varreram o
mundo capitalista durante os anos 80 (sintetizado nas expressões "Era
Reagan" ou "Era Thatcher") e a parte que devemos creditar à tecnologia.
Seguramente a automação flexível ajuda a compor o quadro do aumento
do desemprego estrutural e seus desdobramentos a nível da agudização
de conflitos como os que ocorreram em Los Angeles e ainda estão
ocorrendo na Alemanha (neo-nazistas), Iugoslávia (guerra civil), França
(questão dos imigrantes) e outros. Contudo, o emprego da nova
tecnologia parece servir a objetivos mais politicos, cuja finalidade seria
a alteração da correlação de forças estabelecida entre capitalistas e
trabalhadores, na medida que 'precisamente JJOrque a força organi-
zacional da classe trabalhadora (dos assalariados) é tão grande no
princípio e na primeira fase desta depressão, que a questão desta
ofensiva de classe do capital contra o trabalho está longe de estar
definida. A possibilidade do proletariado sofrer uma derrota esma-
gadora do tipo das sofridas na Alemanha em 1933, na Espanha em
1939 ou na França em 1940, em qualquer dos grandes países
capitalistas centrais está restrita, pelo menos num faturo próximo"
(Mandel, 1992, p. 12; grifo do autor).

Apesar de termos presente que o desemprego tecnológico


aumenta conforme a maior difusão da automação flexível2° e que a
capacidade de "economizar" força de trabalho é uma de suas
características principais, ao que parece, é somente a partir da
recomposição. ou racionalização do trabalhador coletivo (para o
capital) que a problemática das novas tecnologias torna-se mais
inteligível21 • Não podemos nos esquecer que as tecnologias de
automação flexível também tem o efeito de criar novos empregos (é
verdade que não na mesma proporção que os suprime). Novos
empregos são criados, por exemplo, nos setores de produção das
novas tecnologias (bens de capital, componentes eletrônicos ... ), de
vendas (instalações e operações) dos novos equipamentos, de pro-
dução dos produtos relacionados aos novos equipamentos. Existem

111
evidentes indícios (ver estatísticas da OCDE citadas por Mandei,
idem) de que, apesar das características revolucionárias da
automação flexível, o efeito líquido de substituição de força de
trabalho por máquinas talvez seja bem menos agudo do que aquele
imaginado inicialmente22 •
Vale dizer no momento que a chamada flexibilidade da produção
· apresenta diferentes dimensões, tais como a flexibilidade funcional
(campo definido pelo trabalho multifuncional onde um único traba-
lhador realiza diferentes atividades), a flexibilidade numérica (que
sujeita os trabalhadores a regras de trabalho precário, contratos
temporários ... ), a flexibilidade financeira (expressa, sobretudo, pela
redução dos custos fixos) e a flexibilidade espacial (eliminação de
estoques, desconcentração territorial...) 23 • A flexibilização da pro-
dução encontra-se, ainda, intimamente relacionada com a conhecida
estratégia de qualidade total (flexibilização global), bem como com
a contenção dos custos sociais do emprego a partir da implementação
de diferentes normas de trabalho precário, como é o caso do trabalho
parcial, a terceirização, o trabalho doméstico, trabalho de curta
duração ... (ver, principalmente, Pollert, 1989 e Elson, 1991).

Outro importante traço a ser destacado em relação à automação·


flexível é que,. dada sua característica de maior flexibilidade no uso da
força de trabalho, esta tende a aumentar a produção descentralizada com
maior número de trabalhadores extemos·e redução de custos de capital.
Estudos de caso sobre novos trabalhadores externos na Grã-Bretanha,
por exemplo, indicam que os níveis salariais destes são consideravel-
mente mais baixos que os de empregados da mesma categoria traba-
lhando dentro da· empresa. Existe, também, a questão dos benefícios
sociais não pagos a parte destes trabalhadores. A economia de capital
variável é evidente, bem como a diminuição do poder de intervenção
dos sindicatos, que não sabem aparentemente lidar com este tipo de
trabalhador (Huws, 1984; citado por Schimitz, 1985).

Parece mesmo que um dos aspectos mais marcantes dessa nova


ordem produtiva esboçada pela alteração das relações de produção
a partir de meados dos anos 70 · encerra-se na desconcentração
(somente possível após a "abstração" dos saberes e das·qualificações

112
engendradas pela automação flexível) territorial da produção, re-
lacionada ao surgimento do que Bihr (1991) chama de:
a) a fábrica difusa (que inverte o processo de concentração
produtiva ao qual estava remetido o fordismo);
b) a fábrica fluída (que busca realizar uma produção discreta em
fluxo contínuo); e -
c) a fábrica flexível (ligada à saturação progressiva da norma de
consumo fordista no decorrer dos anos 60 e 70) 24 • Chega-se, hoje
em dia, ao ponto de externalizar partes das funções produtivas ou
gestionárias e desconcentrar grandes unidades produtivas, descen-
tralizando sua gestão e desenvolvendo a subcontratação de outras
empresas (apesar da crescente concentração do capital financeiro).
Obviamente, a externalização-flexibilização de parte da força de
trabalho realiza-se em favorecimento ao apelo por pessoal sujeito ao
trabalho temporário ou precáriü25 •
As tendências por maior flexibilidade no processo de trabalho
não se limitam somente às operações de execução. A automação nas
funções de manutenção da manufatura, por exemplo, opera um duplo
ganho para o capital: por um lado, a manutenção assume um caráter
estratégico de apoio ao bom funcionamento dos fluxos do processo
como um todo, e, por outro, as antigas atividades -de manutenção
têm seu conteúdo intelectual empobrecido, apesar de algumas vezes
crescerem em importância dado o aumento da integração entre as
operações produtivas26 • Também o saber de ofício do operário de
manutenção é afirmado não mais no chão-de-fábrica, e sim no
escritório de planejamento, o qual processa e devolve este conjunto
de conhecimentos práticos na forma de mediações materiais, tais
como: luzes espia, painéis de controle, sirenes de aviso ... 27 •
Sob o ponto de vista dos conteúdos da competência é possível
dizer que uma nova interface entre os postos de operação e os de
manutenção (conforme uma perspectiva preventiva e corretiva) está
sendo definida a partir da difusão massificada da automação flexível.
É preciso esclarecer, ainda, que estes novos sistemas programáveis
introduzem e antecipam transformações decisivas no trabalho de
manutenção,. caso dos sistemas especialistas28 e da modularizaçãü29

113
dos equipamentos de base microeletrônica (ver, principalmente,
Coriat, 1989; e Freyssenet, 1990).
Aparentemente, o empobrecimento dos conteúdos intelectuais
das tarefas relacionadas à execução, principalmente, é uma constante
em todos os setores produtivos. Também os preparadores tradicio-
nais (aqueles que deveriam saber avaliar qual o momento mais
oportuno para se trocar a ferramenta segundo um certo número de
indícios) são desqualificados em instalações automatizadas, já que o
momento de troca da ferramenta é decidido automaticamente pelo
sistema. Para Freyssenet (1990), entre outros, a automação vincula-
se intimamente ao empobrecimento dos conteúdos das tarefas, o que
acarretaria um barateamento da força de trabalho, bem como um
aumento do controle sobre o trabalhador30 •
Este conjunto de transformações em termos de maior flexibili-
dade e aumento do ritmo de extração da mais-valia (dado o incre-
mento da integração de tarefas e a diminuição no tempo de giro do
capital) determina um processo de alteração das qualificações para
o conjunto do proletariado em questão. O operador do novo equi-
pamento deve deter uma maior capacidade de abstração para acionar
e controlar as maquinas automatizadas ao mesmo tempo que antigas
habilidades manuais são suprimidas. Também o programador, além
de sustentar um~ apurada ·formação técnica abstrata, deve estar
habilitado a resolver problemas práticos das máquinas e, portanto,
não pode inais ficar limitado somente às tarefas de programação. O
resultado deste processo: homogeneização da base técnica.
Neste ponto, uma das questões mais polêmicas é saber se a nova
tecnologia qualifica ou desqualifica o trabalhador. Na verdade, o que
podemos perceber a partir de alguns estudos de caso que trataram
desta questão é que o tempo necessário de formação para capacitar
um trabalhador a operar a nova base técnica diminui em relação ao
tempo necessário para a formação profissional de um operador
tradicional (tecnologia eletro-mecânica). Comparando as atividades
desempenhadas por operadores de máquinas-ferramenta universais
(MFU - eletro-mecânicas) e MFCN, Tauile (1984) conclui que com
a introdução da nova tecnologia microeletrônica, um conjunto dos
ítens de seqüência de operação são eliminados ou mu~to simplifi-

114
cactos. Tendo menos a decidir, um operador de MFCN necessita de
menos qualificações caso comparado a um operador de MFU,
tornànqo-se mais um monitor, ao invés de um participante ativo do
processo de produção31 •
É interessante notar como esta tendência contemporânea ex-
pressa pelo progressivo afastamento da capacidade humana em
intervir diretamente no processo produtivo, encontra-se próxima à
"velha" intuição marxiana contida nos Grundrisse 32 • Para Marx
(1971), o desenvolvimento do capitalismo levaria este a uma maior
dependência da ciência integrada ao capital do que do tempo de
trabalho imediato aplicado à produção. No limite, o trabalho não
apareceria mais tal como incluso no processo de produção e o homem
passaria a se comportar como vigia e regulador deste processo.
Por fim, gostaria de citar uma espécie de tipologia sugerida por
Coriat (1989) para os novos meios de produção característicos da
automação flexível, agrupados a partir da natureza das funções
assumidas na produção, e tendo por base as inovações que os
distribuem entre quatro séries de equipamentos. Além dos:
a) meios de operação (Robôs e MFCN), já citados anteriormente,
temos também a presença dos
b) meios de manipulação materiais e alimentação, isto é, equi-
pamentos dotados de ferramenta mas que não intervêm no processo
de transformação da matéria prima. Sua funçãp é transferir peças de
um poço ao outro, executar empilhamentos, armazenagem e, às
vezes, embalagem. São equipamentos, em geral, menos sofisticados
que os meios de operação, mas indispensáveis para assegurar a
entrega de partes na ordem correta ou a circulação entre postos de
trabalho necessárias para o bom funcionamento das máquinas mais
sofisticadas33 • Os chamados
c) meios de computação e controle programáveis de equipamen-
tos são os meios de recepção e controle àc informações no fluxo de
produção desprovidos de ferramentas e ligados aos manipuladores,
tornando-se capazes de operar e comandar seus rn0vimentos 34 • E,
finalizando, aparecem os

115
d) meios de auxílio a projetos, também denominados de projeto
assistido por computador (PAC), que são utilizados para projetar formas
a partir de dados numéricos relativos às especificidade das peças, bem
como prever o comportamento destas peças frente a diversas condições.
O PAC permite substituir um trabalho considerável de cálculo e desenho
em todas as etapas de elaboração de perfis e de superfície de peças, ou
de conjunto de peças. Foi sobretudo a indústria aeronáutica que desem-
penhou um papel pioneiro na aplicação do PAC, devido às exigências
de precisão nos padrões de medida35 •
Para o caso do kan-ban, primeiramente é preciso que se diga que
não há como pré-condição, ou necessidade, o uso de novas tecnolo-
gias de tratamento da informação, traduzindo-se, pois, numa autên-
tica inovação cujos elementos fundamentais se situam no campo da
"inversão das tradições fordistas" (cf. Coriat, idem). Nascido nos
EUA, o método kan-ban será efetivamente aplicado no Japão,
particufarmente pela empresa Toyota. Na verdade, o kan-ban con-
siste num inversão das regras tradicionais de gestão de estoques, ou
seja, ao invés das ordens de fat_icação se fazerem "em cadeia" no
sentido dos postos A, B', ... (N), são feitas no sentido (N) , ... B, A.
Ou, mais precisamente: "O princípio (do kan-ban) consiste em
dirigir ordens de serviço 4 fábrica, especificando as peças ou os
produtos efetivamente vendidos. A partir daí são programadas as
necessidades de componentes e matéria prima, decompondo-se os
produtos finais· vendidos em peças-elementares, numa trajetória de
ordens que vai de (N) para ... B, A" (Coriat, ibidem, p. 50).

A chave inovadora consiste em estabelecer µmtlelamente ao fluxo real


de produção (que segue no sentido dos postos iniciais em direção aos finais),
um fluxo de infonnações inverso (dos postos finais aos iniciais). Assim cada
posto de trabalho a partir do final do fluxo de produção emite uma instrução
destinada ao posto que lhe é anterior e essa instrução consiste no pedido de
quantidades exatas de peças necessárias µrra esse posto executar a ordem que
lhe é assignada. A partir dos postos finais e do fluxo de produção, a série de
ordens de serviço de posto a posto dirige-se µrra os postos iniciais do fluxo,
detalmaneiraque, numdadomomento,nãoháemprodução,emdeterminado
deµtrtamento, senão a quantidade de peças exatamente n ~ · µrra

116

..
satisfazer a uma ordem de produção. É dessa forma que se realiza o
princípio de "estoque rero" característico do kan-ban.
Todo o sistema de circulação de informações é realizado por
meio de "caixas" nas quais são depositadas "fichas" (tradução da
palavra japonesa kan-ban), que contêm as instruções pa:ra os
diversos postos de fabricação. Dessa forma, há caixas kan-ban
levando as instruções de comando de peças que circulam vazias
num sentido "de jusante para montante do fluxo produtivo". No
sentido contrário, há caixas kan-ban carregadas de peças fabri-
cadas que circulam no sentido habitual de "montante para
jusante". A inovação, neste caso, é estritamente organizacional3 6 •
De forma geral, cresce enormemente a pressão psicológica or-
ganizada sobre os operários, na medida que há risco permanente
de que uma seção ou posto de trabalho se transforme em ponto
de estrangulamento, sujeito a um efeito paralisante em cadeia de
tod,a a instalação produtiva. Nesse sentido, o kan-ban com seus
entraves específicos é também uma notável e renovada técnica de
controle capitalista sobre o trabalho, pois seu sistema de organi-
zação permite rapidamente responsabilizar os trabalhadores "de-
ficientes". A "linha de montagem fordista" (Coriat, 1974),
anônima por definição, torna essa tarefa dificilmente viável.

A acumulação flexível como revolução passiva


das forças produtivas

Ao reagir à crise orgânica pela qual passa o capitalismo tardio desde


o início dos anos 50 (e cujo momento de agudização traduz-se na
chamada crise ,do fordismo, a partir de 1973), os países imperialistas
empreendem, através da progressiva internacionalização de suas
economias, uma estratégia de grande período materializada sob a
forma da revol.ução passiva para as classes dominantes. Creio ser
correto dizer que o objetivo mais fundamental desta verdadeira
ofensiva neoconservadora deveria ser a completa reviravolta da
correlação de forçàs estabelecida entre capitalistas e trabalhadores,
já no início dos anos 70 (ver, principalmente, Bihr, 1991; e Harvey,
1992).

117
A partir de então, o mundo capitalista passa a assistir, simul-
taneamente, a:
a) uma crescente internacionalização de mercados à base do
incremento no volume global de importações e exportações para o
interior de cada economia desenvolvida, bem como um aumento dos
investimentos no estrangeiro; e
b) uma crescente internacionalização da produção (sob iniciativa
dos grandes grupos multinacionais que emergem em regiões de
baixos salários, baixa regulamenteção trabalhista ou menos "agi-
tadas") através da possibilidade de se ter melhor acesso aos mer-
cados, contornando, por exemplo, o protecionismo de certos
Estados37 •
Enquanto resultados mais presentes deste duplo processo de
internacionalização temos, por um lado, uma maior interpenetração
e uma interdependência acrescida das diferentes economias centrais
e, portanto, uma nova divisão internacional do trabalho: ao invés da
divisão do trabalho fundada sobre a troca de matérias primas por
produtos manufaturados, verificamos um movimento de "relocali-
zação" industrial impulsionado pelas multinacionais tendendo a
impor uma divisão marcada pela oposição entre indústrias ou
serviços de ponta e indústrias clássicas de mão de obra ou de primeira
transformação (Bihr, ibidem).
É preciso que se diga, contudo,.que a atual divisão internacional
de trabalho ao sujeitar-se a um processo que elimina hierarquias,
recompõe as relações entre a gerência e o pessoal de produção
complexificando a estrutura de postos e funções entre as diferentes
unidades produtivas encontra-se, sobretudo, determinada por ele-
mentos como a ausência de tradições reinvidicativas, fraca articu-
lação das políticas operárias e pouca cultura fabril (Ver Shaiken,
1990). Obviamente, este processo operou profundas alterações no
conjunto das relações de produção, cujos traços mais gerais enun-
ciamos anteriormente.
A estratégia de grande período-revolução passiva das forças
produtivas conduzida pelas classes dominantes no sentido de recom-
por as bases de sua hegemonia alterou agudamente a c9mposição e

118
as formas de mobilização política das classes trabalhadoras nos
últimos 20 anos. Tal ofensiva t~nde a articular transformações no
processo de trabalho (combinação das novas tecnologias com base
na microeletrônica às inovações de caráter organizacional, como é
o caso do kan-ban), grandes alterações no mercado de trabalho e
mudanças no modo de intervenção do Estado (desregulamentação
das relações de trabalho ... ). Assim, a correlação de forças esta-
belecida entre as classes no início dos anos 70 não mais se sustenta
e o movimento de contratendência tende a generalizar-se redefinindo·
a "racionalidade" na esfera produtiva, a programação estatal da
economia, o controle das massas e a subaltemidade política. O
caráter eminentemente defensivo do movimento de trabalhadores
constitui uma clara manifestação do momentâneo sucesso desta
verdadeira contra-revolução.
Partindo desta constatação, o debate sobre os traços constitutivos
daquilo que estou aqui chamando acumulação flexível (e que nada
mais é senão o desenvolvimento orgânico destas tendências no
sentido de recompor as bases histórico-concretas da hegemonia
burguesa em cada Estado-nação, articulada à redefinição do Impe-
rialismo no âmbito global) torna-se mais intelegível. Particularmente
na visão dos liberais e também dos regulacionistas a "volatilidade
dos mercados" (estratégia de "nichos" ... ) e um novo. padrão da
concorr~nc:· inter-capitalista (com ênfase na capacidade de encurtar
os prazos de difusão das inovações em pesquisa e desenvolvimento)
é que configcrariam um novo padrão em termos de maior fl~xibilidade
da produção (produção em pequenos lotes, produção unitária ... )
aliada às estratégias organizacionais renovadas e à automação mi-
croeletrônica (flexível).
Contrariamente, nosso ponto de partida situa-se no entendimento
do padrão assumido pela luta de classes e suas formas institucionais
(Estado, sindicatos, partidos ... ) no decorrer dos anos 70. Neste
sentido, a difusão de novas tecnologias de processo e organizacionais
estaria objetivando recompor a classe trabalhadora no chão-de-
fábrica para, assim,. redefinir sua forma de intervenção política.
Primeiramente, a difusão massificada da automação de base
microeletrôrrica tende a alterar a estrutura ocupacional da força-de-

119
trabalho segundo o ponto de vista das atividades de concepção,
preparação, execução e manutenção; altera, também o conteúdo de
competência da atividade produtiva, apontando para a recomposição
dei trabalhador coletivo e para o surgimento de novas formas de
cooperação (relação entre operações de produção e de manutenção,
desconcentração espacial...); diferencia os estatutos reprodutivos do
salariado industrial na medida em que precariza a força-de-trabalho
(a chamada flexibilização numérica e funcional) e desemprega per-
manentemente mão de obra (resultado, em última instância, das
estratégias patronais de desvalorização e desutilização da força-de-
trabalho)38 •
É possível dizer que este conjunto de mudanças conduz as classes
trabalhadoras a um duplo movimento de, por um lado, brutal
aumento nas taxas de desindicalização quando pensamos nos grandes
sindicatos corporativos do período fordista e, por outro, redefinição
das formas de inserção e representação sindical (sobretudo quando
se pensa no aumento dos sindicatos organizados por empresa, por
exemplo). Tal processo apontaria, por assim dizer, para a vulne-
rabilidade coletiva dos trabalhadores (e suas formas de organização,
principalmente sindical) à mobilidade nacional e internacional do
capital (como já vimos) determinado pela homogeneização de sua
base técnica39 • Na opinião de um autor como Burawoy (1987), por
exemplo, estaríamos assistindo à emergência de um novo tipo de
despotismo construído sobre os fundamentos da velha hegemonia
fordist2 ·. ·

Partindo da distinção estabelecida por Gramsci entre as duas


maneiras possíveis de uma classe fundamental tornar-se hegemônica,
isto é, o transformismo e a hegemonia, podemos dizer que este novo
tipo de despotismo traduz-se no legítimo produto da primeira forma
atualizada por uma base técnica reestruturada (de natureza microele-
trônica e flexível). Contudo, quais as características principais deste
novo despotismo materializado sob a forma da revolução passiva das
forças produtivas? Primeiramente, vale dizer que este novo des-
potismo vem acompanhado por um amplo movimento de retirada das
proteções ~rabalhistas, a revogação·das leis de salário mínimo, dos
dispositivos de proteção à saúde e à segurança no trabal~o. Os países

120
imperialistas passam, pois, a inaugurar verdadeiras "arenas" nas
quais o trabalho é despojado dos poderes contidos no antigo com-
promisso fordista (hegemônico). O resultado mais presente deste
processo é a flexibilização e a precarização das relações entre o
capital e o trabalho41 •
Assim, temos um processo de acumulação em escala mundial
cujas transformações permitem deslocar o capital de um lugar para
outro sem maiores dificuldades e que, no limite, determina alterações
em nossa própria relação com o espaço e o tempo (ver, para isto,
Harvey, 1992). A nova ordem hegemônica está se erguendo sobre a
base do fordismo que substitui. É, de fato, uma ordem hegemônica
(produto de um processo de revolução passiva, vale realçar), pois
"os interesses do capital e do trabalho continuam sendo concre-
tamente coordenados, mas onde o trabalho costumava receber
concessões com base na expansão dos lucros, ele, agora, faz
concessões com base na lucratividade relativa dos capitalistas entre
si, isto é, dos custos de oportunidade do capital" (Burawoy, ibidem,
p. 48).
Paralelamente ao sucateamento dos grandes sindicatos corpora-
tivos do período hegemônico fordista, parece tomar corpo o modelo
de sindicatos por empresa atrelado a uma estrutura previdenciária
privada que, aos poucos, substitui os investimentos sociai,s do Estado
(como é o caso já relativamente estudado do Japão, por exemplo) 42 •
Esta nova modalidade de subalternidade política traduz uma reali-
dade onde o movimento de massa dos trabalhadores organizados não
consegue responder à altura aos desafios impostos pela estratégia de
grande período-revolução passiva das forças produtivas empreendida
pelas classes dominantes a partir de meados dos anos 70. Num
período de "cri-se de lucratividade", os operários "optam" entre corte
de salários e conquistas sociais ou a perda do emprego43 •
As antigas mediações estabelecidas pela regulamentação das
conquistas trabàlhistas (através do Estado burguês de tipo welfare)
entre a reprodução da força-de-trabalho e o processo de produção
são, tendencialmente, liquidadas. Contudo, ao mesmo tempo que o
patronato busca "afrouxar" a aplicação da legislação trabalhista ou
a prestação de serviços e bem.Jícios sociais, aos trabalhadores são

121
articuladas iniciativas como os recentes programas de Qualidade de
Vida no Trabalho ou os já conhecidos Círculos de Controle de
Qualidade (CCQs), configurando uma tentativa gerencial de invadir
os espaços criados pelos trabalhadores sob o período anterior e,
assim, mobilizar o consenso com vistas ao aumento da produtividade
(para o caso dos CCQs, ver, principalmente, Hirata, 1983)44 •

NOTAS

1 "Pela primeira vez, desde o final da Segunda Guerra Mundial, o desemprego está aumen-
tando maciçamente também nas sociedades burocratizadas pós-capitalistas" (Mandei, 1993,
pp.3-6).
2 Como já visto, entendo o atual processo de reestruturação das forças produtivas como sendo
a ponta de lança de um movimento mais amplo e totalizante cujo objetivo seria a recom-
posição das bases da "hegemonia" burguesa num período de crise orgânica do Capitalismo. A
reelaboração das forças produtivas do trabalho social assumiria , com isso, o padrão das
revoluções passivas analisadas por Gramsci, num primeiro momento para o caso do Risorgi-
mento italiano e, num segundo momento, para os casos do Fascismo e Americanismo: "O de-
senvolvimento das forças produtims e as transformações dos processos de trabalho
correspondem, neste t?squema de análise, à 1naterialização das relações de apropriação real,
encerrando, em si mesmo, um conjunto de contradições entre as classes (aprofundando as
desigualdades de gênero, recomposição do salariado, usura precoce do trabalhador, de-
gradação ambiental e riscos tecnológicos ... ) , e suas lÜões de mundo (cidadania pelo mer-
cado, cidadaniafordista welfare, direitos sociais x cidadania pelo trabalho (controle operário
x controle do trabalho)" (Tude de Souza, 1993, p. 8).
3 "As transferências de recursos dos países pobres para os ricos chegaram a mais de US$ 400
bilhões entre 1982 e 1990, o equivalente, em valores atuais, a mais ou menos seis planos
Marshall,fomecidos pelo Sul ao Norte, observa Susan George, do Transnational Jnstitute, em
Amsterdã" (Chomsky, 1993, pp. 6- 18).

4 "Enquanto os salários reais sofreram wna queda real nos EUA entre 1968 e 1988, o
número de pessoas com rendas anuais brutas de US$ 1 milhão aumentou de 1.122 para
65. (X)(), e o de pessoas que ganham entre US$ 100. 000 e US$ 1 milhão aumentou de 78. 500
para mais de dois milhões. Literalmente, nenhuma dessas pessoas é 'urn trabalhador" (Man-
dei, ibidem).
5 "A Sociedade Dual não passa de wn dos mecanismos-chave para st aumentar brutalmente
taxa de 1nais-valia, a taxa de exploração da classe irabalhadora, e a massa e a taxa de lu-
cros... " (Mandél, 1992, p. 22).

122
6 "Do aumento limitado de riqueza total (EUA) verificado nos anos 80, '70% ficaram com os
1 % maiores ganhadores de renda, enquanto a parte inferior perdeu absolutamente', segundo
o economista do MIT, Rudiger Dombusch" (Chomsky, ibidem).
7 A crise do Estado nacional de tipo welfare é uma conseqüência direta da natureza deste pro-
cesso. Ou, nas palavras de Burawoy: • Na fase contemporânea, a lógica da acumulação capi-
talista em escala mundial toma a intervenção estalai menos relevante para a detenninação
das mudanças e variação na forma da política de produção" ( 1980, p. 34). ·

8 O contraste desta situação em relação aos esforços da afirmação da soberania nacional que
acompanham o processo mais geral de descolonização anti-imperialista das décadas de 50 e 60
é evidente.

9 Chomsky observa ainda que acordos como o NAFTA (Acordo Norte-Americano de Livre
Comércio) e o GATT possuem uma relação apenas limitada com o livre comércio. Neste sen-
tido, o objetivo fundamental dos EUA seria "o aumento da proteção à 'propriedade intelec-
tual', incluído software, parentes de sementes, medicamentos e assim por diante; A Comissão
de Comércio Internacional dos EUA estima que as empresas norte-americanas vão ganhar 61
US$ bilhões por ano do Terceiro MW1do se as exigências protecionistas dos EUA forem satis-
feitas pelo GATT, a um custo para o Sul que irá ultrapassar de longe o enorme fluxo de capi-
tal repassado para o Norte a título de pagamento de juros sobre a dívida. Tais medidas se
destinam a assegurar às empresas sediadas nos EUA o controle sobre a tecnologia do futuro,
incluindo a biotecnologia que, se espera, ir11 pennitir que a empresa privada controle a
saúde, a agricultura e os meios de vida em f!,eral, trancando a maioria pobre na prisão da de-
pendência e da impotência" (Chomsky, ibidem).
10 "Um passeio a pé por qualquer cidade norte-americana dá forma humana às estatísticas so-
bre qualidade de vida, distribuição de riqueza, pobreza e emprego" (Chomsky, ibidem).
11 Nas palavras de Clarke: "The political stability of monetarism, no less than thaI of
keynesianism, has depended on the sustainded, if uneven, accumulation of capital on a world
scale which has enabled lhe stale to isolate andfragmenl working class resistance, while
capital has been able to concede a steady rise in wages to sections of rhe·working class.
However the relative industrial peace and política/ stability in the mid 1980's does not indi-
cate the stability of a 'neo-Fordist' regime of accumulation" (1991, pp. 86-7).
12 De maneira geral, as descobertas científicas decisivas que estão na base da microeletrônica
remontam a bem mais de meio século. Entre o fim da década de 30 e o começo da de 50, o
imperativo militar acelera e organiza linhas de pesquisa científica visando aplicações tecnológi-
cas qur. chegaram, ao fim de uma década, a resultados técnicos e metodológicos fundamen-
tais: do computador à MFCN. Para Ferraris, foi na década de 40 que: "a teoria matemática
da informação de Shannon e a cibernética de Wiener definiram as coordenadas do novo
paradigma tenológico, seja ao identificar e circW1screver o âmbito dos problemas críticos,
seja ao prescrever metodologias e direções de pesquisa, seja ainda ao traçar um quadro de
referências.fundamentais" (1990, p. 11).

13 É possível dizer qu!l a técnica particular constituída progressivamente a partir da difusão


massificada da microeletrônica tira melhor proveito do duplo princípio que suporta a linha de
montagem clássica, ou seja, a produção em "fluxo contínuo" (tendência por maior integração
produtiva) e o fracionament9 do trabalho restabelecido sob bases e modalidades diferentes de
implantação (maior flexibilidade)
14 As máquinas-ferramenta com controle numérico encontram-se contidas na série de equi-
pamentos que poderíamos chamar (tal como Coriat, 1989) meios de operação e que correspon-

123
dem ao grupo de máquinas e manipuladores cuja característica principal é a de serem dotados
de ferramenta e capazes, após devidamente regulados e programados, de executar uma ope-
ração. Também fazem parte desta série os manipuladores automáticos ou robôs.
15 "As MFCN tem o efeito específico de viabilizar o emprego de princípios tayloristas de ad-
mirústração cienlÍfica, em athidades onde o saber operário era até então detido por traba-
lhadores manuais (oficiais mecânicos) altamente qualificadas. O saber intrínseco a estas
atividades pode agora ser decomposto nos mírúmos detalhes e recomposto da maneira dupla-
mente ótima do ponto de vista capitalista, pois é na forma de programas que são de sua pro-
priedade e, deste ,nodo, liabiliza noms formas de orgarúzação da produção antes
·obstaculizadas pelo saber operário" (Tauile, ibidem, p. 853).
16 O conteúdo das competências é, sem dúvida, agudamente alterado segundo a tendência
hegemônica de proeminência das atividades abstratas sobre a natureza dos processos de trans-
formação da matéria.
17 "No caso brasileiro, verificamos que, em estruturas de produção administradas mais rigi-
damente, o operador da máquina (FCN) é fonnalmente proibidn de proceder diretamente a
qualquer alteração no programa, del endo encaminhar as respectivas sugestões ao depar-
0

tamento encarregado da programação" (Tauile, ibidem, p. 856).


18 "Detentores do novo saber técnico, os programadores rompem a antiga estrutura de poder
baseada nwn tipo de conhecimento prático" (Tauile, ibidem). Ou ainda: "Um problema lÍpico
(da transição para a MFCN) consiste em encorajar o pessoal da fábrica a desistir de sua
autonomia na tomada de decisões e submeter-se às decisões do staff-group" (Tauile, ibidem,
p. 859). Com a introdução da tecnologia de Automação Flexível, uma boa parcela das
funções anteriormente exercidas pelo operador mecânico é desdobrada e atribuída àqueles que
trabalham no escritório. O trabalho na fábrica passa a ser controlado à distância segundo os
conhecimentos teórico-abstratos e práticos do técnico, cuja formação profissional e estilo de
vida, bem como a sua remuneração, o diferenciam em muito do operário tradicional.
19 A respeito do debate envolvendo o.controle sobre os fluxos produtivos (materiais,
pessoais ... ) e infoqnação sobre a produção, bem como sobre as "novas" definições e cálculo
da produtividade, ver Zarifian (1990, pp. 73-97).
20 O emprego das novas tecnologias de base microeletrônica apesar de não ter suprimido ab-
solutamente um número considerável de postos de trabalho, operou importantes transfor-
mações sobre o caráter relativamente estável do trabalho durante o período
fordista-keynesiano. Ou, nas palavras de Cano: "O pior de seus efeitos negativos (das noms
tecnologias) é a redução das necessidades de mão-de-obra 'direta' que, com a liquidação de
antigas funções, tem engrossado a.fileira dns desempregadns a longo prazo (LTU - Long
Tenn Unemployed), isto é, que procuram emprego há mais de 12 meses. Estes, ao final da
década de 80, já perfaziam mais de 30% dos empregadns na Grécia e na Austrália, mais de
40% no Reino Unido e na França, mais de 50% na Holanda e Portugal e entre 60% e 70%
na Irlanda e na Espanha. Procurando emprego há mais de seis meses, encontram-se entre
72% e 85% dos desempregados da Espanha, Holanda, Irlanda e Portugal" (1993, p. 120).
21 Esta é uma ressalva importante a ser feita para que possamos nos distanciar das análises
economicistas e que chegam a afirmar, em vista da difusão massificada da robotização em al-
guns setores, por exemplo, a perda da capacidade do capital em explorar as classes subalter-
nas (ver, para isto, Kurz, 1993). •
22 Mesmo ent países imperialistas onde a difusão das novas tecnologias é muito mais ÍJ1tensa,
tanto para a indústria quanto para os serviços, é necessário cautela ao se falar em altas taxas

124
de desemprego causadas pela automação. Talvez o fato da microeletrônica ser relativamente
nova explique em parte o discreto impacto sobre o número total de empregos ( o que não
parece o caso), mesmo onde esta tecnologia encontra-se muito difundida (EUA, Japão,
França, Alemanha, Itália ... ). Contudo, neste complexo processo de produção, difusão e
adaptação das novas tecnologias, é muito provável que os novos empregos criados não ve-
nham a compensar as perdas de força de trabalho (Schimitz, 1985).

23 "Diante dos efeitos perversos da crise principalmente o desemprego estrutural, que signi-
fica wna massa de trabalhadores excedentes e o enfraquecimento do poder sindical, os capi-
talistas procuram impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis (wna série de
estatísticas comprovam o crescimento do trabalho por tempo parcial nos países capitalistas
centrais. Por exemplo, na França, em 1970, o emprego por tempo pardal co"espondia a
8,2 % da PEA; já em 1990, esse percentual subiu para 12%. Na Alemanha, em 1970, era de
11,4%; em 1990, subiu para 13,2%. Na Itália, em 1970, era de 5,3% e em 1990 subiu para
5,7%. No Japão, subiu de 15,4% em 1970 para 17,6% em 1990. No Reino Unido, tal subida
foi mais dramática em 1970 era de 16,4%, passando, em 1990, a ser de 21,8%. Nos EUA,
tal percentual do emprego por tempo parcial cresceu de 16,4% em 1970para 16,9% em
1990" (Alves, 199'3, pp. 13-14).

24 Ou, nas palavras de Bihr: "La 'centralité' de la grande industrie n 'est pas abolie pour au
tant, simplement elle se transfonne. Au lieu de concentrer en um même lieu le maximwn de
fonctions productives et gestionnaires, le capital tend aujourd'hui au contraire à dilfuser pro-
duction et pouvoir à travers tout / 'espace social. Car lúsine diffuse suppose toujours une unité
centra/e qui coordonne, plannifie, organise la production de tout un réseau dúnités periphéri-
ques, qui peuvent atteidre le nombre de plusieurs milliers. A la concentration pyramidale du
pouvoir se substitue le pouvoir résultant de la gestionjluide ejlexible dún réseaux" (ibidem,
pp. 91-2).

2S Não é preciso muita imaginação para concluir o impacto absolutamente devastador que
este processo (por alguns chamado terceirização associado à precarização-flexibilização do tra-
balho) acarreta para o grande sindicalismo corporativo do período fordista-keynesiano. Como
exemplo, podemos citar dados relativos às taxas de sindicalização entre os mineiros ingleses
que caiu, nos últimos 10 anos, de 400 mil para pouco mais de 20 mil; ou dos trabalhadores
dos transportes na Inglaterra que decresceu de 2 milhões para 450 mil sindicalizados
(Beynon, 1993).

26 Apesar do conteúdo intelectual das tarefas envolvidas <'.Om a manutenção e&ar sendo empo-
brecido com a difusão da automação, possibilitando o emprego de trabalhadores pouco qualifi-
cados para a função, estes mesmo trabalhadores requalificados organizados em equipes de
condução e manutenção de instalações automatizadas estão, em alguns casos, se tornando os
verdadeiros detentores do funcionamento destas instalações. Ao que parece, quanto mais ele-
vado o .grau de auto~ação da linha produtiva, maior a importância dos operários de
manutenção, em detrimento dos operadores, reguladores e controladores.

21 "A regulagem de wn motor pelo ruído, a avaliação visual de um estado de cocção por um
cimenreiro ou siderúrgzco, o 'golpe de vista' de um metalúrgico para verificar wn 'estado de
superficie' são hoje substituídos pela leitura e pela interpretação de códigos e símbolos abs-
tratos apresentados em visores. Entre a máquina-fe"amenta e o trabalhador surge um outro
tipo de máquina: a 'máquina infonnárica ', que dialoga com o operário enca"egado não ape-
nas da vigilância, mas do controle, da prevenção de avarias ... Funções cerebrais mais ab-
stratas são assim requisitadas: raciocínio, capacidade lógica, capacidade comunicativa ... "
(Lojkine, 1990, p: 29).

125
28 Cujo grande mérito talvez seja o de conseguir articular as condições de operação e con-
trole em tempo real às atividades de manutenção e desenvolvimento das máquinas.
29 Capaz de combinar a taylori:zação das atividades ligadas à manutenção com formas es-
tratégicas de formação da Força de Trabalho (aquisição de qualificações).
30 É bem verdade que a desqualificação da força de trabalho nem sempre é acompanhada por
uma queda salarial. Para o caso dos operadores de MFCN (quando comparados aos opera-
dores de MFU), por exemplo, a desqualificação trouxe uma maior remuneração devida à con-
fiança necessária à operação de um equipamento caro e estratégico. Também é possível dizer
_que a baixa rotatividade do trabalho, verificada em alguns casos, deve ser creditada ao
aumento da demanda por confiança e não ao incremento da formação profissional (ver, por
exemplo, Tauile, 1983 e 1984; e Schimitz, 1985). A "barganha" das novas qualificações,
neste sentido, representa uma forma renovada de se obter o consentimento às transformações
tecnológicas, organizacionais e ocupacionais contidas no processo de reelaboração das bases
da "hegemonia" burguesa no "chão-de-fábrica". Vale lembrar, sobretudo, a proximidade
deste elemento com o chamado "five dolar's day" fordista do início do século (modo pelo
qual a Ford articulou coerção e consentimento na obtenção da legitimação de seu projeto
hegemônico) (ver, sobretudo, Coriat e Zarifian, 1985, pp. 38-47).
31 "Efetivamente, muitas das tarefas dos operadores de MFCN, desde a preparação da
máquina até a usinagem, foram substancialmente simplificadas (... ). Pode-se dizer que o tra-
balho do operador desqualifica-o quanto à perícia e destreza manual, e muda-se e torna-se
rotineiro quanto ao uso das faculdades mentais" (Tauile, idem, p. 879). Como o desen-
volvimento da microeletrônica, também o trabalho de programação é substancialmente simpli-
ficado, permitindo em alguns casos a sua execução por parte do próprio operador de MFCN.
Note-se que o incremento das máquinas é acompanhado por uma simplificação tanto das tare-
fas de operação quanto as de P'rogramação. No limite, temos como contrapartida à relativa ho-
mogeneização do trabalho, a materialização da inteligência da produção cristalizada sob a
forma social de capital fixo. '
32 Karl Marx, Elementos Fundamenurles para lâ Crítica de la Economia PoUtica (Borrador)
1857-1858, Buenos Aires, Siglo XXI, 1971.

33 "Aqui a inovação-chm•e é constituída pelo troley automático, na medida em que pennite


substituir o sistema de comboio e de •ração rígida e a linha de montagem mecânica. é um
sistema de transferência flexível que opera em malha, com trajetória complexa e aleatória.
Esse tipo de equipamento surgiu diretamente das linhas tayloristas e das mudanças oca-
sionadas pela nova cultura sócio-técnica, abordada anterionnente" (Coriat, 1989, p. 22).

34 "Numa refinaria de Petróleo, por exemplo, sensores avaliam permantentemente a tempera-


tura ou a pressão e transmitem suas informações aos computadores; estes, por sua vez, verifi-
cam se a curva de e~·olução da temperatura está dentro do prei'isto pelo programa teórico;
em caso de indicação anorinal, l) computador envia instruções ao maquinário automatizado,
acionando, por exemplo, válvulas e restabelecendo as condições para wn retorno à erolução
de temperaturas conforme o previsto originalmente" (Coriat, idem, p. 23). Dois tipos de equi-
pamentos são aqui utilizados, freqüentemente, de forma simultânea: os computadores, que
provêm informações e as tratam, e os meios de controle programável de máquinas, que adap-
tados a diferentes tipos de situação são utilizados tanto na produção industrial do tipo seriado
ou seqüencial industrial (caso da automobilística, em que se procede,por montagem de peças)
quanto na produção através de processos contínuos (petróleo, siderurgia, energia nuclear), em
que a intervenção sobre a matéria não consiste em operações de manipulação, mas de s~per-
visão do desenrolar correto das reações físico-químicas.

126
35 "Cada uma dessas quatro séries de meios de trabalho constitui, por si só, um salto con-
siderável em comparação ao que se obteve em matéria de automação na geração passada de
equipamentos. A entrada da informática, da eletrônica e da microeletri,nica multiplicou todas
as possibilidades da automação" (Coriat, ibidem, p. 24).

36 "Esse método (o kan-ban) é relativamente passível de entraves, por exigir qi1e sejam reuni-
dos alguns pré-requisitos:

a) é exigida wna reorganização das ofici,ias de maneira que as instalações e máquinas sejam
'linearizadas' (em linha especificamente, em L ou U ). É deco"ência dessa condição o fun-
cionamento eficaz do duplo sistema de circulação (informações e peças reais);

b) os outros pré-requisitos de eficácia referem-se ao 'cinco zeros', notórios por servirem de


bandeira ao método kan-ban. Entre os cinco zeros, dois efetivamente referem-se a entraves
prévios que o kan-ban deve superar, quais sejam, 'defeito zero' e 'pane zero•. Essas duas
noções (pane, no caso, refere-se às máquinas) são efetivamente a chave para o sucesso do
kan-ban. Seu objetivo básico é o funcionamento da produçlio com estoque inexistente, ou
muito reduzido (a Toyota mantém estoques para três dias, ao passo que outras empresas auto-
mobilísticas os tem para de vinte a quarenta dias). As peças demandadas de um posto a outro
devem estar sem defeitos sob o risco que, no caso de defeitos, haja ruptura num ponto e toda
a linha seja interrompida. Da mesma forma, 'pane zero' significa que não é tolerável
qualquer ponto de estrangulamento relacionado a uma deficiência, ou parada, de máquina.
Isso é assegurado por uma disposição técnica particular dos controles de qualidade. Eles são
realizados nos locais de trabalho, posto a posto, e nenhuma peça é liberada sem a qualidade
requerida (o que constitui um princípio niio-taylorista, ao não se separar fabricação e con-
trole). O mesmo aplica-se ao diagnóstico e a reparação de máquinas: nenhum posto de tra-
balho pode ser deixado sem funcionamento" (Coriat, ibidem, pp. 51-2). Os demais "z:eros"
referem-se a "estoque zero", "demora zero• e "papel zero".

37 A automação programável de base microeletrônica (automação flexível) terá um papel fun-


damental neste processo na medida que tende a homogeneizar as condições de produção de
mercadorias nos diversos países que passam a compor este mercado mundial, alpm de outras
vantagens em termos de aumento do controle capitalista sobre o trabalho e incremento da taxa
de exploração da mais-valia, tanto a relativa quanto a absoluta (o processo de homogenei-
zação da base técnica é, sem dúvida, central para a internacionalização da produção capita-
lista).

38 Na verdade, o que se verifica no âmbito das relações na produção é uma complexa es-
tratégia de eliminação de empregos diretamente produtivos e sua recomposição ao nível das
tarefas de manutenção, concepção, programação, pesquisa e desenvolvimento ... Além, é
claro, da recomposição salarial (industrias de serviço, terceirização ... ) definindo-se, portanto,
uma nova fronteira e~re indústrias e serviços e uma nova territorialidade, difundindo, assim,
novas formas de cooperação que fragmentam e recompõem o trabalhador coletivo (bem ao es-
tilo da chama a dialética inovação-conservação, um dos principais elementos constitutivos do
conceito de Revolução Passiva em Gramsci).

39 É préciso reiterar que este processo aqui denominado de homogeneização da base técnica
do capital encontra-se intimamente relacionado com a difusão massificada da informática
(para além até da tecnologia microeletrônica) que permite descentralizar as atividade produti-
vas sob um controle bem mais efetivo e centralizado do capital.

40 Burawoy chega mesmo a propor uma periodização que envolve as acomodações internas
ao modo de produção capitalista: "No primeiro período, a busca do lucro levou o capital a in-

127
tensificar a exploração com a auxílio dos regimes despóticos. Isto deu origem a crises de sub-
consumo e à resistência operária; a resolução de tais conflitos só pode ser conseguida no
plano do capital coletivo, ou seja, pela intervenção estatal. Esta assumiu duasfonnas o esta-
belecimento do salário social e a limitação do arbítrio gerencial que, por sua vez, originaram
o regime hegemônico. A necessidade da intervenção estatal pertence à própria lógica do de-
senvolvimento capitalista" (1987, p. 33). Entendemos, vale dizer no momento, que o Estado e
os demais aparelhos hegemônicos devam ser tomados não segundo suas manifestações re-
ducionistas, mas sim enquanto aquilo que os são: formas sociais da institucionalização da luta
de classes. Num terceiro período marcado pela ofensiva do capital os trabalhadores enfren-
tariam "a perda de seus posros não como indivíduos, mas como uma conseqüência das
· ameaças que incidem sobre a viabilidade econômica das empresas. É isto que pennite às
gerências impor o regime hegemônico apoiando-se em seus procedimentos de coordenação de
interesses para comandar o consentimento ao sacrificio" (Burawoy, ibidem).
41 "A saída das principais indústrias para fora das grandes cidades, como Nova York, tem
sido segui,da pela criação de manufaturas em pequena escala, baseadas numa mão-de-obra
imigrante mal paga, que supre os serores de serviços em expansão e os estilos de vida sofisti-
cados de seus empregados" (Burawoy, ibidem, p. 47).
42 Obviamente, este processo aumenta ainda mais o abismo existente entre os grupos sociais
(cada dia mais reduzidos) protegidos pela rede de seguridade social e os grupos desprotegidos.
Vale lembrar o efeito que causou a chamada Era Thatcher sobre o sistema previdenciário
inglês, antigo motivo de orgulho nacional.
43 "O novo despotismo (o despotismo hegemônico) é a tirania 'racional' da mobilidade do
Capital sobre o trabalhador coletivo" (Burawoy, ibidem, p. 48).
44 Enquanto produto desta ofensiva neoconservadora, temos que: "Apesar das intervenções es-
tatais há sinais de que, em toda as sociedades de capitalismo avançado, os regimes hegemôni-
cos estão desenvolvendo uma face despótica. As reações refletem relações distintas entre os
aparelhos de produção e os aparelhos de Estado. A dinâmica subjacente à mudança na di-
visão internacional do trabalho e na mobilidade do capital está levando a um terceiro
período: o do despqtismo hegemônico" (Burawoy, idem, p. 49; grifos do autor).

128
CONSIDERAÇOES FINAIS

A antiga ordem hegemônica, afirmada durante o período de


crescimento imperialista çlo pós-guerra e que se estendeu áté o
início da década de 70 encontrava-se, fundamentalmente, baseada na
figura do operário-massa: uma classe trabalhadora mais homogênea,
movendo-se e preservando-se enquanto uma unidade. Este elemento
configurou um determinado modo de intervenção política com acen-
tuada ênfase nas lutas salariais e por melhores condições de trabalho
internas à própria produção.
O modelo classista, quer do ponto de vista dos sindicatos, quer
do ponto de vista dos partidos, sustentava, em maior ou menor grau,
enquanto conquista possível no horizonte de lutas, a superação do
capitalismo. O Estado burguês de tipo welfare que emerge com mais
força nesse momento, normalizou o consumo coletivo regulamen-
tando as bases da reprodução salarial e "socializando" a classe
trabalhadora em um quadro institucional onde os trabalhadores
conquistaram efetivas concessões dos capitalistas.
Tal dimensão encontra-se melhor expressa no amplo e irrestrito
reconhecimento, por parte do conjunto das classes,- do -papel dos
sindicatos e partidos de massa enquanto interlocutores do conflito.
Por outro lado, este período também foi marcado pelo chamado
aparelho de produção em massa fordista que engendrou como ne-
nhum outro anteriormente a compatibilização da produção ao con-
sumo de massa.
Este conjunto de elementos configura uma determinada estratégia
para as classes dirigentes onde o fundamental seria a integração do
operariado como elemento ativo de sustentação da ordem hegemônica
estruturada no particular modo de institucionalização da luta de
classes em países·imperialistas: o Estado burguês de tipo welfare, os
grandes sindicatos corporativos, os partidos de massa ...
No decorrer deste período e também após 1973 podemos verificar
uma série de outros fenômenos tais como a emergência do movimento
estudantil em aliança com o movimento operário, a entrada na cena

129
política das mulheres a partir do movimento feminista logo após sua
acentuada integração enquanto força de trabalho desqualificada e mal
remunerada, os movimentos anti-racistas, pelos direitos civis, pelos
direitos humanos e os chamados movimentos pacifistas e ambienta-
listas.
Este conjunto de novas forças do conflito classista apontariam,
na verdade, para a incapacidade do imperialismo em compatibilizar
as exigências do processo de valorização em escala global às deman-
das por legitimação da chamada ordem hegemônica ao nível de cada
formação nacional.
As classes dominantes devem ser capazes de elaborar uma
estratégia de grande período no sentido de retardar as conseqüências
da tendência à queda da taxa de lucros. É necessário intensificar os
métodos de trabalho, modificar as formas de vida operária, inventar
uma programação econômica compatível com a reprodução das
relações sociais de e na produção.
Neste momento surge a figura do operário social, precarizado e
multifuncional, subordinado à rotatividade e fluidez de seus estatutos
reprodutivos, distante dos sindicatos e crítico das suas práticas
corporativistas (ênfase na chamada ideologia da dissidência). A.
classe passa, então, a ser alvo de um complexo e agudo processo de
heterogeneização que, no limite, tende a liquidar .a antiga unidade
fordista.
A chamada reestruturação das forças produtivas que verificamos
com maior clareza a partir da segunda metade da década de 70 busca,
antes de mais nada, recompor as bases, materiais e sociais, da
hegemonia burguesa. Tal dimensão encontra-se expressa através de
um duplo movimento de, por um lado, revolução passiva ao nível
das forças produtivas e, por outro lado, revolução passiva ao nível
do Estado.
As estratégias de diferenciação que encontramos nesse instante
demonstram claramente uma redução da base assalariada, aprofun-
dando, desta forma, a racionalidade da exclusão social (os agentes
de fabricação, bem como diversas categorias e grupos sociais tais
como as ·mulheres, jovens, imigrantes ... ). Este proc~sso encontra-

130
se determinado, sobretudo, por pressões macro-sociais e econômicas
que indicam a emergência de um novo conformismo: a maior
subordinação da classe trabalhadora à ordem burguesa com maior
grau de maleabilidade aos interesses dos capitalistas.
É neste contexto de desdobramentos da estratégia de grande
período-revolução passiva ao 'nivel das forças produtivas que a obra
gramsciana emerge enquanto um instrumento fundamental de análise
e intervenção política, objetivando a superação do atual estado de
coisas, isto é, a eliminação da opressão de uma classe sobre as demais
e, ao final, da própria sociedade estruturada a partir das classes.

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136
MARXISMO
. . E CLASSES SOCIAIS
NA ATUALIDADE

Osvaldo Coggiola
PRÓLOGO

A partir de Bukharin, diversos teóricos e pesquisadores, mar-


xistas e não marxistas-, vêm se lamentando sobre o fato de Marx
não ter deixado uma teoria sistemática das classes sociais ou uma
definição geral desse conceito. Essa "lacuna" é freqüentemente
confrontada com o caráter acabado da "crítica da economia política"
realizada por Marx, e não poucos têm deduzido disso uma fraqueza
do marxismo enquanto teoria social. De fato, o capítulo de O Capital
consagrado às classes sociais ficou inacabado, como de resto o
conjunto dessa obra, de acordo com o plano original de Marx.
Duvidamos, porém, que esse capítulo teria preenchido as expectati-
vas normativas ou sistemáticas dos queixosos. Marx utilizou
inúmeras vezes o conceito ou o termo de "classe social", de maneira
concreta, para a análise das causas últimas de determinada conjun-
tura histórica, ou abstrata, para a análise do papel e do devir das
diversas classes nos sucessivos modos de produção sociais, em
especial o capitalista.
Mas Marx estava interessado no devir histórico do conjunto da
sociedade humana, em cuja origem se encontravam agrupamentos
sociais onde as classes sociais não existiam e que, afortiori, devia
conduzir a uma sociedade sem classes. Nada teria sido mais alheio
ao método marxista do que a elaboração de um conceito atemporal
e ahistórico que fixasse eternamente as características de uma
realidade pela sua própria natureza transitória. Na medida em que a
base desse devir histórico está situada na esfera da produção (ou seja,
no metabolismo existente entre a sociedade humana e a natureza, ou
na "humanização crescente da natureza"), é bem lógico que a atenção
principal de Marx se centralize na "anatomia da sociedade burguesa"
e, para além dela, na anatomia das sociedades anteriores, exposta na
economia política. Foi por necessidade de vulgarização que Lênin
emitiu a sua famosa definição: "Chamam-se classes os vastos grupos
de homens que se distinguem pelo lugar que ocupam num sistema
historicame_nte definido de produção social, pela sua relação (ge-
ralmente fixada e consagrada em leis) com os meios de produção e,

139
conseqüentemente, pelos modos de obtenção e pela importância da
parte da riqueza social de que dispõem. As classes são grupos de
homens entre os quais um pode se apropriar do trabalho de outro,
em conseqüência do lugar diferenciado que aquele ocupa em uma
estrutura determinada da economia social"1•
De resto, a queixa dos sociólogos acerca da inexistência de uma
"teoria marxista das classes sociais" também existe entre os cientistas
políticos (inclusive marxistas) acerca da inexistência de uma "teoria
marxista do Estado", e assim por diante. O filósofo marxista Gyorg
Lukács lamenta em História e Consciência de Classe que Marx
nunca tivesse realizado seu projeto de escrever um tratado acerca da
dialética, embora, se tal tivesse ocorrido, esse tratado talvez não
correspondesse às expectativas de Lukács. A obra de Marx se
caracteriza por uma multiplicidade de projetos inacabados e, no
limite, até os economistas poderiam se queixar do caráter inacabado
de O Capital ou da ausência de uma elaboração mais profunda, por
parte de Marx, de certos fenômenos econômicos. No conjunto,
porém, a espantosamente prolífica obra de Marx, incluídos os
trabalhos, agora publicados, que Marx deixara em estado de
manuscrito, fornecem critérios metodológicos para todos os
fenômenos sociais imaginá".eis.

Marxismo e sociologia

Está perfeitamente claro que, para Marx, as classes se definiam de


acordo com a sua relação de propriedade com os diversos meios de
produção, sendo, repitamo-lo, a produção da vida social o fundamento
último da história humana, considerando derivados os outros critérios
distintivos das classes sociais. Provavelmente Marx nunca teria imagi-
nado que algum dia certas "sociologias" utilizassem, como critérios
decisivos, a "distribuição da renda", o "status" ou os "padrões compor-
tamentais", ou seja, talvez Marx nunca imaginasse que o mundo
voltaria, pelo menos na cabeça dos "cientistas", a ser posto de pernas
para o ar (embora, como veremos, no final dá. sua vida tivesse
experimentado uma antevisão desse fenômeno, ao ser confrontado. com
a sociologia de Augusto Comte).

140
Marx nunca se considerou como o pai da teoria das classes
sociais, conceito que fora usado, implícita ou explicitamente, por
muitos antes dele, e muito menos de uma teoria das classes sociais,
que era apenas um aspecto da vasta concepção do mundo que se
tratava de elaborar para dar um fundamento científico à luta revolu-
cionária do proletariado contra a sociedade capitalista. Nas próprias
palavras de Marx, "o que eu.fizfoi demonstrar: 1) que a existência
das classes está vinculada a fases particulares, históricas, do
desenvolvimento da produção; 2) que a luta de classes conduz
necessariamente à ditadura do proletariado; 3) que esta ditadura
constitui somente a transiçã,o para a abolição de todas as classes e
para uma sociedade sem classes "2 • As noções de classe em si
II 11
,

"classe para si" e outras, foram elaboradas em função dessa con-


cepção de conjunto e não como aspectos isolados ou como produto
de uma observação episódica.
O grande vigor da construção teórica de conjunto de Marx,
reveladora, por sua vez, não apenas da sua inteligência fora do
comum, mas sobretudo da força impressionante da luta de classes
proletária, da qual essa teoria se propunha como expressão, fez com
que, posteriormente e de maneira indevida, a sociologia acadêmica
concedesse a Marx a paternidade da moderna teoria das classes
sociais. Indevidamente porque, embora reconhecesse a imensa con-
tribuição de Marx, procedeu a dividi-la em dois aspectos: 1) o da
"ciência positiva" das classes sociais, em que foram reconhecidas as
contribuições de Marx; 2) o da "metafísica" ou "esGatologia",
contida na atribuição de uma "missão histórica" ao proletariado,
rejeitada por pertencer ao domínio da filosofia da história ou da
especulação metafísica. Até os representantes mais honestos da
sociologia aq1.dêmica, como George Gurvitch 3 , procederam à
distinção apontada, que Marx teria recusado, em primeiro lugar, por
estabelecer uma distinção entre filosofia da história e sociologia
como campos s~parados do saber, embora essa distinção não reflita
nenhuma necessidade objetiva (isto é, surgida do próprio desen-
volvimento histórico e social), mas apenas uma necessidade
acadêmica. A necessidade acadêmica, por sua vez, refletia um
determinado desenvolvimento do conflito social objetivo ou, melhor
dizendo, a entrada numa nova fase desse conflito, em que a bur-

141
guesia, passando para o campo da contra-revolução na segunda
metade do século XIX, elaborava as armas teóricas correspondentes
a essa passagem, inclusive no campo da teoria social; não por acaso,
isso aconteceu no país em que os abalos sociais que determinaram
essa mudança histórica, com a aparição do proletariado como classe
independente no cenário histórico na revolução de 1848, originaram
a "sociologia positiva" de Auguste Comte e sua procura da "norma-
tividade social" que, por vias diretas ou indiretas, esteve no nasce-
douro da sociologia acadêmica. Marx só veio a ler o Cours de
Philosophie Positive trinta anos depois da sua publicação, e isto "por
conta de muito barulho que os ingleses e os franceses fazem a
respeito dele", adotando diante do "positivismo", coisa que é poucas
vezes lembrada nos cursos de ciências sociais de hoje, "como homem
de partido, uma atitude plenamente hostil, acrescentando que como
homem de ciência lhe merecia a pior das opiniões", recusando
totalmente "a receita de Comte para a pensão do futuro" (em termos
semelhantes se expressou Engels em carta ao próprio Tõnnies, de
1895)4, a partir do que Karl Korsch, corretamente, considerou a
sociologia como uma oposição ao socialismo moderno.
Até autores de origem marxista, como Charles Bettelheim, caem
sob a influência dessa sociologia de origem putativa. Bettelheim
afirma que, no par:ágrafo aciina citado, "Marx vai longe demais ao
afirmar que demonstrou as proposições que constituem a originali-
dade da sua concepção,, pois nos $euS textos não se acha nada
parecido com essa demonstração. Unicamente encontramos teses e
princípios enunciados (... ) Marx começa algumas demonstrações,
mas só isso "5 • Bettelheim reclama aqui de Marx uma "demonstração
científica" no campo da teoria social, coisa que nem passou pela
cabeça de Marx,, para quem não existia uma teoria social separada
da experiência histórica (para a qual Marx dedicou páginas brilhantes
e esclarecedoras) e do seu fundamento, a análise e determinação
teórica da produção da existência social (ou "estrutura econômica da
sociedade").

Quando alguns marxistas, como Trotsky, utilizam a expressão


"sociologia marxista", baseiam-se no sentido popular que o termo
"sociologia" adquiriu posteriormente (como qualquer corpo

142
sistemático de reflexões voltado para a sociedade ou para a "questão
social"). A questão das classes, e a luta de classes como o motor da
história da sociedade humana, foi abordada por Marx como um
aspecto de uma concepção de conjunto materialista e dialética.
Materialista, pois a base objetiva da existência das diversas classes
é a sua relação com os meiqs de produção numa determinada fase
histórica do desenvolvimento das forças produtivas sociais.
Dialética, pois só é possível considerar objetivamente as classes
sociais no seu devir histórico, determinado pelo seu antagonismo
irreconciliável com outras classes. A resolução desse antagonismo
implica a passagem para um outro estágio da organização social da
produção, determinado por outros antagonismos de classe ou, no
caso da passagem do capitalismo para o socialismo, pela supressão
geral desses antagonismos. É sobre esta base histórica objetiva que
se desenvolvem as classes sociais e tcx:las as suas características -
organização, consciência de si, ou seja, de seu antagonismo com as
classes adversárias, valores, tradições, psicologia comum, etc. Essas
características, porém, não são secundárias pois, uma vez configu-
radas as classes, estas podem ter uma influência fundamental no
desenvolvimento do conflito de classes e, nos períodos de revolução
social, constituem o fator decisivo que determina a passagem para
um novo modo de produção ou a recaída num período de regresso
social. A dialética da objetividade e da subjetividade, sobre a base
das suas condições materiais de existência, é o elemento central da
história das classes sociais.
A exata inversão idealista da concepção marxista d·as classes
sociais foi realizada pela sociologia de Max Weber (que Julien
Freund chamou "o Marx da burguesia"), o qual, por exemplo,
considerou a vocação para o trabalho como uma précondição do
trabalho assalariado e do "espírito do capitalismo" 6 considerado, por
sua vez, como précondição do próprio capitalismo. Assim, os
"valores" e o "espírito" teriam uma existência prévia e dariam
origem às próprias classes: o trabalho assalariado, por sua vez, não
teria sido, como Marx e a pesquisa histórica demonstraram, o
produto de uma imposição violenta sobre os prcx:lutores inde-
pendentes, rurais ou urbanos, despossuídos das suas condições
(meios) de pFcx:lução. O stalinismo, do seu lado, como expressão da

143
reação burocrático-burguesa contra o início da revolução proletária,
transformou a concepção marxista, aberta ao seu permanente enri-
quecimento através da análise da experiência histórica, num esquema
morto e, em última instância, idealista, ao colocar um padrão
universal para o surgimento da classe operária. Reduziu, ainda, a
dialética entre objetividade e subjetividade como motor da história
da classe, a uma teleologia hagiográfica cujo momento supremo era
a existência do partido comunista (stalinista), corporificação univer-
sal e atemporal dos interesses históricos e imediatos do proletariado.

Subjetivismo e individualismo

Foi uma reação extrema contra esse esquematismo, oriunda do


próprio stalinismo, que o historiador Edward P. Thompson elaborou
através de uma pesquisa monumental, The making of the English
Working Class, sua obra sobre o processo clássico de formação de
uma classe operária, uma concepção sobre a classe baseada exclusi-
vamente no seu "fazer-se", ou seja, sobre a sua subjetividade,
emancipando a consciência de classe da sua base histórica objetiva:
"A classe operária formou-se a si própria tanto quanto foi fonnada
(... ) a experiência da classe é detenninada pelas relações de
produção nas quais os homens nasceram ou entraram involuntaria-
mente. A consciência de classe é afonna como essas experiências
são tratadas em temws culturais, encarnadas em tradições, sistemas
de valores, instituições. Se a experiência aparece como detenninada,
o mesmo não ocorre com a consciência de classe".
Se já foi dito, contra isso, que "não há experiência que seja
apenas social (ela é também cultural), assim como não há consciên-
cia apenas cultural (ela é também social) "7 , é necessário acrescentar,
em oposição à dicotomia de Thompson, que "há um modo próprio
de contornar os problemas difíceis mas estimulantes do agente de
classe: definindo a classe exclusivamente em temws de auto-identi-
ficação coletiva, temlina por inserir somente uma: parte minoritária
e marginal,, em relação àfonnação do primeiro proletariado indus-
trial do mundo "8• O sucesso acadêmico de Thompson, .emborà ele

144
próprio não fosse um acadêmico, deve-se a ter colocado, com
originalidade e impressionante riqueza de detalhes, uma concepção
que fornece uma tangente de abandono da concepção marxista das
classes. ·
O questionamento acadêmico da concepção marxista percor-
reu, nos últimos anos, uma ·série de etapas que foram acompa-
nhadas por boa parte da esquerda: definição da classe operária
dos países industriais como integrada no sistema capitalista,
questionamento da própria pertinência do conceito de classe
operária, até chegarmos ao estágio atual, em que questiona-se toda
análise de classe, com conseqüências muito claras: "Na perspecti-
va doravante caduca dominada pelo historicismo marxista, as
ciências sociais tinham a missão de inserir os fenômenos coletivos
nas grandes leis' de desenvolvimento (um plano histórico global
esclarecedor dos fenômenos individuais). O pensamento contem-
porâneo se afasta desse modelo holístico, tornando anacrônico o
ponto de vista globalista (... ) o estabelecimento de leis globais
do desenvolvimento histórico torna-se caduco, os conceitos
holísticos referidos ao todo social, como classe social ou so-
ciedade tornam-se muito criticáveis. O individualismo vira uma
exigência de método: os comportamentos individuais fornecem a
chave do conjunto global (... ). Todo fato social apar,ece como
resultante da ação recíproca dos comportamentos individuais "9 •
O abandono do conceito de classe não significa o abandono de
Um conceito teórico, mas da própria noção de inteligibilidade do
processo histórico, na medida em que este só se torna compreensível
enquanto processo social. Levando até as últimas conseqüências a
oposição ao materialismo histórico, o individualismo metodológico,
abandonando o conceito de classes sociais, abandona conjuntamente
a própria idéia de lógica do processo histórico, lógica suscetível de
torná-lo dominável pelo gênero humano. É nada menos do que isto
o que está em jogo na questão das classes sociais, em especial da
classe operária, no período histórico contemporâneo.

145
NOTAS

1 Lênin, V.I. Oeuvres, Moscou, Langues Étrangeres, v. 29, p. 425.


2 Marx, K. Carta a Joseph Weydemeyer, Correspondencia Escogida 1844-1895,Moscou,
Progresso, p. 69, 1975.
3 Gurvitch, George. As classes sociais, São Paulo, Global, 1982.

4 Karl Marx, Apud Karl Korsch, Barcelona, Ariel, p. 19, 1975.


5 Bettelheim, Charles. Reflexiones sobre los conceptos de clase y lucha de clases en la obra
de Marx, in Repensar a Marx, Madri, Revolución, p. 58, 1988.
6 Freund, Julien. Sociologia di Max Weber, introdução a Marx della borghesia, Milão, Mon-
dadori, 1968.
7 Coggiola, Osvaldo. Movimento e pensamento operários antes de Marx, São Paulo, Brasi-
liense, p. 24, 1991.
8 Thernborn, Gõran. A análise de classe no mundo atual, in E.J. Hobsbawm (org.), História
do Marxismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, v. 11, p. 436, 1989.
9 Russ, Jacqueline. La Marche des ldées Contemporaines, Paris, Armand Colin, p. 293,
1994.

~ t:v,~, CJIL '.1. Joi,,c'lanl,o,,f


Depmtamento de Matemática
1. C. E.T. U. F. M T

146
A CLASSE OPERÁRIA HOJE

N a primeira tentativa sistemática de revisão da teoria marxista,


muito justamente chamada "revisionismo" alemão, ao final do
século XIX, Edward Bernstein questionou a "teoria da miséria
crescente" de Marx, assim como a idéia de O Capital de que o
capitalismo tendia a que, em todas as sociedades, a polarização social
se estabelecesse entre os pólos próprios do sistema capitalista, capital
e trabalho assalariado. Para Bernstein, o desenvolvimento
econômico do último quartel do século XIX tendia, pelo contrário,
a fazer crescer os estratos intermediários, a classe média, dotando o
capitalismo de um novo volante de estabilidade. Na sua resposta ,
Karl Kautsky negou que a nova classe média tivesse as mesmas bases
sociais que a pequena burguesia do passado: "A nova classe média
tem fundamentos diferentes. Para ela, a propriedade privada dos
meios de produção tem escassa importância(... ). Onde os meios de
produção funcionam como capital, os intelectuais não são pro-
prietários dos meios de produção, mas assalariados (... ). A classe
capitalista começou a delegar as suas funções comerciais e indus-.
triais a trabalhadores assalariados, comerciantes; engenheiros e
outros (... ). O capitalista resulta supérfluo no sistema das sociedades
anônimas, que entrega a assalariados inclusive a alta direção das
empresas (... ). Seria inexato considerar a nova classe média como
uma fraçã.o do proletariado. Saiu da burguesia, está ligada a ela
por todo tipo de afinidades e vínculos sociais, possui um gênero de
vida semelhante "1•

O importante, para Kautsky, é que o desenvolvimento histórico


tendia a reprod1=1zir em todos os estratos sociais a relação social
própria do capitalismo e a eliminar a pequena propriedade (base de
produção mercantil .simples e da antiga classe média), assim com)
a demonstrar o caráter cada vez mais supérfluo da propriedade
privada capitalista, conjunto de fatores que testemunhava a maturi-
dade crescente das condições objetivas para a revolução socialista.

147
No segundo pós-guerra, o debate acadêmico marxista desen-
volvido nos países imperialistas não conseguiu inovar teoricamente
em relação ao histórico "debate revisionista", mas apenas ampliá-lo
numa multiplicidade interminável de detalhes. A questão da nova
classe média esteve novamente no centro das atenções, vinculada
agora à delimitação das fronteiras da classe operária, na preocupação
de estabelecer se o desenvolvimento econômico ampliava ou não as
bases sociais para a transformação socialista. Nicos Poulantzas
elaborou uma ampla teoria (As Classes Sociais no Capitalismo de
Hoje) cujo eixo está dado pelo fato de o capitalismo contemporâneo
fazer crescer principalmente a "nova pequena burguesia". Esta
colocação serviu de fundamento teórico para estratégias políticas do
stalinismo e da social-democracia, em que os interesses históricos
do proletariado eram colocados num plano secundário, justamente
em função do caráter crescentemente secundário de seu peso social.
Erik Olin Wright, por sua vez, recusou em Poulantzas "seja a
definição restritiva de classe operária (somente os trabalhadores
manuais), seja sua concepção da, nova pequena burguesia (. .. ). A
definição de classe operária é muito mais ampla: todos os as-
salariados que ocupam posições que excluam toda,forma de controle
sobre o capital monetário, sobre o capital fisico e sobre a força de
trabalho "2 •
O marxismo; na verdade, nunca afirmou que a revolução socia-
lista só seria possível em condições em que a classe operária fosse
socialmente majoritária. Só afirmou que, pela sua posição social
objetiva, a classe operária é a única que poderia dar, através da sua
própria revolução, uma saída progressiva à revolta de todos os
estratos sociais explorados contra o capital, revolta determinada pela
decomposição objetiva do sistema capitalista. Marx já esperava, no
século XIX, que o processo revolucionário resultasse de uma com-
binação da revolta camponesa, movimento típico dos primórdios da
sociedade burguesa, com a insurreição operária. As revoluções
socialistas do século XX, por sua vez, tiveram como teatro privile-
giado países atrasados em que a classe operária era minoritária (3
milhões, por exemplo, numa Rússia czarista que rontava com mais
de 150 milhões de habitantes) mas onde as contradições e a decom-
posição social provocadas pelo capitalismo eram mais agudas. Marx

148

·,
e os autênticos marxistas, por outro lado, sempre consideraram o
sistema capitalista, e a própria classe operária, como internacionais,
ou seja, não consideráveis apenas num marco nacional e muito menos
quando esse marco se restringe aos poucos países imperialistas, dado
este sistematicamente esquecido pelos debates acadêmicos men-
cionados. As revoluções nos países atrasados, deste ponto de vista,
deixam de ser "anormalidades", para se transformarem em elos de
uma revolução socialista internacional pela sua própria natureza.
Outros debates tiveram por eixo a própria natureza da classe
operária. Paul Sweezy defendeu que, diferentemente das previsões
de Marx, o desenvolvimento capitalista contemporâneo tendia a
produzir um proletariado altamente diferenciado, ou seja, que o
capitalismo não tende a realizar a desqualificação homogênea dos
trabalhadores, que fortalece a sua coesão social, na medida em que
tende a superar as divisões por ofícios e profissões diversamente
qualificadas, suscetível de transformá-los numa força política tam-
bém homogênea3 • Harry Braverman, num estudo célebre centrado
nos Estados Unidos 4 , demonstrou, ao contrário, que o processo de
valorização do capital era simultaneamente um processo de desquali-
ficação dos trabalhadores (confirmando a tese de Marx), o que devia
ser considerado conjuntamente com o crescimento percentual do
trabalho assalariado como percentagem da força de_ trabalho total:
de50,7% em 1900, para 69, 1% em 1970 (nos EUA). Até trotskistas,
como Ernest Mandel, chegaram a sustentar a existência de um
"neocapitalismo", que invertia a tendência histórica do capital para
a desqualificação e homogeneização do proletariado. ·

Michael Burawoy questionou empiricamente a pesquisa de


Braverman, afirmando não estar ela centrada nas categorias que
ocupam a dinâ"mica central do capitalismo americano5 , embora a
"qualificação diferenciada" se manifestasse sobretudo em níveis
salariais diferentes (não se deve confundir o proce~so social objetivo
da desqualificaçao com a diferenciação salarial, e a fortiori social
que o capitalismo introduz nas fileiras operárias, pois esta é muito
mais precária e instável do que aquela). Em especial, se faz referên-
cia ao setor de serviços que cresceu, nos países desenvolvidos, em
um ritmo bem superior ao da economia global: 18,8% anual entre

149
1970 e 1980, perfazendo em 1982, 66% do produto bruto e 67% do
emprego; estes dados, porém, devem ser postos ao lado daqueles
dos países atrasados, onde a indústria de serviços só atinge 18% do
emprego total 6• A questão da proletarização e da desqualificação
deve ser posta, no mínimo, no quadro de três fatores principais: 1)
a perda de importância do setor agrário no emprego total (atualmente
não atinge 10% em nenhum país desenvolvido); 2) a internacionali-
zação crescente das forças produtivas capitalistas, ou seja, a expan-
são mundial do capitalismo; 3) as migrações internacionais e a
incorporação maciça da mulher ao trabalho, na procura de mão-de-
obra barata, assim como o assalariamento e desqualificação de
profissões antigamente independentes. É o que faz Giovanni Arrighi:
"O resultado é um reordenamento inédito no material humano que
constitui o exército ativo e o exército industrial de reserva. Com-
parado com vinte anos atrás, uma bem mais ampla percentagem do
exército industrial ativo está agora localizado na periferia e semi-
periferia da economia mundial, enquanto o exército ativo no centro
contém um amplo número de mulheres e de imigrantes em seus
estratos mais baixos, e de intelectuais e cientistas formalmente
proletarizados em seus estratos superiores "7 • A evolução dos debates
teóricos acerca da classe operária, porém, não se baseia exclusi-
vamente neste dado.

Classe operária e crise

Ainda no debate sobre a desqualificação, deve registrar-se a


posição da corrente do "trabalho segmentado", baseada na teoria dos
"ciclos longos" do capitalismo, que postula uma espécie de eterno
reajuste do capitalismo em torno de si próprio, em função da
mudança do eixo tecnológico8 (isto apesar da própria corrente
reconhecer que os "ciclos longos" não passam de uma hipótese de
trabalho, não demonstrada cientificamente). Contra a posição de
Sweezy, Braverman tinha afirmado que a tendência do capitalismo
contemporâneo "é criar uma grande massa ocupada num nível de
trabalho geral cada vez menos diferenciado (..• ) uma gigantesca
massa de trabalhadores relativamente homogênea quanto~ ausência

150
de qualificações e à pennutabilidade de pessoas e funções "9 • Ana-
lisando ambas as posições, a corrente "segmentada" concluiu que
"niío é possível um julgamento global a priori. Pelo contrário, a
resposta a esta questão depende da estrutura social da acumulação
ser ou não permissiva a respeito da desqualificaçiío, a degrad(lÇãO
do trabalho e a substituição de trabalhadores de salários altos por
trabalhadores de salários baixos "10 • Baseada na hipótese dos "ciclos
longos" 11 , que julga impossível determinar uma direção básica da
produção capitalista, esta corrente também julga ser impossível
discernir uma tendência básica do trabalho no capitalismo, sendo
impossível fazer qualquer prognóstico a respeito: eis a "ciência" a
serviço do ecletismo. Do mesmo modo que a Teoria da Regulação
realiza uma operação semelhante, acrescentando às leis básicas do
capitalismo as categorias intermediárias (paradigma industrial, re-
gime de acumulação e modo de regulação), que acabam subordinadas
às primeiras, a corrente "segmentada" realiza a mesma operação
criando sua própria categoria intermediária: a estrutura social da
acumulação.
Já em meados da década de 70, o capitalismo entrou num período
de crise, do qual não saiu até o presente, e onde "a característica
distintiva de todo o ciclo da última década e meia é o incremen(o
geral do desemnrego, não só nas fases de recesso, mas também
naquelas de reativação (... ). As taxas baixas de crescimento siío
insuficientes para absorver a massa de expulsos da indústria e
também para dar emprego à massa de novos trabalhadorf!;s surgida
do simples crescimento demográfico "12• O capitalismo, que tinha
criado um bilhão de empregos na expansão econômica do pós-
guerra, atinge atualmente, segundo estatísticas oficiais, 800 milhões
de desempregados, concentrados na sua imensa maioria nos países
atrasados, embora a economia dos "sete grandes" também registre
o recorde de 24 milhões de desempregados. Aos fenômenos de
decomposição e .miséria social sem precedentes que se observam em
quase todas as áreas do chamado Terceiro Mundo, acrescenta-se a
nova miséria do an~igamente chamado bloco socialista e a decom-
posição social nos próprios centros do imperialismo: nos EUA, 35
milhões de pessoas se encontram abaixo do nível de subsistência,
quase 40 milhões carecem de proteção sanitária, 6 milhões de

151
crianças se alimentam apenas da merenda escolar, etc. Na própria
Europa, renascem as favelas nos grandes centros urbanos, e as novas
leis de "flexibilização do trabalho" permitem, por exemplo na
Espanha, manter indefinidamente um trabalhador com o salário de
um aprendiz adolescente.
As condições descritas evidenciam uma decomposição social sem
precedentes provocada pelo sistema capitalista de produção, afun-
dado na mais profunda crise da sua história. Para sair dela o método
central do capitalismo não é, como anunciam os apologistas cons-
cientes ou inconscientes do capital, uma revolução das forças pro-
dutivas (a "revolução informática" ou "microeletrônica"), mas a
tentativa de varrer todas as conquistas sociais obtidas pelo prole-
tariado no período prévio, em especial na etapa do pós-guerra. Aos
espantosos índices de desemprego cabe acrescentar a situação cada
vez mais precária daqueles que conseguem conservar o seu posto de
trabalho, o que informa a validade da tese de Braverman acima
exposta. Na América Latina temos um exemplo disto com as
demissões em massa e a inédita deterioração salarial do setor público.
Na própria França, porém, onde a taxa de desemprego atinge 10%,
"2.600.000 assalariados, dos quais 84% de mulheres, são empre-
gados em tempo parcial. De cada 3 empregos, 2 são precários "13 •

Nessas con'dições, e de maneira surpreendente apenas para


aqueles que desconhecessem o desnorteamento ideológico prévio da
esquerda mundial, o debate sobre a classe operária deslocou-se para
o terreno de duas teses diferenciadas mas muito próximas entre si:
1) o da afirmação da tendência para o desaparecimento da classe
operária e, portanto, de qualquer política baseada nos interesses
históricos daquela; 2) o da afirmação de que a atual lógica do capital
torna estéril a luta de classe do proletariado, que não mais seria (nem
teria sido nunca) portadora de um projeto social potencialmente
alternativo ao capitalismo. Como por exemplo, Robert Kurz: "Uma
vez que a crise consiste na eliminação tendencial do trabalho
produtivo e, com isso, na supressão negativa do trabalho abstrato
pelo capital e dentro do capital, ela já não pode ser criticada ou até
superada a.partir de um ponto de vista ontológico do trabalho, da
classe trabalhadora, ou da luta das classes trabalhadaras. Nessa

152
crise, e em virtude dela, revela-se todo o marxismo da história como
parte integrante do mundo burguês da mercadoria moderna, sendo
por isso ele próprio atingido pela crise "14 • A conclusão política
comum de ambas as teses é que a luta não mais pode basear-se nas
organizações operárias, e que deve procurar apoiar-se nas ''lutas
comunitárias" (ou "das minorias") e procurar o isolamento do Estado.
Assim, André Gorz, que escreveu justamente um livro intitulado
Adeus ao Proletariado, chama de "'não-classe dos não-trabalha-
dores ', não os excluídos da produção, mas todos aqueles que não
conseguem mais se identificar com seu trabalho assalariado e que
reclamam, não um emprego melhor, mas uma vida em que as
atividades autodetenninadas predominem sobre o trabalho heterode-
tenninado (... ). O neoproletariado pós-industrial é evidentemente
incapaz da tomada do poder, mas a mesma coisa vale para a classe
operária tradicional (... ) o poder não pode ser tomado de uma vez
só ao nível do Estado. A única possibilidade é colocar o poder do
Estado fora do circuito, subtraindo-lhe espaços cada vez maiores,
nos quais ele não possa mais penetrar" 15 •
O sociólogo Claus Offe também questiona o trabalho como sendo
ainda "a categoria sociológica chave "16 • Para Gõral) Thernborn, a
crise industrial da década de 80 teria invertido nada menos do que a
tendência histórica trissecular do capitalismo para uma crescente
proletarização da população, existente desde o século XVIII, o que
permitiria estabelecer a existência de uma sociedade pós-industrial 17 •
O conjunto destas colocações surpreende pelo seu impressionismo
espetacular, pois algumas características isoladas do processo de
crise econômic~ atualmente em curso são invocadas para negar os
traços fundamentais do capitalismo desde, pelo menos, a Revolução
Industrial do século XVIII. A idéia de uma "sociedade pós-indus-
trial", por exemplo, suporia que o capitalismo teria realizado
mundialmente todas as possibilidades contidas no industrialismo.
Mas isto não se coaçiurta em absoluto com o fato, estatisticamente
estabelecido, de que a pobreza rural atinge atualmente 1 bilhão de
pessoas nos países atrasados 18 , ou seja, um quinto da população do
planeta! As recentes catástrofes africanas demonstraram que o

153
capitalismo, longe de atenuar, tende a agravar essa herança do
passado pré-industrial, e que ela não tem nada de episódico.
Quanto ao desaparecimento tendencial da classe operária, trata-se
de um fato que as estatísticas estão longe de comprovar. O processo
econômico de pós-guerra testemunhou o maior crescimento do prole-
tariado em toda a história, isto sem necessidade de contar a formação
do proletariado mais numeroso do mundo na ex-URSS e no Leste
europeu. Ainda no período de crise, a queda tendencial do emprego
industrial nos países desenvolvidos em relação ao emprego total é muito
desigual: nos EUA, elepassade33,4% em 1960, para27,2% em 1982;
na Alemanha, de 45,9% para 41,8%, respectivamente; no Japão, de
28,5% para 34,5% ! E ainda, nos casos em que existe uma queda
percentual, não se trata de uma queda em termos absolutos: nos EUA,
no período indicado, o emprego industrial passou de 17.149 mil para
20.286 mil. O compilador das estatísticas mencionadas conclui que "na
escai,a mundial, existem mais trabalhadores industriais do que em
qualquer período da história"19 •
Citar isoladamente as estatísticas de desemprego para provar o
"fim da classe operária" é misturar alhos com bugalhos, identificar
a crise do capitalismo com o fim do proletariado. O desemprego
pode crescer sem deixar de crescer o emprego industrial, se o
crescimento de~te·é inferior ao crescimento demográfico (e esse é o
caso nas últimas décadas). Nos EUA, em plena crise, no período
1972-1987, o emprego absoluto cresceu 35 % (30, 1 milhões), sendo
90% desse crescimento no setor de serviços 20 • Mas isto, a supressão
relativa de postos industriais através da automação, não deve ser lido
de maneira estreita como uma antecipação do fim da classe operária.
Já em O Capital, Marx esclarecia que, para ser um operário
produtivo, "basta ser um órgiío do trabalhador coletivo ou desem-
penhar nele uma funçdo qualquer"21 • Pode-se falar em "novas
convergências intercategoriais que diminuem as clivagens entre o
trabalhador manual e o trabalhador intelectual, entre o trabalhador
da produçtio e o do serviço, a partir do surgimento de elos nas
funções do trabalho, na organização da produção, transformando-os
em instrumentos iguais, num mecanismo de cooperação capitalista
do trabalho. Com isso produz-se, portanto, uma extensão da pro-

154
dução capitalista, alargando a massa do proletariado, ao invés de
provocar o seu desaparecimento "22 • Isto posto, não basta refutar a
suposta tendência para o fim da classe operária para caracterizar
acabadamente os seus defensores.

NOTAS

1 Kautsky, Karl. La doctrina socialista, Buenos Aires, Claridad, p. 169, 1%6.


2 Wright, Erik Olin. Class, crisis and the state, Nova Iorque, cap. 1, 1979.

3 Sweezy, Paul. Revolução e movimento operário, Amadora, Fronteira, 1976.

4 Braverman, Harry. Labor and monopoly capital, Nova Iorque, Monthly Review Press,
1974.
5 Burawoy, Michael. The politics ofproduction, Londres, Verso Books, 1985.
6 Aronson, Jonathan D. The service industries, Nova Iorque, p. 97, 1988.

7 Arrighi, Giovanni. Marxist century, american century: the making and remaking of the
world labour movement, New Le.ft Review nº 179, Londres, janeiro, 1990.
8 Para uma crítica, ver: Osvaldo Coggiola, Ciclos largos y crisis economicas, En Defensa
dei Marxismo, nº 6, Buenos Aires, julho 1993.
9 Braverman, Harry. op. cit., p. 354.
10 Edwards, R.. Sweezy y el proletariado, Repensar a Marx, Madri, Revolución, p. 91, 1988.

11 Gordon, D. Segmented work, divided workers, Nova Iorque, Cambridge University Press, 1982.
12 Katz, Claudio. La realidad histórica de la descomposición capitalista y el escepticismo de
los izquierdistas, En Defensa dei Marxismo nº 2, Buenos Aires, dezembro 1991.
13 Lojkine, Jean. A classe operária em mutações, Belo Horizonte, Oficina de Livros, p. 10, 1990.

14 Kurz, Robert. O colapso da modernização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, p. 227, 1992.
15 Gorz, A. O homem ea sociooade deamanhã,A Sociedade, São Paulo, Ática, p. 174, 1989.
16 Offe, Claus. Capitalismo desorganizado, São Paulo, Brasiliense, 1994.
17 Thernborn, Gõran. •Peripecias de la modemidad, Buenos Aires, Imago Mundi, 1992.
18 O Estado de São Paulo, 11 de janeiro de 1993.
19 Kellog, Paul. Goodbye to the working class?, lnternational Socialism nº 36, Londres, ou-
tono 1987. ·
20 Delas, Jean-Pierre. Le mouvement ouvrier, Paris, Nathan, 1991.
21 Marx, Karl. O Capital, Rio de Janeiro, Zahar, livro I, tomo 2, cap. 1, 1975.
22 Andrade, Elizário. Metamorfoses do capitalismo e da classe operária, in J. Nóvoa (org.),
A História à Deriva, ·Salvador, UFBa, p. 223, 1993.

155
A "CIVILIZAÇÃO DO TEMPO LIVRE"
~

E possível afirmar, portanto, que a "classe trabalhadora, qinda


no final da década de 80, constituía uma percentagem consi-
deravelmente maior da população ativa que nos gloriosos dias dos
partidos socialistas proletários e social-democratas inspirados no
marxismo (... ). Estatisticamente falando, o fim da classe operária
não está à vista "1• Quanto ao desemprego, ele não é uma tendência
da crise: já Marx tinha considerado o "exército industrial de reserva"
como uma condição orgânica para a expansão da produção capita-
lista. Pierre Souyri demonstrou 2 que todo o período de expansão do
pós-guerra esteve baseado num desemprego estrutural inédito na
história do capitalismo, reprimido através do gasto improdutivo do
Estado (corrida armamentista), que esteve na base da tendência para
a inflação galopante e concluiu arrebentando financeiramente os
Estados imperialistas e seus aliados, a burocracia dos Estados
operários, provocando a explosão aberta da crise a partir da década
de 70. O desemprego estrutural foi a locomotiva dos principais
núcleos da acumulação capitalista de pós-guerra: "Nos países capi-
talistas em que assistimos aos maiores aumentos da produtividade
do trabalho -Alemanha e Japão - a classe operária.não' conseguiu
tirar vantagens da rápida expansão e da acumulação de capital. Nos
dois países, a existência de um vasto exército industrial de reserva,
permitiu ao capitalismo conter os salários e o nível de consumo.
Restringindo o consumo e mantendo baixos os salários, esses dois
países conseguiram levar adiante seu equipamento e sua moderni-
zação. No Japão, a produtividade aumentou, na segunda metade da
década de 50, em 55%, mas os salários reais só aumentaram 25%.
Os investimentos brutos desse período se elevaram a 30% do PNB,
a maior percentagem do mundo capitalista "3 •
Para os defensores do "fim da classe operária", a crise não é a
manifestação das contradições acumuladas durante o· período de
expansão, ou seja, a expressão da tendência para a decomposição do
modo de produção capitalista. Ao contrário, em vez de ser a
expressão aberta das tendências destrutivas do capitalismo, sua

157
essência estaria dada pelo fato de as forças produtivas do capitalismo
estarem operando, nas palavras de um social-democrata, uma
"revolução global" (entenda-se bem, uma revolução, não uma con-
tra-revolução): "O elemento da força de mudança é o surgimento de
um grupo de tecnologias avançadas, especialmente as derivadas da
micro-eletrônica e as descobertas da biologia molecular. Esses
elementos estão criando o que se chama sociedade da informação,
pós-industrial ou de serviços, na qual o emprego, os estilos e as
perspectivas de vida, os materiais e outras coisas serão bem dife-
rentes do que são hoje "4 • O já mencionado André Gorz consegue
assim escrever um livro sobre a crise, curiosamente intitulado Os
Caminhos do Paraísos, e defender a idéia de que o desenvolvimento
econômico atual coloca no centro das preocupações a "construção
da sociedade do tempo livre "6 , sendo o desemprego uma mani-
festação dessa tendência. Esta conclusão pode estar ou não baseada
na afirmação do fim da classe operária (no caso de Gorz, está). No
extremo oposto, Jean Lojkine, oriundo do stalinismo, afirma que o
assalariamento generalizado incorpora praticamente todo mundo na
classe operária (sem tomar as elementares precauções que um
Kautsky adotava para não confundir ''assalariados" com "classe
operária") 7 , afirmando simultaneamente que a essência do atual
processo econômico está dada por uma "revolução da informação 11 8,
que garantiria aqt~maticameríte a passagem para uma sociedade não
mais baseada na lei do valor, tornada inoperante dado o fantástico
aumento da produtividade realizado pela "revolução informática".
Nos dois casos, a comum hostilidade à revolução proletária faz
perder de vista o caráter contraditório do processo de produção
capitalista, exacerbado até o paroxismo em períodos de crise. Com
efeito, ao lado do fantástico desemprego, que para os autores
mencionados indicaria a crescente irrelevância do trabalho como
medida de valor, testemunhamos, nos próprios países imperialistas,
um notável aumento da intensidade e até da extensão da jornada de
trabalho. Nos EUA, em 1969 a semana média de trabalho era de 43
horas, e trabalhava-se 4 7, 1 semanas anuais; em 1987, as médias
tinham aumentado para 43, 8 e 48 ,5, respectivamente9 • Esses aumen-
tos são bem. mais notáveis no caso do Japão, que no período da
"automação" testemunhou o surgimento da doença social do karoshi,

158
que mata os trabalhadores pela fadiga. A crescente instabilidade do
emprego facilita a imposição desta crescente superexploração: a
central sindical alemã calculou, para os próximos dez anos, que
devido à chamada "terceirização", apenas 25% dos trabalhadores
serão especializados, empregados nas grandes empresas e regidos
pelas convenções coletivas qe trabalho. Nos países periféricos,
então, o "caminho do paraíso" é a coisa mais parecida com o inferno
já vivida pelo gênero humano: na Índia, por exemplo, em 1993 foi
invadida "uma fábrica de tapetes para libertar 128 crianças menores
de 13 anos, trabalhando de 12 a 16 horas, 7 dias por semana, 52
semanas por ano. A Índia é um país democrático com 55 milhões de
crianças e adolescentes trabalhando assim, com a maior 'jlexibili-
dade '"10. No Brasil, os casos de trabalho escravo não param de
aumentar, e assim por diante.
Nos próprios países imperialistas, a degradação social não se
limita às questões do desemprego, da jornada laboral e do salário,
incluindo também fatores como o corte dos benefícios sociais, fim
do acesso ao ensino e ao sistema público de saúde (e, portanto, a
qualquer sistema de saúde) que permitem afirmar que os EUA vivem
hoje a "maior polarização social de toda a sua história "11 •

É necessário, porém, reconhecer que foi um "papa" do marxismo


quem adiantou os temas que seriam desenvolvidos pelos defensores
do fim da classe operária (ou da transformação de todo mundo em
operário, o que dá na mesma) e da "civilização do tempo livre", até
o paroxismo, ao ponto de transformá-los numa apologia do atual
processo capitalista. Ernest Mandel, em O Capitalismo Tardio, foi
quem indicou que "a força produtiva do indivíduo emancipa-se cada
vez mais do esforr;o fisico e nervoso (alienação de energia) e torna-se
cada vez mais uma função do equipamento técnico ou científico e da
qualificação técnica ou científica. A çonseqüência disso é que as
fronteiras entre tempo de trabalho e tempo livre começam a se tornar
fluidas. O resultado objetivo do trabalho nas empresas e ramos da
indústria mais desenvolvidos tecnicamente torna-se uma função da
atençtio e do interesse concedidos pelo empregado à sua atividade.
A atençtio e o interesse mantêm wna relação inversa à duração do

159
tempo de trabalho e a seu grau de alienação "12 • Uma verdadeira
profecia ...
Não se leva em conta o caráter contraditório do processo de
produção capitalista. Este, ao mesmo tempo em que cria as bases
objetivas para a sua superação por um modo de produção superior
(como afirmam Mandei, Gorz e Lojkine) destrói essas mesmas bases
através da destruição das forças produtivas e do ataque às conquistas
históricas dos explorados. Nos períodos de crise, as tendências
destrutivas se manifestam abertamente, e daí "o discurso que surge
nos países ricos de que será impossível criar os empregos ne-
cessários, sendo preciso então uma refonnulação da educação
baseada no tempo livre. O homem passará a trabalhar muito menos,
só que haverá a mesma proporção de redução salarial. As forças
produtivas já permitiriam uma jornada de trabalho reduzida, mas o
capitalista precisa constantemente valorizar o seu capital (... ).
Fala-se do desaparecimento da classe operária e motiva-se o ope-
rário a abandonar a luta pelo emprego, fazendo com que essa
enorme massa aceite a demissão sem luta. É uma teoria de resig-
nação da classe operária no momento em que ela sofre a pior
ofensiva da sua história "13 • Hoje, mais ainda do que ontem, só a luta
de classe do proletariado poderá dar uma solução progressiva às
monstruosas contradições criadas pelo desenvolvimento capitalista.

Crise e organizações operárias

A última trincheira dos defensores do fim da classe operária não


é filosófica, nem estatística, mas prática: é o declínio da organização
operária, especialmente sindical, mas também política (declínio dos
partidos originários da classe operária) e até cultural, sobretudo nos
países do Primeiro Mundo, que seria o teatro principal da "revolução
da informação". De fato, não há como negar a queda da taxa de
sindicalização em países como a Inglaterra, onde ela passou de 50%
nos anos 60, para 38 % sob o governo Thatcher; ou na França, de
34% em 1955 para 15% em 1988; e até no Japão,onde essa taxa se
situava em 24% em 1987, com tendência declinante 14 • Quanto aos
EUA, "em )975 os sindicatos atingiram um pico de 22.milhões de

160
filiados. A densidade sindical no setor não agrícola era de 28,9%,
ficando abaixo apenas do pico de 32,3% atingido em 1953. Desde
então, os sindicatos perderam 4 milhões de membros. Levando em
conta apenas o setor privado, o movimento sindical está
perigosamente perto daquilo que era antes do New Deal "15 •
Para Gõran Thernborn, "a organização sindical chegou ao seu
ponto culminante ao redor de 1980, salvo nos EUA e no Japão. Nos
anos 80, seu declínio foi maior do que seu crescimento, com uma
taxa decrescente em 11 dos 17 países da OCDE, crescente em 4 e
estável em 2 "16• Therborn vincula esta queda ao declínio da sociedade
industrial (tendencialmente substituída pela pós-industrial) e da
tendência para a proletarização característica dos séculos anteriores.
Chega a vincular esse fenômeno às vitórias da direita neoliberal e à
direitização dos partidos de esquerda europeus, que teriam atingido
seu auge por volta de 1980, depois do que houve "uma ruptura na
tendência ascendente da política de. classe, devido à ruptura da
tendência da época, na história sócio-econômica, à desindustriali-
zação dos países de capitalismo avançado".
Segundo outro autor, "não é possível menosprezar os argumentos
de natureza estrutural que salientam os novos contextos produtivos
ligados à automação e à informática, com seus efeitos sobre as
práticas empresariais e sobre a estrutura social, sobre ·o sistema
político. As sociedades industriais do passado estariam se transfor-
mando em sociedades pós-industriais, ou em sociedades de" serviços,
nas quais a indústria não mais ocuparia um lugar central no
desenvolvimento econômico. Sendo assim, também o conflito capital
versus trabalho, ainda que subsistindo nos setores produtivos tradi-
cionais, perderia a sua centralidade na determinação da mudança
política, do processo de desenvolvimento econômico e da organi-
zação da sociedade"17 •
A equação seria então: menos indústria = menos operários =
menos· sindicato, e é questão de se perguntar se é preciso, não já ser
doutor, mas sequer freqüentar a universidade, para terminar reali-
zando um raciocínio ·tão cretino. Todos os autores citados tiveram
alguma vez alguma coisa a ver com o marxismo, mas seu raciocínio
volta (em nome da pós-modernidade pós-industrial!) mais de dois

161
séculos atrás, bem antes que Marx ensinasse (no Capítulo VI inédito
de O Capital) a não confundir trabalho industrial com trabalho
produtivo (todo trabalho produtor de valor, com independência de
que a mercadoria produzida satisfaça uma necessidade real ou
imaginária). A produção de serviços não é o contrário da produção
capitalista: desvincular "capital-trabalho" de serviços é uma ope-
ração que teria feito corar de vergonha um fisiocrata.
Daí que um fenômeno que acompanha as mudanças na com-
posição da mão-de-obra assalariada, seja a mudança na própria
composição sindical: "O ingresso maciço de trabalhadores não
manuais nos sindicatos, é uma das características mais importantes
do sindicalismo nos anos 80. Em muitas centrais nacionais, o
contingente de funcionários é igual e inclusive superior ao de
operários. Na Inglaterra, por exemplo, os trabalhadores não
manuais constituíam 40 %do total de sindicalizados em 1979, contra
37% dez anos antes e 23 % em 1948. Para finais do século, seu
número será provavelmente superior ao de trabalhadores manuais.
Esta tendência é geral e prevalece em todos os países industriais "18 •
Isto não anula as quedas nas taxas de sindicalização: simples-
mente indica que as causas desse fenômeno devem ser procuradas
em outra parte. Sobretudo porque não há como duvidar de consta-
tações como as de Ugo Pipitone: "&iste a sensação de que os
sindicatos não se encontram diante de uma crise surgida de uma
etapa conjuntural de relações de força desfavoráveis, mas no meio
de um terremoto social que está mudando o rosto do capitalismo e
impõe uma séria reflexão, não somente sobre as estratégias, mas
também sobre os próprios fundamentos organizativos e sobre os
ideais do sindicalismo "19 •
Outros pesquisadores, mais honestos mas talvez igualmente
confusos, chegam a se perguntar acerca do paradoxo de que esta
crise da organização operária, ou crise do sindicalismo, se produza
na mesma década que testemunhou explosões operárias sem paralelo
no pós-guerra e, às vezes, em toda a história do movimento operário,
com a formação de n9vos sindicatos e centrais sindicais, e de todo
tipo de organização operária (algumas com características reconheci-
damente "soviéticas") em países como Brasil, Coréia do Sul, Polônia

162
e África do Sul, para citar só os exemplos mais conhecidos. Quanto
ao declínio do sindicalismo na Europa e nos EUA, apresentado como
o resultado natural da "tendência sociológica" do período, os nossos
doutores deveriam levar em conta, pelo menos, que ele veio pre-
cedido, na década de 80, das piores derrotas que esse sindicalismo
experimentou em todo o pós-guerra: a derrota da greve dos
aeroviários nos EUA no início do mandato Reagan, a derrota da
greve dos mineiros ingleses diante do governo Thatcher em 1984-85,
a derrota da greve de 35 dias na maior empresa italiana (a Fiat) em
1980, com 23 mil demissões, que "concluiu o ciclo histórico de lutas
operárias que tinha começado no outono de 1969"2°, também neste
caso citando apenas os exemplos mais conhecidos.
Estas derrotas, por sua vez, não se vinculam, como pensa
Thernborn, ao fim de uma política de classe. A orientação política
desse sindicalismo vinha marcada pela sua participação em todo tipo
de conluios patronais-governamentais de longa data, e muito espe-
cialmente a partir da cooptação desses sindicatos e centrais para o
esforço de reconstrução nacional do imediato pós-guerra, e isto, quer
a cor política do sindicato fosse stalinista, social-democrata ou
declaradamente "pelega". Este processo alicerçou-se na formação
de uma burocracia sindical cujo nível de diferenciação social (de
renda) e corrupção não tinham sequer sido sonhados ,por Lê~in
quando estudou o problema da formação da "aristocracia operária"
nos países da Europa ocidental, nas primeiras décadas do século.

Nos EUA, o sindicalismo contemporâneo origina-se na "virada


macarthista" (guerra fria), que pôs fim "ao período em que a luta
operária atingiu seu mais alto nível absoluto, entre 1933 e 1947"21 ,
período no qual se consolida uma burocracia sindical que recebe
salários entre 10 e 20 vezes superiores às médias das respectivas
categorias22 • Na Alemanha, a central sindical (DGB) foi criada em
1949. sob a direta custódia e supervisão das forças de ocupação
norte-americanas. O mesmo acontece, e de maneira mais aberta, no
Japão, 'Onde a central sindical (Sohyo) foi criada em 1945, e
aproveitou o recuo da onda de greves de 1945-50 para expulsar o
PC e o PS das suas fileiras (eles seriam reincorporados posterior-
mente, quanao foi necessário enfrentar novas ondas de agitação

163
operária). Os sindicatos japoneses "se integraram cada vez mais na
estrutura supervisora da companhia, transformando-se em sócios do
capital e cooperando com a iniciativa privada na tentativa japonesa
de concorrer nos mercados internacionais "23 • A direção sindical
japonesa, que inventou a incrível figura da "greve simbólica",
fornece 16, 2 % dos membros dos diretórios das empresas 24 , que estão
entre as maiores do planeta. Que alguns esquerdistas falem do
carinho "natural" ou "espontâneo" do operário japonês pelo seu
patrão, revela apenas a imensidão da sua ignorância. Uma notícia
recente, vinda justamente do Japão, revela a verdadeira raiz da crise
do sindicalismo (que passou de 30% a 24% na última década): "Não
há dúvidas de que a maioria dos trabalhadores sente que os
sindicatos não correspondem às suas expectativas. Os salários não
aumentaram nos últimos anos e a maioria das pessoas acha que não
vale a pena pagar as elevadas mensalidades sindicais "25 •
Estávamos falando do sindicalismo nos países que ocupam as
posições centrais e sustentam o sistema capitalista mundial, na atual
fase do imperialismo. Se levarmos em conta os dados acima expos-
tos, obviamente que junto a outros, fica difícil aceitar o raciocínio
de inúmeros autores para os quais no processo do pós-guerra teria
se verificado a integração da classe operária no sistema capitalista.
Tão difícil quanto identificar a atual crise do sindicalismo (como faz
Lojkine, depois de expor a curiosa teoria de que a ."revolução da
informação" transforma todos os assalariados em operários) com
uma "crise de identidade" da classe operária. Identificar a crise de
sindicatos que adquiriram um tal grau de independência com relação
às suas bases, e um tal grau de integração ao Estado patronal, com
a crise ou, ainda pior, com o fim da classe operária é, no mínimo,
um erro monumental. A trajetória desses sindicatos ilustra com
maior força ainda a consideração feita por Trotsky a respeito dos
sindicatos ingleses no período de entre-guerras: "Os sindicatos
surgiram na época de expansão do capitalismo. Sua tarefa foi elevar
o nível material e cultural da classe operária e ampliar os seus
direitos políticos, o que lhes deu uma extraordinária autoridade
entre os trabalhadores. O declínio do capitalismo inglês, no contexto
do declínio. do capitalismo internacional, é a razão obJ.etiva que
determinou a evolução refom1ista dos sindicatos. O capitalismo só

164
poderia sobreviver se rebaixasse consideravelmente o nível de vida
da classe operária. Nessa situação os sindicatos deviam optar: ou
se transformavam em organizações revolucionárias ou se conveniam
em agentes do capitalismo, encarregados de fazer possível a inten-
sificação da exploração dos trabalhadores. A burocracia sindical,
que tinha resolvido satisfatoriamente seus próprios problemas so-
ciais, optou pela segunda alternativa. Com todo o prestígio acumu-
lado pelos sindicatos, levantou uma barreira contra a revolução
socialista, contra todo intento dos trabalhadores de resistir aos
ataques do capital e da reação "26 •
A integração dos sindicatos ao Estado decorre dessa tendência
histórica, e tem razão Leo Panitch quando, analisando os autores que
se ocuparam da tendência contemporânea para um "Estado forte",
queixou-se de que "o papel central da integração sindical na rede
dos aparelhos de orientação decisórios (policy-making), que vincu-
lam o executivo e a burocracia estatal à administração empresarial
privada, tem sido ignorado ou simplesmente tratado en passant,
como aspecto subsidiário do desenvolvimento geral do Estado inter-
vencionista no capitalismo monopolista "27 • Nos países atrasados, a
frequente cooptação das burocracias sindicais por ditaduras mili-
tares, ou cívico-militares, levou essa tendência até as últimas con-
seqüências.

A crise sindical, que os dirigentes vivem como um "terremoto",


não decorre de uma mudança tecnológica (ou sociológica, decorrente
daquela) mas da própria crise; do capitalismo, que leva a exigir às
direções sindicais que levem até o fim seu papel de disciplinadores
do movimento operário diante da ofensiva do capital. A combinação
de explosões operárias-crise do sindicalismo se explica nos termos
já descritos pelo Programa de Transição: "Em todos os países uma
profunda angústia apodera-se do proletariado. Massas de milhões
de homens reiniciam a vi{l revolucionária. Mas, cada vez que isso
acontece, chocam-se com os seus próprios aparelhos burocráticos
conservadores". Ma,s a própria crise do capital explica o outro
grande paradoxo: que em meio à crise do movimento operário
proclamada por tantos, com cada vez maior freqüência os dirigentes
sindicais sejain chamados a exercer responsabilidades governamen-

165
tais ou, como já constatou o Programa citado: "Em tempo de guerra
ou de revolução, quando a situação da burguesia se torna particu-
larmente difícil, os dirigentes sindicais tornam-se geralmente minis-
tros burgueses "28 • Hoje, caberia acrescentar que a crise
aprofundou-se ao ponto de exigir que se tornem diretamente titulares
do poder executivo (Walesa, Lula, etc.).
Como disse um alto dirigente patronal brasileiro, os sindicatos
optaram por "influir nos rumos e políticas da modernização, em
lugar de a elas se opor"29 , isto é, tentar obter migalhas dentro das
tentativas anti-operárias da burguesia para resolver a crise do capi-
talismo (a assim chamada "modernização"). Para a classe operária,
a única possibilidade de tirar suas organizações da crise para poder
"se opor", consiste em mudar a sua estrutura e a sua direção para
pô-las à altura da tarefa. Mas esta tarefa, que deve ser realizada em
cada país, tem um conteúdo tão internacional quanto a ofensiva
capitalista que enfrenta: "O movimento operário não vai se recom-
por, em temws de perspectivas revolucionárias, através de um
desenvolvimento independente em cada país, mas pelo desen-
volvimento da experiência mundial como um todo "3º.
Mais do que há meio século atrás, é válida a premissa do
programa da IV Internacion~l: "A situação política mundial no seu
conjunto caracteriza-se antes de mais nada pela crise histórica da
direçiio do proletariado (... ). A crise histórica da humanidade
reduz-se à crise da direção revolucionária".

NOTAS

1 Hobsbawm, E.J.Folha de S.Paulo, 26 de maio de 1991.


2 Souyri, Pierre. La dynamique du capitalisme au XX.eme siecle, Paris, Payot, 1983.
3 Jeffries, Peter. La crise du capitalisme d'apres guerre, La Verité nº 529, Paris, junho de
1965.
4 King, Alexander. La primera revolución global, El Socialismo dei Futuro nº 7, Madri,
julho de 1993.
5 Gorz, André. Les chemins du paradis, Paris, Galilée, 1983.
6 Gorz, André: Bâtir la civilization du temps libéré, Le Monde Diplomatique, Paris, março
de 1993.

166
7 Lojkine, Jean. op. cit.
8 Lojkine, Jean. La révolurion informarionnelle, Paris, PUF, 1992.

9 Thernborn, Gõran. El futuro dei trabajo y las conseéuencias de la ausencia de trabajo, El


Socialismo dei Futuro, cít.

10 Folha de S.Paulo, 18 de abril de 1994.

11 Kloby, Jerry. The growing divide: class polarizating in the 1980's, Monrhly Review, vol.
39, nº 4, Nova Iorque, setembro de 1989.

12 Mandei, Ernest. O capitalismo tardio, São Paulo, Abril, p. 406, 1982.


13 Altamira, Jorge. O fracasso da nova ordem mundial, in O. Coggiola (org.), História e
crise contemporânea, São Paulo, Pulsar, p. 108, 1994.

14 Delas, Jean-Pierra. op. cit.


15 Brody, David. Thefuture ofthe labor movement in historical perspecrive, Dissent, Nova
Iorque, inverno 1994.
16 Thernborn, Gõran. Peripecias de la modernídad, cit., p. 67.
17 Rodrigues, Leôncio M. O futuro do sin.ficalismo, São Paulo, Nobel, p. 33, 1992.

18 Spyropoulos, Georges. Sindicalismo y sociedad, Problemas actuales dei sindicalismo en


el mundo, Buenos Aires, Humanitas, p. 67, 1991.

19 Pipitone, Ugo. El capitalismo que cambia, México, ERA, p. 99, 1986.


20 lbidem,p.111.

21 Tronti, Mario. Operários e capital, Processo de trabalho e estratégias. de classe, Rio de


Janeiro, Zahar, p. 147, 1982. ·

22 Cf. Pierre Broué. Le mouvemenr syndical aux États-unis, Grenoble, IEP, 1973.
23 Halliday, J. e Me Cormack, G. El nuevo imperíalismojapones, Madri, Siglo XXI,
p. 223, 1975.
24 Delas, Jean Pierre. op. cit. , p.81
25 A decadência dos sindicatos no Japão, Interação nº 9, São Paulo, abril 1994.

26 Trotsky, Leon. Los sindicatos ingleses, Los sindicatos en la época de la decadência impe-
rialista, Barcelona, Rojas, p. 23, 1978.

27 Panitch, Leo. Os sindicatos e o estado no capitalismo avançado, Revista de Cultura &


Política nº 5-6, São Paulo, julho de 1981.

28 Trotsky, Leon. Programa de transição, Lisboa, Antídoto, pp. 23-30, 1978.

29 Reis Velloso, João Paulo dos. O futuro do sindicalismo, op. cit., p. 9.


30 Altamira, Jorge. La crisis mundial, En Defensa dei Marxismo nº 4, Buenos Aires, setem-
bro de 1992. •

167

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