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Historia £ Drreiro ARMADILHAS CONCEITUAIS ‘Mércia Maria Menendes Motta! No inicio dos anos 1990, uma querela na historiografia brasileira incomodou corpos ¢ mentes, De um lado estava 0 renomado historiador Jacob Gorender, autor de um dos livros mais lidos nos anos oitenta, © escravismo colonial, publicado pela primeira vez em 1978, De outro, uma jovem doutora e pro fessora da Unicamp, Silvia Lara, que havia recentemente publicado a obra Campos da violéncia, Entre os dois, visées discordantes sobre 0 papel do Dict para o conhecimento do passado. A partir daquela dispura, é possvel deslindar iniciais eixos de reflexéo que aproximam ou distanciam a relagio centre Historia e Direito. presente texto tevisita a querela entre dois dos mais importantes his toriadores brasileiros do século XX para apontar as mattzes teéricas que fun damencaram aquelas discordantes interpretagées, em um contexto histérico de enorme otimismo provocado pela promulgagio da Constituigso de 1988 A partir do conflito tedrico entre os dois intelectuais, pretende-se desnudar 6 fios condutores das anilises propostas € os desafios apontados por aquele cembate. Em seguida, apresenta as possiblidades abertas pela parceria entre Histéria e Diteito, com base nas novas chaves de leitura nascidas a partir dos | Mircia Maria Menender Motes & coordenadora do Instituto Nacional de Ciéncia © Teenologia Histis Socal das Propriedades ¢ ditcitos de acceso (Propricts) E tambéon aawora de livros ¢ artigos sobre confitose terrae dimensécs da propriedade no Brasil eem Poreugal profesor Jar em Histéria Moderna do Depattamenta e do Programa de Pés-graduagio em Histéria da Universidade Federal Fluminense (UTP) 192 | Hiscériae Dircixo anos noventa, quando se coloca a questio sobre a existéncia ow néo de um ditcito colonial, Para fazer jus 4 proposta, discutem-se aqui versées sobre © diteito na colénia, com base nos estudos de Manuel Hespanha e Laura de Mel dessa interface, mas propée uma aproximasao entre as reflexses de ‘Thompson € Souza. Apontam-se, por fim, as dificuldades de operacionalizagio sobre as leis © os costumes ea de Bourdieu, em especial “A forga do Drea”. AS PERSONAGENS E AS VISGES SOBRE A ESCRAVIDAO COLONIAL Nascido em Salvador em 1923, 0 advogado de formagio Jacob Gorender Foi considerado por muitos 0 mais importante historiador marxista brasileiro de codos os tempos. Seu primeiro grande estudo, publicado em 1978 — O «s- cravismo colonial — foi reeditado vitias vere. Segundo Mario Macstri, apés a publicagéo daquele livro, Gorender trabalhou na editora Abril Cultural, onde coordenou a colegio Os economistas. Em 1994, reeebeu 0 titulo de Doutor Honoris Causa, pela Universidade Federal da Bahia, quando da reicoria de Luiz Felipe Perret Serpa, em obediéncia & resolugio do Conselho Universi- titio de 27 de outubro de 1992. Dois anos depois, foi aclamado pelo Depar- tamento de Histéria da USP, recebendo 0 titulo de Notério Saber. Seus tabalhos sempre foram marcados pela defesa da revolugéo. Para ele, a Hist6ria , acima de tudo, uma préxis revolucionatia, impelindo 0 aper- feigoamento tedtico para a transformacio da sociedade. Em entievista con cedida & Revista Armabaldes em 1988, asseverou: “vejo a histéria como ciéncia da revolusio e também componente fundamental na construsio do universo ideolégico” (GORENDER, 1980, p. 151). Em nome da transformasio radi- eal que tanto esperou ao longo de sua vida, Gorender publicou Combate nas srevas (1999), no qual nio deixou de assolhar as contradigées da esquerda bra- sileia; suas divisbes internas e suas utopias. Antes disso, registra suas crticas & chamada “escola da Unicamy a0 escrever um livro combative, na defesa de seus pontos de vista, com o embaragoso titulo A eseraviddo reabilitada (1990) Mas quais eram as percepgées sobre as leis que se toraram os fios con- dutores da primeira obra de Gorender, escrita em sua maior parte enquanto era prisioneiro da ditadura? Marcia Maria Menendes Moca. [193 Para o autor, 0 escravismo colonial era um modo de produsio histo- Ficamente novo € se descavolveu “dentro de determinismo socioecondmico Figorosamente definido, no tempo e no espaga” (GORENDER, 1985, p. 40). Para tanto, ee procurou destrinchar as chamadas leis especificas do Modo de Produsio Escravista-Colonial, em seu esforgo de compreender a dinamica {que explicaria a relagio entre 0 eativo e seu senhor, bem como as leis eco~ ndmicas que revelariam a especificidade do trabalhador escravo, a0 mesmo tempo mercadoria e pessoa ‘Aénfase em destrinchar a escravidio colonial, com base em uma reflexio assentada na ideia de que haveria leis que poderiam explicar a dinamica colo. nial, parca da assertiva de que o escravo € obviamente uma propriedade, “A contradigio foi manifestada ¢ desenvolvida pelos proprios escravos enquanto individuos concretos, porque se a sociedade os coisificou, nunca péde su- primir neles ao menos o reslduo dltimo da pessoa humana” (GORENDER, idem, p. 63). Por consequéncia, o processo inacabado da coisificagio implica tia um esforgo de transcendéncia do cativo para se ver como humano. Desta forma, a primeira expressio de humanidade seria o crime, A agio de matar seria assim a expressio mais acabada daquele paradoxo, posto que a realizar (© ato, 0 cativo era responsabilizado penalmente, 0 que 0 tornava humano, pperante a lei, Em suma, “Quanto mais acentuado o cardter mercantil de uma economia escravista, 0 que se deu, sobretudo nas coldnias americanas, tanto iais forte a tendéncia a extremar a coisficagio do escravo” (GORENDER, idem, p. 68) Para além dos debates sobre a propria constituigio do conccito nortex- dor da obra: © modo de produgio escravista-colonial que abordei em outro trabalho (MOTTA, 2014), havia por conta daquela nogéo, uma interpreta- ‘io sobre o direito ea lei apoiada numa interpretagio althusseriana do Direi to, a despeito de suas crticas & concep a-histbrica do filésofo, O filésofo de ‘origem argelina Louis Althusser (1918-1990) foi considerado um dos mais importantes intelectuais do escruturalismo francés ¢ um dos maiores respon- siveis pela divulgagio (c certa usurpacio) dos escritos de Marx Enquanto um modo de produsio historicamente novo, Gorender pro- curou, portanto, adequar suas reflexées teéricas 4 nogio de que a economia 194] Hiscériae Dircico colonial esteve suj a duas leis: as que regiam o escravismo e as que estariam. ligadas & formagio do capitalismo propriamente dito. O sentido de leis desse livro operava em ditegio a uma teleologia, pois elas explicavam os rumos do modo de producio e a experiéncia dos escravos. E Silvia Lara? Doucora em Histéria pela USP em 1986, foi orientanda de Fernando Novais, um dos mais importantes crticos 4 teoria do modo de pros de Lara também é matcada por uma aproximagio entre Histéria, leis ¢ Di- \sio eseravista colonial de Ciro Cardoso ¢ Jacob Gorender. A trajetéria reitos, mas com um enfoque completamente distinto. Em 1988, publicou sua tese de doutorado inticulada: Campos da violencia: Eseravos senbores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808, no qual ao enfatizar a necessidade de aproximar teoria, conceitos ¢ evidéncias, procurou desnudar as relagées sociais entre escravos e senhores, para além do binémio oprimido e opressor. (Ou, em outros termos, para além da agio e reagio do cativo, hi que destindar também agdes de resisténcias, acomodagées de individuos que “procuraram salvar suas vidas, ctiar alternativas, defender seus interesses” (LARA, 1988, p. 345), Claramente inspirada pela Nova Esquerda Britinica, em especial E, “Thompson, Lara incorporow as principais reflexdes do autor para escapar das interpretages mais gerais sobre a experiéncia do cativeiro, contrariando — portanto — a ideia de coisificagio do escravo de Gorender Sua preocupagéo com as leis coloniais the rende © convite para prefa ciar uma nova edigio das Ordenagées Filipinas pela Companhia das Letras (LARA, 1999). Ali, em algumas paginas, a autora explicitou as razées pelas quis a justiga do Antigo Regime era pensada como uma obrigacio real, ten- do um significado que se aproximava de termos como lei, legislasio e Direito. (LARA, 1999). Seu esforgo em revelar a riqueza das normas legais copiladas m CD-Rom a Le. _gislagio sobre escravosafricanos na América Portuguesa (LARA, 2000). A preo nas Ordenagées a conduziu a outto desafio, 0 de produzir cupagio em estudar a dimensio do Direito ¢ das leis se desdobraria também 1a publicagio de uma série de textos, compilados em um livro organizado com Joseli Mendonga, Direitos ¢ justigas mo Brasil: Ensaios de Histiria Socal, de 2006, Nessa obra, Mendonga ¢ Lara, apoiadas em Pierre Bourdieu, afit- mariam: “[..] hé algum tempo 0 direito jé aparece como um produto social, Marcia Maria Menendes Mow. [195 « sabe-se que os valores, os textos ¢as normas juridicasestéo diretamente re- lacionados com os ritmos do processo social” (MENDONCA; LARA, 2006) © Diteico, longe de ser apenas um instrumento de dominagéo, “passou a ser concebido como um campo simbélico, como préticas discursivas ou como Aispositivos de poder” (MENDONGA; LARA, 2006). Em suma, ao longo de sua trajetéra, Silvia Lara tornaria-se nacionalmente conhecida por sua aproximagio com a obra de Thompson ¢ sua inquietude acerca das normas legais que explicariam o papel dos cativos na sociedade colonial Gorender ¢ 0s thompsonianos Em 1990, como afirmei, Gorender publicou pela editora Atica o livto A cscravidéo reabilitada, onde se propos a destruir as principais interpretagées do que ele afirmava ser a escola da Unicamp. [Kina sua primeira pagina, Gorender apresentava-se como um intelectual irado, em razio da hipotética auséncia de comemoragées pelos cem anos da Aboligio da Escravidio, posto que as efemérides foram marcadas pela ne- gagio das conquistas daquele evento histrico, Ao citar as ages dos movi rmentos negros, os repidios entéo em voga sobre os limites da Aboligio, cle propositadamente ignorava o intenso debate ocorrido no Rio de Janeiro sobre a libertagio dos eseravos no Congresso Internacional Eseravidio ¢ Aboligéo, onde se apresentaram muitos dos que estavam estudando a escravidio por tum viés renovado, menos preso a uma interpretagio pautada em uma visio superestrutural da lei [As critcas do autor também estavam voltadas para o livro de Katia Ma- ‘oso, Ser exeravo no Brasil, de 1986, identificada como a obra que orientou ¢ reafiemou o cariter patriarcal da sociedade escravista, Além disso, ele acusava olivro de 1988, A terra prometida, de Eugene Genovese, de ser um emblema da orientagio neopatiiarcal entéo em voga. E possivel inclusive desconfiar de se Gotender havia de fato lido a obra de Genovese, posto que sua acusa ‘40 desconsiderava o complexo trabalho de levantamento e anilise de fontes realizados por Genovese para desnucar as autonomias dos cativos do sul dos Estados Unidos, a despeito da polémica que envolvia 0 conceito de patriarca- lismo (LUBY, 2006). 196] Hisériae Dircico Para Gorender, 0 ponto central, no entanto, eram as novas concepgées de leis e direitos provenientes dos estudos de Thompson. Ao reconhecer que autor inglés era o mais combativo eritico de Althusser, ele também o acusava de ser um culturalista. Em outras palavzas, enquanto Althusser converte 4 historiografia no reino dos conestos “‘sbstratos-formais Thompson & um historiador intensamente voltado para a realidade empl- rica ¢ que abomina constrangimentos teéricos (..] Assim, Althusser teria feito uma histria sem sujeito, enquanto o autor britinico ceria dado pri- ‘maria 20s trabalhadores como sujcito histético. (1990, p. 100) ‘Mas quais eram as eriticas que orientavam a visio de Gorender sabre as concepgées de leis ¢diteitos de E. Thompson? Antes de tudo, € importante considerar que um dos mais importantes historiadores da chamada Nova Esquerda Britinica nio se tornou conhecido apenas no Brasil e io somente pelas discuss6es acerca do escravismo colonial ‘Ao menos dois autores no pais é haviam incorporado as visbes sobre o ditcito de ‘um marco na historiografia brasileira, onde 0 autor demonstrou como a con- jompson. Em 1981, Edgar De Decca publicara 0 Siléncia dos Vencidos, cepsio de insucesso serviu para ocultar a luta de classes antes da Revolugio de 1930 (DE DECCA, 1981). Nesse sentido e inspirado em ‘Thompson, cle de luca do Movimento Operirio Camponés, Também é preciso dar a conhecer produziu um estudo original sobre 0 processo de destruigéo da meméri 1a tradusio de dois dos livros mais que foi De Decca que tornou poss importantes de Thompson: A formasao da clase operdria, em txés volumes (19872) © Senbores e cagadores (198; colegio ditigida por Edgar De Decea, ),lveos editados pela Paz © Tera, na icinas da Hist6ria ‘Outra aucora responsvel por inttoduzir uma teflexio mais acurada so- bre a dimensio da lei foi Maria Léicia Lamounier Em 1986 cla escreveu a tese publicada em livro em 1988 Formas da transcio da escravidéo a0 trabalho livre: a lei de locasio de servigo de 1879, orientanda por Michael M. Hall, No texto, ela esquadrinhou a lei de alocagio do império ¢ refletiu sobre os seus Marcia Maria Menendes Moca. 197 significados, produzindo assim uma reflexéo inaugural sobre aquela norma legal Em suma, nos anos oitenta, a perspectiva thompsoniana ganhava forgas no pais e redefinia, por vi vieses, as concepsdes sobte as leis ¢ os direitos. Mas quais seriam as marcas interpretativas de Thompson que tanto isrtaram Gorender, 20 ponto de produzir um livro para desestimular as pesquisas que ‘ivessem como eixo norteador a relacio entre Histéria ¢ Direito de inspiragio thompsoniana? Em primeito lugar, a visio thompsoniana esté assentada em uma nogio de classe como um fendmeno social. Sua anilise de conflitos de classe pro. ‘curou superar a dicotomia entre infra superescrutura, o que implicaria uma apreciagio diferenciada sobre o direto, Por conseguinte, em ver de perseguir 4 anilise althusseriana sobre a dimensio superestrutural da lei, enquanto a tradugio exclusiva dos interesses das classes dominantes, ele destacaria que a norma legal — quando disponivel — se torna um instrumento que pode ser acionado pelas camadas populares. Ademais, a “maior dentte todas as fcgSes legais €a de que a lei se desenvolve, de caso em caso, pela sua légica imparcal, ‘ocrente apenas com sua integridade prépria, inabalivel frente a considera- «gées de conveniéncia (THOMPSON, 19876) ‘Ao superar o diagnéstico de que a lei “é apenas outra méscara do domi- niio de uma classe” (THOMPSON, 19871 dda investigacio sobre a lei capital de 1723 na Inglacerra — descortinar @ p. 350), ele procurou—a partir arena de luta que opés uma dinamica de conflito entre camponescs, senhores « representantes da justiga. Ao fazer iso, sem deixar de considerar a lei ex- pressio das clases dominantes, reconheceu sua complexidade e a necessidade de sair da armadilha reducionista do economicismo. Assim “o direito pode ser retérico, mas nfo uma tet6rica vazia’, pois “a lei, em suas formas e tradi ‘bes, acarretalva] principios de igualdade ¢ universalidade, que ceriam de se cstender forgosamente a todos os tipos ¢ graus de homens’ (THOMPSON, 1987b, p. 354). Mas 0 que irritara Gorender? Em primeiro lugas, 0 autor afirma que ‘Thompson abandonou o conceito de Modo de Produsio, dedicando-se a analisar a luca dos trabalhadores ingleses como sujeitos ativos de sua histéria, 198] Hiscériae Dircico De fato, jd em seu livro A miséria da teoriao historiador inglés — preocupado com 0 avango do pensamento de Althusser na Inglaterra — destruitia os ar- _gumentos do fldsofo francés, “declaro uma incessante guerra intelectual con- tra esses manxismos, € fago dentro de uma tradigéo marxista que tem o Marx como um dos seus principais fundadores’ (THOMPSON, 1978, p. 209). Nio € 0 lugar aqui de discutir os vétios marxismos que norteavam pensamento de esquerda naqueles anos, masa afirmativa de Thompson deixa claro que cle se considerava herdeiro de uma determinada versio do marxis- mo € nio parecia disposto a abandonar o legado (MATTOS, 2014). Em segundo lugar, o eixo central da critica de Gorender esté relacionado 20 papel que a consciéncia de classe se torna “a pedra angular da nogio de classe social”. A ideia de que a experiéncia vivenciada dos trabalhadares cons- tdi a classe era, para 0 autor, uma traigio aos principios do marxismo. Ainda segundo el “a experigncia vivenciada se compée de amilgama de tradigdes culturais, costumes, fé religiosa, lagos de parentesco, instituigées, afeigdes e sentimentos, regras morais, normas juridicas’ (1990, p. 101). A proposital confuséo de palavras tinha um intento: provar ao Ieitor a dimensio culturalista da obra de Thompson. Gorenderinsistia, ainda, na tese de que Thompson nio teria também realizado uma conexio entre relagées de produsio ¢ Direito. E possivel que Gorender nio tenba de fato accitado 0 estilo de apresentagio de Thompson sobre as dimens6es da lei e sequer tenha lido grande parce do livro no qual o autor descortina as relagbes entre campo: neses€ seus senhores. ‘Advogado de formagio, porém, Gorender se vé obrigado a considerar de Thompson foi o de “ter mostrado como os oprimidos conse- _guem utilizar a lei em seu favor e atuar sobre a jurisprudéncia. A implementa- Go da lei, é sem davida, um dos campos onde cotidianamente se trava a luta de classes’ (1990, p. 103). De todo modo, Gorender minimiza todas as pas sagens em que o autor expressa sua percepcio sobre a desigualdade na opera- cionalizagio da lei e também desconsidera a dimensio moral dos dominantes. Mas se aanilise sobre o dircitoe as leis €considerada uma benemeréncia daquele autor, para Gorender os desdobramentos da ref menos no- bres. Ele usa entéo uma estratégia para confundit 0 leitor, esumindo autores Marcia Maria Menendes Moca. 199 bbem distintos, com tradigies tedricas diversas para conclamar a pulverizagio intacionalista ¢ a destruigio da Histéria (GORENDER, idem). Detemo-nos, no entanto, na critica sobre o diteito e as leis que ele faz 4 obra de Silvia Lara, Para tanco, vale recuperar o “calor da quetela", em um ‘evento marcante, ocorrido no Departamento de Histéria da Universidade de Outro Preto, 20 longo de um Seminario intculado Tendéncias Contempo- rincas da Historiografia Brasileira, em dezembro de 1991, Naquela ocasiso, ‘quatro autores apresentaram stas reflexes sobte abolicio: Luis Carlos Soares, Luis Mout, Jacob Gorender com a apresentagio: Eseravidio mo Brasil: Balango bistoriogrifico¢ Silvia Lara, com Demografia ¢ escravidio. Os primeitos dois autores entregaram os originais de suas apresentagdes, enquanto os dois dlti- mos tiveram suas apresencagées gravadas, ranscritase revisadas por eles Passados tantos anos desde aquele embate que se desdobrow em varias acusagSes na imprensa, é interessante reconstruir a linha de raciocinio de Go- render em sua apreciagso sobre 0 uso do Diteito pela nova gerasio, eujo cemblema era Silvia Lara. Mas, comecemos por ela. Sem entrar em detalhes sobre as consideragbes que cla faz acerca de Emi- lia Viowti da Costa e Ci Cardoso — que também produriram textos, ques- tionando algumas chaves de leitura dos autores que entéo produziam nos anos oitenta Lilia Schwarez, Célia Azevedo e outzos —, Silvia Lara também, cem um dossié intitulado Evcravidio no Brasil: Um balango historiogifico, na Revista de Histéria, direciona suas reflexes para a obra de Gorender, exata mente A Ereravidio Reabilitada Em primeiro lugar, éfato que Gorender inser os seus antagonists em ‘um Ginico suporte: a Unicamp, desconsiderando, é fato, a diversidade te6rica ede método dos investigadores que Id estavam. Alids, como ela mesma afirma “sio poucos o que salvavam da verdadeira metralhadora giratéria [.] insta lada do alto da verdade histérica que somente o verdadeiro marxismo pode produzit” (LARA, 1992, p. 222), Em segundo, ela acertadamente 0 acusa de abrir mio dos procedimentos minimos de andlise critica das fontes, em nome “de uma boa tcoria” (idem, p. 223). Em tereciro, ela recupera a visio de Gorender sobre a violéncia na escravidéo ¢ desnuda os entendimentos cequivocados que cle teria feito em relagio 20 conceito por ela operado. Por 200 | Hiséria ¢ Dircixo conseguinte, ao contrério do que foi sugerido, Lara nio teria afirmado a ine- xisténcia de violéncia no cativeito, mas ela teria sido mareada por tentativas de moderar os castigos softidos pelos escravos, através de virias normas legais produzidas pela C Naquela revista ainda, 0 editor a instiga a se posicionar sobre conhe- cimento hist6rico ¢ politica. Tal como Gorender, Lara no recusa o debate politico, Ela mesma assegura que trabalhar com as evidéncias empiricas é um ato politico, De qualquer forma, quando perguntada sobre certo abando- rho em sua obra de uma dimensio estrutural, a autora recupera a coneepgio thompsoniana para afiansar que a experiéncia dos cativos € 0 eixo condutor de sua reflexéo. Por conseguinte, ela explicita sua visio de Thompson, oposta ade seu desafeto: [cle) rabalha o tempo com intimeras evidéncias ¢ somente ao final do livro a ertca se soma explicita. Depois de atravettar uma denca floreta de vides jae documentais & possvel demonstrar como a elaborasio da lei a prépria lei, constivuem wma arena de luta de clases € no um mero “relexo! superestrucural (1992, p. 237) Mais quais seriam as criticas renovadas de Gorender, quando de sua ex- posigéo naquele seminério? fo vou retomar aqui as reprimendas que havia registrado na Esoravidio reabilitada. E certo que ele quis se inserie numa cor rente contrétia aos thompsonianos ¢ fiz isso, misturando — sem explicar — 0s movimentos revsionistas entéo em voga, desde Furet, contriio & uma ideia positiva sobre a Revolugio Francesa, aos revisionistas que negaram a experiéncia do Holocausto Hi, porém, uma quest have na apreviagio de Gorender. De fato, “Thompson nio considerava ser possivel discutir as dimens6es e aplicabilidade da lei aos escravos. E é correto afirmar que os thompsonianos tenderam a dlesconsiderar este aspecto. Além disso, apesar de certo exagero, Gorender destaca outro problema: utilizar processos judiciais para afirmar que 0s ea- tivos conseguiam assegurar alguns direitos, como defendera Lara, nos leva a superestimar a autonomia dos cativos ao longo da escravidio, se nio formos ‘Mircia Maria Menendes Mow [201 ‘capazes de a0 menos mapear — no tempo © no espaco — quantos deles puderam de fato consagear os seus diteitos, em uma conjuntura mais ampla de liberagio do trafico e 0 seu fim. A liberdade nZo se sustenca no eéu, logo preciso refletir com mais vagar como aquela propriedade (0 cativo) poderia ‘consagrar a posse de suas pequenas parcelas de terras ¢— se possivel — trans- miti-las aos seus descendentes. De todo modo, a questéo que nos interessa aqui é Lara e Gorender acionaram a lei para reiterar suas concepsées sobre os direitos (ou nio direitos) dos escravos. Logo. é possivel ou néo considerar aexisténcia de um diteito colonial? Vejamos com mais detalhe esse aspecto, a partir de outra quetela, certamente menos incendiéria, ou seja, o embate ‘entre Hespanha ¢ Laura de Mello ¢ Souza. AS PERSONAGENS F AS CONCEPGGES SOBRE 0 DIREITO COLONIAL Em fins da década de 2000, mais uma vez, dois grandes investigadores ex pressaram suas posigées discordantes acerca do direito na colénia: Antonio Manuel Hespanba ¢ Laura de Mello ¢ Souza, © primeiro talvez cenha sido «6 responsivel pelo [reJnaseimento da aproximagio entre dois campos disci- plinares. Sua obra Ar véiperar de Leviatan (cuja primeira edigio é de 1989), ;procurou compreender a organizagio do poder do Antigo Regime Portugués antes da publicagio da teoria do contrato social de Hobbes, de 1651 (HES- PANHA, 1994), Formado em Direito pela Universidade de Coimbra — ber «0 do Dicito em Portugal — Hespanha é autor de extensa obra, referén obrigatéria para os estudiosos do Dircito © da Histéria moderna, Seus livros «artigos tornaram-se um porto seguro para muitos dos historiadores que nos anos 2000 investigaram a natureza juridica do sistema colonial. Além disso, grande parte da renovagio da historiografia lusa se deve diteta ou inditeta- ‘mente & sua orientagio (CARDIM, 2011). Nao menos importante é por um lado, a assumida influéncia do ju- rista espanhol Clavero na obra do autor portugués. Os textos de Clavero se desdobraram também em estudos decisivos sobre a relagio entre a Histéria « Direito na Espanha, como por exemplo Mayoraigo (1989). Por outro lado, € digna de registro a marcante auséncia de leituras thompsonianas na obra 202 | Hiséria ¢ Dircco de Hespanha, a comesar por panorama histérico da cultura juridica européia, onde o autor a0 explicar a sociologia marxista clissico e o marxismo dos anos 1960 nio fax nenhuma referéncia aquele autor, se contentando em destacar a conttibuigio de Gramsci, Althusser ¢ Poulantzas (HESPANHA, 1997), Laura de Mello ¢ Souza, por sua vez, € internacionalmente conhecida como a mais importante historiadora da época colonial do pals. Sua néo me- ros extensa obra sempre esteve ancorada na obsessio por investigar 0 mundo colonial de carne e osso, dos pobres mineizos das Minas Gerais do século XVIII (1983) aos administradores coloniais no mesmo periodo (2006). Dow. tora pela Universidade de Séo Paulo, onde também atuou como docente ¢ pesquisadora 20 longo de décadas, foi — tal como Silvia Lara — orientanda de Fernando Novais, cuja inspiragao nunca desapareceu de seus trabalhos Mello e Souza néo é uma historiadora do Direito, mas talvez nio seja {gratuita sua preocupagéo em desnudar as importantes contribuigées e incom- pletudes da historiografiaclissica, como Caio Prado Jr, Raimundo Faoro ¢ ‘mesmo Sérgio Buarque de Holanda; todos com formagio em Direito, como cra recorrente nos anos 1930 a 1960, Por esse vi , aautora pode questionar em O sol ea sombra muitas das afirmativas apressadas sobre a administragio portuguesa do século XVIII, E também ngo 3 toa, explicitar sua ertica a al ‘gumas reflexes de Hespanha. Mas qual é a querela? E dificil saber qual foi a origem do embate. Fala-se muito de um evento em Paraty, quando Laura de Mello ¢ Souza tetia explicitado suas eriticas a Joao Fragoso, Maria Fernanda Bicalho ¢ Maria de Fatima Gouvéa, O ponto central da critica era — a0 que parece — 0 conceito de Antigo Regime nos twépicos. Pouco tempos depois, aqueles autores publicariam um livro com 0 mesmo titulo: O Antigo Regime nos srépicos (FRAGOSO, 2001). Ali Hespa- nha escreveu um texto, inttulado “A concepe: conporativa da sociedade ea historiografia da época moderna”. Nesse texto, 0 autor portugues retomaria sas principais chaves de leitura para explicar as novas abordagens oriundas da aproximacio da Histéria ¢ 6 Diteito. Como desdobramento, segundo 0 au- ‘or, sua obra permitiu um novo conceito de monarquia portuguesa (a0 menos até meados do sévulo XVII) que se caracterizava por “um poder real [quel partilhava 0 espago politico com poderes de maior ou menor hierarquia’, Marcia Maria Menendes Moca. [208 pelo fato de que o “dizeto legislativo da Coroa era limitado enquadrado na doutrina juridica ¢ pelos usos e priticasjuridicas loeais’, “os deveres politi cos cediam perante os deveres morais (graga, piedade, misericdrdia, gratido) ou afetivos, decorrentes de lagos de amizade, institucionalizados em redes de amigos ede clientes’. Por dikimo, “os ofciais régios gozavam de uma protesio muito alargada dos seus direitos ¢ atribuigées, podendo fxzé-los valer mesmo ‘em confronto com 0 rei ¢ tendendo, por isso, a minar e expropriar 0 poder real” (HESPANHA, 2001, pp. 166-7). Para além dos méritos mais visiveis do texto, hi a preocupagéo em desta cara multiplicidade de estatutos coloniais ¢ a auséncia de um corpo geral de direito, © que Ihe permitiu também afirmar a existéncia de uma justiga crio- Ia ea enorme autonomia de que gozavam os governadores, tanto para criar ‘quanto para dispensar direitos, assim como para exercer a graca Considerados senhores das teras do Brasil que no estivessem em posse de nativos ¢ colonos, a Coroa Portuguesa permitia que os donatétios conce dessem sesmatias. Os ouvidores dos donatitios, por sua veo, “deviam inspe- . Acesso ‘em: 11 noy 2017. LEVEBVRE, Georges. © grande medo de 1789, Rio de Jancix. 1979, LIBY, Douglas “Repensando o conceito de paternalismo escravista nas Amé- rieas”, In: PAIVA, Eduardo & ISNARA, Ivo. Eseravidio, mestigagem ¢ Histé- ria comparada. Sio Paulo; Belo Horizonte: Vit6tia da Conquista: Anablume: UFMG; Udunesb, 2006. pp. 27-40. PLATAFORMA S.LB.L. Disponivel_ em: .Acesso em: 9 nov 2017. 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