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Catford - Fases - Fala
Catford - Fases - Fala
J. C. Catford
1 Os usos da fonética
A fonética é o estudo sistemático dos sons da fala humana. Ela fornece
meios para descrever e classificar virtualmente todos os sons que podem
ser produzidos pelo trato vocal humano. Como isso é feito é o assunto
principal deste livro. Mas antes que comecemos a investigar os sons da
fala é interessante falar um pouco sobre a utilidade dessa tarefa e para isso
discutiremos alguns dos usos da fonética.
Há mais de um século, o grande filólogo, linguista e foneticista inglês
Henry Sweet (que foi em parte o protótipo do Professor Higgins na peça
“Pygmalion” de G. B. Shaw — talvez hoje em dia mais conhecido através do
musical “My Fair Lady”) descreveu a fonética como “a fundação indispen-
sável de todo o estudo da lı́ngua — seja ele puramente teórico ou prático”
(Sweet 1877, p. v).
Essa afirmação é tão verdadeira hoje quanto era no tempo de Sweet.
Qualquer pessoa interessada no estudo da linguagem deve ter um conheci-
mento básico de fonética. O professor de lı́ngua, por exemplo, inclusive o
professor que ensina sua lı́ngua materna para um estrangeiro, deve ser ca-
paz de diagnosticar os erros de pronúncia de seus estudantes e criar formas
de corrigı́-los. Isso seria impossı́vel sem conhecimento teórico e prático da
fonética.
A fonética também é útil para aqueles que se ocupam de diferentes as-
pectos da lı́ngua materna: o alfabetizador que dispõe de treinamento em
fonética terá um entendimento melhor dos problemas do aprendiz com a
ortografia e de sua relação com a lı́ngua falada. No ensino da produção
da fala a fonética é obviamente essencial — atores, particularmente aqueles
que desejam dominar diferentes dialetos e sotaques estrangeiros, deveriam
certamente ter um conhecimento minucioso de fonética e infelizmente este
quase nunca é o caso.
Fonoaudiólogos têm uma óbvia necessidade de conhecer a fonética tanto
para entender o funcionamento geral do aparelho vocal quanto para serem
∗
Tradução do capı́tulo inicial de “A Practical Introduction to Phonetics”. Oxford Uni-
versity Press, 2010. Tradução de Pablo Arantes (DL/UFSCar), para uso educacional. Não
distribuir sem o consentimento do tradutor.
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capazes de diagnosticar e tratar problemas articulatórios.
Engenheiros de diversas especialidades, interessados na melhoria de sis-
temas de transmissão da fala ou na criação de sistemas de sı́ntese e reco-
nhecimento automático da fala também precisam de muito conhecimento a
respeito da fonética.
Outra aplicação importante da fonética está naquilo que Sweet chama de
“filologia cientı́fica” ou o que nós chamarı́amos hoje de “linguı́stica histórico-
comparativa”. Em suas palavras: “sem o conhecimento das leis da mudança
sonora, a filologia cientı́fica . . . é impossı́vel e sem a fonética seu estudo
degenera em uma mera enumeração de mudanças de letras” (p. v).
Finalmente, a fonética é absolutamente essencial ao estudante de linguı́s-
tica. É virtualmente impossı́vel fazer um trabalho sério em linguı́stica sem
um conhecimento minucioso de fonética. Sem a fonética é impossı́vel fazer
trabalho de campo, a fonte de dados mais importante de dados linguı́sticos,
e as regras fonológicas tornam-se (como as leis de mudança sonora referidas
anteriormente) regras de substituição de sı́mbolos imotivadas e sem sentido.
Questões de fonética surgem frequentemente até mesmo no estudo da sintaxe
e da morfologia.
É perfeitamente possı́vel adquirir um bom conhecimento teórico da foné-
tica através da leitura e mais ainda através do trabalho em um laboratório
de fonética, onde aspectos da fisiologia e da acústica da fala são estudados
de forma instrumental. Mas o tipo de conehcimento fonético superficial,
puramente intelectual, que é adquirido desta forma é inadequado como base
para realizar muitas das atividades mencionadas anteriormente. O que o
foneticista competente deve adquirir é uma consciência profunda, experien-
ciada internamente, daquilo que acontece no trato vocal durante a fala —
uma habilidade para analisar, descrever e finalmente controlar as posturas
e movimentos dos órgãos que produzem os sons da fala. É bastante óbvio
que este tipo de habilidade prática é essencial para quem precisa identifi-
car e produzir sons não familiares, como é o caso de atores e estudantes e
professores de lı́ngua. O que não é tão óbvio é que a aquisição destas habili-
dades “práticas” é de longe a melhor maneira de adquirir um entendimento
profundo da teoria fonética — dos princı́pios que subjazem a descrição e
classificação dos sons da fala — e é consequentemente da maior importância
também para os usos mais “teóricos” da fonética.
Assim, a natureza de uma mudança sonora histórica pode usualmente
ser melhor entendida por aqueles que podem encenar a mudança em seus
próprios tratos vocais e vivenciar o mecanismo da mudança internamente,
introspectivamente. Da mesma forma, a interpretação de registros fisiológi-
cos e acústicos da fala é realizada de forma mais eficiente por cientistas da
fala que possuem o mesmo tipo de habilidade — aqueles que não conseguem
pronunciar ou experienciar internamente os fenômenos que estão estudando
podem interpretar erroneamente seus dados.
É por conta da grande importância desse tipo de consciência introspec-
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tiva dos fenômenos da fala que neste livro introduzimos o leitor aos princı́pios
e categorias da classificação fonética não apenas por meio de descrições, que
podem produzir uma compreensão meramente intelectual da teoria fonética,
mas por meio de experimentos que os leitores são chamados a realizar em
seus próprios tratos vocais. Desta forma eles serão capazes de adquirir o
entendimento profundo da teoria fonética que caracteriza o foneticista com-
petente.
2 As fases da fala
Neste texto discutiremos a natureza da fala e quais de seus aspectos parti-
culares pertencem, ou podem pertencer, ao domı́nio da fonética.
Quando uma pessoa fala com outra, a sequência de eventos se dá, em
linhas gerais, como descrevemos a seguir. Em reposta à necessidade de
comunicar sobre um evento (que pode ter lugar tanto no mundo externo
quando em sua própria consciência), o falante conceptualiza o evento de
uma maneira particular e então codifica aquela conceptualização em uma
forma especificada pela gramática da sua lı́ngua. O conteúdo conceitual
linguisticamente codificado é externalizado e apreendido pelo ouvinte através
de uma série de eventos que chamamos de fases da fala. O falante é o ponto
inicial dessas fases, que culminam com a decodificação do enunciado por
parte do ouvinte, que chega então a uma conceptualização. Assumindo que o
ouvinte conheça a lı́ngua do falante, a conceptualização a que o ouvinte chega
deve ser bastante parecida com a conceptualização inicialmente formulada
pelo falante, que foi o evento que deu inı́cio ao processo.
Os processos de conceptualização e codificação/decodificação estão fora
do domı́nio da fonética. Assumimos que a parte puramente fonética do
processo da fala tem inı́cio com a execução de esquemas neurais de curto
termo no sistema nervoso central que são disparados pela estrutura léxico-
gramatical da frase e determinam o sequenciamento de todos os eventos que
se passam a seguir. Podemos chamar esta fase de programação neurolin-
guı́stica do enunciado.
A partir daı́, em uma sequência determinada durante o estágio da progra-
mação neurolinguı́stica, comandos motores especı́ficos seguem a partir dos
nervos motores para músculos no tórax, garganta, boca etc. Estes músculos,
em resposta, contraem-se de diferentes maneiras: total ou parcialmente, em
sucessão ou simultaneamente, com mais ou menos força.
Chamamos de fase neuromuscular todo esse processo de comandos mo-
tores (impulsos nervosos saindo do sistema nervoso central) em cojunto com
as contrações musculares geradas por eles.
Como resultado das contrações musculares que ocorrem na fase neuro-
muscular, os órgãos a que estes músculos estão ligados assumem determi-
nadas posturas ou fazem determinados movimentos – a caixa torácica pode
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contrair-se, as pregas vocais na laringe podem aproximar-se, a lı́ngua pode
adotar uma determinada configuração e assim por diante. Em resumo, o
que se segue à fase neuromuscular é o movimento de órgãos no trato vocal.
Esta fase é chamada, portanto, de fase orgânica.
Os movimentos de órgãos durante a fase orgânica afetam o ar contido no
trato vocal. Eles podem comprimir o ar, torná-lo rarefeito e movimentá-lo
de várias maneiras – em sopros rápidos, em erupções repentinas, em fluxos
suaves, em jatos bruscos e turbulentos. Isso constitui a fase aerodinâmica
da fala.
À medida que o ar flui através do trato vocal durante a fase aerodinâ-
mica, suas moléculas são postas a oscilar de tal forma que seu movimento
torna-se perceptı́vel pelo sentido da audição. Em outras palavras, os eventos
aerodinâmicos dão origem a ondas sonoras e estas por sua vez constituem a
fase acústica da fala. Nesta fase, as ondas sonoras são irradiadas da boca e
alcançam os ouvidos de todos os que estejam a uma determinada distância,
inclusive os ouvidos do próprio falante.
As ondas sonoras atingem o tı́mpano do ouvinte, provocando nele vi-
brações proporcionais às suas próprias. Estas vibrações são transmitidas
pelos ossı́culos do ouvido médio até o ouvido interno ou cóclea, onde elas
estimulam as terminações do nervo auditivo. Impulsos neurais vindos das
terminações nervosas viajam pelo nervo auditivo até o cérebro, onde eles
evocam sensações sonoras. Chamamos de fase neuroreceptiva todo esse pro-
cesso de estimulação periférica e transmissão neural aferente.
Finalmente, acontece um processo interpretativo no qual os sinais afe-
rentes são identificados como este ou aquele som vocal ou sequência sonora.
Esta é a fase de identificação neurolinguı́stica, que pode ser vista como o
reverso da fase de programação neurolinguı́stica, aquela que dá inı́cio ao
evento fonético. A identificação dos estı́mulos como sons de fala especı́ficos
acontece em geral abaixo do limiar da consciência. Durante o evento da co-
municação, a atenção dos participantes está mais voltada para o significado
daquilo que se fala do que para os sons que são usados para transmitir o
significado.
Os passos finais deste processo – a decodificação e conceptualização feitas
pelo ouvinte – estão fora do domı́nio da fonética, assim como as correspon-
dentes conceptualização e codificação, feitas pelo falante.
Podemos sumarizar as fases da fala como segue abaixo:
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4. Fase aerodinâmica: rarefação, compressão e fluxo de ar no e pelo trato
vocal.
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sonoro. Apesar de relativamente recentes, estes instrumentos permitiram
que uma enorme quantidade de conhecimento sobre a fase acústica fosse
produzida . O estudo desta fase da fala é conhecido como fonética acús-
tica. A fase aerodinâmica também pode ser investigada instrumentalmente
e dados aerodinâmico tem sido usados desde o século 19, principalmente
como meio para obter informação sobre a fase orgânica da fala, sua pre-
cursosa. Investigando variações no fluxo do ar que sai da boca, medindo a
pressão intraoral e outras variáveis, é possı́vel fazer muitas inferências sobre
as atividades orgânicas que geraram aqueles efeitos aerodinâmicos. Apenas
recentemente sugeriu-se que deva haver uma fonética aerodinâmica relativa-
mente independente da fonética acústica.
A taxonomia fonética geral, isto é, a classificação básica dos sons da
fala, ainda é, entretanto, largamente baseada na fase orgânica, com alguma
contribuição da fonéticas acústica e aerodinâmica. Este tipo de fonética é
comumente chamado de fonética articulatória, um termo que é em certa
medida impreciso, uma vez que a articulação é apenas um (muito embora
bastante importante) dos componentes da produção dos sons da fala.
3 O trato vocal
Todos os sons da fala são produzidos no trato vocal. Para os propósitos deste
texto consideraremos que o trato vocal consiste de todo o trato respiratório,
indo dos pulmões até o nariz e a boca. Esta é uma definição do termo
um pouco mais abrangente do que a que geralmente se encontra em outros
textos, em que “trato vocal” faz referência apenas ao trato que vai da laringe
até o nariz e a boca. Para propósitos fonéticos é mais útil, no entanto, usar
o termo no sentido mais amplo, que inclui todos os tratos no corpo humano
que normalmente participam na produção de sons vocais.
O estudante da fonética prática não necessita de um conhecimento muito
detalhado do trato vocal e dos órgãos vocais e neste trabalho introduziremos
estes detalhes à medida em que eles sejam necessários. Neste momento será
útil esboçar a estrutura e funções fonéticas dos principais órgãos do trato
vocal. A figura 1 e a descrição que segue devem servir como referência e neste
ponto não precisam ser estudadas de forma profunda, mas apreendidas de
forma geral.
Como vimos, a função da fase orgânica da fala é criar certas condições
aerodinâmicas — colocar o ar presente no trato vocal em movimento e con-
trolar o fluxo de ar de maneira a gerar sons. O trato vocal pode, assim, ser
considerado um dispositivo pneumático — um dispositivo que consiste de
um fole, diferentes tubos, válvulas e câmaras, cuja função é colocar o ar em
movimento e controlar seu fluxo.
A figura 1 mostra um esquema deste “dispositivo penumático” ao lado de
uma representação mais nauralı́stica do trato vocal, com linhas conectando
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Figura 1: O trato vocal
os dois para mostrar as relações entre suas partes. A breve descrição do trato
vocal que segue deve ser acompanhada de perto pelo exame da figura. O fole
(pulmões) pode expandir-se de forma a admitir em seu interior quase dois
litros de ar e contrair-se para expelir seu conteúdo (na fala essa contração é
bastante lenta). Há dois tubos saindo do fole (os brônquios) que juntam-se
em um tubo maior (a traqueia).
No parte superior da traqueia fica um pistão (a laringe) que pode mover-
se para cima e para baixo aproximadamente dois centı́metros. É possı́vel
sentir com a mão a frente da laringe/pistão como uma ligeira projeção na
frente do pescoço (o “pomo de Adão”) e sentir que ela pode movimentar-se
para cima e para baixo, especialmente quando engolimos. A laringe é geral-
mente mais proeminente nos homens do que nas mulheres, mas o movimento
de engolir pode ser sentido igualmente em ambos. Dentro do pistão fica uma
válvula (a glote — o espaço entre as cordas vocais ou pregas vocais, como
elas serão chamadas aqui). A glote/válvula pode ser fechada firmemente ou
aberta em diferentes graus e ainda aberta e fechada de forma rı́tmica no
curso da fala.
Acima da laringe ficam três câmaras, A (faringe), B (cavidade oral ou
boca) e C (cavidade nasal) que podem comunicar-se umas com as outras
ou serem isoladas por meio das válvulas v (véu palatino ou palato mole) e l
(lı́ngua). A lı́ngua/válvula é bastante móvel e pode controlar o fluxo de ar
que passa pela câmara B (boca) em diferentes lugares e de diferentes modos.
Finalmente, a câmara B (boca) conta, em sua saı́da, com uma válvula dupla,
os lábios inferiores e superiores.
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O estudo desta breve descrição do “dispositivo pneumático” e do esquema
do trato vocal associado mostrados na figura 1 devem deixar claras as partes
do trato vocal e suas principais funções fonéticas.
Como dissemos antes, a taxonomia fonética baseia-se primariamente na
fase orgânica da fala, embora se façam necessárias contribuições da fase
aerodinâmica. Isso é inevitável, uma vez que a produção dos sons da fala
é um processo aerodinâmico. As posturas e movimentos de órgãos da fala
não geram sons. Eles meramente põem o ar presente no trato vocal em
movimento e é este movimento através do trato vocal que gera som.