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Ko (OiiraowN essay, VNU TOC lo ; Zp Bree : cal : ie aniropoa cael i i . ' i 2 A-o Neysss Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Geertz, Clifford O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa / Clifford Geertz; tradugao de Vera Mello Joscelyne. — Petrépolis, RJ: Vozes, 1997. . :7 ‘Titulo original: Local Knowledge. 74 ISBN 85-326-1932-0 1. Etnologia — Discursos, ensaios e conferéncias I. Titulo. 97-1995 CDD-306 indices para catalogo sistematico: 1. Antropologia interpretativa: Sociologia 306 2. Etnologia: Sociologia 306 Capitulo 3 “Do.ponto de vista dos nativos”: a _natureza do entendimento antropolégico I Ha alguns anos, um pequeno escAndalo irrompeu na atropologia: uma de suas figuras ancestrais falou a verdade ptblico. Como cabe a um ancestral, ele o fez postuma- ente, por decisdo de sua vitiva e nao dele préprio. Este ize foi o bastante para que alguns conservadores em sso meio elevassem a voz e clamassem que a vitiva, tam- antropologa, havia traido o cla, divulgado seus segre- profanado um idolo e decepcionado seus com- eiros. Um caso tipico de “o que € que as criangas vao or n4o diminuiu com todo este cerimonial de esfrega mos pois, infelizmente, o texto maldito ja tinha sido icado. O que realmente aconteceu foi que, mais ou sou como a biofisica funcionava na pratica, Bronislaw nowski, em A Diary in the Strict Sense of the Term, fez ¢ os relatos oficiais sobre os métodos de trabalho dos »pdlogos parecessem bastante inverossimeis. O mito do ador de campo semicamaledo, que se adapta perfei- mente ao ambiente exético que o rodeia, um milagre ilante em empatia, tato, paciéncia e cosmopolitismo, um golpe, demolido por aquele que tinha sido, talvez, dos maiores responsaveis pela sua criagao. O debate que se originou com a publicacao do diario c ‘ou-se, naturalmente, nos detalhes nao essenciais, o era de se esperar, ignorou a quest4o mais importan- 0 livro continha. Grande parte do choque parece ter 85 sido conseqiiéncia da mera descoberta que Malinowski nao era, para expressi-lo de uma forma delicada, um sujeito muito simpatico. Dizia coisas bastante desagradaveis sobre Os nativos com quem vivia, e usava palavras igualmente desagradaveis para expressar estes comentarios. Passava grande parte do seu tempo desejando estar em outro lugar. E projetava uma imagem de total intolerancia, talvez uma das maiores intolerancias do mundo. (Projetava também a imagem de um homem que se consagrara a uma vocacgao estranha a ponto de se auto-sacrificar por ela, mas isso notava-se menos.) Com tudo isso, baixou-se o nivel do debate, concentrando-o no carater — ou na falta de carater — de Malinowski, e ignorando a questao profunda e genuina- mente importante que 0 livro havia levantado, isto é, se nao € gracas a algum tipo de sensibilidade extraordinaria, a uma capacidade quase sobrenatural de pensar, sentir e perceber o mundo como um nativo (uma palavra, que, devo logo dizer, usei aqui “no sentido estrito do termo”) como é possivel que antropdlogos cheguem a conhecer a maneira como um nativo pensa, sente e percebe o mundo? A questao que o diario introduz, com uma seriedade que talvez s6 um etnégrafo da ativa possa apreciar totalmente, nao € uma quest4o ética. (A idealizagdo moral de pesquisadores de campo é, em si mesma, puro sentimentalismo, quando nao uma forma de autoparabenizar-se ou uma pretensdo exage- rada.) A quest4o é epistemolégica. Se é que vamos insistir — e, na minha opiniao, devemos insistir — que ¢ necessario que antrop6logos vejam o mundo do ponto de vista dos nativos. onde ficaremos quando nao pudermos mais arrogar-nos alguma forma unicamente nossa de proximidade psicolé- gica, ou algum tipo de identificagao transcultural com nos- sos sujeitos? O que acontece com o versteben quando © einfiiblen desaparece? Alias, este problema geral vem sendo tema de intimeros debates na antropologia nos ultimos dez ou quinze anos: = voz de Malinowski, do timulo, simplesmente dramatizou = questao, tornando-a um dilema humano que passou 2 5= 86 mais importante que o profissional. Durante estes anos, as formulagdes do problema foram variadas: descrigdes que sao vistas “de dentro” versus as que sdo vistas “de fora”, ou descrig6es “na primeira pessoa” versus aquelas “na terceira pessoa”; teorias “fenomenoldgicas” versus “objetivistas”, ou “cognitivas” versus “comportamentais”; e, talvez mais comu- mente, andlises “€micas” versus andlises “éticas”, estas ulti- mas resultando de uma distincgdo lingiiistica entre as classificag6es fonémicas ou fonéticas dos sons, de acordo com suas fungées internas na linguagem, sendo que a foné- tica os classifica de acordo com suas propriedades actisticas propriamente ditas. A forma mais simples e direta de colocar a questao é, talvez, vé-la nos termos de uma distingao, formulada pelo psicanalista Heinz Kohut para seu proprio ‘uso, entre o que ele chamou de conceitos da “experiéncia- proxima” e da “experiéncia-distante”. Um conceito de “experiéncia préxima” é, mais ou me- nos, aquele que alguém - um paciente, um sujeito, em nosso caso um informante — usaria naturalmente e sem esforgo ‘a definir aquilo que seus semelhantes véem, sentem, ‘nsam, imaginam etc. e que ele préprio entenderia facil- ente, se outros o utilizassem da mesma maneira. Um nceito de “experiéncia-distante” é aquele que especialistas qualquer tipo — um analista, um pesquisador, um etnd- , ou até um padre ou um ideologista — utilizam para acabo seus objetivos cientificos, filos6ficos ou praticos. ior” € um conceito de experiéncia-prdoxima; “catexia em objeto” de experiéncia-distante. “Estratificagao social” e, eZ para a maioria dos povos do mundo, “religiao” (e€ amente “sistema religioso”) sao de experiéncia-distante; a” e “nirvana” sao de experiéncia-proxima, pelo menos hindus e budistas. Obviamente, trata-se de uma quest4o de grau, nao de igdo extrema — “medo” é mais experiéncia-proxima que ia” e “fobia” é mais experiéncia-proxima que “ego distd- ”. E, pelo menos com relag4o a antropologia (no caso 87 da poesia e da fisica nao seria o mesmo) a diferenga nao é normiativa, ou seja, um dos conceitos nao € necéssariamente melhor do que 0 outro, nem se trata de preferir um em vez do outro. Limitar-se a conceitos de experiéncia-proxima deixaria o etndégrafo afogado em miudezas e preso em um emaranhado vernacular. Limitar-se aos de experiéncia-dis- tante, por outro lado, o deixaria perdido em abstracées e sufocado com jarg6es. A verdadeira questao — a que Mali- nowski levantou ao demonstrar que, no caso de “nativos”, nao € necessdrio ser um deles para conhecer um — relacio- na-se com os papéis que os dois tipos de conceitos desem- penham na anilise antropolégica. Ou, mais exatamente, como devem estes ser empregados, em cada caso, para produzir uma interpretacao do modus vivendi de um povo que nao fique limitada pelos horizontes mentais daquele povo —uma etnografia sobre bruxaria escrita por uma bruxa — nem que fique sistematicamente surda 4s tonalidades de sua existéncia — uma etnografia sobre bruxaria escrita por um geémetra. Colocando a quest4o nestes termos, ou seja, indagando- se qual a melhor maneira de conduzir uma andlise antropo- logica e de estruturar seus resultados, em vez de inquirir que tipo de constituic4o psiquica é essencial para antropélogos, torna-se o significado de “ver as coisas do ponto de vista dos nativos” menos misterioso. Isto nao significa que a questao fique mais facil de responder, nem que a necessidade de perspicacia por parte do pesquisador de campo diminua. Para captar conceitos que, para outras pessoas, sao de expe- riéncia-préxima, e fazé-lo de uma forma tao eficaz que nos permita estabelecer uma conex4o esclarecedora com os conceitos de experiéncia-distante criados por teéricos para captar os elementos mais gerais da vida social, é, sem duivida, uma tarefa tao delicada, embora um pouco menos misterio- sa, que colocar-se “embaixo da pele do outro”. O truque € nao se deixar envolver por nenhum tipo de empatia espiri- tual interna com seus informantes. Como qualquer um de nos, eles também preferem considerar suas almas como 88 suas, e, de qualquer maneira, nado v4o estar muito interes- sados neste tipo de exercicio. O que é importante é descobrir que diabos eles acham que est4o fazendo. Em um certo sentido, ninguém sabe isto ta0 bem quanto eles prdprios; dai o desejo de nadar na corrente de suas experiéncias, e a ilus4o posterior de que, de alguma forma, o fizemos. Em outro sentido, no entanto, este truismo simples é simplesmente falso. As pessoas usam conceitos de experiéncia-pr6xima espontaneamente, naturalmente, por assim dizer, coloquialmente; nao reconhecem, a nao ser de forma passageira e ocasional, que o que disseram envolve “conceitos”. Isto é exatamente o que experiéncia-préxima ‘significa — as idéias e as realidades que elas representam estao natural e indissoluvelmente unidas. Que outro nome poderiamos dar a um hipopétamo? E claro que os deuses a0 podcrosos, se nao fossem, porque os temerfamos? Ameu er, o etnégrafo nao percebe — principalmente nao é capaz © perceber — aquilo que seus informantes percebem. O que percebe, e mesmo assim com bastante inseguranga, é 0 com que”, ou “por meios de que”, ou “através de que” (ou 14 qual for a express4o) os outros percebem. Em pais de , que, por sinal, sao mais observadores que parecem, tem um olho nao é rei, € um espectador. A seguir, para tornar tudo isto um pouco mais concreto, aria de referir-me por uns momentos a meu prdéprio 10, que, sejam quais forem seus defeitos, tem pelo . nao deixa de ser uma nitida vantagem. Em todas as trés dades que estudei intensivamente, a javanesa, a baline- @ marroquina, tive como um dos meus objetivos princi- tentar identificar como as pessoas que vivem nessas ades se definem como pessoas, ou seja, de que se mp6e a idéia que elas tem (mas, como disse acima, que 9 sabem totalmente que tém) do que é um “eu” no estilo nés, balinés ou marroquino. E, em cada um dos casos, ci chegar a esta noca4o tao profundamente intima, nao 89 Saas imaginando ser uma outra pessoa — um camponés no arro- zal, ou um sheik tribal - para depois descobrir 0 que este pensaria, mas sim procurando, e depois analisando, as for- mas simbdlicas — palavras, imagens, instituic6es, comporta- mentos — em cujos termos as pessoas realmente se repre- sentam para si mesmas e€ para Os outros, em cada um desses lugares. O conceito de pessoa é, na realidade, um veiculo exce- lente para examinar toda esta questao relacionada com o andar por ai, investigando o que passa pela mente alheia. Em primeiro lugar, sentimo-nos razoavelmente seguros para afirmar que algum tipo de conceito desta categoria existe, em forma reconhecivel, entre todos os grupos sociais. Algu- mas vezes, as nogGes que as pessoas tém sobre o que é ser uma pessoa podem parecer, do nosso ponto de vista, bas- tante estranhas. Uns acreditam que pessoas voam de um lado para outro, durante a noite, na forma de vaga-lumes. Outros acham que elementos essenciais de sua psique, tais como o édio, estao localizados em cérpulos negros € granulares dentro de seus figados, s6 descobertos através de autdpsias. Outros créem compartilhar seu destino com animais doppel- gdnger, de modo que, quando o animal adoece ou morre, eles também adoecem ou morrem. No entanto, é minha experiéncia, que a concep¢4o do que é um individuo huma- no, em contraste com o que € uma pedra, um animal, uma floresta tropical, ou um deus, é um fenémeno universal. Ao mesmo tempo, como estes exemplos selecionados aleatoria- mente sugerem, as concepgdes em questéo variam de um grupo para o outro, e, freqiientemente, existem diferencas profundas entre elas. Por mais que, para nos ocidentais, 2 concepg¢io da pessoa como um universo cognitivo e motiva- cional delimitado, unico, e mais ou menos integrado, um centro dinamico de percepc4o, emocao, juizos e acdes organizado em uma unidade distinta € localizado em um2 situagdo de contraste com relagdo a outras unidades seme- Ihantes, e com seu ambiente social e natural especifico, nos parega correta, no contexto geral das culturas do mundo 90 ela é uma idéia bastante peculiar. Em vez de tentar encaixar a experiéncia das outras culturas dentro da moldura desta “nossa concep¢ao, que é 0 que a tao elogiada “empatia” acaba fazendo, para entender as concepgées alhcias é necessario que deixemos de lado nossa concepgao, e busquemos ver as experiéncias de outros com relagdo a sua propria concepgao “eu”. Pelo menos no caso de Java, Bali e Marrocos, esta cepcao difere significativamente nao sé da nossa, como mbém — de forma nao menos dramitica e com igual valor Atico — entre si. I Em Java, onde trabalhei nos anos 50, estudei uma ilha lena e pobre, que era uma espécie de sede de um : duas ruas ensolaradas, prédios de madeira caiados branco, onde funcionavam lojas e escritérios e, atras , barracos de bambu ainda mais pobres, amontoados denadamente. O conjunto era rodeado por um grande circulo de aldeias densamente povoadas, onde planta- arroz. A terra era pouca, Os empregos raros, o sistema o instavel, a satide de ma qualidade, os pregos subiam, ma, a vida, de um modo geral nao era [4 muito issora. Havia uma espécie de estagnac4o agitada na I. como observei certa vez referindo-me a curiosa mistura igmentos importados de modernidade e reliquias da ultrapassada que caracterizavam o lugar, o futuro =cia quase tao remoto como o passado. No meio deste io deprimente, no entanto, havia uma vitalidade inte- absolutamente surpreendente, uma verdadeira pai- osGfica, paixao que, além disso, era popular, con- em descobrir, a fundo, os enigmas existenciais. eses miseraveis discutiam quest6es relacionadas livre-arbitrio, comerciantes analfabetos falavam sobre ades de Deus, lavradores comuns tinham teorias relacdo entre a razao € a paixao, a natureza do tempo 2 confiabilidade dos sentidos. E, talvez ainda mais impor- OL tante, buscavam, avidamente, respostas para o problema do eu — sua natureza, sua fungio e seu modus operandi — com um tipo de intensidade reflexiva que, entre nés, encontra- mos somente em ambientes altamente sofisticados. As idéias centrais em cujos termos estas reflex6es se desenvolviam e que, portanto, definiam seus limites e 0 significado de “pessoa” para os javaneses, eram dispostas em dois conjuntos contrastantes, que tinham como base a reli- giao: um, entre “dentro” e “fora” e o outro entre “refinado” e “vulgar”. Estas palavras sao, é claro, toscas e imprecisas; a determinagao exata do significado dos termos envolvidos, selecionando suas varias nuangas, era 0 tema principal das discuss6es. No entanto, como um conjunto, elas formavam uma concepcao especifica do “eu” que, longe de ser simples- mente tedrica, era a concep¢ao através da qual os javaneses realmente se “viam” uns aos outros, e também a si préprios. As palavras javanesas para “dentro”/’fora”, batin e lair (originalmente importadas da tradiga4o sufi do misticismo muculmano, mas modificadas localmente) referem-se, por um lado, a esfera dos sentimentos na experiéncia humana, €, por outro, 4 esfera do comportamento humano observa- do. Apresso-me a esclarecer que essas palavras nao tém qualquer conex4o com “alma” ¢ “corpo” no sentido que damos a estes termos; para tais conceitos, existem outras palavras em javanés, com implicagdes bastante diferentes. Batin, a palavra que significa “dentro”, nao se refere a um local separado de espiritualidade encapsulada, que se des- taca, ou pode ser destacado do corpo, nem mesmo a qual- quer unidade com limites, mas sim 4 vida emocional dos seres humanos de um modo geral. Consiste no fluxo impre- ciso e mutante dos sentimentos subjetivos, percebido dire- tamente em toda sua proximidade fenomenoldgica, mas, pelo menos em suas raizes, considerado idéntico para todos os individuos, cuja individualidade ele faz desaparecer. Da mesma forma, /air, a palavra javanesa para “fora”, nao tem qualquer relagao com 0 corpo como um objeto, mesmo um 92 objeto de que estamos conscientes. Refere-se mais a partes da vida humana que, em nossa cultura, sio estudadas por comportamentalistas radicais — as agdes externas, os movi- mentos, a postura, a linguagem falada. Esta também, em sua esséncia, era considerada igual para todos os individuos. Os dois grupos de fendmenos — sentimentos internos e agGes externas — s40, portanto, considerados nao como fungdes um do outro, mas como esferas independentes do ser, que devem ser postas na ordem apropriada também de forma independente. E em conex4o com esta “ordem apropriada” que o contraste entre alus, palavra que significa “puro”, “refina- do”, “polido”, “belo”, “etéreo”, “sutil”, “civilizado” e “suave” e kasar, que significa “indelicado”, “grosseiro”, “nao-civiliza- do”, “Aspero”, “insensivel”, “vulgar”, tem sua importancia. A meta do ser humano € ser aus nas duas esferas do “eu”. Na esfera interior, chega-se ao alus através da disciplina religio- sa, que é bastante, embora nao totalmente, mistica. Na esfera exterior, chega-se a ser alus por meio da etiqueta, cujas regras, em Java, sao extraordinariamente complicadas e tem quase a autoridade de leis. Através da meditagao, o homem izado dilui sua vida emocional até transforma-laem um mbido constante; através da etiqueta, ele nao sé protege ta vida emocional das interrup¢ées externas, mas também Jariza seu comportamento externo para que este possa cer, aos olhos alheios, previsivel, sereno, elegante, eum enjunto meio frivolo de movimentos coreografados e ma-

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