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Farmacos e Rim 2022
Farmacos e Rim 2022
A doença renal pode afetar a forma de prescrição e os fármacos usados. Os rins recebem cerca
de 1 litro de sangue por minuto (1/4 do débito cardíaco), por isso são expostos a grandes
quantidades de fármacos circulantes. Têm elevada atividade metabólica e consumo de oxigénio,
possuem múltiplos sistemas enzimáticos e a maior superfície de endotélio por grama de tecido
do organismo. Além disso, muitos fármacos acumulam-se no epitélio e no interstício, outros
atingem grandes concentrações no tubo colector distal, favorecendo a sua criatalização e
provocando obstrução tubular. Por isso, os rins são muito suscetíveis a agressões por fármacos e
vários podem ser nefrotóxicos.
Os doentes com insuficiência renal são frequentemente polimedicados, o que exige muita
atenção em relação às interações medicamentosas. Por outro lado, os rins são a principal via de
excreção de muitos fármacos e como consequência a prescrição requer frequentemente um
ajuste posológico de acordo com a função renal.
No entanto, a insuficiência renal não deve nunca inibir a prescrição de fármacos fundamentais.
A prescrição (dose e/ou intervalo) de fármacos com eliminação renal deve ser ajustada ao grau
de disfunção renal, sob risco de acumulação e toxicidade importante. Nunca devemos prescrever
um fármaco a um doente com insuficiência renal sem ter a certeza de que não é necessário
ajustar a posologia. Por outro lado, nunca devemos deixar de prescrever um fármaco essencial
pelo facto de o doente ter insuficiência renal.
1- Princípios farmacocinéticos
Existem duas formas de ajustar a posologia dos medicamentos com eliminação renal: reduzir a
dose ou aumentar o intervalo entre as tomas.
A dose de carga não é alterada de forma a se atingir mais rapidamente uma concentração
plasmática do fármaco estável. Como a IRC pode prolongar a semivida, simplesmente
reduzindo a dose pode ser um erro terapêutico, pois esta estratégia só irá atrasar o atingimento
de uma concentração de fármaco estável. Por este motivo as doses de carga não requerem
modificação nos doentes com insuficiência renal. A dose dos aminoglicosídeos poderá ter que
ser aumentada nos doentes com um aumento do volume de distribuição (hipervolemia ou
sépsis).
As doses de manutenção devem ser reduzidas proporcionalmente à disfunção renal e à
proporção de eliminação renal do fármaco. Nos fármacos em que é importante o pico de
concentração (p. ex. aminoglicosídeos) deve manter-se a dose e o intervalo entre as doses deve
ser prolongado. Nos fármacos em que o objetivo é manter concentrações constantes é mais
apropriado reduzir a dose e manter o intervalo entre as tomas.
Nos doentes sob técnicas dialíticas a depuração dos fármacos pela diálise pode reduzir a eficácia
deste. Há duas situações em doentes em hemodiálise que tem que se ter em consideração:
muitos estudos reportam resultados de uma altura em que se usavam filtros de baixo fluxo, que
são menos eficientes a remover fármacos e atualmente é quase generalizado o uso de filtros de
alto fluxo, e que embora muitas recomendações indicam o uso de doses suplementares no fim
da diálise estas são raramente usadas sobretudo se menos de 30% do fármaco é removido
durante a sessão de hemodiálise e porque se ajusta a altura da administração do fármaco para o
fim do tratamento dialítico.
Para o cálculo das doses nos insuficientes renais crónicos, incluindo aqueles sob terapêutica
dialítica convencional ou técnicas contínuas, existem tabelas disponíveis para determinar a dose
inicial e dose de manutenção do fármaco. Deve-se avaliar também a necessidade de monitorizar
os níveis séricos dos fármacos para ajustar a posologia. A monitorização é sobretudo útil nos
doentes com LRA em que a função renal é instável, mas deve também fazer-se nos tratamentos
crónicos com fármacos de eliminação renal (digoxina, carbamazepina, fenitoína, valproato, lítio,
etc). O doseamento pode ser feito em pico (após a toma) ou, em vale (antes da toma).
O bem-estar do doente deverá ser primordial em detrimento do ajuste de dose à função renal.
Doses acima do recomendado podem ser apropriadas quando houver uma indicação clínica. Por
exemplo, nas infeções graves que põem em risco a vida do doente e as consequências da
falência da terapêutica são maiores que as da sua toxicidade.
Uma variedade de fármacos podem ser nefrotóxicos e podem estar envolvidos diferentes
mecanismos.
1- A nefrotoxicidade idiossincrásica (ex. nefrite intersticial) é imprevisível e independente
da dose. Este tema será falado noutro capítulo.
2- Nefrotoxicidade por alterações hemodinâmicas
Podem ocorrer com os inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECA), inibidores do
receptor da angiotensina (ARA), AINES, diuréticos e anti-hipertensores.
3- Toxicidade tubular direta
Pode ser desencadeada pelo uso de aminoglicosídeos, vancomicina, anfotericina, cisplatina,
inibidores da calcineurina e meios de contraste.
4- Uropatia obstrutiva
Pode ocorrer com agentes tais como aciclovir.
5- Glomerulonefrite imuno-mediada e microangiopatia trombótica, são raras mas ocorrem
também com o uso de fármacos
Clinicamente a toxicidade renal é manifestada por síndromes nefrológicas. Um agente pode
causar mais do que uma síndrome nefrológico e existem 3 formas major de apresentação de
lesão renal (Tabela 1):
B. AINE´s
São dos fármacos mais usados na prática clínica. Embora a probabilidade de toxicidade renal
não seja muito alta (1-5%), o uso alargado destes fármacos faz com ela seja encontrada
frequentemente na prática clínica. A lesão renal pode ocorrer com qualquer classe de AINE
desde os não selectivos aos inibidores da COX-2. Os inibidores da COX-2 têm perfil
nefrotóxico em tudo idêntico aos AINES não selectivos.
A LRA vasomotora ou hemodinâmica dos AINES ocorre quando a manutenção da função renal,
isto é, da TFG, é criticamente dependente das prostaglandinas vasodilatadoras. Quando há
diminuição do volume circulante efectivo ou situações em que há aumento da produção de
vasoconstritores intra-renais (agentes de contraste, obstrução urinária, glomerulonefrite aguda),
o fluxo sanguíneo renal mantém-se por vasodilatação compensadora da arteríola aferente
provocada por aumento da síntese de prostaglandinas (PGs). Para além deste efeito glomerular,
o aumento de prostaglandinas renais provoca vasodilatação de outros vasos sobretudo nestas
situações em que há síntese aumentada de angiotensina II, NA, vasopressina ou endotelina,
impedindo a isquemia por vasoconstrição. A inibição da síntese de PGs pelos AINES leva à
diminuição da TFG por provocar diminuição da pressão de perfusão glomerular e por
vasoconstrição intrarenal.
O risco de LRA pelos AINES é também superior nos idosos, com o uso concomitante de
IECAS/ARA II e diuréticos.
Retenção hidrossalina- Em 25% dos doentes que tomam AINES há retenção hidrossalina,
provocada pela inibição das PGs e do seu efeito compensador na excreção de água e sódio. O
edema ocorre em 2.1% das pessoas medicadas com AINES.
A retenção hidrossalina interfere, agravando, o controlo da tensão arterial e pode também
provocar HTA de novo.
Hipercaliemia- associam-se a hipercalemia, mesmo em doentes com função renal normal. Nos
diabéticos, bem como nos idosos, este risco aumenta pela maior frequência de
hipoaldosteronismo-hiporreninémico.
Síndrome nefrótico associado a nefrite intersticial aguda (NIA)- Os AINEs que mais
frequentemente associados a NIA são o ibuprofeno, naproxeno e fenoprofeno. Podem surgir ao
fim de meses, até 1 ano de administração, associam-se a proteinúria nefrótica em cerca de 90%
e as manifestações extra-renais como febre, rash ou artralgias são muito raras. Cursa com
remissão espontânea com a retirada do fármaco. A recuperação da função renal pode demorar
dias a semanas e há um risco considerável de lesão renal permanente, o maior entre todos os
agentes causadores de NIA.
Insuficiência renal crónica- O uso prolongado de AINES está associado a um risco aumentado
de IRC provavelmente devido a necrose papilar ou NTI crónica idêntica ao observado com
outros analgésicos. O risco parece ser maior com os AINEs com longa duração de ação (> 4
horas).
Acontece por lesão tubular direta aquando da eliminação renal do fármaco, como no caso dos
aminoglicosídeos, vancomicina, anfotericina B ou cisplatina. Manifesta-se com instalação
progressiva de IRA não oligúrica. Geralmente há recuperação da função renal com a retirada do
agente, mas ela pode ser só parcial. O tempo de recuperação pode ir até várias semanas. Se ao
fim de 4 semanas não houver recuperação da função renal, deverá ser confirmada a toxicidade,
geralmente com biópsia renal, ou procurada outra causa para a insuficiência renal. Insuficiência
renal irreversível pode acontecer se houver exposição repetida ao tóxico tubular.
A. Aminoglicosídeos
A ocorrência de nefrotoxicidade varia entre 10 a 20% e aumenta com a dose e duração da sua
administração (risco de 50% se superior a 14 dias de terapêutica).
A gentamicina, a tobramicina e a netilmicina parecem ter efeitos nefrotóxicos similares e a
amicacina poderá ser a menos nefrotóxica. A Neomicina que tem alta afinidade para o receptor
no TCP, é o mais nefrotóxico dos aminoglicosídeos.
A nefrotoxicidade por estes agentes pode ser minimizada:
- Selecionar se possível o aminoglicosídeo menos nefrotóxico
- Corrigir hipocalemia e hipomagnesiemia previamente à administração dos fármacos
- Evitar o seu uso em doentes com depleção de volume (ou optimizar a volemia previamente à
administração), ajustar a dose à função renal, limitar o tratamento a 7-10 dias e evitar
medicações nefrotóxicas concomitantes
- Vigiar níveis plasmáticos sobretudo em doente de risco e optar por toma única diária
Embora se tenham estudados vários agentes com potencialidade para prevenir a nefrotoxicidade
dos aminoglicosídeos, tais como polioaminoácidos aniónicos e agentes antioxidantes, nenhum
foi ainda adoptado clinicamente.
B. Vancomicina
C. Anfotericina B
A anfotericina atua pela ligação aos esteróis das membranas celulares, quer dos fungos
(ergosterol), mas também das células dos mamíferos (colesterol). Desta ligação resulta um
aumento da permeabilidade da membrana, aumento do influxo de Na+ e consequentemente da
atividade do transportador Na+K+ATPase, com depleção das reservas energéticas celulares.
A nefrotoxicidade da anfotericina B relaciona-se com a dose cumulativa, ocorrendo após a
administração de 2 a 3 g.
Os primeiros sinais da toxicidade renal são a perda de capacidade de concentração da urina por
lesão tubular distal (poliúria, hipocalemia, hipomagnesiemia, acidose tubular distal), seguida de
declínio da TFG. A insuficiência renal é progressiva e não-oligúrica, e a recuperação muito
lenta com a suspensão farmacológica, podendo no entanto persistir as lesões tubulares distais.
Uma forma de prevenção é manter débitos urinários altos durante o uso deste fármaco, com
administração de soro salino, e o uso da forma lipossómica que reduz o risco de LRA na ordem
dos 50%.
Doses elevadas, cursos prolongados ou exposições repetidas podem causar DRC.
D. Inibidores da Calcineurina
E. Anti-neoplásicos
Vários anti-neoplásicos podem ser nefrotóxicos (tabela 2). Os mais frequentes são cisplatina,
ciclofosfamida e metotrexato.
IL-2 LRA
Interferon-alfa Glomerulosclerose segmentar e focal. NTA
4- Uropatia obstrutiva
Vários fármacos podem causar obstrução intra-tubular por cristais. Dos agentes mais frequentes,
contam:
- Aciclovir
- Sulfonamidas
- Metotrexato
- Inibidores da protéase
A LRA é frequentemente assintomática, detetando-se pela subida da creatinina plasmática, mas
ocasionalmente, cerca de 1-7 dias após o início da terapêutica, podem ocorrer sintomas de cólica
renal (dor lombar, náuseas ou vómitos). A análise de urina pode mostrar proteinúria ligeira,
cristalúria e o sedimento urinário hematúria e leucocitúria. O diagnóstico é sugerido pela
presença de cristais na urina.
Como fatores de risco comuns a todos os fármacos conta-se a depleção de volume intravascular,
relativa ou efetiva, a presença de DRC prévia ou doença hepática, alterações no pH urinário e o
uso de uma dose excessiva do fármaco.
O tratamento da LRA consiste sobretudo na repleção intravascular. Embora o benefício e
eficácia do uso de diuréticos de ansa ainda não tenha sido provado, habitualmente é
administrado de forma a aumentar o débito urinário e excreção dos cristais intratubulares.
O ajuste do pH urinário parece ser benéfico na LRA obstrutiva induzida por certos fármacos.
A. Aciclovir
A deterioração da função renal ocorre nas 24-48 horas após a terapêutica. Podem ser observados
na urina cristais em forma de agulha, birrefringentes.
A alteração da função renal na maioria dos casos é ligeira e há recuperação total cerca de 4 a 9
dias depois da descontinuação do fármaco.
Como prevenção pode-se usar uma solução salina isotónica a 125 mL/h pelo menos 1 hora antes
da toma do aciclovir, mantendo esta perfusão 6 horas depois do término da perfusão do
fármaco, de forma a manter o débito urinário cerca de 75 mL/h.
O tratamento é apenas de suporte (fluidos e.v. + furosemida) como já descrito. Embora a
hemodiálise seja eficaz em remover o aciclovir, não demonstrou alterar o curso da apresentação
clínica da LRA e portanto não é usada com este objetivo, estando apenas recomendada em
alguns doentes com neurotoxicidade e se houver presença de critérios urgentes para hemodiálise
(hipervolemia, hipercalemia, acidose grave, etc).
B. Metotrexato
C. Indinavir
Alguns fármacos não apresentam um efeito adverso direto na função renal mas quando usados
em doentes com insuficiência renal podem agravar as consequências metabólicas da DRC ou
aumentar o risco para outras toxicidades. Como exemplos comuns temos os diuréticos
poupadores de potássio, os antagonistas da aldosterona e os bloqueadores do sistema RAA que
podem agravar ou desencadear hipercalemia; fármacos com sódio na sua composição poderão
provocar retenção hidrossalina e hipertensão.
Outros agentes de interesse no uso nos doentes renais crónicos são a metformina, os fibratos e a
colchicina.
A. Metformina
Todos os doentes medicados com metformina, mesmo com função renal normal, e sobretudo os
que têm DRC, devem ser instruídos para que, em caso de desidratação (diarreias), de outras
doenças intercorrentes de alguma gravidade ou de exames contrastados suspendam as tomas de
metformina, pois a insuficiência renal secundária à desidratação ou nefropatia de contraste pode
levar à acumulação de metformina.
B. Fibratos
O fenofibrato e o genfibrozil são fibratos muito usados na prática clínica. A dose do fibrato deve
ser ajustada à função renal e deve ser evitado nos doentes com disfunção renal severa.
Estão associados a toxicidade muscular sobretudo quando associados às estatinas e podem
interferir com o metabolismo da varfarina.
Em estudos randomizados, demonstrou-se que os fibratos provocam aumento dos valores da
creatinina plasmática sobretudo em doentes idosos. Embora o aumento dos níveis de creatinina
sejam motivo observação e intervenção, é pouco claro se esta elevação reflete lesão renal. O
aumento da creatinina plasmática é habitualmente revertida com a suspensão do tratamento.
O mecanismo para o aumento da creatinina plasmática não é muito claro.
Várias explicações foram propostas nomeadamente: pela interferência dos fibratos nos métodos
analíticos nos valores da creatinina, por aumento da produção da creatinina ou por redução do
clearance da creatinina. Vários estudos comprovaram que o valor da creatinina é real e não
dependente do método de análise. Há quem sugira que reflete uma diminuição da síntese de PG
vasodilatadoras pelos fibratos e quem sugira ser devida a alterações hemodinâmicas intrarenais
(aumentam a natriurese e levam a depleção de volume).
O aumento de produção da creatinina poderá ser a explicação mais plausível dado a que o
aumento da creatinina plasmática não se acompanhava de uma diminuição da creatinina urinária
e o cálculo da TFG pela inulina não se altera, e portanto o aumento da creatinina plasmática não
refletia uma verdadeira “lesão” renal.
Embora o papel dos fibratos no aumento da creatinina ainda não esteja totalmente esclarecido,
os seus potenciais efeitos deletérios na função renal obrigam a reconsiderar o seu uso nos
doentes de risco para DRC.
Na população em geral, o tratamento de eleição são os AINEs, p.ex. naproxeno 500 mg bid ou
indometacina 50 mg tid. Pode ser usado o celecoxib 800 mg seguido de 400 mg bid.
No entanto, como os AINEs podem agravar a insuficiência renal, não devem ser usados em
doentes com taxa de filtração glomerular menor que 60 ml/min.
A dose de colchicina deve ser ajustada em doentes com TFG inferior a 45 ml/min, sendo
habitualmente 50% da dose recomendada. Não deve usar-se em doentes em hemodiálise nem
com insuficiência hepática. A colchicina não é removida pela hemodiálise.
Assim, nos doentes com insuficiência renal moderada ou severa a corticoterapia é o tratamento
mais seguro. É pelo menos tão eficaz como os AINEs ou a colchicina. A escolha da via, oral, IV
ou intra-articular depende das características do doente, do número de articulações atingidas e
da experiência do médico.
Nos doentes já em diálise, e se já não tiverem função renal residual, podem usar-se AINEs.