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Artigo Vainfas - Estudos Historicos II
Artigo Vainfas - Estudos Historicos II
Ronaldo Vainfas*
Na produção historiográfica brasileira das últimas décadas, um lugar especial cabe, sem
dúvida, à recente obra de Laura de Mello e Souza, O diabo e a Terra de Santa Cruz1, responsável
por uma das mais notáveis incursões de nossa historiografia no campo das mentalidades. Tendo
por objetivo específico a feitiçaria e as práticas mágicas no Brasil dos séculos XVII e XVIII,
examinadas a partir de fontes eclesiásticas e inquisitoriais em boa parte inéditas, nossa autora
ilumina o cotidiano da gente simples da Colônia, seus desejos e angústias, a agonia de uma
sobrevivência sempre difícil, seus conflitos, seus modos de sentir e de pensar, Os atores da
narrativa são mulheres e homens humildes, escravos, forros ou homens livres, aprisionados ou
deserdados na sociedade colonial escravista. Gente cuja religiosidade híbrida e heterodoxa, a
impregnar os mínimos detalhes do dia-a-dia, iria estimular a ação debastadora da Inquisição
portuguesa, preocupada não só com o suposto judaísmo dos cristãos-novos, mas com a
persistência da cultura e moralidades populares infensas .aos dogmas católicos. Religiosidade
que, na Colônia, seria ainda mesclada de crenças e costumes ameríndios e africanos, sincretismo
resultante da própria situação colonial. Debruçando-se sobre homens e mulheres infernais -
infernais por sua origem, posição social e modo de viver -, O diabo resgata nosso imaginário
passado, que não estranha aos olhos do presente, marcando decisivamente os estudos da história
das mentalidades no Brasil.
Atribuir certo pioneirismo à obra de Laura de Mello e Souza não implica, porém, negar a
importância de estudos que, voltados também para o período colonial, tangenciaram a
problemática das mentalidades em maior ou menor grau. Citemos, somente à guisa de exemplo,
as obras de Carlos Guilherme Mota, Nordeste 18172, e de Anita Novinsky, Cristãos-novos na
Bahia3, o primeiro voltado para as formas de consciência emergentes na vida revolucionária de
1817, e a segunda, para a perseguição dos judaizantes no Brasil do século XVII Carlos
Guilherme nos mostra com brilho o modo pelo qual as idéias de liberdade e autonomia surgidas
no movimento pernambucano se viram misturadas, e não raro cederam espaço, a velhos
preconceitos oriundos do colonialismo e da escravidão - o que muito contribuiu para a derrota
revolucionária naquela conjuntura. Anita Novinsky resgata com igual esmero, em meio aos
processos contra judaizantes na Bahia seiscentista, as angústias do cristão-novo, essa minoria de
homens e mulheres divididos, católicos e judeus a um só tempo ou, como diria Goffman4
fragmentados em suas identidades. Mas ambos os trabalhos citados partem de pressupostos
diferentes: a crise do antigo sistema colonial e a perseguição dos pretensos judeus pela Inquisição
*
Ronaldo Vainfas é professor do Departamento de História da UFF e autor de Ideologia e escravidão, entre outros
trabalhos. Atualmente redige tese de doutorado na USP sobre moral e sexualidade no Brasil colonial.
1
São Paulo, Companhia das Letras, 1986.
2
São Paulo, Perspectiva, 1972.
3
Idem.
4
GOFFMAN, E. Estigma; notas sobre a manipulação da identidade deteriorada 4a ed., Zahar, 1982 (Edição original
de 1963).
5
3a ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1977.
6
Formação do Brasil contemporâneo. 17a ed. São Paulo, Brasiliense, 1981 (1a ed. 1942).
7
Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 3a ed. São Paulo, Hucitec, 1979.
8
Desclassificados do ouro; a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro, Graal, 1983.
9
O queijo e os vermes; o cotidiano de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo, Companhia das Letras,
1987 (edição original italiana de 1976)
10
Montaillou, Village Occitan (de 1294 à 1324). Paris, Gallimard, 1985 (edição original de 1975).
11
Paris, Gallimard, 1970 (Tradução brasileira Hucitec, 1987).
12
A sair pela Editora Campus no Próximo ano.
13
Ver MOTT, Luis. “Os pecados da família na Bahia de Todos os Santos.” In: Centro de Estudos Baianos. 1982
(baseado na visita ou devassa de 1813); LODOÑO, Fernando Torres “Visita pastoral de Vila Maria do Paraguai em
1785”. São Paulo, mimeo, 1986; FIGUEIREDO, L. R. de A. “O avesso da memória; estudo do papel, participação e
condição social da mulher no século XVIII mineiro". Relatório final de pesquisa apresentado à Fundação Carlos
Chagas. São Paulo, 1984; Laura de Mello e Souza também publicou “As devassas eclesiásticas da Arquidiocese de
Mariana: fonte primária para a história das mentalidades" in: Anais do Museu Paulista, São Paulo, 1984, tomo
XXXIII, p. 65-73. Mary Del Priore também trabalhou com visitas Pastorais na capitania de São Paulo no século
XVIII em "Deus dá licença ao diabo: a contravenção nas festas religiosas e igrejas Paulistas no século XVIII, in:
VAINFAS. R História e sexualidade no Brasil. Rio de janeiro Graal, 1986; Caio César Boschi, enfim apresentou
comunicação sobre as visitas mineiras no século XVIII no recente congresso sobre a Inquisição realizado em Lisboa,
fevereiro de 1987.
14
A visitação do Pará foi descoberta e publicada por LAPA, José R. Amaral. Livro de visitação do Santo ofício da
Inquisição ao estado do Grão-Pará (1763. -1769). Petrópolis, Vozes, 1978.
15
Rico em informações sobre o aparelho inquisitorial é o livro de SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição portuguesa e a
sociedade colonial. São Paulo, Atica, 1978.
16
BENNASSAR, Bartolomé. (org.). L’Inquisition espagnole (XVe.-XIXe. siècles). Paris, Marabout, 1982.
17
DELUMEAU, Jean. Le péché et la Peur; La culpabilization en Occident (XIIIe.-XVIIIe. siècles). Paris, Fayard,
1983.
18
Veja-se, entre outros, "A homossexualidade. uma variável esquecida pela demografia histórica...”. Comunicação
apresentada no III Encontro da ABEP, Vitória, 1982- "Relações raciais entre homossexuais no Brasil colonial" in:
Revista Brasileira de História, vol. 5, n. 10, 1985, P. 99-122; "Escravidão e homossexualidade" in VAINFAS, R.
op. cit., P. 19-401- "Inquisição e homossexualidade”. Comunicação apresentada ao I Congresso Luso-brasileiro
sobre a Inquisição. Lisboa, fev. 1987. Cito, ainda, NOVINSKY, Ilana. "Heresia, mulher e sexualidade - algumas
notas sobre o Nordeste brasileiro nos séculos XVI e XVIV in: BRUSCHINI, M. C. A. e outros, Vivência. São Paulo,
Brasiliense/Fundação Carlos Chagas, 1980, p. 227-56.
19
Cito, entre outros, a tese de Lana Lage da Gama Lima, ora em fase de redação, sobre a moral e o clero na Colônia,
baseada em processos de solicitação do Tribunal de Lisboa; alguns trabalhos de minha autoria: "Moralidades do
trópico: notas sobre casamento, celibato e fornicação no imaginário do Brasil colônia". Comunicação apresentada no
I Congresso Luso-brasileiro sobre a Inquisição. Lisboa, fev. 1987; "Sodomia, mulheres e Inquisição: notas sobre a
sexualidade e homossexualismo feminino no Brasil colonial". Comunicação apresentada no I Congresso... São
Paulo, maio de 1987; e muito marcada por O diabo, a tese recém-apresentada na pós-graduação em ciências sociais
da Universidade Federal da Bahia por Lígia Belini (sob a orientação de Luiz Mott). A coisa obscura: mulher,
sodomia e Inquisição no Brasil colonial. Salvador, agosto de 1987.