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Série Selena 02 - em Seus Sonhos - Robin Jones Gunn
Série Selena 02 - em Seus Sonhos - Robin Jones Gunn
Em Seus Sonhos
Em Seus Sonhos
Para minha cunhada, Kate Gunn Medina, e seu marido e filhos: Al, Adrian,
André e Alysssa.
Que Jesus esteja sempre presente em seus sonhos
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Capítulo Um
- Como é que você consegue viver desse jeito? indagou Tânia, a irmã de Selena.
Ela pegou no chão uma calça jeans que estava caída no seu lado do quarto e atirou sobre
a cama da irmã, ainda desarrumada. A calça foi parar bem em cima de uma pilha de roupas
que Selena lavara na segunda-feira. Era quinta-feira, e a garota ainda não as guardara.
- Eu não estou me intrometendo com suas coisas! replicou Selena, pegando o jeans e
colocando-o junto com suas outras roupas sujas que se achavam no chão. Só porque você tem
mania de arrumação, isso não quer dizer que todo mundo tem de ter!
- Você não precisa ser igual a mim, Selena. Mas tente ao menos ser normal.
- Normal? Eu sou normal. Você é que tem neurose de arrumação, Tânia. Seu cabelo está
sempre superpenteado. Você não sai sem se maquiar. Suas unhas estão sempre impecáveis.
- Ah, é? E você?
- Pois eu acho que jogar minha calça pra cá desse jeito foi uma tremenda grosseria, sim!
- Se você arrumasse suas coisas de vez em quando, eu não precisaria jogar nada por aí.
Nesse final de semana, po exemplo, será que daria para você deixar o meu lado arrumadinho
como está agora e, até quando eu voltar, dominga à noite, tentar ajeitar o seu?
Selena mordeu o lábio inferior para não soltar as palavras que lhe vieram à mente.
Parecia que não adiantava nada retrucar. Nas vezes em que o fizera, acabara arrependendo-se
depois. Estava convencida, porém, de que ter de ficar no mesmo quarto com uma irmã que
tinha mania de arrumação era uma das piores formas de sofrimento que podiam existir no
mundo. Devia estar na lista das torturas. Algum dia ela ainda iria descobrir essa lista e mostrar
aos pais. Aí eles compreenderiam o quanto ela já sofrerá nos seus dezesseis anos de vida por
- Estou falando sério, Selena, insistiu a irmã, fechando o zíper de sua mala. Um dia
desses você vai ter de parar de ser tão bagunceira. Sugiro que comece agora, nesse final de
semana.
Selena sentou-se no chão, perto do seu montinho de roupas sujas, e correu os olhos pelo
cama de Tânia estava perfeita. Não se via nela nem uma ruguinha. As almofadas bordadas
achavam-se posicionadas no ângulo exato. Sobre a cômoda havia um forro branco, rendado,
onde tudo se encontrava perfeitamente de acordo. Parecia um pequeno palco. Bem no centro,
estava uma jarrinha com três tulipas, que ela colhera pela manhã no jardim. Ao lado dela,
havia dois porta-retratos. Num deles, estava a foto de formatura de Tânia e no outro, uma que
fora tirada quando ela era bebê. Havia quatro vidros de perfume ou “fragrâncias”, como dizia
a irmã. Estavam bem enfileirados e com o rótulo virado para a frente, para a “platéia”.
Nordstrom. Fora lá que fizera amizade com as pessoas com quem iria passear nesse final de
amigos. Desde que a família se mudara para Portland, algumas semanas antes, Tânia já fizera
amizade com uma porção de gente. Já havia até enchido uma página e meia da sua agenda de
endereços com o nome e telefone desses novos amigos. A agenda de Selena ainda não tinha
um nome sequer.
Fazer amizades era de fato um de seus problemas. Contudo mais difícil ainda era
arranjar dinheiro. Tinha esperanças, porém, de resolver essa questão muito breve. No sábado
de manhã, teria uma entrevista numa floricultura, para ver se arranjava um trabalho ali. A loja
ficava em Hawthorne, a sete quadras da casa em estilo vitoriano onde morava a família de
Selena. E ela gostava de flores, mas não tinha muita certeza se conseguiria aprender a fazer
arranjos. Sua visão estética e artística era um pouco diferente da maioria das pessoas. Notava-
se isso pela maneira como Selena se vestia. Gostava de roupas simples, informais. Não tinha
nada “vistoso”, tipo vitrine, como era o caso de Tânia, com suas roupas e seu lado do quarto.
E era assim que ela se via também. Uma pessoa simples, natural, descontraída. Seu
cabelo louro, bem anelado, dava nos ombros. E ela o deixava ao natural. Tinha olhos azul-
acinzentados, como a cor do céu numa manhã de inverno, que alegravam seu rosto de
expressão sincera. E não usava maquiagem nem para disfarçar as sardas que cobriam todo o
nariz.
Certo dia, alguns meses antes, Selena estava examinando suas sardas ao espelho e em
dado momento se deu conta de que o que tinha de mais bonito eram os lábios. Tanto o
superior como o inferior eram de igual tamanho, redondos e cheios, perfeitos para ser
beijados. É, mas isso ela ainda não sabia direito, pois o único garoto que a beijara nos lábios
- Selena!
causa do quarto.
Sua mãe apareceu à porta. Seu rosto, normalmente tranquilo, tinha naquele instante uma
expressão preocupada Usava uma saia jeans justa e uma blusa branca, com as mangas
- Tio Daniel acabou de telefonar. Grace está no hospital. Ela e os gêmeos tiveram um
acidente de carro. Os meninos não sofreram nada, mas Grace quebrou os dois braços. Falei
com Daniel que vou tentar pegar o primeiro vôo para lá. Tem um que sai às sete da noite.
- Está, disse. Ela terá de permanecer internada pelo menos até amanhã. Mas vai ficar
com os braços engessados durante várias semanas. Obviamente não poderá cuidar de Ivan e
Nathan. Os dois estavam dormindo no carro na hora do acidente. Foi um outro veículo que
bateu no deles, num cruzamento. Daniel disse que eles estão bem.
Selena sabia o quanto sua mãe era ligada a Grace, sua irmã mais nova. Ela sentia quase
obrigação de ajudar Grace sempre que esta precisasse. Por isso fora para Phoenix, por ocasião
do nascimento dos gêmeos. Isso acontecera um ano e meio atrás. Parecia que ela era uma
espécie de mãe para a irmã. Assumira essa posição quando a mãe delas morrera, havia cerca
de vinte anos. Agora, então, era também uma espécie de “avó” para os filhinhos dela.
- Ainda preciso conversar com seu pai, quando ele chegar, disse a mãe, dando uma
olhada para o relógio de pulso. Ele deve estar chegando. E como Tânia foi esquiar, e seu pai
está pensando em ir acampar com os meninos, você terá de ficar sozinha com Vó May.
- Tudo bem.
- É, eu sei que você é capaz de cuidar de tudo, continuou. Só que, às vezes, quando Vó
May tem uma daquelas falhas de memória, fica difícil lidar com ela.
- Mas eu dou conta, mãe. Comigo, quase sempre ela fica com a mente lúcida.
A mãe de Selena ajeitou atrás da orelha o cabelo castanho-claro, cortado curto. Selena
- A senhora está preocupada porque Vó May terá de ficar sozinha o dia inteiro amanhã?
- Não. Não quero que você perca aula, não. Creio que não vai haver nenhum problema.
Afinal, antes de nos mudarmos para cá, ela ficou anos sozinha.
- Mamãe, disse Selena cruzando os braços, vai dar tudo certo. Me dá uma oportunidade
Nesse momento, elas ouviram os passos do pai de Selena subindo a escada. Instantes
depois, ele chegava ao quarto da filha. Era um homem de aparência vigorosa. Seu cabelo, já ia
escasseando na testa, era a única indicação de que entrara na faixa dos quarenta anos.
Selena pensou se o pai já percebera que a mãe dela tinha lábios bonitos, perfeitos para
ser beijados, como ele acabara de fazer. Será que os homens notavam esse tipo de detalhe?
Principalmente depois de já haverem passado vinte e cinco anos beijando os mesmos lábios?
- Posso pegar o vôo das sete horas, explicou a mãe, mostrando ao marido o pedaço de
papel. Tem um que sai 10:20h, mas faz escala em Los Angeles.
- Não precisa não, pai, interveio Selena. Eu fico com Vó May. Não vai ter problema
algum.
roupas, pronta para confirmar o que dissera. Vocês estão me olhando como se eu não fosse
capaz de encarar essa situação. Já se esqueceram de que um mês atrás viajei sozinha para a
Inglaterra e voltei direitinho? É claro que posso ficar uns dias aqui com minha avó.
- Vó May tem passado bem, disse Selena. Já faz uma semana ou menos, que ela não fica
Ela caminhou até a porta e cerrou-a silenciosamente. Depois continuou falando em voz
- Acho que os resultados devem ficar prontos na próxima semana. Mas tudo que vai dar
nos exames, nós já sabemos. A mente dela está falhando, mas no mais ela está com ótima
saúde.
- Podem confiar em mim, afirmou Selena. Nós duas vamos ficar muito bem aqui.
Vamos, sim!
E aliás, pensou consigo, nem vou precisar cancelar meus compromissos sociais, já que
- Está bem. Nós vamos, disse o pai, tomando a decisão prontamente. Selena, você vai
ficar no comando da situação, filha. Meu bem, continuou ele, virando-se para a esposa, vou
levá-la ao aeroporto daqui a uma hora e, às 4:30h da madrugada, irei acampar com os garotos,
como já havíamos programado. Se você tiver algum problema, Selena, ligue para o Cody ou
Cody - que era casado com Katrina e tinha um filho de nome Tyler - morava no estado de
Washington, a mais de uma hora de distância. Wesley estudava fora, num lugar chamado
Corvallis, que ficava a quase duas horas. Se ela tivesse algum problema, eles não poderiam
ajudá-la em nada. Contudo tinha certeza de que poderia resolver quaisquer dificuldades que
surgissem.
testa. Estou sempre muito admirada com você; e muito feliz também! Ah, e por falar nisso, se
- Selena, uma voz grave sussurrou bem perto do ouvido da jovem. Querida, eu e os
- Pai?
- Não precisa acordar, não, filha. Só queria lhe dizer que já estamos de saída. Você pôs
- Sim.
- Obrigado por se dispor a assumir as rédeas de tudo aqui. E lembre que se houver
algum problema é só ligar para sua mãe, na casa da tia Grace, ou para Wesley ou Cody.
- Vai dar tudo certo, pai, tenho certeza, resmungou ela, puxando mais as cobertas e
Selena relaxou para dormir, mas ficou um longo tempo na “zona” intermediária - não
Uma hora via Vó May, com ar distraído, procurando uma pena num dos armários.
Depois era Kevin, seu irmãozinho de seis anos, tentando permanecer firme às margens do
regato, enquanto um peixe enorme o puxava para a água. Daí a pouco, a pena aparecia
esvoaçando e caía na página do seu livro de Biologia. Quando ela ia pegá-la via, com o canto
dal olhos, um vulto masculino com um chapéu tipo Indiana Jones e uma mochila de couro.
Imediatamente abriu os olhos. Viu apenas o quarto às escuras. Paul. Selena soltou um
suspiro e fechou os olhos, procurando voltar a dormir. Queria cair num sono profundo, onde
os fragmentos de sonhos podem ir e vir numa dança louca, mas desaparecem com a luz do
Ficou mais de duas horas remexendo-se na cama, tentando adormecer, mas sem
bilhete, avisando que fora para a aula e que estaria de volta em torno de 4:00h da tarde.
Decidiu vestir uma calça jeans bem larga (que Tânia achava ridícula) e uma blusa
bordada (que a irmã considerava horrível). Parou em frente do espelho grande que havia no
corredor e ficou a examinar sua imagem alguns minutos. Ainda bem que hoje Tânia não iria
dar palpites sobre sua maneira de vestir. Ouviu Vó May remexendo no quarto e foi até lá,
- Entre, queridinha!
Bom sinal. “Queridinha” era um apelido carinhoso que Vó May usava com a neta. E
ultimamente ele passara a ter um outro sentido também. Se a avó a chamasse por esse apelido,
podia-se saber que estava vivendo “no presente”. Se não a tratasse por “queridinha”,
provavelmente estava pensando que Selena era alguém do seu “passado”. Momentos antes,
Selena tivera receio de que a mente da avó “embarcasse” na sua perigosa “máquina do
Vovó estava arrumando a cama. Retirava o edredom grosso e quente e estendia a velha
colcha feita à mão. Era uma colcha de retalhos que ela mesma confeccionara, utilizando
pedacinhos de tecidos das roupas dos filhos, que fora guardando durante vários anos. O
cômodo era agradável e de aspecto alegre. Havia uma lareira que ela acendia com frequência
- Já estou quase pronta para ir pra aula, disse Selena. O que a senhora vai fazer o dia
pode ser também que sobre tempo para ir tomar chá com o prefeito antes de você voltar da
Selena sentiu que ela estava alerta e com seu humor de sempre.
- Ahn! Parece que vai se divertir muito! disse a jovem, brincando também. Não se
antes que esta pudesse fazer a volta e pegá-lo. Bateu os olhos no relógio eletrônico, que
Vó May pegou o fone e Selena tratou de terminar de arrumar a cama dela. Ouviu-a
- Ah, é? Oh! Não, não! O.k.! É... Bom, não! Está bem! Tchau!
A senhora recolocou o fone no gancho no instante e que a neta saía porta afora.
- E aí? indagou Selena, olhando por sobre o ombro. O que mais vai fazer hoje? Bungee
jumping ou pára-quedismo?
*
Bungee jumping: um esporte moderno em que o praticante salta de um ponto elevado, amarrado a uma corda
elástica. (N. da T.)
Desceu a escada correndo e parou junto à porta da frente para pegar sua mochila, que
estava no cabide.
- Selena! gritou a avó com voz aguda, ainda no alto da escada. Você pode me dar uma
carona?
A garota parou, sentindo uma leve irritação ao pensar que talvez chegasse atrasada à
escola. Volta e meia, ia levar a avó à farmácia ou à mercearia, mas será que hoje ela não
- Vó, eu levo a senhora aonde quiser, mas depois que chegar da escola.
- Para o hospital.
Selena ficou certa de que a cabeça de Vó May começava mesmoa vacilar de novo.
- É hoje, sim. O Dr. Utley ligou agorinha mesmo e disse que não posso beber, nem
- Eu não vou estar aqui não, replicou Vó May. Vou para o Hospital St. Mary. Você pode
Selena ficou sem saber o que fazer. Como era possível que a mente da avó mudasse
assim de uma hora para outra? Não poderia deixá-la ali sozinha, com esse problema. Ela era
bem capaz de chamar um táxi e sair para algum lugar. O que faria se chegasse em casa e a avó
escada de dois em dois degraus. Vó May estava no quarto, dobrando algumas peças de roupa
- Ele disse que não posso comer nem beber nada, nem mesmo água. E agora, só porque
não posso, estou morrendo de fome. Foi uma bênção o Dr. Utley ter resolvido ler os
resultados dos exames hoje cedo. Ele vai viajar às três da tarde e ficará fora uma semana. Não
- É por isso que não me incomodo de ele ter avisado e cima da hora. É claro que quero
que ele mesmo faça a cirurgia. Foi ele que operou Paul, quando ele teve apendicite.
Paul era um dos filhos dela. Ele morrera na guerra do Vietnã, o que a deixara bastante
traumatizada. Sempre que ela começava a falar desse filho, tinha uma crise de esclerose.
Selena sentou-se na beirada da cama e colocou a mão sobre o braço dela, para tentar
- Vamos fazer uma coisa, disse. A senhora fica em casa hoje e me espera aqui, no seu
quarto. A senhora vai ficar muito bem. Pode assistir à televisão ou ler um livro. Quando eu
voltar, nós duas vamos procurar o Dr. Utley. Que tal? Ta bom assim?
- Não sei por que você está falando comigo desse jeito Selena. Mas quero lhe dizer que
não estou brincando. Quem me telefonou há pouco foi o Dr. Utley. Pelo resultado dos exames
que fiz, ele disse que tenho de extrair a vesícula o mais rápido possível. E como quero ser
operada por ele, tenho de ir agora de manhã. Mas não se preocupe com nada. Pode ir pra
Selena não sabia mais o que pensar e ficou em dúvida sobre o que fazer.
- Oh, meu pai! exclamou Vó May, olhando para o relógio. Já são 8:25h. Estou
- Está bem. Enquanto a senhora termina aqui, vou dar uma chegadinha lá embaixo.
Em seguida, saiu do quarto, fechou a porta, desceu a escada correndo e entrou na saleta
do andar de baixo. Foi até uma velha escrivaninha de carvalho e pegou a agenda telefônica.
Abriu-a nervosamente, procurando o nome do Dr. Utley. Discou o número e assim que a
- Alô! Preciso falar com o Dr. Utley imediatamente. É urgente! Meu nome é Selena
Jensen.
Para Selena, que estava aguardando, aquele minuto pareceu uma hora. Escutava os
- Alô, Dr. Utley. Aqui é Selena Jensen. Sou neta da Sra. May Jansen. Sinto muito ter de
incomodá-lo, mas minha avó disse que o senhor ligou para ela agora de manhã, e que ela vai
ter que fazer uma cirurgia. E não estou sabendo direito o que fazer, porque às vezes ela fica
- Não, replicou a moça. Será que o senhor poderia conversar com minha avó e explicar
enviou os resultados para mim. Ela está com vários cálculos na vesícula. Um deles deslocou-
se e está entupindo um dos canais biliares. Já marquei a cirurgia dela para hoje às 11:00h. Ela
Recolocou o fone no gancho e deu um suspiro profundo. Sentiu o coração bater com
força.
O Hospital St. Mary ficava a poucos quilômetros da casa de Vó May. Selena encontrou
uma vaga bem perto da porta de entrada. Às dez para nove, elas estavam se apresentando na
recepção. Vó May assinou uns documentos, e em seguida ela pegaram um elevador e foram
para um quarto. Lá vovó iria trocar de roupa e vestir a camisola do hospital. A seguir, deveria
- Espere aí, queridinha! Fica vigiando a porta aí pra mim enquanto troco de roupa. Não
Selena abriu a cortina que havia em torno do leito e postou-se à porta. Daí a pouco
Selena mordeu o lábio inferior. Ted era o nome do seu avô. E ele morrera quando ela
ainda era bem pequenina. Agora, Vó May devia estar mesmo confusa.
- Meu nome é Larry, senhora. Preciso retirar amostra do seu sangue. Quando estiver
pronta, me avise.
Selena abriu a cortina. A avó estava deitada na cama, coberta até no queixo com o
lençol branco. Tinha uma expressão passiva, tranqüila. A animação que demonstrara cedo
desaparecera.
- Feche a mão com força, disse o rapaz, pegando no braço muito branco. É só uma
espetadinha aqui... Fique firme, já está quase acabando... Pronto. Dobre o braço e segure isso
bem aqui.
quando olha pra mim? Uma das suas filhas? A enfermeira? Será que pelo menos sabe que
Selena continuou ao lado da cama durante uma hora. As duas não conversaram muito.
Pelo menos Selena não falou muito. Vó May pediu uma xícara de café e um lenço de cabeça,
azul, que deixara no carro. Perguntou a que horas iria embora dali. Nada daquilo fazia sentido.
Vó May parecia não estar se dando conta do que se passava. Sem fazer indagações,
assinou um documento no qual estavam relacionados todos os objetos com que chegara ao
hospital. A enfermeira lhe disse que fosse ao banheiro, e ela foi sem objetar. Estendeu o braço
para que lhe fosse aplicada uma injeção intravenosa e apenas piscou de leve com a picada da
agulha. Selena estava até aliviada de ver que ela se achava mais ou menos desligada
médico.
A moça seguiu-a, andando ao lado da maca. Num impulso, inclinou-se, pegou a mão da
avó e ficou a segurá-la com firmeza enquanto iam descendo o corredor. Sua avó tinha mãos
Eles continuaram empurrando a maca, e Selena, não sem certa relutância, teve de soltar
a mão de Vó May.
Instantes depois, viu chegar um homem idoso, vestido com a roupa verde do hospital.
confusa. De manhã, depois que o senhor ligou, ela estava ótima. Mas agora parece que está
com a crise de esquecimento de novo. Não sei se isso vai fazer alguma diferença no que diz
- Obrigado, disse o médico, batendo-lhe de leve na mão. Não se preocupe. Ela vai ficar
boa. Você poderá ficar com ela na sala de observação? Acho que será bom que ela veja uma
Selena sentiu um forte aperto na boca do estômago. Sabia que tinha de telefonar para a
mãe e contar o que estava acontecendo, mas havia diversos problemas. Primeiro, não tinha de
cor o número do telefone de tia Grace. E estava na dúvida se deveria ir em casa olhá-lo ou
ficar junto da avó. Vó May estava sendo operada. Achou que era melhor permanecer no
hospital.
Talvez o melhor a fazer fosse ligar para o irmão e a cunhada. Eles deveriam saber o
que tinha não daria para pagar um interurbano. Teria de ligar a cobrar. Katrina iria
compreender.
O problema era que Katrina não estava em casa e a telefonista não permitiu que ela
deixasse recado na secretária eletrônica. Agora então o dinheiro acabara e ela não havia
Assim que entrou no casarão vazio, Selena foi logo dar telefonemas. Em primeiro lugar,
ligou para a tia e deixou um recado na secretária. Como não queria assustar a mãe dizendo-lhe
“Oi, mãe. Aqui é Selena. Assim que a senhora puder, liga para mim ainda hoje... o mais
seguida, anotou o número num pedaço de papel e guardou-o na mochila. Mais tarde iria ligar
mensagem, pedindo que entrasse em contato com ela em casa. Para eles também não disse
Pegou uma caixinha de suco de laranja, alguns biscoitos e umas moedas que a mãe
“escondia” na gaveta da mesa da cozinha. Eram moedas que ficavam esquecidas nos bolsos
da roupa e que sua mãe encontrava depois na secadora. Ela dizia que eram a sua “gorjeta”.
Em seguida, saiu apressadamente para retornar ao hospital. Ali esperou quase duas
horas. Tentou ligar para a tia duas vezes, e nas duas desligou um pouquinho antes de a
secretária se ligar automaticamente, para poder pegar as moedas de volta. Não havia mais o
que fazer, a não ser sentar e ficar aguardando que Vó May saísse do bloco cirúrgico. Forasm
Por volta de 13:30h, uma enfermeira veio até a sala de espera e disse que Selena já
podia ir para a sala de observação e ficar com a avó. Então a garota sentou-se numa cadeira e
pôs-se a esperar mais algumas horas. Ficou folheando algumas revistas que havia por ali e, de
vez em quando, cochilava. Pensou em fazer outra tentativa de ligar para a mãe, mas achou
melhor deixar para depois. E se Vó May voltasse a si enquanto ela estivesse telefonando?
Pegou o último biscoito e deu uma mordida. Nesse momenton, ouviu um gemido.
Sentiu uma forte comoção interior e teve vontade de chorar. Sua avó querida parecia tão
fraquinha ali com aqueles tubos ligados a ela! Estendeu o braço e tocou de leve na mão dela.
- Está tudo bem! disse, tentando confortar a avó e a si mesma. A senhora vai ficar boa.
Uma enfermeira entrou no quarto e se pôs a olhar a paciente com os cuidados de praxe.
- Volto já! disse a moça. Se ela disser qualquer coisa, explique que Selena volta já.
Caminhou apressadamente corredor abaixo em direção do telefone público e discou o
número da tia. Estava ocupado. Aguardou alguns minutos e ligou de novo. Ainda ocupado.
Ficou nervosa, como se fossem repreendê-la por haver levado Vó May para ser operada sem
Discou de novo. Dessa vez, chamou. Aparentemente havia alguém em casa, então
Selena deixou o telefone tocar quatro vezes. Na quarta, a “secretária” ligou automaticamente.
“Oi!” disse. “É Selena de novo. Mãe, eu preciso muito falar com a senhora. Ahn...”
Receando que o dinheiro acabasse antes que terminasse o recado, soltou tudo de uma
vez.
Não pôde terminar a sentença. O tempo acabou e o fone ficou dando sinal de ocupado,
cortando o que ela dizia. “Ah, essa é ótima!” resmungou, procurando mais dinheiro.
Só tinha trinta e cinco centavos. Não era suficiente para ligar para Phoenix. Irritada,
Selena voltou correndo para quarto para ver a avó. Entretanto, quando chegou lá, Vó May não
- Com licença, disse Selena para uma enfermeira de uniforme branco que passava.
Ela consultou sua prancheta de mão onde havia uma lista de pacientes.
Selena soltou um suspiro de alívio. Por uns instantes, pensou que houvera alguma
complicação e que tivessem levado sua avó de volta para a sala de cirurgia.
demais, principalmente aos programas com temas de “hospital”. O quarto 417 ficava no meio
do corredor, próximo ao posto de enfermagem. Selena entrou e viu que Vó May parecia
dormir tranqüilamente. Ela linha uma respiração bem peculiar quando adormecia. Era suave,
mas constante, como que “encrespando” o ar. A jovem parou ao lado da cama e falou em voz
baixa:
- Sou eu. Selena. A senhora está bem? Orei pela senhora. Tenho certeza de que correu
tudo bem.
- É provável que fique dormindo mais algumas horas, explicou o médico. A essa altura,
o efeito da anestesia já passou, mas aplicamos uns analgésicos muito fortes que causam
sonolência.
sondas.
- Parece que ela está bem, disse. Acredito que vai ficar boa. Tivemos muita sorte de
descobrir o problema bem cedo. Havia apenas dois cálculos, mas ambos eram grandes. Tive
de fazer uma incisão de cerca de quinze centímetros aqui, explicou ele, correndo o dedo em
Selena teve vontade de levar as mãos à barriga, mas conseguiu conter-se. Sentira uma
estranha sensação no estômago só de ouvi-lo falar no corte, e achou que era melhor não
- Ela terá de ficar internada pelo menos uma semana. Nos primeiros dias, estará meio
grogue, mas sabendo que você está aqui se sentirá melhor, continuou o Dr. Utley, sorrindo
para Selena. Você sabe que sua avó é uma mulher notável, não sabe?
Selena sorriu.
escutando, é muito doloroso saber que seu organismo está forte, mas a mente... concluiu ela,
- Bom, tenho de pegar o avião, disse num tom mais animado. Vou sair de férias. Estava
precisando de uma folga há um bom tempo. Meu assistente, o Dr. Adams, vai continuar
cuidando dela por mim. É possível que ele passe aqui mais tarde, hoje ainda.
A resposta de Vó May foi um suspiro ligeiramente mais profundo. Selena foi para uma
poltrona que havia num canto. Dobrou as pernas na cadeira, sentou-se sobre elas e se pôs a
olhar pela janela. O quarto dava para outra fachada do prédio do hospital. Lá embaixo, no
centro dos blocos do complexo hospitalar, havia um jardim muito bonito e bem cuidado.
Estava chovendo. Olhou para o céu. Algumas nuvens escuras pareciam estar mais baixas,
enquanto outras se mostravam fixas mais no alto. Não dava para ver o céu azulado acima
Selena se pôs a recordar tudo que lhe havia acontecido nos últimos meses. Em janeiro,
fora para a Inglaterra, numa viagem missionária. Ali fizera amizade com as três jovens que
haviam ficado no mesmo quarto que ela: Cris, Katie e Trícia. Embora essas moças fossem um
pouco mais velhas, Selena se dera muito bem com todas, em tudo e por tudo. Entendera-se até
melhor com elas do que com garotas da sua própria idade. Quando ela estava na Europa, sua
família que morava em Pineville, uma cidadezinha da Califórnia, mudara-se para Portland.
Em Pineville, ela conhecia todo mundo e todos a conheciam. Era uma das alunas mais
populares de sua escola. Em Portland, porém, era apenas uma ilustre desconhecida.
Aqui ela estudava numa escola particular, um colégio evangélico. A princípio gostara da
idéia, pois, como o colégio era menor do que as escolas públicas de Portland, achou que se
sentiria mais ou menos como em sua escola de Pineville. Contudo, depois que regressara da
Inglaterra, tivera certa dificuldade de ajustar-se ali. O início havia sido horrível para ela. Mais
tarde, tudo acabara se acertando, mas ela ainda não se integrara bem na turma. É claro que,
em parte, ela própria era a culpada. Não se esforçara nem um pouco para fazer amizade com
os colegas. Ainda assim, sendo ali uma escola evagélica, ela achara que os alunos seriam mais
amigáveis do que os da escola pública, que eram mais numerosos. Entretanto não era o que
estava acontecendo.
Vó May remexeu-se na cama. Selena olhou para ela, mas a avó acomodou-se,
retomando o ritmo constante de sua respiraçao. A jovem voltou a olhar pela janela e a
Selena pensou que, embora não quisesse deixar Vó May ali sozinha, amanhã teria de ir
trabalho, não teria dinheiro, e assim seria mais difícil participar dos círculos sociais do
Colégio Royal.
Duas semanas atrás, Amy, uma colega, convidara-a para irem a uma pizzaria numa
sexta-feira à noite. Ela aceitara, mas quando a moça viera pegá-la, os pais de Selena não
estavam em casa para lhe darem dinheiro, e ela não tinha nada na bolsa.
Desculpou-se com Amy, dizendo que seus pais não estavam em casa e que não se sentia
com liberdade de sair sem a permissão deles. A amiga pareceu entender a situação, mas
depois disso nunca mais a convidara para nada. Então Selena estava convencida de que o
Vó May e cumprimentando cada enfermeira que entrava para dar uma espiada na paciente.
Sentiu o estômago “roncar” e pensou que deveria ir comer algo e tentar telefonar de novo para
a mãe. Contudo não queria sair antes que Vó May acordasse; para que ela soubesse que a neta
se achava ali. Afinal, quando começou a escurecer, achou que teria mesmo de sair. Foi ao
posto das enfermeiras e explicou que iria sair e que demoraria uma hora ou menos. Elas se
limitaram a sorrir compreensivamente, mas pareciam presas ao seu trabalho. Obviamente, não
Selena teve uma sensação meio estranha quando subiu a escadinha da entrada da velha
casa, em meio à escuridão da noite e abriu a porta. Nunca estivera ali sozinha. Como em sua
família havia seis filhos, raramente ficava a sós. Sentiu-se meio tensa ao entrar na sala e
caminhar para acender a luz. Entretanto os cheiros peculiares da casa lhe transmitiram a
sensação de conforto. Havia um odor de canela misturado ao de naftalina. Eles estavam
brincavam de “pegador”: o armário largo e alto, forrado com um papel vermelho e amarelo, já
meio desbotado. Ela le enfiava bem no fundo dele, atrás dos pesados casacos de inverno,
sentindo aquele cheiro de naftalina e de canela. Ainda se lembrava de que numa de suas férias
seu pai havia lido um livro para eles. Era a história de quatro crianças que entravam num
armário cheio de casacos velhos e por ali chegavam a uma terra mágica chamada “Narnia”. E
Selena acreditara que aquilo poderia acontecer realmente. Aliás, estava convencida de que
aquele armário da casa de Vó May também era encantado. Se entrasse nele num momento
mágico, também seria levada para “Narnia”. E tentou isso várias vezes, até que completou
onze anos. No entanto, embora tivesse parado de fazer tentativas, lá no fundo ainda cria que
seria possível. Era um devaneio maravilhoso ao qual ela até gostaria de poder entregar-se.
Seria muito gostoso entrar no armário e ficar ali bem encolhidinha. Mas não. Agora já tinha
dezesseis anos e no momento sua responsabilidade era cuidar da avó. Então tentou novamente
Antes que ela pudesse dizer outra palavra, o tio se pôs a berrar no telefone.
- Onde é que você está? O que é que está acontecendo? Que recado foi aquele que você
Selena nunca gostara muito do tio Daniel. Sua mãe veio ao telefone. Falou com uma
voz calma, meio forçada, e a moça percebeu que ela estava cansada. Se ela estivesse em casa
agora, iria vestir uma roupa esportiva e sair para fazer seu cooper e voltar toda suada.
- Estou bem, respondeu. O problema é com Vó May. Hoje de manhã o Dr. Utley ligou e
disse que, pelos resultados dos exames, ela deveria ser operada da vesícula imediatamente, E
respiração pesada do tio, que estava escutando na extensão. Aquilo a deixou irritada. Assim
- Nós passamos a tarde toda tentando entrar em contato com você. Deixou sua mãe
- Quando saí de lá, ainda estava dormindo sob efeito dos remédios. Vou só fazer um
lanche e voltar para lá em seguida. Mãe, onde é que tem dinheiro nesta casa? Tive de pegar as
Sua mãe explicou-lhe que dentro de uma das gavetas da escrivaninha do escritório havia
um envelope com dinheiro. Disse que ela podia pegar o quanto precisasse. Selena tirou $20,00
dólares.
- Ah, que maravilha! resmungou tio Daniel na extensão, colocando o fone no gancho.
- A situação aqui está um pouco difícil. Acha que dá para passar a noite sozinha aí?
- Vou voltar para o hospital, replicou Selena. Quero passar a noite lá, com Vó May.
- Você é o sonho de toda mãe, filha. Sabia? Se houver algum problema, ligue para mim,
o.k.? Pode ligar, mesmo que seja no meio da noite. E se você não telefonar, então amanhã
- 'Tá bom, disse Selena. Assim está ótimo. Tenho certeza de que ela vai passar muito
bem.
Selena passou a noite encolhida na poltrona que havia no quarto de Vó May. Por volta
de 3:30 avó acordou. Gemeu alto e parecia estar chorando. Selena saltou da poltrona e correu
- Calma, vó! disse. A enfermeira já está vindo. A senhora quer um pouco de água?
Pegou um copinho com água que estava na mesinha de cabeceira e deu para ela,
juntamente com um canudinho. Entretanto Vó May não quis beber. Nem ao menos abriu os
- Cadê essa enfermeira? resmungou Selena. A senhora está incomodada, vó? Quer que a
- Oi! disse.
- Ela está gemendo, explicou Selena, procurando falar com calma, embora estivesse
- Como é que você está, hein? disse a mulher para Vó May, pegando de leve a mão dela
Ela examinou o frasco de soro e continuou falando mais para si mesma do que para
Selena ou a paciente.
- Ela está apenas grogue. É muito bom que você esteja aqui. Continue conversando com
- Como é que está minha avozinha querida? perguntou com voz alegre.
Selena não levava muito jeito para animar uma pessoa doente. Contudo gostava muito
da avó e, por ela, seria capaz até mesmo de exibir uma fachada de coragem quando na
novo. Selena voltou para a poltrona e se ajeitou nela, cobrindo-se com um cobertor. Não
conseguiu dormir. Passou as horas frias da madrugada orando e pensando. Orou e pensou
bastante.
- Alô!
- Estou bem. Vó May passou a noite muito bem. Ainda está dormindo, replicou Selena,
sussurrando.
Selena olhou para a avó. Tinha os olhos um pouco inchados, mas não havia dúvida de
- Acho que sim. Não tenho muito o que dizer, respondeu ela, com a voz meio rouca.
- Não, disse Vó May, respondendo a uma pergunta da mãe de Selena. Estou bem. Só
não estou conseguindo me mexer. Estou cheia de tubos por todo lado.
Selena fitava a avó e viu a expressão do rosto dela se anuviar, lembrando-lhe as nuvens
que vira no céu no dia anterior. O olhar dela era de quem estava confusa, sem lucidez. Ela
- Mãe, disse ela, acho que ela está com uma de suas crises de esquecimento.
- Não quero nenhum, resmungava Vó May. Se eu quisesse mais panos de prato teria
- Calma, Selena. Fique calma e tranqüila. Vai dar tudo certo. Olhe, eu est...
Selena largou o fone e correu para segurar a mão da avó. Ela estava tentando arrancar o
fio do soro.
- Tem de deixar isso aí, falou com firmeza. Não pode tirar ainda não.
Com uma das mãos segurou o pulso da avó, para que ela não arrancasse o tubinho, e
com a outra apertou o botão para chamar a enfermeira. Do fone dependurado, vinha a voz de
- Fique assim, disse Selena, batendo de leve na mão da avó e afastando-a do fio do soro.
Em seguida, ela se pôs a chorar como uma criança que sente que perdeu a luta. Nesse
instante a enfermeira entrou no quarto. Era uma nova, que Selena ainda não vira.
agulha do soro.
uma criancinha.
- Olhe aqui, falou em tom de defensiva, ela não está entendendo as coisas direito não,
viu?
A mulher olhou para a jovem com expressão de espanto e pegou a mão de Vó May para
examinar-lhe o pulso. Selena largou o braço que estava com o soro e pegou o fone.
- Mamãe?
- Não sei. Creio que sim. Ela está com uma de suas crises de esclerose e...
- Você agiu certo. Escute, eu ia lhe dizer que estou aqui no aeroporto.
- Em Phoenix?
- Não. Em Portland. Peguei o primeiro vôo hoje cedinho. Acha melhor eu tomar um táxi
para ir ao hospital?
Selena pensou um pouco. Sabia que levaria apenas meia hora para ir ao aeroporto e
voltar.
- Não, disse ela, com os olhos fixos na avó e na enfermeira. Vou aí buscá-la. Acho que
onde se achavam registrados todos os dados e medicamentos da paciente. Parecia que Vó May
- Dê uma olhada nela pra mim, disse para a mulher. Volto já.
- É pra isso que eu ganho os milhões que recebo todo mês, minha filha, replicou a
Selena saiu apressadamente, já desejando ter dito à mãe que pegasse um táxi. Não teve
aeroporto. O difícil seria acertar a pista certa ao chegar lá. Ela já se perdera mais de uma vez
nas vias expressas de Portland, mas hoje não tinha muito tempo de sobra. Senta-se
Afinal avistou a placa que indicava a via de acesso para o aeroporto e conseguiu entrar
sem maiores problemas. Avistou a mãe no setor de recolhimento das bagagens e saltou do
carro para dar-lhe um abraço. Assim que sentiu os braços da mãe em torno dela, teve vontade
de chorar, mas resistiu ao impulso. Fora forte até aquele momento e poderia continuar firme
Sua mãe jogou a mala no assento de trás do fusca, e Selena passou para o banco do
passageiro. Tão logo saíram da movimentada área do terminal, ela soltou um suspiro de
- Como é que você está? indagou ela, dando um olhar rápido para a filha.
- Seria bom se a gente pudesse entrar em contato com seu pai. O médico falou quanto
- Estou bem, creio que não e não, replicou Selena. Utilizara o método que seu irmão
Wesley adotara para responder à mãe, que sempre fazia as perguntas uma atrás da outra. Sua
mãe sorriu.
- Nem lembro mais as perguntas que fiz, disse ela. Estou tão preocupada com as duas!
Contou-lhe que não acreditara em Vó May quando esta dissera que o médico havia
telefonado.
- Ainda bem que você teve o bom senso de não ir à aula, disse a mãe, abanando a
cabeça. Não sei se eu teria tido. Quer que a leve pra casa para você dormir um pouco?
Selena olhou pela janela do carro quando entravam na via expressa. Nesse momento se
lembrou de que tinha uma entrevista marcada na floricultura Zuzu's Petals, dali a pouco, às
9:00h.
- Na verdade, talvez seja melhor eu ir para casa mesmo. Quero tomar um banho antes da
Momentos depois, às cinco para as nove, Selena achou que aqueles quarteirões haviam
se transformado em quilômetros. Apressou o passo. Com uma das mãos, pegou o cabelo, bem
cheio e encaracolado, e agitou-o de leve para cima e para baixo. Na nuca, ainda estava um
pouco molhado. Vestira uma camiseta clara, de mangas compridas, com um coletezinho
bordado. Pusera uma saia de algodão, bem leve que ia até um pouco abaixo dos joelhos. E
enfiara nos pés seu calçado predileto - a velha bota de cowboy que tinha sido de seu pai.
Selena se apegara muito a ela, embora estivesse velha e meio fora de moda. Aliás, esse
Quando faltava apenas uma quadra para chegar à floricultura, começou a cair uma garoa
leve. Passou em frente de uma confeitaria, onde viu uma fila de clientes aguardando a “saída”
dos pãezinhos doces, quentes, temperados com canela. Naquele momento a porta se abriu e o
cheiro forte chegou até ela, dando-lhe vontade de entrar na fila também, entretanto, se
quisesse chegar à hora ao seu compromisso, não poderia parar agora. A Zuzu's Petals ficava
E com mais alguns passos chegou à loja. Selena fez uma rápida oração e girou a
Selena foi até a portinha lateral da loja e espiou pela fresta. Em seguida bateu de leve na
vidraça. A luz estava apagada; não se via movimento algum no cômodo dos fundos.
Estranho! pensou. Tenho certeza de que a entrevista seria hoje. E já passa de nove
Olhou para um lado e outro. Talvez a dona da loja tivesse ido tomar um café e comer
um daqueles pãezinhos quentes, com sabor de canela. Repassou mentalmente a conversa que
tivera com a mulher, uma semana atrás. Tinha certeza de que ela marcara para hoje, às 9:00h
da manhã.
Fora Vó May quem arranjara essa entrevista para Selena. A avó adorava flores e havia
muitos anos que era cliente da Zuzu's Petals. A moça já ouvira a avó dizer várias vezes:
Na semana anterior, Vó May ligara para a floricultura encomendando flores para uma
tia de Selena que tivera bebê. E antes de encerrar a conversa, ela estendera-o para a neta,
dizendo:
Um casal idoso passou perto dela, sob a chuva fina, cada um com um copo de café na
conversando animadamente. Logo depois delas, veio um senhor baixo, levando amarrado a
uma coleira um enorme cachorro preto. Postada ali debaixo do toldo verde da loja, Selena se
O bom senso, porém, expondo uma porção de motivos, mandava que ela permanecesse
ali até aparecer alguém. Sentia-se um pouco apreensiva, pensando que talvez devesse ter ido
com a mãe para o hospital e, depois, ter ligado para a loja, marcando uma outra data para a
Afinal uma pequena van chegou e parou em frente loja. Na porta estavam gravadas em
- Você é Selena? indagou a mulher que viera ao volante, saltando do veículo e correndo
- Tive pedidos de arranjos para dois casamentos agora de manhã e me atrasei, continuou
- Não, obrigada.
- Então você é a neta de Vó May, hein? Gosto muito dela. Como é que ela está?
A dona da loja era uma mulher de muita energia. Tinha cabelo preto, bem curto, e olhos
castanho-escuros, muito brilhantes, que combinavam com o cabelo. Na orelha direita tinha
uns seis brincos de prata. Selena ainda não conseguira perceber se simpatizaria com ela ou
não.
- Bom, pra falar a verdade, ela está internada. Fez uma operação de vesícula ontem.
Charlotte parou meio abruptamente e olhou para ela com expressão de preocupação.
- Ah, eu não sabia. Ela está passando bem? Está no St. Mary?
*
Nos Estados Unidos, devido ao inverno rigoroso, as lojas ficam com as, portas fechadas. Para indicar que
estão funcionando, colocam uma placa a com a palavra Open (Aberto). No outro lado da placa, há o aviso
Closed (Fechado), que deixam à vista ao fim do expediente. (N. da T.)
- Você irá vê-la hoje? Vou mandar umas flores pra ela. Ontem recebi uns lírios amarelos
Enquanto Charlotte expressava seus sentimentos de pesar, foi para trás do balcão e se
serviu de café. Perto havia uma pequena geladeira, que ela abriu com o pé. Retirou dela uma
caixa de leite com sabor de baunilha. Derramou um pouco no café e em seguida fechou a
porta da geladeira ainda com o pé. Fez tudo isso num só movimento.
- Sou movida a café, disse Charlotte, virando-se e acendendo as luzes da loja, que de
Selena pensou que muito da energia dessa mulher devia ser proveniente da cafeína, e
tomando um gole de seu café. Posso lhe pagar salário mínimo, e o horário de trabalho é das
8:00h às 17:00h, aos sábados e domingos. Você precisará ter carro próprio, mas lhe daremos
Selena ficou parada, meio sem saber o que pensar. A entrevista é só isso?
- Posso trabalhar sábado o dia todo, replicou, mas nada aos domingos. E nem sempre
vou poder ter o carro à minha disposição. Achei que vocês queriam alguém para trabalhasse
- Não. Precisamos mesmo é de um entregador. Foi por isso que tive de sair cedo de
manhã. Aliás, minhas sócias ainda estão na rua. O caso é que temos de ficar as três na loja e
queremos arranjar um funcionário para ficar por conta das entregas. E essa pessoa vai ter que
trabalhar aos domingos também. Se você não puder trabalhar nos dois dias, não posso lhe dar
- Espere aí!
retornava com um buquê de lírios amarelos, envolto em papel celofane e amarrado com uma
- É para Vó May, explicou. Diga-lhe que todas nós lhe enviamos nossos votos de pronta
recuperação.
Selena pegou as flores e pensou que a melhor maneira de carregar aquilo era como se
- É, vai sim, disse Charlotte, retomando seu café. Até mais, Selena!
Chegando à calçada, Selena começou a desejar que tivesse trazido uma sombrinha. A
chuva fina havia aumentado um pouco. Não se importava de se molhar, mas queria proteger
as flores. Elas eram muito bonitas, mas o pacote todo era meio volumoso. Sentiu-se um pouco
sem jeito de ir caminhando com aquilo. Desistiu inclusive de comprar os pãezinhos de canela.
Não conseguiria carregar mais nada além das flores. Se pegasse mais um embrulho, teria
problemas, principalmente com toda aquela chuva. Passou direto pela padaria, prometendo ao
A chuva apertou. Selena pensou que deveria ter trazido um agasalho. A manga da
camiseta estava grudando em sua pele. Sentia a barra da saia também pegando na batata da
perna. O cabelo lhe caía nas costas e colava no rosto. Teve mu arrepio e se pôs a andar mais
Parecia que todas as suas emoções haviam se ajuntado numa enorme bola. Tinha a
sensação de estar carregando um peso de vinte quilos, debaixo daquela chuva. Não conseuira
o emprego. Não tinha dinheiro, nem amigos, nem previsão de que a situação fosse melhorar
num futuro próximo. Além disso, sua amada avó estava internada e ia pouco a pouco
perdendo a lucidez. Não havia dúvida de que a vidinha calma e pacata de Pineville acabara
cobertas de flores silvestres. Agora eram ruas movimentadas, cachorros latindo, ônibus
soltando uma fumaça negra e floriculturas gerenciadas por pessoas frias, movidas a cafeína.
Então se pôs a chorar, achando que talvez isso lhe trouxesse um pouco de alívio. E
lágrimas grandes e quentes lhe rolaram pela face, contrastando com a chuva fria. Ergueu o
rosto para o céu e deixou que a água a molhasse por completo. Soluços lhe subiam do peito.
Não se importou nem um pouco de que as pessoas a vissem chorar nem ligou para o que
pudessem pensar. Deixou escapar alguns soluços, sem tentar reprimi-los. Nada do que lhe
água em cima dela. Faltavam apenas cinco quarteirões para chegar em casa. Assim que
entrasse, iria direto para a cama. Ou talvez fosse melhor tomar um banho bem quente, na
banheira.
Chegou a uma esquina onde havia um semáforo. Parou esperando o sinal abrir para ela.
Com o canto do olho, percebeu que um jipe negro também parará ali. Estava bem ao lado
dela, a poucos metros. Embora a janela do veículo estivesse fechada, dava para ouvir uma
música alta, que vinha lá de dentro. E ouviu também muitas risadas de homens. Será que
estavam rindo dela? Se estivessem, ela não poderia nem reclamar. Se ela estivesse dentro
daquele carro, provavelmente também iria rir da figura dela. Sabia que estava ridícula, mais
As gargalhadas daqueles homens só serviram para aumentar ainda mais sua ágoa. Sentiu
uma raiva enorme dominá-la. Piscou para remover as lágrimas dos olhos e virou a cabeça com
um movimento brusco. O rapaz que estava no banco do passageiro olhava diretamente para
ela. Seus olhares se encontraram. Selena suspendeu o fôlego. A expressão de seu rosto
Era Paul.
O sinal abriu. O carro arrancou e partiu. Paul virou para trás, continuando a olhar para
Selena deu um passo para atravessar a rua e pisou numa poça de água. Sentia-se
Selena nem viu como caminhou aquelas últimas quadras até em casa. Sua mente estava
longe. Estava no Aeroporto de Heathrow, em Londres, onde conhecera o rapaz. Ela fora a um
telefone público e o vira ali. Ele lhe pedira algumas moedas emprestadas para completar seu
telefonema. Naquele momento, parecera que houvera um “clique” entre eles. Depois, quando
estavam no avião, haviam conversado um pouco e acabaram descobrindo que tinham amigos
comuns. Tudo parecia estar correndo muito bem. Aí, em dado momento, ele ficou sabendo a
idade dela. Ele já estava na faculdade e tinha mais de vinte anos. Selena tinha apenas
dezesseis e ainda estava no segundo ano do curso médio. O interesse de Paul por ela
desapareceu no mesmo instante. Apesar disso, mais tarde ele lhe escrevera uma carta, que ela,
por sua vez, respondera. Isso acontecera várias semanas atrás. E ele ainda não dera resposta à
cartinha dela. Agora, depois daquele breve instante em que se viram na esquina, ela teve
certeza de que ele nunca mais iria escrever. Era outro motivo para chorar. E ela chorou a
valer.
Capítulo Sete
Selena se esticou bem na banheira antiga, sentindo a água quentinha. Fazia muito tempo
que não tomava um banho daqueles. A última vez fora na época em que era menina e todos
vinham passar as férias com a avó. Depois que tinham vindo morar na velha casa vitoriana de
Vó May, ela só tomara no chuveiro do banheiro do andar de cima, que fora remodelado.
Assim que chegara em casa, ligara para o hospital. A mãe dissera que Vó May estava
passando bem. Naquele momento estava descansando. Em seguida, a mãe lhe sugerira que
dormisse um pouco para se refazer da noite passada no hospital, sentada na poltrona. Após o
Era o que Selena precisava - um tempo para relaxar. Depois do belo banho quente,
vestiu um blusão e uma calça de moletom. Com isso, e uma xícara de chá de jasmim, iria er-
guer o espírito, que se achava envolto em emoções pesadas havia cerca de uma hora.
Ela ficava furiosa quando as pessoas ligavam e iam conversando sem dizer quem eram.
- Oi, Selena! falou outra voz de mulher. É Cris! Agora você já sabe de quem é a outra
voz.
Selena tirou o saquinho de chá de dentro da xícara e foi para a saleta, equilibrando o
telefone sem fio entre o queixo e o ombro. Sentou-se numa poltrona de que gostava muito e
- Que legal que vocês ligaram! Parece que nossa viagem à Inglaterra foi há séculos!
- Mas foi só algumas semanas atrás, disse Cris. Como é que você está?
passaram foram péssimas, e esses dois últimos dias foram um verdadeiro desastre. E vocês?
- Estamos aqui fazendo brownies, respondeu Cris. Quer dizer, estamos tentando fazer,
- Comi só um pouquinho, defendeu-se a outra. Além disso, a gente pode pôr algumas
- Não; ele está na casa do pai, em Newport. Nós vamos para lá hoje à tarde, porque à
noite vai haver uma festa na casa da Trícia. Queríamos que você viesse também, Selena.
- Oh, gente, não me torturem assim. Vocês sabem que eu adoraria ir. Daria tudo para vê-
las de novo.
- Ah, ótimo! falou Selena. Vocês se esqueceram de um bom detalhe - estou a mais de
- Já ouviu falar em avião? perguntou Katie. É uma das maravilhas do mundo moderno.
dinheiro”?
- Já tentei, replicou Selena, levantando os pés e sentando-se em cima deles para aquecê-
los. Tive uma entrevista para um emprego hoje cedo. Foi a mais curta deste mundo. Mas não
consegui o trabalho. Era numa floricultura. Queriam que eu trabalhasse no domingo, o dia
- Você explicou que não trabalharia domingo porque vai à igreja? indagou Cris.
- Não. A mulher nem perguntou por quê. Eu só disse que não poderia trabalhar no
domingo.
- Olha, disse Cris, eu trabalhei numa loja de animais. Avisei para o meu patrão que não
poderia trabalhar no domingo porque tinha de ir à igreja, e ele foi muito compreesivo. Você
- É, exclamou Selena, mas não adiantaria. De qualquer jeito, não tenho carro próprio.
Temos um fusca aqui que eu minha mãe usamos, mas ele já é meio velho. Não dá pra confiar
nele. Mesmo que me aceitassem para trabalhar no sábado, nem sempre eu poderia ficar com o
- Vou, replicou Selena. Aqui por perto tem muita loja e lanchonete. Creio que dá para
- E assim que arranjar serviço, interveio Katie, vá logo avisando que vai folgar no
recesso da Páscoa, ouviu? Você tem de vir para cá, passar a semana toda conosco.
- Se eu tiver dinheiro.
- Assim vamos ter de comprar mais chocolate, Katie, falou Cris. Puxa, nunca pensei que
fosse dizer uma coisa dessas, mas talvez aquela sua crise de alimentação natural não tenha
sido tão ruim assim. Pelo menos os chocolates não acabavam tão depressa.
Selena riu.
- Ah, você entendeu o que quero dizer. Vocês já são amigas há tanto tempo! Mas eu,
desde que me mudei para cá, não fiz amizade com ninguém. Não conheço uma pessoa sequer
que pudesse convidar para vir à minha casa para fazermos brownies.
- Ah, é? Como?
- Como assim?
Selena riu.
- Onde é que você arranja essas idéias, Katie? perguntou Cris. E pára de comer esses
chocolates!
- Você não sabe que o chocolate é a melhor coisa do mundo para o cérebro? observou
Katie. Aguça a percepção daquilo que é óbvio. E está claro que Selena está precisando de
- Pois eu, disse Cris, vou orar para que Deus lhe mande um tesouro peculiar, e que ele
conselho, Selena, ponha o anúncio no jornal. É o melhor jeito de arranjar amigos. É bárbaro!
Mas, falando de tesouro peculiar, e de tesouro bárbaro, o que aconteceu com Paul?
- Lembra daquele cara que te falei que Selena conheceu no aeroporto de Londres,
quando ela estava voltando, que veio no mesmo avião, que eu disse que ele era crente, que
tinha um irmão chamado Jeremy, que era colega do Douglas e quando fui na casa do Douglas
no mês passado, Jeremy estava na reunião do grupo “Amigos de Deus”, e deu ao Douglas
uma carta que o irmão dele escreveu para Selena, e o Douglas entregou a carta pra mim e eu
- Tenho certeza de que contei, Cris. Parece que ultimamente sua memória anda muito
seletiva.
Selena tomou outro gole de chá e ficou a ouvir as duas amigas discutindo, cada uma na
- Quando é algum assunto que diz respeito ao Ted, você guarda direitinho na memória.
- Ah, obrigada, Katie! exclamou Cris em tom irônico. Essa foi ótima! A verdade é que
você não me contou mesmo que Selena tinha conhecido esse cara... como é o nome dele?
“batalha” amistosa.
- Que bárbaro! exclamou Katie. Como foi?
Selena descreveu a cena em que estivera toda molhada, carregando o enorme embrulho
- Alô! Será que estou deixando as duas chateadas com essa minha longa história?
- Claro que não! replicou Cris imediatamente. Só foi muito estranho você tê-lo visto
- Talvez ele lhe telefone para perguntar se você está bem, comentou Katie. Pelo menos é
- Não, interveio Cris. No filme, ele teria mandado o amigo dele parar o carro, teria
corrido em sua direção com um guarda-chuva aberto e a teria levado até em casa. Chegando
Selena riu.
- E agora estou até tomando chá, explicou. Talvez, no meu caso, seja um filme classe B,
daqueles bem baratos, e acaba comigo tomando chá sozinha. Não tem o mocinho nem o
guarda-chuva.
- Então o meu, interveio Katie, seria classe Z. Não teria o mocinho, nem o guarda-
- O seu parece mais um filme de suspense, interrompeu Cris. O final dele é um que
ninguém espera.
- E a sua história, disse Katie para Cris, está se tornando um daqueles romances de final
previsível. A garota conhece o rapaz. Durante quatro anos, o rapaz se mostra um verdadeiro
bobo. A garota se transforma numa linda mulher. Afinal o rapaz “acorda” e a garota vira uma
perfeita abobalhada.
Selena riu.
- É, disse ela, pelo visto, tudo está indo muito bem entre você o e o Ted.
- Mais ou menos, replicou Katie, respondendo pela amiga. Você precisa vir aqui logo,
Selena. Vou convocar uma reunião de emergência do nosso clube “Apenas Amigos”. Como
eu e você somos as únicas que ainda são sócias, você é obrigada a vir. Ainda lembra do nosso
- Claro! replicou Selena. Como eu iria esquecer? E ainda tenho plenas credenciais para
fazer parte dele. Não há nenhum rapaz na minha vida, nem mesmo como amigo.
- A não ser que, hoje de manhã, Paul tenha ficado tão impressionado com minha
estonteante beleza, que já tenha vindo para cá para me tomar em seus braços.
- Só em sonhos, Selena! comentou Katie. Na minha opinião, você pode riscar esse
gaiato de sua lista. Talvez deva especificar no anúncio que está procurando novos sócios para
o nosso clube “Apenas Amigos”. Podemos aceitar rapazes também em nosso grupinho.
- Não mexe com esse negócio de anúncio, não, aconselhou Cris. Comece a orar. Eu
também vou orar para que você conheça umas pessoas bem legais aí.
- Então ore também para eu arranjar um emprego, disse Selena. Falta menos de um mês
Nesse momento, a porta da sala se abriu e Selena se ergueu de um salto. Sabia que sua
mãe só iria chegar à tarde. Olhou para o velho relógio que se achava sobre a mesa de
Arrependeu-se de não ter trancado a porta. Cobrindo a boca e o fone com uma das mãos,
disse:
- Não desliguem, não, falou para as amigas. Fiquem na linha. Se eu gritar aqui, liguem
Selena prendeu a respiração. Pelo telefone escutou Katie, fazendo o ruído de quem
- Pssssiu, Katie!
Era Tânia. A jovem entrou na saleta, batendo as grandes botas de esquiar no assoalho de
madeira.
- E você? O que você está fazendo aqui? indagou ela. Cadê o carro? Achei que não
havia ninguém em casa, por isso fiquei espantada quando vi que a porta da frente estava
destrancada.
- Mamãe saiu com o carro. Ela está no Hospital St. Mary com Vó May. Ela fez uma
- Quem? perguntou Tânia com voz estridente. Quem operou a vesícula? Mamãe ou Vó
May?
- Vó May. Mamãe voltou hoje de manhã para ficar com ela. Ela está passando bem.
- Claro, respondeu Cris. À noite vamos estar na casa da Tríci. Se você quiser, pode ligar
para lá. Senão, daqui a uma semana vamos entrar em contato com você de novo, para ver
- Está bem. Tchau, gente. Digam ao Douglas, à Trícia e ao Ted que mandei um abraço.
Ela desligou e se virou para Tânia, que estava de pé, com as mãos nos quadris.
- Vou com você, disse Selena, erguendo-se de um salto. Espere só eu calçar o sapato.
- Primeiro vou trocar de roupa, explicou a irmã, que ainda estava com os trajes de
esquiar.
- O que foi que aconteceu que você voltou mais cedo? indagou Selena. Eu tinha
- Selena!
- Parece que você não fez nada neste quarto depois que saí na quinta-feira.
- Não fiz não, Tânia. Não tive tempo. O que aconteceu no seu passeio?
- Nada! replicou a outra meio ríspida. Resolvi voltar mais cedo, foi só. E parece que foi
- Eu a levei de carro.
de emergência.
Tânia não tinha um temperamento muito amistoso. Volta e meia brigava com Selena.
Nesse dia, porém, parecia ainda mais irritadiça. Selena resolveu não insistir em perguntar por
seguida, colocou as botas de esquiar dentro do closet. Por fim as duas rumaram escada abaixo,
Tânia na frente. Selena pegou sua mochila, ainda molhada por causa da chuva da manhã. As
duas saíram, e Selena já ia fechar a porta quando se lembrou das flores que deixara na
cozinha.
Correu à cozinha e abriu o armário para procurar uma sacola de plástico para carregar o
buquê de lírios amarelos. Nisso, deu com os olhos num objeto muito importante, guardou-o,
enrolou-o num pano de prato e guardou-o na mochila. Em seguida, apanhou uma sacola de
Quando chegou lá fora, Tânia já estava com o carro ligado e verificava a maquiagem no
espelhinho que havia na parte de trás do tapa-sol. Selena sentou-se no banco ao lado dela, mas
antes teve de pegar um saquinho de papel branco que a irmã deixara sobre ele. Sentiu um leve
- Onde?
- Nada. Só que eu estava com muita vontade de comer um pãozinho desses, só isso.
Selena sentiu a boca cheia d'água e engoliu a saliva. Se estivesse com outra pessoa
‘Guenta firme aí, barriga! pensou. Prometo que muito breva vai chegar aí um pãozinho
da MotherBear!
Chegando ao hospital, Selena foi mostrando a Tânia o caminho para o quarto onde Vó
A mãe de Selena remexeu-se, acordou e olhou para Tânia surpresa. As duas puseram-se
cabeceira. Teve vontade de ouvir o que as duas estavam conversando. Tinha certeza de que a
irmã contaria à mãe qual fora o problema que houvera na estação de esqui, bem antes de
revelá-lo a Selena.
- Estou aqui, vó, replicou a moça, indo para perto da cama, ainda com o vaso na mão.
Olhe aqui. A Charlotte lá da floricultura mandou esses lírios para a senhora. São lindos, não
são?
- Lírios! exclamou Vó May com expressão de satisfação. São minhas flores prediletas.
- Vou colocá-los bem aqui, disse Selena. Mamãe e Tânia também vieram.
- Nini! disse Vó May para Tânia, que se inclinou e deu-lhe um beijo na testa.
Vó May criara apelidos para todos os netos. Apenas Selena fora presenteada com o que
parecia mais “norma”". Na verdade, o “Nini” de Tânia fora obra de Selena. Quando ela era
pequenina, não conseguia pronunciar “Tânia” direito. Diziaapenas “Ni”. E Vó May o adotara.
Os irmãos mais novos de Selena também a chamaram de “Sissi”. Contudo o apelido não
pegara. Vó May sempre a chamara de “Queridinha” desde o dia em que ela nascera.
- A senhora passou por uma cirurgia séria, vó, disse Tânia, sorrindo e alisando o cabelo
branco e macio da avó. Precisará pelo menos de mais uns dois dias para se sentir disposta. Eu
trouxe uma loção hidratante para a senhora. Quer que faça uma massagem nos seus pés com
ela?
- Oh, quero, sim, Nini. Meus pés estão frios. E será pode arranjar uma toalhinha úmida e
almoço. Selena sentiu alívio que pelo menos naquele momento ela se achava lúcida. Quanto
- Resolvi vir embora mais cedo, explicou Tânia. As coisas lá não eram do jeito que eu
pensava.
- Esquiei ontem o dia todo. A neve estava com um pouco de gelo e lá no alto do monte
tinha neblina demais para o meu gosto. Mas o dia foi bom.
- Então à noite é que houve o problema, deduziu Vó May, com olhos brilhantes e a
Tânia deu uma olhada para a mãe e em seguida virou-se para a avó. Ainda estava com o
das mãos. Creio que preciso arranjar amigos que tenham o mesmo conceito que tenho sobre
diversão.
Selena ficou a pensar se a irmã não iria aproveitar para falar sobre a questão da igreja
que freqüentavam. As duas já haviam conversado com os pais sobre o assunto, mas eles
freqüentando a igreja da avó. Era uma igreja legal, pequena, tradicional. A maioria dos que
iam lá eram pessoas idosas, todas muito agradáveis. E havia também alguns casais jnvens.
Entretanto não havia união de adolescentes nem de mocidade. Portanto, não existia nenhum
Nas vezes em que a família havia conversado sobre o assunto, tinham chegado sempre à
mesma conclusão.
“Nós vamos à igreja é para adorar a Deus em grupo, a família toda, e não em busca de
sociabilidade.”
Agora estavam as duas ali, Tânia e Selena, com o mesmo problema: sem amizades
adequadas. Elas haviam tentado mostrar aos pais que, para jovens de 16 e 18 anos, a vida
- Precisamos arranjar uma igreja que tenha uma boa união de mocidade, falou Selena,
Assim que ela disse isso, viu sua mãe estampar no rosto uma expressão tensa,
demonstrando que achava que Selena não deveria ter dito aquilo.
- Não se prendam por minha causa, comentou Vó May, fechando os olhos e esperando
Selena passou a toalha sobre os olhos da avó e parou ali um pouquinho mais do que
precisava, para poder fitar a mãe. Tânia também olhava para a mãe com expressão de
expectativa. A mãe parecia surpresa. Em seguida, deu de ombros e fez que sim com a cabeça.
- De vez em quando, iremos à igreja da senhora, Vó May, disse Selena corajosamente,
levando o assunto em frente. Mas a senhora não vai se importar se procurarmos uma igreja
que tenha mais programação para os jovens, não é, vó? E pode ser até que algumas vezes a
Selena voltou a passar a toalha nos olhos da avó e deu um sorriso maroto, já esperando
ver uma expressão de admiração no rosto da mãe e da irmã. Ela conseguira algo que seu pai
nem tentara fazer: que Vó May concordasse em que procurassem outra igreja.
A mãe e Tânia sorriam agradecidas. Selena se pôs a secar o rosto da avó com uma
Tirou da mochila o pano de prato todo enrolado e abriu-o lentamente, mostrando para
ela o objeto: era a xícara de porcelana da avó com o pires. Em casa, Vó May sempre utilizava
uma xícara de porcelana para tomar café, água, suco, etc. Qualquer líquido que tomasse, era
procurava guardar suas roupas espalhadas pelo quarto. A mãe se sentara na ponta da cama de
- É muito longe, observou a mãe. Essa é a vantagem da igreja de Vó May. Fica só a três
quadras daqui. Além disso, parece muito estranho ir a uma igreja que fica em outro estado.
- Ah, que é isso? E só atravessar o rio para chegar ao estado de Washington. A gente
não levaria mais que uns quinze minutos de carro. Ouvi dizer que o grupo de jovens da igreja
- É, interveio Selena, lá na escola ouvi alguém falar que tem uma igreja em Gresham
- Gresham fica na direção oposta, disse a mãe, e a gente levaria uns vinte minutos de
carro.
- Está vendo? continuou Tânia, pegando os óculos para ler um livro. É melhor irmos na
- Queri que seu pai estivesse em casa para conversarmos sobre isso todos juntos. Talvez
seja melhor irmos à igreja de Vó May amanhã, pela última vez. Depois, no domingo que vem,
- Para quê isso? interveio Tânia. De qualquer jeito, Vó May não vai estar aqui. Essa é a
- Estou com muito sono. Não consigo discutir mais. Vocês duas decidam aí. Vou aonde
quiserem. Nesse momento quero mais é ir para a cama. Alguém já verificou a secretária
eletrônica?
- Não.
- Estou preocupada com a Grace. Quando saí, ela não estava passando muito bem, e
- Por que ele é sempre tão irritadinho? indagou Selena. Ontem, quando telefonei,
- No momento, eles estão passando por alguns problemas. Ele foi despedido no mês
passado e o dinheiro do seguro saúde talvez não seja suficiente para pagar todas as despesas
hospitalares da Grace. E depois você sabe como os gêmeos são levados. A família está
- A senhora queria ter ficado com eles? indagou Selena. Nós poderíamos ter tomado
conta de Vó May.
- Já estava combinado que a irmã de Daniel iria para lá hoje à noite. Ela vai se sair
melhor do que eu, cuidando do Daniel e dos meninos. Se vocês ainda não agradeceram a Deus
- Eu só estou dizendo que devem agradecer a Deus pelo pai que têm. Eu às vezes
- Sabe de uma coisa? Vamos orar nós três aqui, juntas, como eu fazia quando as duas
eram pequenas.
A mãe dirigiu-se para a cama de Tânia, e Selena a seguiu. Sentaram-se de frente umas
para as outras, com as pernas cruzadas à moda oriental, e deram as mãos. Oraram por Vó
May, pelo pai e os irmãos, pela tia Grace e pelo tio Daniel. A mãe engasgou um pouco
quando orou por Grace e Daniel. Selena também sentiu um aperto na boca do estômago
quando ela pediu a Deus que salvasse o casamento deles e protegesse os gêmeos.
Em seguida a mãe fez uma petição cheia de ternura. Orou pelo futuro marido de Tânia e
de Selena. Pediu a Deus que ambos entregassem a vida a Deus, se é que ainda não haviam
entregado, que se tornassem homens de Deus e amassem muito a Tânia e Selena, bem como
“Amém”. Sabia que a mãe fazia essa oração havia já muitos anos, assim como Vó May
também orara pelas pessoas com quem seus sete filhos iriam se casar. A mãe de Selena
mesmo fora a resposta da oração que Vó May fizera por seu filho Harold. Desde pequena,
Selena tinha conhecimento de que seus pais e sua avó oravam por seu futuro marido. Já até se
Nessa noite, porém, fora diferente. Nesse momento, a oração de sua mãe parecera
revestida de um novo vigor. Interiomente, a jovem reconheceu que aquela mulher que ali
estava, de mãos dadas com ela, era uma poderosa intercessora. Sentiu que Deus iria enviar
- Que assim seja! repetiu Selena, abrindo os olhos ainda molhados de lágrimas.
- Eu também te amo, mãe! falou Selena, beijando-a também. E amo você também, disse
chamar.
Selena retirou seus pertences de cima da cama e entrou debaixo das cobertas. Sentiu que
E o amanhã acabou se prolongando por mais alguns dias. Afinal, na terça-feira, ela
resolveu encarar a pilha de roupas. Dessa vez veio decidida a arrumar tudo. Tânia estava
Nos últimos dias, as duas estavam se dando muito bem. Ambas haviam gostado bastante
da igreja de Vancouver. E na segunda-feira, Tânia tinha até permitido que Selena pegasse o
“querido” carro dela para ir visitar a avó no hospital enquanto ela própria se aprontava para ir
trabalhar.
Vó May estava melhorando sensivelmente. O médico havia dito que, se tudo corresse
bem durante o resto da semana, ela poderia voltar para casa no sábado. A velha senhora
passava a maior parte do tempo dormindo. Contudo, sempre que estava acordada, sua
Selena separou as roupas limpas das sujas. Em seguida, pegou as sujas e dirigiu-se para
o porão da casa, onde ficava a máquina de lavar. Assim que acabou de colocar nela a primeira
trouxa, escutou a voz do pai dentro de casa. Desde que voltara do passeio, ele passara boa
parte do tempo no hospital, com a mãe dele. Os dois irmãos menores, Kevin e Dilton, como
problemas de Selena ainda não estavam. Ainda não conseguira emprego nem arranjara
amigos. Ademais, queria muito ir à Califórnia no recesso da Páscoa. Para isso, porém,
precisava da permissão do pai, que agora já retomara a rotina de sempre. Então era o
Selena subiu a escada do porão de dois em dois degraus. O pai estava na cozinha
ombros.
- Seja o que for que vai pedir, vou ter que desembolsar algum dinheiro, não vou?
Selena passou os braços novamente em torno do pai e encostou a cabeça no ombro dele.
- Como é que o senhor consegue ser tão esperto e maravilhoso assim, meu paizinho
querido e maravilhoso?
Ele fitou a filha, que piscou várias vezes com ar de gozação. Harold Jensen caiu na
- É, parece que teremos uma conversa séria, disse ele ainda rindo. É melhor irmos para
o escritório.
- Pai! gritou Kevin lá do quintal, com sua vozinha aguda. O senhor pode vir aqui nos
ajudar?
- Que é que você quer?
- Ah, eu vou aí daqui a uns... replicou ele e parou, olhando para Selena. Quanto tempo?
- Vou aí daqui a uns vinte minutos, respondeu ele para o menino. Esperem eu chegar.
- Está bom, concluiu o pai em voz baixa. Deu outra mordida na maçã.
- Vamos lá, disse ele para a filha, conduzindo-a para a saleta que chamava de seu
escritório.
Era o cômodo de que o pai mais gostava. Uma das paredes tinha uma estante que ia do
chão ao teto e estava repleta de livros. Muitos deles eram velhos volumes da coleção de Vó
May, que ela fora adquirindo desde jovem. Alguns eram escritos em dinamarquês, a língua
nativa da avó. O aposento tinha um cheiro peculiar de mofo, que lhe dava um ar de
importância e ao mesmo tempo “caseiro”. Aqueles livros eram como amigos silenciosos,
sempre dispostos a “dar” algo para os outros, sem exigir nada em troca, a não ser, vez por
perto da porta de folha dupla que dava para o jardinzinho dos fundos. Quando a luz do sol
entrava ali, batia direto na cadeira. Um gato ali iria adorar deitar-se nela para tomar seu banho
de sol. Naquele momento, o sol não estava batendo lá, mas mesmo assim Selena se acomodou
nela e estendeu as pernas, colocando os pés no descanso que combinava com a poltrona.
Seu pai sentou-se na sua poltrona giratória que se achava junto à escrivaninha, e virou-
se para a filha.
passar o recesso da Páscoa com elas. Posso ir de avião até San Diego ou então para Orange
County. Vou pagar todas as minhas despesas, só que ainda não arranjei trabalho. Estou a zero!
- Tentei arranjar um emprego na floricultura, mas a mulher disse que era para trabalhar
aos domingos e que eu precisava ter carro próprio. Ainda não procurei em nenhum outro
lugar, mas quero ver se arranjo um serviço aqui por perto, para não depender de carro.
- Primeiro vou conversar com sua mãe sobre isso, mas acredito que não haverá
problema, não. Mas numa coisa você tem razão: terá mesmo de arranjar o dinheiro para pagar
a passagem. Essa viagem que sua mãe teve de fazer outro dia a Phoenix estava fora do nosso
orçamento. Vamos fazer um trato: você se esforça para conseguir um trabalho e eu vou tentar
encontrar um vôo que fique bem barato. Você tem preferência por algum aeroporto? Suas
- Claro! E o aeroporto não faz muita diferença. A cidade delas fica mais ou menos no
- E, não fique muito confiante não. Isso ainda está na dependência de você poder pagar
a passagem.
- De nada! replicou ele, abrindo a porta e dirigindo-se para a casa na árvore. Ah, e a
propósito, continuou ele, virando-se ligeiramente, você já deu uma olhada na correspondência
Selena saltou da poltrona e pegou a pilha de correspondência que estava sobre a mesa.
Conta de água, boletos para pagar, propagandas, etc. Afinal deu com um envelope onde havia
o nome Selena Jensen escrito em letras maiúsculas bem graúdas. Imediatamente reconheceu a
caligrafia. Ela recebera apenas uma carta com aquela letra, mas já a lera umas cinqüenta vezes
ou mais. Aliás, essa carta estava guardadinha debaixo do seu travesseiro. Agora chegava a
Segurando o envelope com firmeza, voltou à sua poltrona e se pôs a virá-lo e revirá-lo
nas mãos, antes de abri-lo. Quando será que Paul escreveu? Antes daquela hora que me viu,
Não conseguindo mais conter a curiosidade, abriu a carta com gestos cuidadosos.
Dentro havia apenas uma folha, com uma cartinha curta, de poucas linhas. A escrita era
mesmo característica de Paul, meio manuscrita meio em letra de forma, em caracteres bem
Estou querendo saber uma coisa - e obviamente não é da minha conta - mas você pegou
pneumonia? Se tiver pegado, devo lhe mandar umas flores? Ou será que aqueles lindos lírios
Sinceramente,
Um Mero Observador.
Selena leu a carta quatro vezes, e a cada vez interpretou-a de forma diferente. Na
primeira, achou-a engraçada. Na segunda, pensou que talvez fosse carinhosa. Na terceira, ela
lhe pareceu meio mal-educada. Na quarta vez em que a leu, ficou furiosa.
Foi até a escrivaninha, pegou uma folha de caderno e se pôs logo a responder, antes que
Fique você sabendo, Sr. Sabichão, que minha avó está internada. Na sexta-feira, ela
estava sozinha em casa com ela. Passei a noite ao lado dela no hospital. Naquela hora em
que você me viu, eu estava voltando de uma floricultura onde tinha ido fazer uma entrevista
para ver se arranjava um emprego. A dona da loja me deu aqueles lírios para minha avó,
Não; não quero nenhuma flor sua. Já disse que aquelas fores eram para minha avó que,
E caso você esteja curioso, devo dizer que não consegui o emprego não.
E mais uma coisa: ao assinar uma carta, só escreva “sinceramente” se estiver sendo
Selena.
envelope e procurou um selo na gaveta da mesa. Subiu correndo para o quarto e pegou a
“amada” cartinha que estava debaixo do travesseiro. Deu uma espiada nela para ver o número
da caixa postal e em seguida amassou-a e atirou-a na direção da cesta de lixo. Errou. Ela foi
Ele estava num barracão que havia nos fundos, onde instalara uma oficina. Dentro dele,
havia ferramentas de último tipo. Exteriormente, porém, parecia a casa da história “Joãozinho
e Maria”. O pai chegou à porta enxugando as mãos numa toalha. Enfiou uma das mãos no
- Você pode dar um pulo na confeitaria Mother Bear e comprar alguns daqueles
pãezinhos de canela? Prometi à sua avó que levaria uns para ela amanhã, para o café.
- O senhor não imagina com que prazer vou fazer isso, pai, respondeu Selena. Não
- Mamãe disse que, enquanto ela estivesse viajando, eu poderia pegar na gaveta da
escrivaninha. Usei daquele dinheiro para comprar algo pra comer e para pôr gasolina no carro.
- É, disse o pai sorrindo, acho que tenho de procurar outro esconderijo para meus
trocados.
E Selena saiu andando com passadas largas, segurando firme a carta. Ainda bem que a
agência do correio não era muito longe, senão o envelope iria ficar molhado pelo suor das
mãos. Entrou na agência e, com um movimento brusco, enfiou a carta na abertura devida.
Imediatamente arrependeu-se do que fizera. Ficou em pé, parada, e deu uma espiada
para um lado e para outro para ver se alguém a observava. Será que daria para pegar a carta de
volta? Passou a mão na abertura, mas logo constatou que não conseguiria retirá-la. Não havia
Mother Bear. Caminhou as sete quadras que faltavam num passo de cooper. Assim que entrou
na loja, sentiu-se aliviada. Era como se tivesse apostado corrida com a raiva e a mágoa e
A confeitaria estava quase vazia. Havia apenas três pessoas sentadas numa das mesas do
canto, realizando uma espécie de reunião qualquer. Estavam tomando um café bem cheiroso.
O aroma de canela não era tão forte como estivera no sábado, mas estava no ar, permeando
todo o aposento.
- Ainda está atendendo? indagou Selena para uma senhora gorducha, de rosto rosado,
- Só mais cinco minutos, explicou ela, olhando para o relógio da parede, que marcava
17:55h.
Era um relógio grande, que tinha o formato de um urso. O mostrador ficava na barriga
do animal.
- Uhmmm! Que bom que cheguei a tempo! exclamou Selena. Quero uma caixa com
pãezinhos de canela.
Selena se lembrou de seu irmão, Cody. Sempre que a garçonete ou vendedora lhe fazia
- Está ficando cansada desse nosso clima chuvoso, não é? observou ela. Querendo um
pouco de sol!
- Na verdade, explicou, estou querendo visitar umas amigas lá, no recesso de Páscoa. E
preciso só do dinheiro para comprar a passagem. E pra isso tenho de arranjar um emprego.
Selena se deu conta de que estava falando de sua vida com uma pessoa desconhecida e
logo ajuntou:
- Mas agora o que quero é apenas uma caixa desses seus pãezinhos. Estou há vários dias
A mulher pegou o dinheiro que a jovem lhe estendeu e fez o registro na caixa.
- Farei o possível para não comer tudo, disse ela, vendo a mulher colocar a caixa numa
sacola de papel. Tenho que deixar pelo menos um para Vó May, que está internada e
- Selena!
- Harold e Sharon.
- Não! exclamou a mulher, juntando as mãos à frente, como faz uma cantora de ópera.
Meu irmão foi colega de classe do Harold. Quando eu era menina, era apaixonada por seu pai.
Diga pra ele que você conversou comigo. Meu nome é Amélia Kraus. Em solteira, era Amélia
Jackson. Fale com ele pra dar uma passada por aqui uma hora dessas.
- Acho que ele já veio aqui, falou Selena.
- Ah, pode ser. Geralmente não sou eu quem atende no balcão. Eu e meu marido somos
os donos desta confeitaria. Mas ultimamente tem dado tanto movimento, que tive de voltar a
- É mesmo? Coitada! Não esqueça de falar com seu pai para passar por aqui. Dê minhas
A jovem foi saindo, e a mulher veio atrás dela até a porta, virando então a placa e
- Tchau! disse.
Selena saiu para a rua fria, onde logo se viu cercada pelo cheiro de chão molhado e da
fumaça do cano de descarga dos carros. Era um contraste muito forte com o ambiente da
confeitaria, onde se sentia o cheiro gostoso da canela e do café. Contudo não deu mais que
quatro passos quando lhe ocorreu um pensamento óbvio. Virou-se e voltou em direção à loja.
Assim que se aproximou viu a porta se abrindo e D. Amélia aparecendo. As duas se puseram
- Eu pensei uma coisa, falou a mulher. Você disse que estava precisando de um
emprego e...
- Então entre aqui, filha, disse D. Amélia, abrindo mais a porta. Acho que foi a
A jovem colocou o embrulho com os pãezinhos sobre um móvel da copa e foi para onde
estavam os outros. A mãe havia preparado seu “jantar rápido”: batata assada, brócolis cozidos
- Ela estava tão entusiasmada que nem mesmo as piadas idiotas de seus irmãos
trabalhar de 4:00h às 6:00h, às terças e quintas-feiras, e das 8:00h às 4:00h, aos sábados. É
perfeito! E a dona da loja, Amélia Kraus, conhece o papai. O nome de solteira era Amélia
Jackson. Disse para o senhor ir lá uma hora dessas. E me deu mais uma caixa de pãezinhos de
canela. O melhor de tudo, porém, disse que posso folgar no recesso de Páscoa, continuou
Selena, fazendo uma pequena pausa para respirar. E ela é crente. Dá pra acreditar? Eles não
- D. Amélia disse que foi a “providência divina”. Ela falou que Deus opera de modo que
- Nosso Deus é um Deus maravilhoso! exclamou o pai. Ele vivia repetindo essa frase,
- Dilton, por favor, não fale com a boca cheia, interveio a mãe. Selena quer ir à
- Então quer dizer que a senhora deixa, mãe? indagagou Selena, sem conseguir conter a
empolgação.
- Claro. Com as condições que seu pai estabeleceu, Tânia, que ainda não dissera nada,
- Será que tem mais alguém aqui incomodado com o fato de que Selena já foi à
Inglaterra e agora vai à Califórnia, enquanto nós ficamos em casa, ou sou só eu?
- É, falou Dilton, e você foi esquiar. E Selena ficou sozinha em casa naquele dia.
- Se você quiser, pode vir comigo para San Diego, falou Selena.
- Ótimo! exclamou Tânia. E o que eu ia ficar fazendo lá? Passear com você e suas
amiguinhas?
- Elas não são “amiguinhas”, explicou Selena. Todas elas são mais velhas que eu. A
Katie e a Cris são da sua idade. A Trícia tem mais de vinte anos e o Douglas e o Ted também.
Tânia olhou para ela espantada, como se o que ela acabara de dizer fosse uma grande
novidade.
E realmente não via diferença entre ela, Katie, Cris e os outros, embora eles fossem
- Que bom que você arranjou o emprego! exclamou a mãe, mudando de assunto. Acho
- Pra mim não dava, comentou Tânia, erguendo-se da mesa e indo limpar os restos de
seu prato no lixo. Engordaria 10 quilos só de sentir o cheiro daqueles pãezinhos. Que pena
metabolismo rápido e, além disso, sempre fora muito ativa fisicamente, queimando logo todas
as calorias que acumulasse com doces. Tânia, não. Da família, era a que mais se preocupava
em contar as calorias de tudo que comia. Sendo filha adotiva, por diversas vezes comentara
Com oito anos, o garoto era o retrato do pai, tendo herdado inclusive o gosto para doces.
- Não, replicou a mãe, vamos deixá-los para o café da manhã. Alguém pretende ir visitar
- Eu posso dar uma chegada lá, informou o pai. Vocês querem ir comigo, meninos?
pô-las na máquina. Era tão simples. Ademais a mãe sempre ficava ao lado, auxiliando-a, e as
duas batiam bons papos nesses momentos. Entretanto quando lhe diziam que era sua vez de
cuidar das vasilhas ela tinha uma reação interior. Era como se alguém, lá dentro dela,
aspertasse a tecla da raiva. E se, ao abrir a máquina ainda encontrasse nela as últimas louças
que tinham sido lavadas, então o “raivômetro” subia mais uns três graus. Sabia que era um
grande tolice sentir isso; mas sentia. E nessa noite, o “raivômetro”, que estava operando a
todo vapor, subiu diversos graus assim que a abriu. Estava cheia de vasilhas.
Não levou mais que uns quinze minutos para fazer o serviço, e, como sempre, a mãe lhe
Chegando ao quarto, viu que Tânia já estava sentada à mesa, fazendo um trabalho para
seu curso da faculdade. Sem dizer nada, Selena afastou alguns objetos que estavam sobre sua
cama e sentou-se nela. Em seguida, pôs-se a ler um livro didático, daqueles que são
As duas irmãs permaneceram em silêncio durante quase uma hora. Afinal Tânia disse:
- Você estava falando sério quando sugeriu que eu fosse a San Diego com você?
verdade, a última pessoa que queria ao seu lado no recesso de Páscoa era Tânia. E, em sã
consciência, nunca iria querer que a irmã entrasse para o seu amado grupo de amigas. Assim
único ponto que as duas tinham em comum. A irmã não falou mais nada. Virou-se de novo
- Não tenho certeza, replicou a outra em voz baixa. Depois eu lhe falo.
- Selena teve vontade de jogar um travesseiro na irmã. Como se não bastasse ter
chamado Tânia para ir com ela num impulso de momento, agora esta não decidia. Ela poderia
pelo menos responder que sim ou que não, para Selena saber logo se iria ficar arrasada ou
alegre. Não gostava nem um pouco desse joguinho de indecisão. Contudo essa atitude - fazer
Selena sabia que o melhor a fazer, quando se sentia irritada e frustrada, era abrir a Bíblia
e lê-la até chegar a uma solução. Pegou na mesinha de cabeceira sua preciosa Bíblia com
sobrecapa de couro e abriu-a no ponto marcado. Seu “marcador” era um papel de embrulho de
chocolate, já meio amassado. Pôs-se a ler a partir do lugar onde parara, dias atrás.
No seu momento devocional pessoal, Selena tinha o costume de ler sempre um mesmo
livro até o fim. Algumas vezes, lia apenas alguns versículos. Em outras, lia vários capítulos. E
quando, por acaso, passava um dia sem estudar a Palavra, não tinha nenhum sentimento de
culpa. No dia seguinte, simplesmente continuava de onde havia parado. Além disso, tinha um
No momento, encontrava-se no livro de Isaías, cap 26. Fazia mais de uma semana que
estava lendo Isaías. De propósito, saltara alguns dos capítulos iniciais do livro. Contudo os
trechos que lera nos dias anteriores eram bem interessantes, e ela sublinhara algumas
passagens.
Nessa noite ela principiou lendo devagar e parou no versículo 3. “Tu, Senhor,
conservarás em perfeita paz aqueles cujo propósito é firme; porque ele confia em ti.”
Selena deu as costas para a irmã e releu o verso. Ficou a se indagar até onde ela
confiava em Deus e até onde tentava ela mesma resolver as situações difíceis da vida.
Continuou a ler. O trecho que lhe chamou a atenção a seguir foi uma frase do versículo 9:
É, não sei se te desejo assim, Deus. Mas eu gostaria. Quero confiar em ti todos os dias;
Releu a frase.
É Pai, quero suspirar por ti com minha alma. Quero que o Senhor esteja presente em
tudo que me diz respeito; não apenas nos momentos problemáticos. Quero o Senhor em
causa de Tânia. Já se acostumara com o fato de seu relacionamento com a irmã ser sempre
tumultuado. Estava chateada era com a carta que enviara a Paul. Tinha-a escrito no impulso
do momento e colocara nela palavras malcriadas. Se antes havia alguma possibilidade ter um
relacionamento com o rapaz, aquela carta, com certeza, iria atrapalhá-la. E agora ela não
Selena enfiou a mão no pacotinho de chips e pegou mais um. Era sabor de cebola, o seu
predileto. Com a outra mão segurava um exemplar do jornalzinho da escola. Lia a última
“Todos os anúncios e notas pessoais têm de ser entregues até sexta-feira ao meio-dia, no
setor de jornalismo. Tarifa: 2 centavos por palavra. Favor trazer o dinheiro trocado.”
escrever algumas palavras. Quando Katie lhe falara sobre a possibilidade de colocar um
anúncio no jornal para arranjar amigos, achara a idéia ridícula. Hoje, porém, sentada sozinha
na mesa onde estava lanchando, começou a achar que talvez ela tivesse algum sentido.
“Garota novata na escola procura um modo de entrar em uma das ‘panelinhas’. Aceito
sugestões.”
Selena agarrou depressa a folha de papel e virou-se para dar um olhar irado a quem
levara a dar uma volta pelas dependências da escola para que a moça a conhecesse. Por
diversas vezes, depois disso, ele tentara bater papo com ela. Selena respondia sempre por
monossílabos, dava de ombros e se afastava. E embora ela tivesse feito algumas tentativas de
conversar com os colegas, na maior parte do tempo ficava calada se mantinha sozinha.
De repente compreendeu como os outros alunos deviam vê-la. Parecia que o seu
“raivômetro”, que entrava em operação quando tinha de cuidar da louça, também funcionava
Ronny sentou-se ao lado de Selena, embora ela não o houvesse convidado. O rapaz
- Sabe de uma coisa, Selena Jensen? começou ele. Precisamos ter uma conversinha.
Selena sentiu uma pontada de raiva. E Ronny deve ter percebido isso no rosto dela, pois
inclinou-se para mais perto dela e deu um sorriso meio torto. Selena notou uma pontinha de
- Então quer ser minha amiga? indagou ele, com expressão sincera nos olhos claros.
- Está vendo? indagou ele, dando um tapa na mesa para enfatizar o que dizia. Seu
problema é esse. Não deixa ninguém se aproximar de você. Por que está sempre tão
“armada”?
tocou, indicando o fim do intervalo, e os alunos começaram a se levantar para sair da cantina.
O rapaz, porém, não se mexeu. Permaneceu sentado, olhando para Selena, aguardando que ela
falasse. A jovem desviou o olhar, sentindo-se um pouco incomodada. Por um lado, tinha
vontade de se abrir com ele, dizer que não se sentira bem aceita na escola, que tinha a
sensação de que era uma estranha. Bem lá no fundo, porém, reconhecia que noventa por cento
da culpa era dela. Talvez até mais. Ela própria assumira uma atitude bastante retraída.
E o mais estranho em tudo isso era que tal conduta não tinha nada a ver com sua
personalidade. Até alguns meses atrás, ela sempre fora um tipo de pessoa que procurava as
amizades. Na escola onde estudara e na igreja que freqüentava, ela é que fora o “Ronny”. Era
ela quem tinha a iniciativa de fazer com que os recém-chegados se sentissem bem acolhidos.
- Bom, quando você resolver começar a entrevistar pessoas para o cargo de “amigo”,
Selena sentiu vontade de sorrir. Reconhecia que essa atitude de não querer conversar
Selena pensou que seria muito bom se soubesse umas palavras mágicas para melhorar a
situação. Queria uma palavra que fosse como uma “chave” para reabrir a conversa um outra
hora.
De repente, lembrou-se de algo que ouvira num dos cultos a que assistira quando estava
na Inglaterra, na viagem missionária. Ela anotara no caderno e, dias atrás, havia relido essa
anotação. O pregador dissera o seguinte: “No final das contas, quando queremos solucionar
problemas em nosso relacionamento com outros, existem apenas duas palavras que podemos
- Por eu ter sido tão desagradável. Quero ser sua amiga sim.
Em vez de apertar-lhe a mão, Ronny passou o braço pelo ombro dela e lhe deu um
abraço de lado.
Selena recordou-se do clube “Apenas Amigos” sobre o qual ela e Katie sempre faziam
gozação.
- Amigos, repetiu.
Selena agarrou sua mochila e foi andando para a porta. Antes de sair, atirou na cesta de
lixo o papel em que tentara escrever o anúncio. Pela primeira vez, tinha alguém a seu lado
Após as aulas, estava se encaminhando para o carro, quando Ronny e mais duas garotas,
aquelas colegas, e ambas haviam tentado desenvolver amizade com ela. Contudo a própria
Amy era do tipo “italiano”. Tinha cabelo negro e olhos castanho-escuros bastante
Vicki era uma aluna muito popular. Isso se devia, em parte, ao fato de ser muito bonita.
Tinha cabelo castanho, longo, que ela partia no meio e lhe caía sobre os ombros em ondas.
Seus olhos verdes eram amendoados, e as sobrancelhas,, finas, bem arqueadas. Tinha uma
aparência graciosa e feminina. Como Vicki era muito bonita, Selena achara que fosse meio
- Tenho de ir trabalhar agora, explicou ela. Estou começando hoje e tenho que estar lá às
4:00h.
- A Mother Bear? indagou Amy. Já fui lá. Adoro aquele lugar. Você sabe onde é, Vicki.
Fica do mesmo lado da rua da boutique onde costumo fazer compras, A Wrinkle in Time.
Selena engoliu em seco. É, esse negócio de fazer amizade com os colegas estava sendo
meio sem jeito para ela. E na certa, no primeiro dia num novo emprego também não iria ser lá
muito fácil. Juntar as duas atividades com certeza não seria uma boa.
- Mas lá não tem hambúrguer, tem? disse Ronny, causando alívio em Selena. Estou
- Ah, deixe disso, Ronny! interveio Amy. Lá tem aquele capuccino gostoso.
Ao que parecia, a menção de um café sofisticado não foi suficiente para fazer Ronny
mudar de idéia.
- Vamos deixar para uma outra vez, está bem? disse ele.
- Pra mim está bom, disse Selena, dando um suspiro de alívio e, só então, percebendo
Os três se viraram para ir embora. Selena destrancou o carro, mas logo em seguida se
deteve e gritou:
- Oi, gente!
- De nada! exclamou Ronny, respondendo pelo grupo e dando a impressão de que não
Estava conseguindo avançar na questão das amizades. E isso não acontecera por acaso. Sabia
que quando alguém sentia uma paz assim, trazida pelo vento do Espírito, certamente era Deus
Abaixou o vidro da janela e pousou o cotovelo nela, sentindo o ar frio da tarde. Através
- Obrigada, Senhor!
Capítulo Treze
Selena caminhou pesadamente até a cozinha e deixou-se cair numa cadeira. Pegou o
cabelo à latura da nuca com uma das mãos e ergueu-o para o alto da cabeça, como se fosse
um rabo de cavalo.
A mãe abaixou o fogo de uma enorme panela de sopa que estava preparando, e
respondeu:
azul muito legal, e D. Amélia logo veio me explicar como se faz um capuccino. É muito
simples, sabe? Ou pelo menos deveria ser muito simples, comentou ela, abanando a cabeça.
Daí lá vou eu fazer meu primeiro capuccino para um freguês que estava esperando e olhando
pra mim. Só que não apertei direito aquela peça onde se põe o pó. Sabe, é aquela peça que
tem um cabo e se encaixa na parte superior da máquina. E ali passa a água superquente.
no balcão e no chão. Tentei arrumar o encaixe, e esguichou borra de café por todo lado. E foi
- Espera! Tem mais! D. Amélia, muito calma e tranquila me disse para fazer tudo de
novo e não me preocupar com a bagunça. Então limpei tudo e recomecei, com muito cuidado.
problema. Esqueci de colocar o pó de café na vasilha. Nem acredito no que fiz. Estava tão
preocupada em fazer o negócio certinho que me esqueci de pôr o pó. Afinal entreguei o
capuccino ao freguês, que estava esperando uns dez minutos. Ele tomou um golinho e cuspiu
- O homem ficou com uma raiva! E na frente de todo mundo - tinha uns dez clientes na
loja - ele exigiu o dinheiro de volta e disse que nunca mais voltaria ali. Achei até que ele iria
jogar a xícara em mim. Pensei que D. Amélia iria me despedir na mesma hora.
- E despediu?
- Não! Continuou bem calma e disse: “Isso acontece filha! Vamos fazer de novo!”
- Tentei e dessa vez consegui. Fiz outro capuccino para outro freguês. O homem estava
sorrindo para mim o tempo todo e fiquei um pouco nervosa. Quando entreguei a xícara para
ele, deu-me uma gorjeta de um dólar e disse: “Uma heroína como você precisa receber um
prêmio!”
Nesse momento, o pai entrou na cozinha tendo na mão a correia de Brutus. Pendurou-a
- Está contando o primeiro capítulo da novela da confeitaria? O que foi que perdi?
- Depois te conto o princípio, falou a mãe. Escuta só. Selena se atrapalhou toda.
A jovem se pôs a rir. Riu demais, a ponto de lhe virem lágrimas aos olhos.
- Essa deve ter sido ótima! comentou o pai, passando o braço sobre o ombro da esposa e
- Fui pegar uma caixa com pãezinhos de canela que estava numa prateleira atrás da
caixa registradora. Só que pensei que ela estava fechada. Não estava. Peguei-a sem olhar para
- Eu já estava mesmo imaginando o que teria acontecido com seu cabelo, disse a mãe.
Mas pra falar a verdade, não estava com muita vontade de saber o que tinha sucedido.
- Agora a senhora já sabe, comentou Selena. Tentei lavar um pouco na pia, lá na loja,
mas não consegui. Não entendo como não me despediram e ameaçaram me matar se
aparecesse lá outra vez. Ah, e tem ainda a “grande cena finaç”. Pouco antes da hora de eu sair,
meu avental se prendeu num gancho de uma batedeira enorme que tem nos fundo da loja e
rasgou.
Selena ergueu as mãos e, com os indicadores, mostrou uma distância de mais ou menos
dez centímetros. A mãe pôs a mão na boca. Selena percebeu que ela estava reprimindo o riso.
- E eles ainda vão querer que você vá trabalhar sábado? indagou o pai.
- Querem! respondeu a jovem. Simplesmente incrível, não é?
- Será que o anúncio do emprego dizia que precisavam de um palhaço para entreter os
clientes? indagou ele brincando. Sabe, de repente eles querem dar uma incrementada na loja,
com um showzinho de variedades. Nos dias em que você estiver trabalhando, os clientes farão
- Ué! Malvado? disse o pai, agarrando no ar o peguador de panela que ia atingir a mãe.
Antes eu era “o paizinho querido e maravilhoso” que estava verificando o preço das
- Canja? continuou o pai, levantando a tampa da panela, Quem é que está doente?
- O senhor! O senhor vai ficar doente já, se não me falar sobre as passagens, respondeu
Selena, dando um pulo e segurando o braço dele antes que ele pegasse outro pegador de
panela.
- Ah, depois de grande ficou mais espertinha, hein? falou o pai, inclinando-se e
cheirando o cabelo da filha. Estou gostando desse seu novo perfume, Selena. Tem uma
fragrância que poderia chamar-se “saído do forno agora”. Bastante suave, mas com um sabor
muito bom.
- O senhor é que vai ficar “saído do forno agora” se não me falar das passagens.
- 'Tá bom, 'tá bom! disse ele, erguendo as mãos como que se rendendo.
- Não tinha um papel por perto e me deixaram um tempão esperando. Quando afinal me
atenderam...
- “John Wayne”?
- É o novo nome do aeroporto do Condado Orange. Acha que poderá arranjar o dinheiro
em três semanas?
- Creio que sim, disse Selena, virando a cabeça para ler os outros dois números. Isso
- Você sai na sexta-feira e volta na outra quinta. Não havia mais vaga para o final de
- Claro que fiz, replicou o pai. Eu seria um secretário muito relapso se não tivesse
- Está bem! Entendi! continuou a mãe. Obrigada por terem ligado. Tchau!
- Precisamos ir lá agora.
precisam ir para a cama às 8:00h. Tânia deve chegar às 9:30h. Se houver algum problema,
momentos antes ressoavam risadas alegres, ficou tristemente silenciosa. Selena fez um
Selena saiu do banheiro com uma toalha enrolada na cabeça. Sentiu um forte impulso de
ligar para o hospital. Havia já duas horas e meia que vinha sentindo vontade de fazê-lo.
Contudo resistiu a ele. Os irmãos haviam jantado, tomado banho e ido para a cama. Ela havia
Tânia deveria chegar a qualquer momento. Selena precisava fazer um trabalho para a aula de
inglês - uma redação de quatro páginas. Amanhã era o último dia para entregá-la, mas como
Felizmente, porém, ela sempre se saía bem de tais situações. Nos seus boletins, os
“Selena é uma aluna inteligente, mas ainda não desenvolveu todo o seu potencial.”
Isso era verdade. Nunca se sentira motivada a se esforçar mais. Para quê iria se
empenhar, se com pouco esforço conseguia os pontos necessários para passa de ano?
Abaixou-se para procurar o outro debaixo da cama. Não estava ali. Abriu o armário. Também
não. Selena procurou o chinelo em todo o quarto. Com isso foi obrigada a reconhecer que o
quarto estava muito desarumado. E parecia que era a primeira vez que o via.
- Que bagunça! exclamou. É, menina, assim não dá mesmo para encontrar nada!
Foi o quanto bastou. Não iria tolerar aquela bagunça mais um minuto. Com movimentos
frenéticos, Selena “engatou uma quarta” e se pôs a arrumar o quarto. Não fazia diferença
saber que já passava de 9:00h da noite e que ainda tinha o trabalho da escola. Não agüentava
passar um segundo naquele cômodo bagunçado. Nesse momento até teve pena da Tânia, que
Calçada com um chinelo só e sentindo o cabelo molhado nas costas, Selena respirou
fundo e se pôs a trabalhar velozmente. Pendurou as roupas, amassou e jogou fora alguns
papéis. Guardou alguns objetos nas gavetas e arrumou o tampo da cômoda. Removeu a roupa
de cama e correu ao armário, pegando lençóis limpos, que ainda guardavam o perfume do
amaciante de roupas. Com movimentos rápidos e uma batida no travesseiro, a cama estava
arrumada. Provavelmente era a primeira vez que estava ajeitada desde que havia mudado para
aquela casa.
A seguir, pegando uma braçada de roupas sujas, foi para o porão da casa, onde estava a
lavadora. Colocou as roupas na máquina e ligou-a. Ao lado dela, viu uma bacia de plástico
com suas roupas de alguns dias atrás. Estavam limpas e dobradas. Em cima de tudo, achava-
se o chinelo que faltava. Estava limpinho e contrastava com o que ele calçara. Dentro dele,
Será que um dia vou ser uma mãe maravilhosa assim também? pensou ela, pegando as
roupas limpas e subindo para o andar de cima. Assim que passou pela entrada, ouviu uma
- Mamãe e papai foram chamados ao hospital, explicou ela para a irmã. Ainda não sei o
que aconteceu.
- Por que não ligou para lá? indagou Tânia, pendurando a bolsa no gancho do cabide da
- Achei que eles iriam telefonar ou então voltariam para casa se tudo estivesse correndo
bem.
- A que horas eles foram para lá? perguntou a outra, andando apressadamente para a
Tânia discou o número do hospital, que estava escrito com giz' num quadro-negro preso
à parede. Pediu que a ligassem com o quarto de Vó May. Ouviu o telefone chamando, mas
ninguém atendia.
- Ninguém atende, murmurou Tânia. O que será que está acontecendo? Será que as
- Talvez. Sei lá, replicou Selena, sentindo que começava a entrar em pânico. Será que
devemos ir ao hospital?
Selena fez que sim. Tânia estendeu o fone para a irmã, para que ela escutasse o ruído.
- Vou tentar, replicou Tânia, saindo porta a fora com um movimento rápido e fechando-
a imediatamente.
Selena ficou uns instantes parada com a bacia de roupa limpa ao lado, sem saber direito
o que fazer. Afinal, decidiu. Pegou a mochila com os objetos escolares e foi para a saleta.
digitar a redação.
Estava “ligada” no trabalho apenas em parte. Esperava que o telefone tocasse a qualquer
momento. A certa altura tirou o fone do gancho para ver se estava funcionando. Ouviu o ruído
se na redação para concluí-la. Sua sensação era de que estava subindo um morro íngreme,
onde soprava um forte vento contrário. De dois em dois minutos consultava o relógio. Pegou
o telefone duas vezes para ligar para o hospital, mas nas duas resolveu esperar que a irmã
ligasse.
Estava quase terminando a redação. Selena olhou para o quintal, através da vidraça da
porta. Estava escuro como breu. Lembrou-se do versículo que lera em Isaías. Dizia algo sobre
“com minha alma te desejei de noite”. Ficou algum tempo sentada ali, em silêncio, olhando
ortográfica e, em seguida, colocou para “imprimir”. Assim que ouviu a impressora começar a
funcionar, foi à cozinha e discou para o hospital. Passava de 22:40h. Fazia mais de uma hora
que Tânia havia saído. Pediu que a ligassem com o quarto de Vó May, e a mãe atendeu, na
- Mamãe, disse ela, como estão as coisas por aí? O que está acontecendo? Tânia ficou
- Eu sei, respondeu a mãe calmamente. Sinto muito não termos ligado. Vai dormir,
Dessa vez, Selena ficou ainda mais preocupada. Por que será que a mãe não queria dizer
nada no telefone? Pegou os papéis da redação e desligou o computador. Recolheu seus objetos
e saiu do escritório do pai. Segurando a bacia com as roupas secas, subiu para o quarto.
Derramou as roupas sobre a cama, agora arrumadinha, e se pôs a organizá-las. Fez uma pilha
de camisetas. Colocou de lado as que iria pendurar. Ananjou as peças íntimas em outra pilha.
Uma das meias estava sem o par dela. De repente lembrou-se de que a vira dentro da mochila.
Voltou ao andar inferior para pegar a mochila e retornou ao quarto. Como estava com
disposição de dar arrumação, derramou os objetos no chão para rearranjá-los dentro dela.
A meia estava lá, sim, mas suja. Resolveu correr ao porão e colocar mais algumas
roupas para lavar, completando assim a lavagem. Quando subia de volta para o quarto,
ocorreu-lhe que um lanchinho àquela hora da noite iria cair bem. Colocou uma fatia de pão na
torradeira e encheu um copo de leite. Seu pai dissera que a melhor maneira de comer uma
torrada à meia-noite era com manteiga e mel. Selena experimentara e gostara, passando a
Segurando o prato com a torrada em uma das mãos e o copo na outra, Selena foi
andando e bebericando o leite. Sentou se no chão com as pernas cruzadas à moda oriental e se
pôs a pegar os objetos da mochila, guardando uns e jogando fora outros. Ao mesmo tempo ia
- O que aconteceu?
- Vó May teve uma de suas crises, um lapso de memória, levantou-se e saiu andando
pelo corredor.
- Ela o arrancou do braço. Pegou o elevador, desceu para o saguão e entrou na loja de
suvenir. Aí ela escorregou e caiu. Mamãe e papai ficaram um tempão com ela na sala de raios
X. Foi por isso que eles não ligaram. Tiveram receio de deixá-la sozinha.
- Mas você tinha prometido telefonar, queixou-se Selena.
- E, e eu tentei, mas todas as vezes que ia ao telefone público estava ocupado. Você não
- Ela quebrou o pé, explicou Tânia. Quando vim embora, tinham acabado de engessá-lo.
Mamãe e papai vão ficar lá mais ou menos uma hora. Vão esperar até que ela se acalme e
durma.
- Bastante. Acho que o médico vai receitar um sedativo bem forte para ela dormir.
- Quando é que ela vai ter alta? Será que não seria melhor se ela viesse se recuperar em
- Não sei o que o médico diria sobre isso. Aliás, acho que ele estava meio perdido, sem
- Aquele não é o médico dela, explicou Selena, virando-se para subir ao quarto.
Em seguida, correu os olhos pelo aposento e percebeu que, embora o tivesse arrumado,
agora ele estava todo bagunçado de novo. Havia roupas em cima da cama. Os objetos da
mochila estavam espalhados pelo chão. Os restos do lanche noturno ainda se encontravam
- Você pensa que pode me enganar! exclamou Tânia, tirando os sapatos e guardando-os
no armário.
Selena enfiou o resto dos objetos na mochila. Em seguida, como a irmã a deixara
irritada, pegou as roupas limpas já dobradas que estavam na cama e de propósito atirou-as no
chão. Afinal, deitou-se na cama, agora incapaz de curtir os lençóis limpos e cheirosos, e
Capítulo Quinze
No sábado à tarde, Selena, que estivera emocionalmente bem agitada havia algum
tempo, experimentou uma calmaria durante alguns momentos. De repente, porém, a agitação
recomeçou. Ela estava no trabalho e tudo transcorrera bem nas primeiras cinco horas. A
jovem começou até a achar aquilo estranho e ficou mais ou menos na expectativa que a
Amélia lhe disse para fazer o intervalo do almoço. Na cozinha, havia uma bandeja com alguns
pãezinhos doces que tinham ficado ligeiramente torrados, e ela deixara ali para quem
quisesse. Selena pegou um deles, mas depois de passar a manhã toda sentindo aquele cheiro
Sentou-se e ficou uns instantes parada, com a percepção de que as mãos estavam
meladas e a roupa cheirava a café. Sentia-se feliz. Estava indo bem no trabalho. O pai fizera a
reserva da passagem para ela ir à Califórnia. Ontem, na hora do lanche, pudera conversar mais
com Vicki e Amy, fortalecendo sua amizade com elas. O sol voltara a brilhar.
Lembrou-se de outro versículo de Isaías que lera de manhã, apesar de ter feito uma leitura
agradável.
A jovem foi para a loja, que estava lotada de fregueses, e correu os olhos pelo aposento,
para ver quem seria. Era Ronny. O rapaz se encontrava perto da caixa registradora.
Selena sentiu o rosto avermelhar-se na mesma hora. Percebeu que vários dos presentes
- Hoje?
- Por volta de sete horas, explicou ele. Achei que talvez a gente pudesse ir a um cinema.
- Às 4:00h.
Nesse momento, Selena percebeu que D. Amélia estava parada junto dela, querendo
- Diga logo que sim, falou o rapaz, abaixando um pouco a voz. Não complique tudo,
Selena. Somos apenas amigos, não é? Então podemos ir assistir a um filme, sem compromisso
- Bom...
Selena não sabia como iria explicar para ele que ninguém nunca a convidara para sair.
Nenhum rapaz a pedira para namorar. Assim sendo, não sabia se seus pais permitiriam. Eles
haviam dito que assim que ela fizesse dezesseis anos poderia começar a namorar. Contudo ela
Imediatamente pensou que ele poderia achar aquilo meio infantil, então acrescentou:
- É que minha avó está internada, e não sei se poderei sair à noite.
- Está bem, compreendo. Então eu também quero lhe pedir um favor. Posso?
- Obrigado! disse ele. Agora quero um pãozinho de canela, ou será que tenho de entrar
na fila?
- Não. Vou pegar pra você. Quer com calda de açúcar ou sem?
- Com, é claro.
Procurando agir com muito cuidado, Selena puxou uma bandeja com pãezinhos
recobertos de glacê. Pegou uma espátula e colocou um deles numa caixinha “para viagem”.
Pôs um pouco mais de calda sobre o pãozinho e fechou a tampa da caixa. Em seguida,
- Então vou lhe telefonar, disse ele, dando um aceno, e foi embora.
Selena soltou um suspiro, relaxando a tensão, e olhou para o relógio. Seu horário de
almoço estava encerrado, então foi atender ao cliente seguinte. Nenhum dos colegas de
Ao mesmo tempo, porém, estava morrendo de vontade de conversar com alguém sobre
o acontecido. Afinal era o fato mais importante de sua vida. Um rapaz a convidara para sair!
Como na parte da tarde o movimento da loja caiu um pouco, Selena teve mais tempo
para ficar pensando no encontro com Ronny. Quando era mais nova, vivia sonhando com o
dia em que teria seu primeiro encontro com um rapaz. Imaginava como tudo aconteceria e
como o jovem seria. Contudo nunca pensara que seria assim tão seco e sem romantismo. E
Não que houvesse algo de errado com ele, disse para si mesma, procurando se consolar.
Ele era muito bom “como amigo”. O problema é que nunca pensara em sair com ele. Ficou a
indagar-se quanto tempo havia que ele pensava em convidá-la para sair. Será que havia
gostado dela desde o primeiro dia? Ou será que o interesse dele despertara no dia em que ela
conversara com ele na escola e lhe estendera a mão para selar a amizade? E se ele sentira
açúcar numa cestinha, ocorreu-lhe que talvez ele estivesse fazendo isso por piedade. Era
possível que estivesse com pena dela, pois ela havia se aberto com ele, confessando que não
tinha amigos. Selena coocou um saquinho de adoçante em pó numa das cestinhas e pensou:
Se é por isso, ele pode parar. Não preciso da piedade dele. Eu preferia não ter nenhum
encontro, nunca, do que aceitar um convite que é feito por piedade, principalmente de um
E pelo resto da tarde ficou firme nessa determinação. Isto é, ficou firme até o momento
em que passou pelo correio onde pusera a carta “malcriada” que escrevera para o Paul. Ainda
estava arrependida de havê-la escrito. Se ao menos tivesse parado para pensar melhor e
esperado um pouco mais... Na verdade, Paul, em sua carta, estivera brincando com ela, e não
agredindo-a.
No dia em que conhecera Paul, ele lhe causara uma impressão muito forte. Depois
disso, orara fervorosamente por ele durante um bom tempo. Agora, com sua carta, estragara a
pequena amizade que começara a formar-se entre os dois. Talvez amizade não fosse bem a
palavra, mas certamente havia algo entre eles; e ainda estava presente na mente dela.
- Mãe! gritou Selena, assim que entrou em casa. A senhora está aí?
Selena dirigiu-se para a saleta, que estivera em reforma. Seu pai montara ali um centro
de recreação para a família na noite anterior, dissera que estava pronto para ser utilizado. Os
meninos estavam deitados no chão, jogando video game. Tânia colava etiquetas em algumas
- Já sei que você vai ficar toda feliz depois que tudo estiver nos seus devidos lugares,
explicou Selena, sentando-se no chão ao lado dos irmãos. Quem está ganhando? indagou.
- Não há nada de mal em ser bem organizada e ordeira, Selena, observou Tânia, em tom
ríspido. Mas é claro que você não entende nada a respeito disso, não é?
Seu pai estava trabalhando no barracão, que parecia uma casa de bonecas. Tinha uns
óculos de proteção no rosto e cortava algo com a serra elétrica. Selena tapou os ouvidos com
- Ah, já chegou, hein? Como foi o trabalho hoje? Mais unas aventuras iguais às de
quinta-feira? Por falar nisso, liguei para o Livro Guiness de Records e eles estão pensando em
- Pois diga a eles que podem arranjar outro otário para figurar no livro deles. Minha
vida de funcionária desastrada acabou. Hoje não houve praticamente nada de excepcional.
- Praticamente?
O pai de Selena largou a serra e chegou perto da filha, para olhá-la direto nos olhos. Ele
sempre fazia isso com os filhos desde que eram pequenos. Seu objetivo era descobrir se
estavam mesmo dizendo a verdade. Apesar de agora estarem crescidos, ele continuava com
essa prática. Selena achava que essa era a maneira que ele encontrara para descobrir as
alegrias e tristezas que os filhos abrigavam, mas que tinham aprendido a “esconder” no fundo
- É um rapaz lá da escola, explicou Selena. Apostoo que o senhor estava pensando que
era um colega de serviço que conheci há pouco tempo. Houve um dia nessa semana que nós
mais ou menos lanchamos juntos, na escola. O nome dele é Ronny. Ele foi lá no meu serviço
e perguntou se eu queria sair com ele hoje às 7:00h. Respondi que teria de conversar com o
O pai foi abrindo o rosto num sorriso lento. Selena não conseguiu entender o que aquilo
significava.
de trabalho. Parecendo uma pessoa realizando uma missão importante, retirou os óculos de
- Está bom, disse, virando-se ligeiramente para a filha. Deixe esse cara comigo, Selena.
Capítulo Dezesseis
Faltavam quinze para as cinco, e o pai parou perto do telefone, com ar de quem iria
- Pai, não faz com Ronny o que o senhor fez com o Martin, aquele namorado da Tânia,
pediu ela.
- O que vocês estão falando de mim aí? perguntou Tânia, entrando na cozinha naquele
momento.
- Selena lhe contou? perguntou o pai. Um rapaz convidou-a para sair, de verdade.
- É um colega da escola. Ele é apenas meu amigo, gente. Nunca imaginei que fosse me
- Está vendo? interveio o pai. Já está na hora de você reconhecer que é uma garota
muito bonita. \Aposto que Ronny será o primeiro, mas não o último.
- É, replicou Selena, cruzando os braços e dando um olhar sério para o pai. E espero
mesmo que ele não seja o último, depois que o senhor conversar com ele.
- Ô pai, interveio Tânia, o senhor não vai fazer com ele o mesmo que fez com o Martin,
vai?
- Aquela tal “entrevista” que o senhor fez com ele foi demais. Não faça isso com esse
- Ronny.
- Não faça o mesmo com o Ronny não, tá, pai! O senhor “assustou” o Martin, e todo
mundo lá em Pineville passou a me ver como uma garota que não podia namorar. O senhor
ainda lembra como todos riam de mim e diziam que quem quisesse sair com a Tânia tinha
- Ah, mas isso não te prejudicou em nada. E depois isso me valeu um jogo de golfe de
graça, e fui convidado para jantar fora duas vezes, comentou. Ademais, é isso que quero que
- É, mas não precisa exagerar, né pai? disse Tânia, assumindo uma atitude carinhosa e
defendendo a irmã. Talvez o senhor devesse convidá-lo para jantar ou passar umas horas com
a família numa atmosfera descontraída. Assim tudo bem. Mas aquela tal conversa “de homem
Nesse momento o telefone tocou. Selena olhou para o relógio: 5:00h em ponto. Fitou o
Ele fez um aceno para as filhas, como que dizendo: Fiquem tranquilas!
- Prazer em conhecê-lo, Ronny. Antes de chamar a Selena, queria conversar com você.
Minha filha falou que vocês estavam pensando em sair hoje à noite.
Outra pausa.
- Bom, eu queria convidá-lo para vir comer uma pizza conosco às 6:00h, se você quiser.
E desligou. Pela expressão do seu rosto não dava para descobrir o que Ronny
respondera.
- Ele disse que não, certo? indagou Selena. Desistiu de tudo e disse que nunca mais iria
O pai foi dando um sorriso lento, fechando um pouco os olhos, como fazia quando tinha
- Que foi que ele disse? indagou Tânia, agarrando um dos braços dele.
- Às 6:00h.
O telefone tocou de novo. Selena pegou-o depressa, antes que o pai atendesse.
- Alô!
- Selena!
- É!
- Oi! Sou eu outra vez. Dei um fora tremendo. Esqueci de perguntar seu endereço.
A garota soltou uma risada nervosa. Em seguida, explicou a Ronny como se chegava em
- Então você não se importa de vir à minha casa, comer pizza com a gente?
- Claro que não! Nunca rejeito um convite para jantar, menina! replicou ele rindo.
- Até lá!
- Não falei que era pra deixar comigo? comentou o pai. Eu sei que se conquista um
homem é pela boca. Sempre foi assim e sempre será. Podem confiar em mim, garotas.
- Então o que vai acontecer assim que esse coitado desse “cobaia” chegar? quis saber
Tânia. O senhor vai levá-lo para o seu escritório e obrigá-lo a assinar um documento antes de
eles saírem?
com Selena.
O pai foi até a porta da frente e se virou para a saleta onde os garotos estavam.
- Meninos, gritou ele, querem ir comigo pegar umas pizzas?
- Você vai trocar de roupa, não vai? indagou Tânia para a irmã.
Selena baixou os olhos para examinar a roupa que estava .usando: um macacão jeans e
- Você ficou com essa roupa o dia inteiro, e até foi trabalhar com ela.
- Selena, você devia pelo menos fazer um pequeno esforço para sentir que se trata do
seu primeiro encontro com um rapaz. Sabe, né? Dar uma escovada no cabelo, ou algo assim.
Selena teve vontade de rir, mas reprimiu o riso. Nunca usara nem um pingo de
maquiagem. Não seria agora que ia começar a usar. E, ainda mais, por causa do Ronny. Era
ridículo pensar nisso. Contudo refreou o riso porque era a primeira vez que Tânia tinha uma
atitude generosa para com ela. Era um gesto totalmente diverso do temperamento da irmã. Ela
raramente partilhava algo com Selena; e menos ainda seus objetos pessoais como roupas,
jóias e maquiagem. Esta nunca sabia o que ia nos pensamentos da irmã, e não queria
- Obrigada, replicou, mas acho que não quero não. Não vou me maquiar só para ficar
bom?
- Por quê? O que tem de errado com ela? É a roupa que mais gosto.
- Não acho.
- Deixa sim. E dá a impressão de que está avacalhada. Parece que você a comprou na
As duas pararam à porta do quarto, e Tânia virou-se olhando para a irmã com ar de
quem diz: Eu estou certa, e você, errada. Selena também fitou Tânia direto nos olhos.
- Se quer saber, comprei-a no setor masculino da Marshalls. Lá ela era três dólares mais
barata.
Capítulo Dezessete
Faltavam dez minutos para as seis. Selena examinou atentamente sua imagem refletida
no espelho da cômoda. Tânia estava de pé, atrás da irmã, admirando sua “obra-prima”. O
cabelo de Selena estava penteado para trás, numa longa trança, presa na ponta com um
passador. Ela não estava usando brincos, o que quase lhe dava a sensação de estar nua. Tânia
dissera que os brincos atrapalhavam seu visual. Ela queria que a irmã tivesse uma aparência
bem jovem.
rímel nos cílios de Selena. É assim que você é por dentro, Selena. A gente deve ser por fora
exatamente como é por dentro. Fique parada. Você está dificultando o trabalho.
- Você está querendo que eu fique parecida com você, Tânia. E eu não sou você.
- Por que será que quando alguém quer tratá-la bem, você dificulta tudo, Selena?
me elogiando.
Tânia não respondeu nada. Voltou a passar o rímel nos cílios da outra.
- Ficou muito bom, disse Tânia. Está vendo como um pouquinho de cuidado pode
Ah, meu pai! pensou Selena. A garota ainda não estava muito satisfeita com o fato de
estar “toda embonecada”, como dizia o pai. Ficou olhando para o próprio rosto por alguns
instantes sem dizer nada. Era verdade que os olhos pareciam mesmo maiores. E também mais
azuis. Contudo as sardas que tinha no nariz ainda lhe davam um ar de menina, e não aquele
aspecto sofisticado, próprio de Tânia. Parecia que por mais maquiagem que aplicasse, nunca
É, mas apesar de tudo ela parecia ter mais de dezesseis anos. Pelo menos achava que
tinha um ar de mais velha. E Paul também achara isso quando haviam se conhecido, em
Preferia sair hoje com Paul a passear com Ronny, pensou. Se fosse com ele, deixaria
que você me maquiasse todinha, Tânia. Eu queria ficar com uma aparência belíssima. Mas
não é com ele que vou sair. Alias, é provável que nunca mais o veja. Eu devia ficar alegre de
Selena se lembrou do dia em que Vó May viera ao seu quarto e ficara se olhando
naquele mesmo espelho. Ela se aproximara dele para ver melhor sua imagem refletida ali e
tocara de leve as rugas do canto dos olhos. Em seguida, contara que tinha a impressão de que
Por alguma razão, Selena compreendeu que ela também vivia um momento marcante
em sua vida. Era estranho pensar que a avó vira a própria imagem naquele espelho aos doze
anos, aos dezesseis e em todos os outros anos que se seguiram. Era estranho pensar em Vó
- Está esquisito.
- Não estou falando da maquiagem, não. Estou me refetindo a um fato que acontece só
uma vez com a gente: atravessar a ponte que liga a infância com a vida adulta. E depois não
se pode voltar nunca mais. Isso tudo me dá a impressão que estou dando mais um passo nessa
ponte.
- Claro que penso. Só que eu não achava que você também pensava.
- Você combina com uma fragrância doce e bem suave, disse. Gosta dessa?
Selena deu uma cheirada forte. O perfume não era dos que Tânia usava. Tinha mais um
- É. Gostei.
- O quê?
- Feche os olhos!
- Vamos combinar uma coisa, disse Selena, você arrumou minha cabeça do jeito que
Tânia deu de ombros, recolocou o frasco de perfume no lugar e se pôs a tirar os fios de
cabelo da escova.
Selena correu a mão por uma pilha de roupas que estava no chão e pegou uma camiseta
listada e uma calça jeans bem folgada. Ignorando os resmungos da irmã, levantou-se e foi
O pai chegou de volta com a pizza antes de Ronny aparecer. Selena ouviu o pai e os
irmãos na cozinha. Quando descia a escada, a porta da frente se abriu e a mãe entrou, com
aparência cansada.
- Não. Isso foi a grande “missão” de Tânia hoje. Vou ter um encontro com um rapaz .
- Selena Jensen! exclamou, pegando as mãos da filha. Você está linda! Não tem idéia de
seguida, a campainha tocou. Selena e a mãe deram um leve aperto de mãos e se entreolharam,
Antes que Selena chegasse à porta, Kevin e Dilton passaram correndo por ela, brigando
para abri-la. Os dois agarraram a maçaneta ao mesmo tempo e a puxaram, mas ela saiu na
mão de Dilton.
- Tá vendo, você quebrou ela! falou o garoto imediatamente. Papai, Kevin quebrou a
maçaneta!
- Ei, meninos! interveio Selena, gritando por causa do barulho. Parem com isso!
O pai veio da cozinha com a mãe logo atrás dele. Os dois perguntavam em voz alta o
que estava acontecendo. No mesmo momento, Tânia apareceu no alto da escada e desceu
- Busque uma chave de fenda pra mim, disse o pai. Dilton, vai lá na oficina e pegue uma
- Eu não disse que foi você que quebrou. Vai lá buscar pra mim, 'tá? Espere aí, Ronny!
Selena percebeu que estava ficando tensa. Na certa, Ronny estava escutando toda aquela
barulhada. E ela nem poderia reclamar se ele resolvesse dar no pé. Todo mundo estava
falando ao mesmo tempo, dando sugestões para solucionar o problema. Dilton voltou com três
chaves de fenda. A mãe de Selena estava dizendo que a peça que faltava talvez tivesse caído
no chão. Ela se abaixou e ficou de gatinhas procurando a pecinha. Kevin também se abaixou e
- Tenta abrir com a chave de fenda, sugeriu Tânia. Não precisa recolocar a maçaneta,
não, pai. Isso já aconteceu com a porta do banheiro, lembra? Vó May abre com a ponta do
- Eu sei o que estou fazendo! replicou o pai, meio irritado. Morei nesta casa velha
Usando a chave comum, ele introduziu algo no orifício da maçaneta. Ela fez um
“clique”. Nesse momento a mãe ergueu a cabeça, que bateu no cotovelo do pai.
- Ai!
- Machucou?
- Abre a porta!
Todos se viraram. Era Wesley, o irmão mais velho de Selena. Ao lado dele, estava
Ronny.
- Encontrei este coitado lá fora na varanda, disse Wesley. Pertence a alguém aqui?
- Você não avisou que vinha passar o final de semana conosco, disse ela.
- Ahn? Agora tenho de “fazer reserva” ou algo assim? Talvez seja esse o seu problema,
rapaz, disse ele, virando-se para Ronny. Você não ligou antes de vir. Se tivesse ligado, talvez
tivessem aberto a porta. Mas agora já sabe meu segredo. Entre pela porta dos fundos.
- Gente, este é o Ronny. Estes aqui, Ronny, são meu pai, minha mãe e meus irmãos.
Mais risos. Ronny ficou parado, com uma expressão de quem se sente meio perdido,
- Vamos atacar aquela pizza enquanto está quente, pessoal, falou o pai, fazendo um
- Não liga, não, Ronny. Não foi pizza de anchova que ele comprou não. Está brincando.
Detesta anchova. Provavelmente trouxe de calabresa ou outro sabor. Não se preocupe, não.
- Ah, não estou preocupado não, replicou Ronny, com um leve sorriso, falando baixo.
Selena olhou-o com expressão agradável, procurando sorrir também. Então percebeu
que a cara do rapaz era de quem estava preocupado, sim. Muito preocupado.
Capítulo Dezoito
Momentos depois, quando todos estavam sentados à mesa, comendo pizza em pratos
- Você parece com aquele cara da banda de “rap” disse Kevin. É você?
Evidentemente, na opinião de Dilton, tocar piano não era tão legal quanto bateria.
- Ele é cientista.
- O cientista louco! disse Kevin em voz grave, erguendo os braços e deixando as mãos
- No momento ele trabalha com uma equipe de exploradores que está procurando a arca
- Tem gente que acha isso meio esquisito, comentou Ronny. Ele trabalha também com
uns cientistas que estudam o vulcão do monte St. Helens. Mas agora está se dedicando mesmo
- Ah, então foi assim que ele lhe deu aquele blusão espetacular que você usa na escola
de vez em quando, não foi? indagou Selena. Você me contou que ele o trouxe do Nepal.
Selena correu os olhos à sua volta. Sentiu-se aliviada ao ver que tudo corria
tranqüilamente, melhor do que no início. E o bate-papo foi continuando informal até que a
pizza acabou. Dilton convidou Ronny para disputarem um joguinho no computador, e logo
Ele entregou o prato vazio para a mãe de Selena, que estava recolhendo as vasilhas.
- De nada. Ainda bem que você gostou, pois passei o dia inteiro na cozinha preparando-
- A que filme você gostaria de assistir? disse Selena, procurando recuperar a atenção
dele.
O rapaz olhou para Selena. A moça estava decidindo se iria ficar irritada ou não. Todo
mundo já havia saído da sala de jantar, e ela percebeu que teria liberdade para responder o que
quisesse.
- Ah, vai lá, disse afinal. Não precisamos sair e ir ao cinema. Podemos ficar por aqui
mesmo.
- Está bem, concordou Selena. E não vou deixar que você se esqueça disso não, 'tá?
Ela o levou à saleta, onde viu Wesley no lugar em que Ronny iria jogar.
- Cuidado aí, coleguinha! Esses caras que parecem tranquilões são verdadeiros
- Olhe pra mim que você vai ficar sabendo, respondeu Ronny, acomodando-se no chão e
Selena teve a sensação de que ele ficaria ali pelo resto da noite. Foi à cozinha para beber
Tânia estava junto à pia, ajudando a mãe a lavar algumas vasilhas que haviam se
- Não acredito que você está deixando o Dilton fazer isso! disse ela.
- Fazer o quê?
- Você praticamente “entregou” o Ronny para os meninos. Eles vão ficar jogando vídeo
game a noite toda. Você não acha ruim ele ter te largado assim, sem mais nem menos?
- Na verdade, não. Acho que me sinto até mais tranqüila de ver que meu primeiro
- É um primeiro encontro, sim, insistiu Selena. Pra mim isso é meu primeiro encontro. E
que o seu foi bem desastroso. Ele não te levou a um restaurante que não funcionava mais?
- O pai dele tinha dito que era um restaurante muito bom. Fazia apenas um ano que eles
tinham fechado.
- Ah, eu me lembro disso, interveio Selena. Vocês acabaram indo a uma sorveteria, e
- Mas apesar disso nós nos divertimos, falou Tânia com um certo despeito.
- E eu também pretendo me divertir hoje, replicou Selena. Alguém quer jogar Trivial
- Ótima idéia! falou a mãe. Vou dizer a seu para pegar o tabuleiro.
- Vou fazer dupla com Wesley! foi logo dizendo Tânia. Vinte minutos depois, as quatro
Em segundo lugar, vinham a mãe e o pai, Kevin e Dilton eram os últimos e, após mais meia
E o jogo continuou. A certa altura, quando já eram quase 22:00h, Selena pegou um
- Ah, beleza! exclamou ele, lendo-a em silêncio. Essa você nunca vai saber, Selena.
- Deixe-me ver, pediu Tânia, olhando por cima dos ombros do irmão. Não tenho a
- Está bem. Lá vai. A pergunta é: Qual era o segundo nome de Elvis Presley?
- Aaron!
*
Trivial Pursuit: um joguinho de mesa semelhante ao nosso “Master” (N. da T.)
- Tânia e Wesley se entreolharam sem compreender.
- É isso mesmo que você quer responder? A resposta tem de ser dada pela dupla, hein!
Ronny acenou que sim. A moça não conseguia decidir o que fazer. Não sabia se ele
estava mesmo falando sério. No início do jogo, ele dera umas respostas meio malucas, bem
erradas. Ela ainda não o conhecia o suficiente para saber se estava brincando ou não. Selena
respirou fundo.
“Toque aqui!”
- Eu não disse que meu pai tocava numa banda? Mas não falei que era uma banda
evangélica, falei?
Instantes depois, todos se puseram a tirar as vasilhas da mesa e levar para a cozinha os
copos e as tigelas de pipoca. Depois se sentaram e conversaram durante uma meia hora mais
- Bom, acho que está na hora de ir embora, disse o rapaz. Muito obrigado por tudo,
gente. Foi uma noite muito agradável. Tchau, pessoal! Tive muito prazer em conhecê-los.
Todos se despediram dele, e Selena foi com o rapaz até a porta. O pai já havia
- Muito obrigada por ter vindo e tudo o mais, disse ela. Passamos uns momentos bem
divertidos!
perguntou:
- Claro!
- Foi meu primeiro encontro mesmo. Nunca tinha tido outro antes.
- Assim o segundo vai ser bem mais fácil, disse ele. Ainda pretendo levá-la ao cinema,
- 'Tá bom. Boa noite, então, disse Ronny, dando aquele seu sorriso meio torto.
cozinha.
- Claro que não! Somos apenas amigos. E quer saber de uma coisa? Ronny disse que foi
- Parece que ele se divertiu bem, comentou a mãe. Isto é, depois que se recuperou do
- Obrigada, gente, por terem ficado comigo no meu encontro, disse a garota.
- E agora? Foi melhor que seu encontro desastrado com Martin, o marciano?
- Depende de quê?
- Vamos ver se Ronny vai convidar Selena para sair de novo. Isso vai ser o grande teste.
Capítulo Dezenove
Selena demorou muito para dormir naquela noi te. Tivera a impressão de que iria ficar
pensando em Ronny, que ele era um rapaz muito legal e que aquelas horas que passara ali
tinham sido maravilhosas. Na realidade, porém, ficou pensando foi em Paul, imaginando
como seria se ele um dia viesse visitá-la e comesse uma pizza com a família. Como será que
ele se sairia no joguinho Trivial Pursuit? Será que saberia o segundo nome de Elvis Presley?
Chutou o cobertor e virou de lado. Ah, mas que importância tem isso? Por que estou
pensando nele? A carta que escrevi para ele assustaria qualquer um. Como é que fui escrever
tudo aquilo? Lembrou-se de como concluíra a carta. Primeiro o criticara por haver colocado a
palavra sinceramente, sendo que ela sabia que ele não estava sendo sincero nada. Em seguida,
para o teto às escuras. Recordou-se do que escrevera em seu diário acerca de pedir perdão e
dizer “Obrigada!”. Lembrou-se de que anotara que era sensato começar a fazer isso ainda
jovem. Teve vontade de pedir perdão a Paul. Não importava se depois ele achasse que ela era
infantil e boba. Era melhor do que estar sempre pensando nas palavras impulsivas que
Selena recordou-se de algo que sua avó lhe dissera no ano anterior. Ela mencionara que
sempre que tinha de tomar alguma decisão importante ou que algo a incomodava, “enterrava”
a questão durante três dias. No terceiro dia, se o problema ainda estivesse vivo, era porque
Naquela época, Selena não entendera muito bem o que Vó May quisera dizer com
aquilo e achara que ela não estava falando “coisa com coisa”. Agora, porém, compreendia
perfeitamente. Se tivesse “enterrado” a carta no momento em que a escrevera e voltasse a lê-
la três dias depois, já teria se acalmado e poderia raciocinar com mais clareza. Agiria assim da
Em meio ao silêncio do quarto, Selena se pôs a fazer planos. Amanhã à tarde iria
escrever ao Paul, pedindo desculpas pela carta anterior. Depois telefonaria para Katie e Cris
versículo de Isaías que lera dias atrás. “Com minha alma te desejei de noite.”
Era a frase mais romântica que uma pessoa poderia dizer a outra. Então sussurrou-a para
Deus.
“Jesus, com minha alma te desejei de noite. O senhor fica impaciente comigo por eu
fazer tanta coisa errada? Às vezes faço o que é certo. Como hoje. Esse meu ‘primeiro
encontro’ foi maravilhoso. Agradeço-te porque tudo saiu do jeito como saiu. Obrigada por
minha família.”
que em sua relação com Deus - aliás, no seu relacionamento com todo mundo – as palavras
que mais dizia eram estas: “Perdoe-me!” e “Obrigada!” Entendeu que se sentiria muito
Paul e a jogara fora. Agora arrependia-se de ter feito isso. Mais uma vez percebeu a
importância daquele princípio de “enterrar” as questões e deixar passar três dias. Teria sido
De manhã, quando se aprontava para ir para a igreja, sua mãe bateu à porta do quarto.
- Claro!
- Liguei para o hospital para saber notícia de Vó May, e sabe o que aconteceu? O
médico estava no quarto dela e disse que ela pode voltar pra casa agora de manhã. Você pode
ir lá comigo para buscá-la? Ele quer que a gente vá lá imediatamente para nos dar algumas
instruções.
- Posso ir com a senhora sim, mãe. Espere só um pouquinho. Já estou quase pronta.
O pai e os outros membros da família foram visitar a igreja de Vancouver, de que Tânia
- Estou aliviada de trazer Vó May para casa, disse a mãe. Sei que no começo vamos ter
muito trabalho, mas ainda bem que posso contar com você e Tânia para me ajudarem. Vó
May está com o pé esquerdo engessado, mas creio que eles vão nos dar uma bengala especial.
Assim ela vai poder subir a escada, com nossa ajuda, claro. Acho que ela vai gostar de voltar
Numa folha, estavam as informações de como se deve lidar com uma pessoa que sofreu uma
fratura. Em outra, havia orientação sobre o tratamento de um paciente que operou de vesícula.
Selena pensou que seria bom se houvesse outra série de instruções sobre como cuidar de um
- Como é que a senhora está, vovó? indagou Selena, inclinando-se e dando-lhe um beijo
no rosto. O médico já lhe disse que a senhora vai para casa hoje? A alta saiu mais cedo do que
Selena deduziu que ela se referia ao médico que se encontrava ao lado delas. Era
verdade que a avó gostava muito do Dr. Utley, o cirurgião que a operara e que ainda estava de
férias. Tânia não tivera boa impressão do médico que agora cuidava dela, mas, ao que parecia,
Vó May gostara dele. Era isso ou então ela estava variando de novo.
- Vamos mandar uma cadeira de rodas aqui para o quarto, disse o médico, no momento
- Talvez vocês precisem ir até o carro primeiro para levar todas estas flores.
- Eu levo! disse Selena. Creio que com umas duas viagens consigo levar todas.
Pegou o buquê que se achava mais perto e leu o cartão. Era de uma vizinha de Vó May.
Leu outro. Era do pessoal da farmácia Eaton's. Os amigos da igreja haviam mandado uma
plantinha. Selena tentou pegar os dois buquês e um vaso. Segurando-os com firmeza, foi até o
Voltou ao quarto, pegou a chave e levou mais algumas flores. Colocou todas as flores
Voltou correndo ao quarto, pensando em como seria bom Vó May estar de volta em
casa. Fora ótimo que a cirurgia correra bem. Apesar do pé quebrado e dos lapsos de memória,
aonde fora assistir ao enterro de seu avô. Eles haviam conversado sobre o assunto. Ambos
eram muito ligados aos avós. Selena sempre considerara Vó May uma boa amiga, além de
Por que estou pensando em Paul? Tenho de parar com isso e seguir em frente. Tenho
outros amigos em quem posso pensar: Ronny, Amy e Vicki; e talvez Tânia também, em
algumas situações.
Recordou-se de que havia convidado a irmã para ir com ela à Califórnia, durante o
recesso da Páscoa. Ainda não sabia direito por que fizera isso. Tânia não mencionara o
assunto de novo, e Selena também decidiu não falar nada. Era provável que a outra até já
tivesse se esquecido do fato. O certo era que daí a duas semanas Selena estaria de partida para
cinema com Ronny no próximo final de semana. Iria servir muitos pãezinhos de canela no
trabalho, ajudar a cuidar da amada Vó May e escrever aquela carta pedindo perdão.
Quando entrou de volta no quarto, Vó May já estava sentada na cadeira de rodas e seu
- Falta só mais uma flor, queridinha! Quero levar todos os meus lírios para casa. Aquele
rapaz foi tão gentil! Sharon, ele ficou comigo um tempão depois que você foi embora ontem!
Selena viu um pequeno vaso branco, com um lírio só, na bandeja do café da manhã.
Não o vira antes. Parecia que era apenas um enfeite que viera com a refeição. Imaginou que
talvez alguém do próprio hospital o colocara ali. Era possível que o rapaz a quem a avó se
referia fosse um dos “voluntários” que faziam visitas aos doentes. Aparentemente ele gostara
de Vó May e ficara a conversar com ela durante algum tempo. E fora no mesmo instante em
Em seguida, agradeceu a cada uma das enfermeiras que vieram se despedir dela. Selena
pegou o vasinho com o lírio e foi caminhando corredor abaixo, seguindo o grupo.
- É, Vó May, parece que a senhora ficou muito conhecida aqui, disse Selena, no
momento em que passavam pelo posto das enfermeiras e duas delas se levantaram, acenando
para ela.
- É, Vó May, sei não! continuou ela brincando. A senhora, hein! Faz amizade com todo
mundo em todo lugar aonde vai. Depois um homem desconhecido lhe traz flores de noite...
Nesse momento, enquanto o pequeno grupo seguia pelo corredor, ela encostou o dedo
no cartão que estava junto com o vaso de flores. Olhou para ele e ficou paralisada. Viu uma
letra grande que conhecia bem, uma mistura de manuscrito e letra de forma. No cartão havia
Sinceramente, Paul.
Fim