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MEMORIA E IDENTIDADE Michael Pollak nasceu em Viena, Austria, em 1948, € morres em Paris em 1992. Radicado na Franca, formou-se em sociologia e trabalhou como pesquisador do Centre National de la Re- cherche Scientifique — CNRS. Seu interesse aca- dénico, voltado de inicio para as relacées entre politica e ciéncias'sociais, tema de sua tese de doutorado orientada por Pierre Bowdieu e de- (fendida na Ecole Pratique des Hautes Etudesem 1975, estendau-se a diversos outros campos de pesquisa, que confluiam para uma reflexéo teb- rica sobre o problema da identidade social em situagdes limites, Entre seus itltimos trabalhos incluem-se um estudo sobre mulheres sobrevi- ventes dos campos de concentragao publicado sob o titelo L'expétience concentrationnaire: es- sai sur Je maintien de I"identité sociale (Paris, Editions Metailié, 1990), e uma pesquisa sobre a Aids (Les homosexuels face au SIDA). Pollak esteve no Brasil entre outubro e de- zembro de 1987 como professor visitante do CPDOC e do PPGAS do Museu Nacional. Na ocasiao concedes uma entrevista sobre a Aids a Akira Alves de Abreu eAspasia Camargo publi- cado em Ciéncia Hoje, vol 7, n?41 (abr. 1988). Proferitt também, no CPDOC, a conferéncia aqui transcrita, que ven se somar a seu artigo “Meméria, esquecimento, siléncio", publicada em Estudos Historicos 3 (1989). Prestamos uma homenagem péstuma aeste grande te das ciéncias sociais na Franca, SOCIAL Michael Pollak ratarei aqui do problema da ligagio I entre meméria e identidade social, mais especificamente no Ambito das hist6- rias de vida, ou daquilo que hoje, como nova 4rea de pesquisa, se chama de hist6ria oral. Ultimamente tem aparecido certo ni- mero de publicagdes que dizem respeito, sob aspectos relativamente diferentes, ora ao problema da meméria — e refiro-me apenas a abordagem histérica — ora ao problema da identidade. Para falar apenas da Franga, a ultima obra de Fernand Braudel foi precisamente um livro sobre a identidade deste pais. Neste caso, é claro, predominava a preocu- pago com os conceitos de identidade e de construgdo, na longa duragéo, de uma identidade nacional. No que diz respeito 4 memé6ria, penso sobretudo no livro de Pierre Nora, Les lieux de la mémoire, que € uma tentativa de encontrar uma metodo- logia para apreender, nos vestigios da me- méria, aquilo que pode relaciond-los, prin- cipalmente, mas nao exclusivamente, com a meméria politica. Finalmente, no caso Nota: Esta conferéncia foi transcrita ¢ traduzida por Monique Augras. A edicSo é de Dora Rocha. Estudos Historic: Rio de Janeiro, vol. 5, n, 10, 1992, p. 200-212. MEMORIA E IDENTIDADE SOCIAL 201 das diversas pesquisas de hist6ria oral, que utilizam entrevistas, sobretudo entrevistas de histéria de vida, € Sbvio que o que se recolhe sao memérias individuais, ou, se for 0 caso de entrevistas de grupo, memé- rias mais coletivas, e o problema ai é saber como interpretar esse material. Se levarmos em conta certo ntimero de conceitos usados freqiientemente na histé- ria da Franca — mas € claro que eu poderia me referir a qualquer outro pais -, hé algu- mas designagics, atribuidas a determina- dos periodos, que aludem dirctamente a fatos de meméria, muito mais do que a acontecimentos ou fatos histéricos nio tra- balhados por memérias. Por exemplo, quando se fala nos “‘anos sombrios”, para designar a época de Vichy, ou quando se fala nos “‘trinta gloriosos”, que sao os trinta anos posteriores a 1945, essas expressoes remetem mais a nocGes de memoria, ou Seja, a percepgées da realidade, do que a factualidade positivista subjacente a tais percepcoes. A priori, a meméria parece ser um fe- némeno individual, algo relativamente in- timo, proprio da pessoa. Mas Maurice Halbwachs, nos anos 20-30, jé havia subli- nhado que a meméria deve ser entendida também, ou sobretudo, como um fenéme- no coletivo e social, ou seja, como um fenémeno construido coletivamente e sub- metido a flutuagées, transformagoes, mu- dangas constantes. Se destacamos essa caracteristica flu- tuante, mut4vel, da meméria, tanto indivi- dual quanto coletiva, devemos lembrar também que na maioria das memérias existem marcos ou pontos relativamente invariantes, imutdveis. Todos os que jé re- alizaram entrevistas de histéria de vida percebem que no decorrer de uma entrevis- ta muito longa, em que a ordem cronolégi- ca no esta sendo necessariamente obede- cida, em que os entrevistados voltam va- rias vezes aos mesmos acontecimentos, hé nessas voltas a determinados periodos da vida, ou a certos fatos, algo de invariante. E como se, numa histéria de vida indivi- dual - mas isso acontece igualmente em memérias_construidas coletivamente — houvesse elementos irredutiveis, em que 0 trabalho de solidificagaéo da meméria foi tao importante que impossibilitou a ocor- réncia de mudangas. Em certo sentido, de- terninado mimero de elementos tornam-se realidade, passam a fazer parte da propria esséncia da pessoa, muito embora outros tantos acontecimentos e fatos possam se modificarem funcdo dos interlocutores, ou em fungao do movimento da fala. Quais s4o, portanto, os elementos cons- titutivos da meméria, individual ou coleti- va? Em primeiro lugar, séo os aconteci- mentos vividos pessoalinente. Em segun- do lugar, sao 0s acontecimentos que eu chamaria de “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade a qual a pessoa se sente per- tencer. So acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imagindrio, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossivel que ela consiga saber se participou ou nao. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vém se juntar todos os eventos que nao se situam dentro do espa- go-tempo de uma pessoa ou de um grupo. E perfeitamente possivel que, por meio da socializagao politica, ou da socializagéo histérica, ocorra um fendmeno de projegao ou de identificagao com determinado pas- sado, tao forte que podemos falar numa meméria quase que herdada. De fato-eeu gostaria de remeter ai ao livro de Philippe Joutard sobre os camisards -, podem existir acontecimentos regionais que trau- matizaram tanto, marcaram tanto uma re- gido ou um grupo, que sua meméria pode ser transmitida ao longo dos séculos com altissimo grau de identificagao. Além desses acontecimentos, a mem6- ria € constituida por pessoas, personagens. Aqui também podemos aplicar 0 mesmo. 202 esquema, falar de personagens realmente encontradas no decorrer da vida, de perso- nagens freqiientadas por tabela, indireta- mente, mas que, por assim dizer, se trans- formaram quase que em conhccidas, e ain- da de personagens que nao pertenceram necessariamente ao espaco-tempo da pes- soa. Por exemplo, no caso da Franga, nao é preciso ter vivido na época do general De Gaulle para senti-lo como um contempo- raneo. Além dos acontecimentos ¢ das perso- nagens, podemos finalmente arrolar os lu- gares. Existem lugares da memoria, luga- res particularmente ligados a uma lem- branga, que pode ser uma lembranga pes- soal, mas também pode nao ter apoio no tempo cronolégico. Pode ser, porexemplo, um lugar de férias na infancia, que perma- neceu muito forte na memoria da pessoa, muito marcante, independentemente da data real em que a vivéncia se deu. Na meméria mais publica, nos aspectos mais publicos da pessoa, pode haver lugares de apoio da meméria, que sao os lugares de comemorag4o. Os monumentos aos mor- tos, por exemplo, podem servir de base a uma relembranga de um periodo que a pessoa viveu por ela mesma, ou de um periodo vivido por tabela. Para a minha geracao na Europa este é 0 caso da Segun- da Guerra Mundial. Locais muito longinquos, fora do espa- Go-tempo da vida de uma pessoa, podem constituirlugar importante para a meméria do grupo, e por conseguinte da propria pessoa, seja por tabela, seja por pertenci- mento a esse grupo. Aqui estou me referin- do ao exemplo de certos europeus com origens nas col6nias. A meméria da Africa, seja dos Camarées ou do Congo, pode fazer parte da heranga da familia com tanta forga que se transforma praticamente em sentimento de pertencimento. Outro exem- plo seria o da segunda geracao dos pieds noirs na Franga, que na verdade nem che- garam a nascer na Argélia, mas entre os ESTUDOS HISTORICOS - 1992/10 quais a lembranga argelina foi mantida de tal maneira que o lugar se tomou formador da meméria. Esses trés critérios, acontecimentos, personagens e lugares, conhecidos direta ou indiretamente, podem obviamente dizer tespeito a acontecimentos, personagens e lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos. Mas podese tratartambém da projegao de outros eventos. E.0 caso, na Franca, da confusSo entre fatos ligados a uma ou outra guerra. A Primeira Guerra Mundial deixou marcas muito fortes em certas regiGes, porcausa do grande nimero de mortos. Ficou gravada a guerra que foi mais devastadora, e freqiientemente os mortos da Segunda Guerra foram assimi- lados aos da Primeira. Em certas regies, as duas viraram uma s6, quase que uma grande guerra. O que ocorre nesses casos sao portanto transferéncias, projegdes. Numa série de entrevistas que fizemos sobre a guerra na Normandia, que foi invadida em 1940 pelas tropas alemis e foi a primeira a ser liberta- da, encontramos pessoas que, na época do fato, deviam ter por volta de 15, 16, 17 anos, e se lembravam dos soldados alemaes com capacetes pontudos (casques @ pointe). Ora, os capacetes pontudos sao tipicamente pmussianos, do tempo da Primeira Guerra Mundial, e foram usados até 1916, 1917. Era portanto uma transferéncia caracteris- tica, a partir da meméria dos pais, da ocu- pacao alemé da Alsdciae Lorena na Primei- ra Guerra, quando os soldados alemaes eram apelidados de “capacetes pontudos”, para a Segunda Guerra. Uma transferéncia por heranca, por assim dizer. Além dessas diversas projegbes, que po- dem ocorrer em relagdo a eventos, lugares € personagens, hd também o problema dos vestigios datados da memoria, ou seja, aquilo que fica gravado como data precisa de um acontecumento. Em fungao da expe- riéncia de uma pessoa, de sua inscrigao na vida publica, as datas da vida privada e da MEMORIA E IDENTIDADE SOCIAL vida ptblica vao ser ora assimiladas, ora estritamente separadas, ora vao faltar no relato ou na biografia. Quando fizemos en- trevistas com donas de casa da Nonnandia que passaram pela guerra, pela Ocupagao, pela Libertago etc., as datas precisas que pudemos identificar em seus relatos eram as da vida familiar: nascimento dos filhos, até mesmo datas muito precisas de nasci- mento de todos os primos, todas as primas, todos os sobrinhos e sobrinhas. Mas havia uma nitida imprecisdo em relagao as datas publicas, ligadas a vida politica. No extremo oposto, s6 para marcar a polaridade, se fizermos entrevistas com personagens ptiblicas, a vida familiar, a vida privada, vai quase que desaparecer do relato. Iremos nos deparar com a recons- trugdo politica da biografia, e as datas pu- blicas quase que se tornam datas privadas. E claro que nio podemos interpretar isso exclusivamente como uma espécie de so- bre-construgao politica da personagem. Pode ocorrer de fato que as coagées da vida publica, como por exemploo tempo dispo- nivel, levem uma pessoa, a partir de um certo momento de sua vida, a reduzir-se praticamente 4 personagem publica, a re- presentacdo dessa personagem. Nao se de- ve portanto considerar esses aspectos co- mo indicadores de dissimulagao ou falsifi- cagao do relato. O que importa é saber qual € a ligagao real disso com a construgao da personagem. Sobretudo em relagdo a datas piblicas, observam-se claros fendmenos de transfe- réncia que As vezcs sdo até, porassim dizer, sancionados legalmente. No caso do fim da guerra, analisamos as comemoragoes na Franga, isto é, usamos como indicadores empiricos as praticas de comemoragao, em vez de nos apoiarinos nas mem6rias indi- viduais. Observamos em que dias do anoe de que maneira os habitantes de pequenas aldeias comemoravam o fim da guerra. Nesse caso também pudemos verificar, na maior parte das regiGes francesas, que, em- 203 bora haja datas oficiais relativas ao fim da Primeira Guerra Mundial, dia 11 de no- vembro, e da Segunda Guerra, dia 8 de maio, na pratica, quase que espontanea e automaticamente, as populagGes sé guar- davam uma tnica data, 0 11 de novembro. O 8 de maio era claramente identificado como um feriado qualquer, como um do- mingo, enquanto no 11 de novembro reali- zavam-se comemoragées duplas, alusivas a ambas as guenas. As memoérias indivi- duais € a atuagao das associagdes de ex- combatentes juntavam-se pata atribuir 4 Primeira Guerra um peso maior para a histéria da Franga do que a Segunda, atra- vés de uma memoria mais traumiatica, li- gada ao numero de vitimas. Outro fator que atua nessa transferéncia do 8 de maio para o 11 de novembro é simplesmente a real importancia histérica das respectivas datas para determninada re- gido. Podemos ver que, por assim dizer, a mem6ria pode “ganhar’” da cronologia ofi- cial. Sabe-se que a Franca foi libertada por etapas. Em conseqiiéncia, a data da vivén- cia da Libertacdo e do fim da guerra nao € a mesma para todos. O 8 de maio é uma data longinqua, porque € muito posterior 4 da Libertagao de Paris. O grande momento de alegria popular nao é 1945, nao €0 8 de maio, e sim a segunda metade do ano de 1944. A rigor, pode-se dizer que, além da transferéncia entre datas oficiais, h4 tam- bém o predom{nio da mem6ria sobre de- terminada cronologia politica, ainda que esta Ultima esteja mais fortemente investi- da pela ret6rica, até mesmo pela reconstru- Gao historiogrifica. Depois desta curta introdugéo, que mostra os diferentes elementos da mem6- ria, bem como os fenédmenos de projecio e transferéncia que podem ocorrer dentro da organizagao da mem6ria individual ou coletiva, j4 temos uma primeira caracteri- zaGao, aproximada, do fenédmeno da me- moria.A memoria é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. 204 Ameméria é, em parte, herdada, nao se tefere apenas 4 vida fisica da pessoa. A meméria também sofre flutuagSes que sao fungao do momento em que ela € articula- da, em que ela estd sendo expressa. As Preocupagées do momento constituemum elemento de estruturagao da meménia. Isso € verdade também em relagdo 4 meméria coletiva, ainda que esta seja bem mais organizada. Todos sabem que até as datas Oficiais séo fortemente estruturadas do ponto de vista politico. Quando se procura enquadrar a meméria nacional por meio de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, h4 muitas vezes proble- mas de luta politica. A meméria organiza- dissima, que €é a meméria nacional, cons- titui um objeto de disputa importante, e sao comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vao ser grava- dos na meméria de um povo. Esse ultimo elemento da meméria — a sua organizagao em fungao das preocupa- ges pessoais e politicas do momento — mostra que a meméria é um fendmeno construido. Quando falo em construcao, em nivel individual, quero dizer que os modos de construgéo podem tanto ser conscientes como inconscientes. O que a mem6ria individual grava, recalca, exclui, relembra, € evidentemente 0 resultado de um verdadeiro trabalho de organizagao. Se podemos dizer que, em todos os niveis, a memoria € um fenémeno cons- truido social e individualmente, quando se trata da memGria herdada, podemos tam- bém dizer que hd uma ligacdo fenomeno- légica muito estreita entre a meméria e 0 sentimento de identidade. Aqui 0 senti- mento de identidade est4 sendo tomado no seu sentido mais superficial, mas que nos basta no momento, que € 0 sentido da imagem de si, para sie pa 6, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela propria, a imagem que ela constrdi e apresenta aos outros e a si pripria, para acreditar na sua ESTUDOS HISTORICOS - 1992/10 propria representagdo, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros. Nessa construgao da identidade — e af recorro A literatura da psicologia social, e, em parte, da psicandlise — ha trés elemen- tos essenciais. Hi a unidade fisica, ou seja, © sentimento de ter fronteiras fisicas, no caso do corpo da pessoa, ou fronteiras de pertencimento ao grupo, no caso de um coletivo; h4 a continuidade dentro do tem- Po, no sentido fisico da palavra, mas tam- bém no sentido moral e psicolégico; final- mente, bi o sentimento de coeréncia, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um individuo sao efetivamente unificados. De tal modo isso é importante que, se houver forte ruptura desse senti- mento de unidade ou de continuidade, po- demos observar fenémenos patoldgicos. Podemos portando dizer que a meméria é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante dosentimentode continu idade e de coeréncia de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrugao de si. Se assimilamos aqui a identidade social a imagem de si, para si e para os outros, hd um elemento dessas definigdes que neces- sariamente escapa ao individuo e, por ex- tensio, ao grupo, e este clemento, obvia- mente, é 0 Outro, Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudanga, de negociacio, de transformacdo em fungio dos outros. A construgao da identidade é um fenémeno que se produzem referéncia aos outros, em referéncia aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de cre- dibilidade, e que se faz por meio da nego- ciagdo direta com outros. Vale dizer que mem6ria e identidade podem perfeitamen- tesernegociadas, e nao sao fendmenos que devam ser compreendidos como esséncias de uma pessoa ou de um grupo. Seé possivel o confronto entre a mem6- ria individual e a mem6ria dos outros, isso MEMORIA E IDENTIDADE SOCIAL, mostra que a memdria e a identidade sdo valores disputados em conllitos sociais e intergrupais, e particularmente em confli- tos que opdem grupos politicos diversos. Todo mundo sabe até que ponto a memoria familiar pode ser fonte de conflitos entre pessoas. Por exemplo, todos os que fize- ram pesquisas de histéria oral sobre as estruturas familiares nas classes populares, como ja fiz na Austria, puderam verificar 0 quanto um nascimento ilegitimo podeser um ponto importante quando se trata de resolver litigios ligados a herancas. Nao se trata apenas de heranga no sentido mate- rial, mas também no sentido moral, ou seja, do valor atribuido a determinada filiagao. Sabemos que a meméria, bem como o sentimento de identidade nessa continui- dade herdada, constituem um ponto impor- tante na disputa pelos valores familiares, um ponto focal na vida das pessoas. Em nivel mais organizado, vejamos 0 que acontece em relagao 4 meméria de um grupo. Tomemos como grupos nao apenas partidos politicos ou sindicatos, mas tam- bém grupos um pouco mais informais. Na Franga, tomarei o exemplo daqueles que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram deportados. E totalmente trigico verificar até que pontoa memoria deles constituium cacife importante para serem reconhecidos pelos outros, ou seja, serem valorizados pelos outros, num momento, logo depois da guerra, em que ninguém guém quer mais ouvir falar em sofrimento. Além do problema da valorizagao em re- lagao a sociedade em geral, na diversidade das lembrangas e das memérias revelam- se também disputas e litigios entre os pré- prios subgmupos de deportados. A deporta- Gao foi vivenciada de modo diferente, con- forme suas raz6es oficiais. Um motivo co- mo a participagao na Resisténcia era mais f4cil de valorizar depois da guerra do que, por exemplo, ter sido preso numa blitz por ser judeu, Ou ainda, ter sido deportado por condenagao de delito penal, por ter atuado 205 no mercado negro. H4 uma multidéo de motivos, uma multidio de memérias e lembrangas que tomam dificil a valoriza- ¢40 em relagao a sociedade em geral e que podem ser a origem de conflitos entre pes- soas que vivenciaram 0 mesmo aconteci- mento e que, a priori, por terem elementos constitutivos comuns em suas vidas, deve- riam sentir-se como pertencentes ao mes- mo grupo de destino, 4 mesma memoria. Ocariter conflitivo se toma evidente na memiéria de organizag6es constituidas, tais como as familias politicas ou ideolégicas. Para ficar no caso francés, posso falar da meméria da Resisténcia. E sabido que a Resisténcia francesa teve componentes muito diversificados: grupos comunistas, grupos gaullistas, grupos que haviam op- tado por uma resisténcia organizada dentro do pais, e que aderiram mais ou menos rapidamente, ou mais ou menos lentamen- te, ao general De Gaulle. Por conseguinte, nessa meméria h4 um certo nimero de objetivos, de conflitos, de litigios. Sé para saber quem detinha a verdadeira legitimi- dade de ter sido a vanguarda da Resistén- cia, houve grandes disputas no jogo politi- co francés depois de 1945 entre as duas familias politicas e ideolégicas que eram, de um lado, o gaullismo, e do outro, o comunismo. O objetivo era verem reco- nhecida a interpretagao do passado de cada um e, logo, a sua meméria especifica. A elaboragio desse tipo de meméria implica um trabalho muito 4rduo, que toma tempo, e que consiste na valorizagao e hierarqui- zacao das datas, das personagens e dos acontecimentos. No instituto onde trabalho, o Institut d’Histoire du Temps Présent, fizemos pes- quisas sobre a lembranga da Resisténcia e pudemos verificar que, nos anos 50, a per- centagem de resistentes que relatavam ter ouvido pessoalmente o apelo do general De Gaulle, no 18 de junbo de 1940, era relativamente baixa. Mas se hoje formos entrevistar antigos resistentes, teremos di- 206 ficuldades em encontrar um que nao tenha escutadoo apelodo 18de junho. Sobcertos aspectos, a memoria gaullista conseguiu transformar-se em memoria nacional, ou, pelo menos, deixou certo numero de datas extremamente valorizadas. Outro fato que constitui uma espécie de amostra de acerto entre as diversas fanilias, da Resisténcia € 0 personagem de Jean Moulin. Nos anos 50, Jean Moulin aparece como um dos lideres da Resisténcia que pouca gente conheceu pessoalmente. De- pois do traslado do seu corpo para o Pant- héon, e do seu reconbecimento como lider inconteste da Resisténcia interna, ou seja, como aquele que foi enviado por Londres erealizou a obra de unificacao dos diversos grupos da Resisténcia, ele passou a ser conhecido pessoalmente por todos. Esté claro portanto que a memiéria es- pecificamente politica pode ser motivo de disputa entre varias organizacées. Para ca- facterizar essa meméria constituida, eu gostaria de introduzir o conceito de traba- tho de enquadramento da meméria. Vale dizer: h4 um trabalho que € parcialmente realizado pelos historiadores. Temos histo- riadores orginicos, num sentido tomado emprestado de Gramsci, que sao os histo- riadores do Partido Comunista, os historia- dores do movimento gaullista, os historia- dores socialistas, os sindicalistas etc., cuja tarefa é precisamente enquadrar a mem6- ria. Em relagio a heranga do século XIX, que considera a histéria como sendo em esséncia uma histéria nacional, podemos perguntar se a fungéo do historiador nao ter4 consistido, até certo ponto, nesse tra- balho de enquadramento visando a forma- ¢40 de uma historia nacional. Este fendme- no € mais claramente acentuado em paises cuja unificag4o nacional se deu tardiamen- te, e onde a ciéncia histérica tinha uma tarefa de unificagéo e manutengSo da uni- dade. Estou me referindo a certa corrente da historiografia alemi do século XIX, marcada pelo nome de Traitschke, mas ESTUDOS HISTORICOS - 1992/10 também em outros paises esse fendmeno € bem conhecido de todos. Por conseguinte, o trabalho de enqua- dramento da mem6ria pode ser analisado em termos de investimento. Eu poderia dizer que, em certo sentido, uma histéria social da hist6ria seria a andlise desse tra- balho de enquadramento da mem6ria. Tal andlise pode ser feita em organizagGes po- liticas, sindicais, na Igreja, enfim, em tudo aquilo que leva os grupos a solidificarem o social. Além do trabalho de enquadramento da mem6ria, hd também o trabalho da pré- pria meméria em si. Ou seja: cada vez que uma meméria estd relativamente constitui- da, ela efetua um trabalho de manutencao, de coeréncia, de unidade, de continuidade, da organizacao. Por exemplo, a partir do momento em que o Partido Comunista amarrou bem a sua histéria e a sua mem6- tia, essa mesma meméria passou a traba- Ihar por si s6, a influir na organizagao, nas geracées futuras de quadros; os investi- mentos do passado, por assim dizer, rende- ram juros. Esse fendmeno torma-se bem claro em momentos em que, em fungao da percepcao por outras organizacées, € pre- ciso realizar o trabalho de rearrumagao da meméria do proprio grupo. Isso € ébvio no caso do Partido Comunista. Cada vez que ocorre uma reorganizacao interna, a cada teorientagao ideolégica importante, rees- crevera-se a histéria do partido ea histéria geral. Tais momentos ndo ocorrem & toa, sao objeto de investimentos extremamente custosos em termos politicos e em termos de coeréncia, de unidade, e portanto de identidade da organizagao. Como sabe- mos, € nesses momentos que ocorrem as cis6es e a criag4o, sobre um fundo betero- géneo de meméria, ou de fidelidade 4 me- méria antiga, de novos agrupamentos. Espero que esta répida descricao da pro- blemética da constituiggo e da construgio social da memé6ria em diversos niveis mos- tre que h4 um prego a ser pago, em termos MEMORIA E IDENTIDADE SOCIAL de investimento e de risco, na hora da mudanga e da rearrumacdo da memoria, € evidencie também a ligagéo desta com aquilo que a sociologia chama de identida- des coletivas. Por identidades coletivas, estou aludindo a todos os investimentos que um grupo deve fazer ao longo do tem- po, todo 0 trabalho necessério para dar a cada membro do grupo — quer se trate de familia ou de nagao — o sentimento de unidade, de continuidade e de coeréncia. Gostaria de enfatizar que, quando a me- méria ea identidade estao suficientemente constituidas, suficientemente instituidas, suficientemente amarradas, os questiona- mentos vindos de grupos extemnos a orga- nizago, os problemas colocados pelos ou- tros, nao chegam a provocar a necessidade de se proceder a rearrumagées, nem no nivel da identidade coletiva, nem no nivel da identidade individual. Quando a mem6- tia e a identidade trabalham por si sés, isso corresponde aquilo que eu chamaria de conjunturas ou periodos calmos, em que diminui a preocupacéo coma memériaea identidade. Se compararmos, por exemplo, paises de antiga tradicao nacional, paises que sao Estados nacionais h4 muitos sécu- los, com Estados nacionais recentes, vere- mos que a preocupagdo com a identidade €a memoria toma feigées bem diferentes nos dois casos. Poderiamos tomar como objeto de andlise a correlagao, em perfodos de longa duragio, entre a rearrumagao das relages entre paises em momentos de cri- se ou de guerra, ea crise da mem6ria e do sentimento de identidade coletiva que fre- qiientemente precede, acompanha ou su- cede esses momentos. Seguindo esta minha hipétese, poderia- mos propor aqui um ponto para discussao: por que ser4 que atualmente assistimos a um interesse renovado, nas ciéncias huma- nas e na histéria, pelo problema da forte ligagdo entre memoria e identidade? Esse interesse € patente em muitas publicag6es, que utilizam métodos muito diferentes, tais 207 como a anélise das comemoragies, dos lugares, mas também a andlise dos discur- sos, de textos, de entrevistas e de histérias individuais. E com esta questdo que con- cluo minha exposigao. Intervengdes no debate — Sobre a critica @ histéria oral como método apoiado na meméria, capaz de produzir representacdes endo reconstitui- gdes do real: Se a mem6ria é socialmente construida, € dbvio que toda documentagao também o €, Para mim nao hé diferenga fundamental entre fonte escrita e fonte oral. A critica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve, a meu ver, ser aplicada a fontes de tudo quanto € tipo. Desse ponto de vista, a fonte oral é exatamente comparivel 4 fonte escrita. Nem a fonte escrita pode ser tomada tal e qual ela se apresenta. O trabalho do historiador faz-se sempre a partir de alguma fonte. E evidente que a construgao que fazemos do passado, inclu- sive a construcdo mais positivista, é sempre tributéria da intermediagio do documento. Na medida em que essa intermediacao é inescap4vel, todo o trabalho do historiador j4 se apdia numa primeira reconstrucao. Penso que nao podemos mais permanecer, do ponto de vista epistemolégico, presos a uma ingenuidade positivista priméria. Nao acredito que hoje em dia haja muita gente que defenda essa posicao. Agora, € dbvio que a coleta de repre- sentacées por meio da histéria oral, que é também histéria de vida, tommou-se clara- mente um instrumento privilegiado para abrir novos campos de pesquisa. Por exemplo, hoje podemos abordar o proble- ma da mem6ria de modo muito diferente de como se fazia dez anos atrés. Temos novos instrumentos metodoldégicos, mas 208 sobretudo, temos novos campos. A rigor, sem assumir 0 ponto de vista do positivis- mo ingénuo, podemos considerar que a propria historia das representagées seria a hist6ria da reconstrugo cronolégica deste ou daquele periodo. O que se tem feito recentemente, como por exemplo a hist6- tia da auto-apresentagao das elites de um pais, e também a histéria da cultura popu- lar, ou da autopercepcio popular, é, a meu ver, uma hist6ria perfeitamente legitima. Por outro lado, a multiplicagao dos ob- jetos que podem interessar a hist6ria, pro- duzida pela histéria oral, implica indireta- mente aquilo que eu chamaria de uma sen- sibilidade epistemolégica especifica, agu- cada. Por isso mesmo acredito que a histéria oral nos obriga a levar ainda mais asérioa critica das fontes. Ena medida em que, através da histéria oral, a critica das fontes toma-se imperiosa e aumenta a exi- géncia técnica e metodoldgica, acredito que somos levados a perder, além da inge- nuidade positivista, a ambigdo e as condi- Ges de possibilidade de uma hist6ria vista como ciéncia de sintese para todas as ou- tras ciéncias humanas e sociais. H4 uma perspectiva que considera a hist6ria como sendo a reconstrugao, para um periodo de- terminado, de todos os materiais que as outras ciéncias nos formecem. Mas na me- dida em que os objetos da histéria se diver- sificam, se multiplicam, eu pessoalmente vejo, nessa pluralizacao, uma grande difi- culdade em manter a ambigao da histéria como ciéncia de sintese. Penso que, pela forca das coisas, a histéria vird a ser uma disciplina particularizada — sem se tomar parcial, pois é isso que se critica hoje na histéria oral, a sua alegada parcialidade. Acho que € este o destino da histéria, tal- vez. Nisso vejo uma continuidade entre a histéria social quantificada e a hist6ria oral. Acredito que esses dois campos apa- ESTUDOS HISTORICOS ~ 1992/10 rentemente t40 opostos apresentam uma continuidade. Vejo também uma relagao particularmente estreita entre a historia ¢ certos subcampos da sociologia. Algo que quero voltar a sublinhar é 0 problema da subjetividade e das fontes. Em primeiro lugar, até as mais subjetivas das fontes, tais como uma histéria de vida individual, podem sofrer uma critica, por cruzamento de informagées obtidas a par- tir de fontes diferentes. Mas acredito que, ao fazé-lo, e vou dar um exemplo, chega- mos rapidamente a esgotaracapacidade de trabalho dos pesquisadores. E preciso re- conhccer isso honestamente. Na pesquisa sobre histérias de vida de mulheres deportadas, de onde foi extraido omeuartigo “Le témoignage”, a primeira hist6ria de vida que recolhemos, com du- ragéo de aproximadamente dez horas, foi controlada sob todos os aspectos. Eramos quatro pesquisadores para uma s6 hist6ria de vida, e comegamos um controle muito cerrado de todas as informagées. Primeiro, controlamos a data de nascimento da mu- Iher, mediante consulta ao registro civil Depois, controlamos as escrituras do apar- tamento de sua familia em Viena, a data do comboio que a levou para o campo de exterminio, a data da operagao que sofreu em Auschwitz. Achamos isso tudo. Para uma S6 entrevista, uma sé histéria de vida, quatro pessoas trabalharam durante dois anos. Fica evidente que se vocé fizer um projeto implicando uma centena de hist6- rias de vida, até mesmo umas trinta, ird logo esgotar a possibilidade de trabalho da equipe. Se pretendermos controlar todos os dados, serd muito dificil realizar isso na pratica. Acho que 0 que devemos fazer é levan- tar meios de controlar as distorgdes ou a gestao da meméria. Quanto menos uma histéria de vida for pré-constuida, mais =——- -— 5 Em co-autoria com Nathalie Heinich, publicado em ctes de la Recherche en Sciences Sociales, 62/63:3-29, juin 1986. Ver ainda, de M Pollak, na mesma revista, p.30-53, “La gestion de Ii icible”. ‘MEMORIA E IDENTIDADE SOCIAL isso funcionard. Numa histéria de vida muito comprida, h4 certas coisas que so completamente solidificadas. Na minha experiéncia de trabalho, as coisas mais so- lidificadas, assim comw as coisas mais flui- das — ou seja, as que se transformam de uma sessdo de entrevista para outra — sio as mais problematicas. Paradoxalmente, S40 a0 mesmo tempo indicadoras de “ver- dade” e de “falsidade”, no sentido positi- vista do termo. Acredito que as partes mais construidas dizem respeito aquilo que € mais verdadeiro para uma pessoa, mas a0 mesmo tempo apontam para aquilo que é mais falso, sobretudo quando a construgaéo, de determinada imagem ndo tem ligacao, ou est4 em franca ruptura com o passado real. O que mais nos deve interessar, numa entrevista, S40 as partes mais sdlidas e as menos sdlidas. Eu diria que no mais sdlido € no menos sdlido se encontra o que é mais facil de identi ficarcomo sendo verdadeiro, bem como aquilo que levanta problemas de interpretacao. Vou dar um exemplo. Entre os fatos mais traumatizantes dos campos de exter- minio, havia alguns que apareceram nos primeiros relatos publicados imediata- mente depois da guerra. Om, tais fatos desapareceram dos relatos publicados en- tre 1949 e 1980, para s6 reaparecer agora, em dois relatos publicados recentemente. Esses fatos dizem respeito ao nascimento de filhos de mulheres deportadas. Nos campos de exterminio, quando uma depor- tada estava gravida, a comunidade das mu- Iheres a escondia para que nao fosse morta. Como nio poderia ter no trabalho o mesmo rendimento das demais, a gravida seria morta logo que fosse descoberta. Entao havia esse problema agudo da realidade biolégica da mulher, da alegria do nasci- mento, coincidindo totalmente, naquele universo, com a inevitabilidade da morte, tanto do recém-nascido como da mie. Esse tema apareceu nas histérias de vi- da que recolhemos, mas sempre ligado a 209 outra mulher que nao a entrevistada. S6 quando uma entrevistada nos contou 0 fato emrelagao a outra mulher que jé tfabamos entrevistado foi que pudemos tratar do as- sunto. Essa outra mulher tinha tido real- mente uma crianga no campo de extermf- nio, e pudemos retomar entdo a sua propria experiéncia. O que ficou claro foi que esse fato tinha sido solidamente registrado co- mo acontecimento coletivo, mas nao indi- vidual. Nao podia aparecer como aconte- cimento individual por ser trégico demais, traumatizante demais. Mas aparecia em todas as entrevistas com muita forga. Nas hist6rias de vida publicadas logo depois da guerra, aparecia talvez por ser mais ime- diatamente dizivel do que depois de 1949. No caso de nossas entrevistas, pudemos mostrar que 0 ato de relatar 0 evento pes- soal, atribuindo-o a outra pessoa, nao aten- dia a uma eventual vontade de falsear a informagao, mas era simplesmente uma transposigao aecesséria, que permitia transmitir uma experiéncia extremamente dolorosa. Por conseguinte, acredito que entre o“falso” eo “verdadeiro”, entre aqui- lo que o relato tem de mais solidificado e de mais varidvel, podemos encontrar aqui- lo que é mais importante para a pessoa. Voltando ao primeiro assunto, acredito quea hist6ria tal como a pesquisamos pode ser extremamente rica como produtora de novos temas, de novos objetos e de novas interpretages. A hist6ria est4 se transfor- mando em histérias, historias parciais e plurais, até mesmo sob o aspecto da crono- logia. A esse respeito, gostaria de contar um caso. Numa palestra sobre hist6ria oral no IHTP, ministrada por um pesquisador alemio, este relatou uma pesquisa realiza- da na Alemanha, na qual tinha verificado que as datas importantes da histéria alema, da histéria oral do Zé Povinho, nao eram 1933, nem 1938-39, inicio da guerra, nem 1945. Eram 1935 e 1948. A interpretacao era que, nas histérias individuais do povo alemio, cortes politi- 210 cos tais como a tomada do poder pelo 3% Reich haviam sido recalcados, ou entéo nao tinham sido vividos como tao marcan- tes. Mas as duas datas lembradas eram datas marcantes porque correspondiam a uma clara melhoria econémica. Para mui- tas familias alemas, 1935 era a primeira vez que se assistia a estabilizagao do em- prego e da renda familiar, assim como 1948 era o ano da reforma monetéria. Por- tanto, o acontecimento marcante nao era a criagdo da Republica Federal Alema em 1949, néoerao fim da guerraem 1945, mas era 1948, data da reforma monetéria. De repente, de um dia para outro, o mercado negro foi substituido por um mercado mais acessivel, houve um comego de estabiliza- Gao econ6mica, e isto se fixou na cronolo- gia vivenciada. Agora, como podemos dis- tinguir uma cronologia “verdadeira” de uma cronologia “falsa”? Acredito que a Unica coisa que se pode dizer é que existem cronologias plurais, em fungao do seu mo- do de construgio, no sentido do enquadra- mento da meméria, e também em funcdo de uma vivéncia diferenciada das realida- des. O mais engracado dessa hist6ria foi que na disaussdo que se seguiu um historiador francés disse: “E um absurdo, é inadmissi- vel, nao se pode ignorar as realidades, nao se pode dizer que 1948 é mais importante que 1945!” S6 que o historiador alemio ndo tinha dito nada disso, disse apenas que as cronologias fixadas so plurais e dife- renciadas. Para o historiador francés isso era inadmissivel. Mas quando se passou a falar da Franca, e do 8 de maio de 1945, de 1944, cuja import8ncia relativa depen- dia da vivéncia, nesse caso ele nao se co- locou problema algum! Ele afadmitia mui- to bem essa polifonia das datas fixadas. Esta é apenas uma historinha, mas que mostra bem, a meu ver, que a tnica saida € admitir a pluralidade da histéria, das realidades, e, logo, das cronologias histo- ricamente admissiveis. ESTUDOS HISTORICOS — 1992/10 — Sobre a tendéncia da hist6ria oral a valorizar o subjetivo por oposigdo ao ob- Jetivo: Posso dizer que, de fato, hd esse movi- mento, bastante primério. Vi isso nas con- feréncias internacionais sobre hist6ria oral. O historiador estava se restringindo aos arquivos, e, de repente, est se confrontan- do coma realidade concreta. Numa atitude quase militante, quer dara palavra aqueles que jamais a tiveram, daf essa vontade de reabilitar 0 subjetivo frente ao objetivo. Cria-se assim uma oposicdo entre hist6ria oral e hist6ria social quantificada, enquan- to eu, por mim, ndo vejo oposicao, e sim continuidade potencial. Acho que hoje a questao objetivo versus subjetivo est4 um pouco ultrapassada. Em certos artigos de Bertaux, e sobretudo de Régine Robin, a questo foi transportada para outro nivel. O debate entre subjetivi- dade e objetividade transformou-se num debate opondo a escrita literdria a escrita cientificista. Haveria de um lado o vazio, 0 seco, o enfadonho, que seria o discurso cientifico, ainda por cima reducionista e, diz Régine Robin, fechado a pluralidade do real, enquanto a hist6ria oral seria uma das possibilidades de reintroduzir nas ciéncias humanas, depois do periodo estruturalista, uma escrita ndo apenas subjetiva, mas so- bretudo literdria. Régine Robin toma como paradigma daquilo que deveriamos fazer o romance cldssico do século XIX e do inicio do século XX, portanto, o proprio romance polif6nico, do tipo Proust, Musil, James Joyce. Dizela que a pluralidade do romance € em realidade o critério do verdadeiro no discurso sobre o social. Ou seja: 0 discurso cientifico, com 0 seu fechamento e sua tendéncia reducionista, € um discurso que restringe a realidade, e por conseguinte no é verdadeiro, j4 que no leva em conta o plural - aqui se trata mais do plural do que do subjetivo, o subjetivo nao é mais 0 pro- blema para Régine Robin. Ahist6ria devida ‘MEMORIA E IDENTIDADE SOCIAL individual diretamente relatada, que a pri- meira geracao de historiadores coloca em termos de oposigao, é recusada por ela, porque ela acha que a hist6ria individual expressa, de fato, o pré-constmuido social, em vez da verdade, enquanto a construgio romanesca seria 0 modo privilegiado da escrita, capaz de restituir a verdade social em todas as suas altemativas e toda a sua pluralidade. E claro que quando confrontamos a pro- dugdo atual sobre histéria de vidacom Mu- sil, Proust e James Joyce, 0 argumento € extremamente vilido. Mas quando pega- mos tudo aquilo que foi escrito no campo romanesco, como por exemplo os liveinbos que se compram nas estagdes de trem ou de Gnibus, compostos com a técnica romanes- ca de condensagao de varias possibilidades em uma ou duas personagens que tém um caso de amor que geralmente chega as raias do inverossimil, verificamos que a falta de dominio da técnica romanesca produz tanto de ndo-verdadeiro, de ndo-plural, quanto 0 faria a falta de dominio técnico no campo das ciéncias sociais. Digo portanto que se Nos proporcionamos os meios e as condi- ges para constuir cientificamente, com todas as técnicas das quais dispomos hoje em dia, temos condigdes de produzir um discurso realmente sensivel a pluralidade das realidades. Temos uma possibilidade, nao de objetividade, mas de objetivacao, que leva em conta a pluralidade das reali- dades e dos atos. Acredito que um discurso cientifico desse tipo € perfeitamente possi- vel, nem que seja como projeto. Nao aceito portanto essa oposi¢4o, que nao € mais entre subjetivo e objetivo, mas entre técnica romanesca — vista como res- tituigao verdadeira do social — e escrila cientitica —vista como reducionista. Alids, acredito que as oposigdes bindrias, das quais as discussdes intelectuais fazem grande uso — subjetivo/objetivo, racio- nal/uracional, cientifico/religioso -s6 ser- vem para fins de acusagio ou de autolegi- 21 timagao. Acho que € muito mais interes- sante estudar as condigées de possibilidade dessas oposigdes do que levé-las a sérioem si mesmas. A rigor, quando aparece esse tipo de discuss4o, nao se deve dar impor- tAncia, a ndo ser, € claro, que se queira utilizar um desses pdlos numa tética desti- nada a marcar fortemente uma posigao. — Sobre o inicio da utilizagao da historia oral na pesquisa histérica: Um fato que acho importante € que, na Europa, a primeira geragao dos pesquisa- dores que trabalharam com histéria oral, como Bertaux na Franca e Rieder na Ale- manha, entre outros, veio da sociologia demografica e da andlise quantitativa da mudanga social. Foi portanto a impossibi- lidade da explicagio por meio da observa- do de longas séries que levou a isso. Os pontos de ruptura nas tendéncias de séries relativamente homogéneas permaneciam inexplic4veis, e foi esse 0 ponto de partida do interesse daquele pessoal em relagao as histérias de vida. Penso que a histéria de vida apareceu como um instrumento privi- legiado para avaliar os momentos de mu- danga, os momentos de transformacao. — Sobre a sensibilidade no trabalho de histria oral: Acho que este € um aspecto extrema- mente interessante, mas que nio podere- mos resolver aqui. Seria importante obser- var a maneira de trabalhar dos historiado- res, quer eles trabalhem com escritos bio- gréficos ou com relatos, ou seja, seria importante estudar nao com o que eles trabalham, mas como eles trabalham. Quando a gente conversa sobre a “cozi- nha” do trabalho com os colegas, € possi- vel observar coisas muito interessantes. Um exemplo é a passagem do documento, que a gente pode pegar, pode sentir nd mio a qualidade do papel, para a ficha microfil- 212 mada, que déi na vistae que sé nos pennite apertar um botiio. Hé histotiadores que sio fas dos arquivos, que sentem a necessidade de segurar opapel velho, e que falam disso, do mesmo modo que eu posso falar, depois da entrevista, do cafezinho servido por aquela velha senhora que quase me cha- mou de filho... Acho que h4 uma sensibili- dade no trabalho cientifico, e cada vez que ocorre uma mudanga no trabalho, ela se traduz quase que fisicamente na sensibili- dade das manipulagées. Seria muito inte- ressante refazer uma histéria das ciéncias questionando a importancia dessa sensibi- lidade no contato com os materiais sobre osquais a gente trabalha, em relagao aquilo que a gente pesquisa e sobre 0 que a gente escreve. — Sobre a limitagéo da histéria oral ao tempo presente: Ahistéria oral permite fazer uma hist6- tia do tempo presente, e essa his{éria é muito contestada. HA varios tipos de hos- tilidades. Por exemplo, h4 uma oposigéo entre fontes classicas, legitimas, e fontes que estéo adquirindo nova legitimidade. Na Franca hé também a “dignidade” do periodo. A histéria medieval, porexemplo, €0 maximo, é 0 que existe de mais fino. E claro que quando vocé est4 acostumado a trabalhar com a Idade Média, vai ser dificil se reciclar em entrevistas! Mas h4 também um problema de legitimidade, até mesmo em relacao 4 histéria contemporanea. A histéria do perfodo seguinte 4 Primeira Guerra Mundial é vista como bem menos “digna” do que a histéria de periodos mais antigos. Por tradigéo, a corporagao dos historiadores j4 no vé com muito bons olhos o campo da histéria do tempo pre- sente, € a hist6ria oral, entao, € 0 nec plus ultra da novidade. O problema da histéria contemporinea € que geralmente os arquivos ainda nao foram abertos, nao hd possibilidade de cru- ESTUDOS HISTORICOS — 1992/10 zar os dados com outras fontes, as préprias fontes so bastante duvidosas, sé se dispée de jomais, que so considerados fontes de terceira ou quarta categoria. Ai junta-seum monte de obstdculos, de inconvenientes. Sobre a suposta superioridade da fonte escrita: Na Franga tivemos exemplos disso, em relagdo a assinaturas de manifestos, Quan- do o historiador positivista, que acredita naquilo que esté escrito, nas assinaturas que constam no manifesto, ouvir as pes- soas que supostamente assinaram, ele vai levarum susto com 0 susto dessas pessoas. Isto porque, freqiientemente, as pessoas que organizam os abaixo-assinados nao tém tempo de telefonar para todo mundo, contam com a concordancia de um cida- dao, colocam seu nome e depois esquecem de avis4-lo. Este € um caso em que a fonte escrita ndo possui validade superior a da fonte oral. — Sobre 0 depoimento pré-construldo, co- mum entre os politicos: Aesse respeito, posso falar a partir das entrevistas que fiz com as deportadas. En- tre elas, havia militantes deportadas por razées politicas, por agdes na Resisténcia, mas havia também algumas que tinham sido deportadas quase que por acaso, por- que tinham escondido uma mala, algo as- sim, ou seja, por um ato nao-politico. Lo- go, haveria uma oposicao entre o discurso destas tiltimas e o das outras, um discurso relativamente construido, de mulheres que depois da Libertagao tiveram fungdes po- liticas, foram deputadas 4 Assembléia Na- cional na Franca. Se quisermos fazer a andlise desses relatos, ser4 necessério in- troduzirmos outros elementos que nao o contetido, elementos que dizem respeito ao estilo. MEMORIA E IDENTIDADE SOCIAL O primeiro critério, ao meu ver, € reco- nhecer que contar a propria vida nada tem de natural. Se vocé nao estiver numa situa- Ao social de justificagao ou de construgéo de vocé préprio, como € o caso de um artista ou de um politico, é estranho. Uma pessoa a quem nunca ninguém perguntou quem ela é, de repente ser solicitada a relatar como foi a sua vida, tem muita dificuldade para entender esse subito inte- resse, Jé € diffcil fazé-la falar, quanto mais falar de si. Em nossa pesquisa, tivemos assim interesse em analisar o estilo e o emprego dos pronomes pessoais utilizados para falarde si propria. Talvezseja interes- sante eu contar isso em detalhes. Entre as falas de deportadas, encontra- mos trés tipos de estilo: estilo cronolégico, estilo temitico, e o que chamamos de estilo factual. Todo relato mistura esses trés esti- los, vejam bem. Mas descobrimos que o predominio do estilo cronolégico estava correlacionado com a caracteristica de um grau minimo de escolarizagao. Isto é, pen- sar em si préprio em termos de duragao, de continuidade, e situar-se em termos de ini- cio e fim, nio era simplesmente natural. Percebemos também que 0 relato que se- guia uma cronologia era fortemente corre- lacionado com a presenga de uma sociali- zagio politica. O segundo estilo, o temético—mas seria ‘ecessirio verificar isso em outras pesqui- sas — € quando alguém se liga pouco na cronologia, diz, porexemplo, que a infancia nao teve importincia, mas depois fala no tempo de escola, nio em termos de uma seqiiéncia escolar, mas para lembrar que 0 importante era a matemstica. E depois essa pessoa vai falar sobre sua profissao, naoem termos de “fiz o meu doutoramento em tal €poca, tornei-me chefe de servigo em tal época”, mas sobre a medicina em geral, ou sobre o funcionamento do hospital etc. Esse caso correspondia a um grau elevadissimo de escolariza¢ao, a uma experiéncia profis- sional de médica, de jurista, enfim, tratava- 213 se de profissionais liberais, e nao de mulhe- res ligadas a vida polftica, a vida pablica. O estilo factual, por fim, correspondia a um grau educacional baixfssimo, a pouca experiéncia, tanto profissional como polfti- ca, e era portanto, podemos dizer, o estilo das mulheres menos enquadradas, menos estruturadas, situadas do lado inferior da escala social. Para ns, o factual correspon- dia a um relato completamente desordena- do, Ou seja: pulava do filho cagula para a deportagao, pulava do deputado comunista que ontem disse uma besteira para a noticia lida no jomal em 1930, ea gente no sabia mais onde estava, era uma mistura de te- mas, nao havia ordem aparente. Insisto que estou dando aqui uma caracterizagao extre- ma, pois todos os relatos longos sao cons- titufdos poruma mistura de estilos, embora haja um predom{nio em cada caso. A segunda coisa que observamos foi a importincia do pronome pessoal que as pessoas usam para falar de si. Em francés, e em alemiao, € possfvel falar de si em termos de “eu”, em termos de “tu” ou “vo- cé”, em termos de “ele” ou “ela”. Pode-se falartambém de si usando termos coletivos, tais como “nés, “vooés”, “eles”, maso mais importante nesse caso € 0 on, o “‘se” impes- soal ou “a gente”. Para entender bem essa questo, tivemos 0 cuidado de voltara Ben- veniste e sua andlise dos pronomes pes- soais. Em nossos relatos, verificamos que 0 ‘eu” era preponderante para falar de si. O “nds”, por sua vez, ndo era assim to usado para falar dos grupos aos quais as mulberes pertenciam. Para o “nds”, encontramos duas significagies opostas. Tratava-se ou do predominio, no relato da vida, do “nés” familiar e doméstico — é 0 caso das pessaas sem experiéncia profissional —, ou entao do que eu chamaria de “nds” familiar-politico. Pois o discurso politico, incluindo a sua dimensao cfvica, esté fortemente ligado & Tet6rica doméstica e familiar. Pelo menos, foi o que achamos. 214 Em compensagao, encontramos tam- bém duas significagdes para o uso de on,a impoténcia e o distanciamento. No primei- fo caso, trata-se de um coletivo ao qual se pettence, mas que nao tem, ou perdeu, 0 domjnio da situagéo. A significagao do distanciamento s6 pode ser identificada em fungao do contexto, e foi muito observada entre profissionais liberais. Por exemplo, as médicas e as advogadas tendiam forte- mente, quando falavam do grupo de médi- cas do campo de concentragio, a usar on, e nio “nds” — os politicos, quando se refe- rem ao seu grupo de Resisténcia, sempre dizem “nds”. No caso de “vocé”, observamos tam- bém esse sentido de distanciamento. Havia © caso de uma deportada que dizia “Mas o que € que vocé est4 fazendo aqui ao meu lado?”, e em realidade era dela mesma que estava falando. Claro que era uma coisa patolégica, e quando a despersonalizagao vai longe demais, esse “vocé” patolégico pode degringolar no uso de “ela” em lugar de “eu”. A perda excessiva do controle de si pode mesmo desembocar na patologia. Acontece a mesma coisa para o plural, numa fungao de distanciamento e de impo- téncia. Por exemplo: “Nés estavamos todos amontoados no vagio, feito animais, nés est4vamos todos na mesma situagio, e de repente tem uns que enlouquecem, que nao agiientam mais, nao podem deixar de gritar e chorar porque esto com fome”, e entao, de repente, o relato se referea essas pessoas como sendo “eles”, Quando as pessoas per- demo controleda situagéoese tomamseres inumanos, entra a terceira pessoa, marcan- do um maior distanciamento e dessolidari- zagao em relagio a uma sub-unidade do mesmo grupo. Quando encontramos essas significa- Ges, que so ali4s bem mais numerosas do que as de Benveniste, as aplicamos ao ESTUDOS HISTORICOS ~ 1992/10 nosso texto e, de fato, observamos que os relatos cronolégicos, principalmente poli- ticos, usavam obviamente “eu” e “nds”, logo, expressavam a seguranca do eu e da identidade, com a experiéncia do dominio da realidade. Em compensagio, as pessoas que estavam situadas embaixo na escala social usavam muito “eu”, mas também “a gente”, o que assinala a presenga do desti- no incontrolavel. O plural era quase sem- pre “a gente”. O “nds” designava exclusi- vamente a fanilia doméstica no sentido estrito, isto é, as criangas etc. Com essa anilise do estilo e dos prono- mes pessoais colocados em relagao com situagdes e acontecimentos, a hist6ria de vida — esta € a minha hipdtese — ganha um indicador muito fidedigno do grau de do- minio da realidade. O predominio de de- terminados pronomes pessoais no con jun- to de um relato de vida seria uma medida, ou um indicador, do grau de seguranga interna da pessoa. Observamos, e isso € muito interessan- te, que no momento da chegada a um uni- verso totalitério, ao campo de concentra- ao, havia pessoas que saiam do comboio, perdiam a sua familia durante a selegao, naotinham mais ninguém, e caiamimedia- tamente do “eu” para “a gente”. S6 fala- vam “a gente”. Enquantoisso, as militantes politicas, mesmo quando nAo tinham nin- guém no trem, conservavam uma ligagdo imaginéria comoutras pessoas, ou comum ideal que as podia manter afastadas daque- la realidade, e logo usavam o “nds” das deportadas. Era portanto algo extrema- mente forte. Ainda nao publicamos isso, mas acho que, se trabalhamos com esses textos, € preciso integrar a andlise do estilo e a anélise de certos indicadores como 0 uso dos pronomes pessoais. H4 um monte de coisas que se pode extrair dai. ia chegada do comboio, havia uma imediata selecio que separava os grupos e dirigia parte dos recém-chegados para ‘a cimara de gas, outra para os barracées.etc., partirde critérios jamais esclarecidos (N.4.T.). MEMORIA E IDENTIDADE SOCIAL — Sobre a iconografia conservada por de- terminados grupos e sua interpretagao das imagens: Tenho a impressdo de que h4 como que uma mem6ria visual que é reconstruida. Mas em ternos de pesquisa, nao temos nada a esse respeito. S6 posso me referir aos trabalhos de Nora sobre a integraco dos lugares da mem6ria e sobre os simbo- Jose as imagens que se formam a partir dos monumentos. Temos também trabalhos sobre comemoragées, sobre a montagem das comemoracGes e as mudancas que vao ocorrendo nelas. Estudamos, por exemplo, qual seria a razo pela qual, na Franca, em determinadas épocas, os ex-combatentes usam pouco uniforme ao desfilar. Isto é, 215 pesquisamos 0 valor relativo da farda em determinadas épocas. Seré algo esponta- neo? Integramos esses aspectos aos traba- Ihos sobre comemoracio e sobre os lugares da memGria. Mas no sentido da questéo que me foi colocada, talvez encontremos algumas pistas na direcdo da histéria social da arte. O que seria interessante, seria 0 estudo das mudangas e da significagao des- sas imagens. E um assunto muito impor- tante. A Gnica coisa nessa direcao talvez sejam os trabalhos de Choutard, que en- controu, em ceriménias que se referem a fatos histéricos do século XX, no sul da Franga, a presenga de elementos ligados as guerras de religido do século XVI, que parecem ter sido projetados no imaginario dessa montagem.

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