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1893-1945 Dora: | raqimentoO cla analise cle um caso cle histerld das familias vienenses abastadas, uas filhas. Elas nao deveriam fi- carsozinhas, asleituras eram controladase havia preocupagao de dis- trai-las para evitar “pensamentos perigosos”. Nessa época, a capital da Austria ainda era romantica e conservadora, com seus prédios de 0, transformagoes es- arquitetura neogotica e neocldssica. Entretant tavamaca gia elétrica—ecom elaascul- minho. Logo chegaria a ene! turas de vanguarda. O pintor Klimt (1862-1918) lancaria ert Gustav suas obras a moda dos vestidos leves e soltos — 0s espartilhos seriam dea maioria das mulhere: Uma das grandes, preacupagoes na virada do século 19, era proteger s s ainda se resig- deixados de lado. E apesar narao papel submisso que lhes era atribuido, algumas ja anunciavam asideias insurgentes: vam a ter suas propri inides eja na iam ler romances agucarados las”— es reservada somente aos homens. preferiam 62 MENTE & CEREBRO 889, Freud re “9 empresitio ja se deitar 9 inicio do inverno de! cebeu a visita de um tie judeu, © homem. que no diva do psicanalista de confusto mental, talv tis, pedia agora que sua filha DOF do 18 anos, fosse atendida. Dois anos antrs ela havia sido apresentadaa Freudem raziodeuma tosse net ares e rouquidao insistentes, além de um leve arrastar da perma, Naquela épocas ele lhe suge- Fu uma anslise, 0 que nao foi Jovado adiante porque os sintomas desapareceramt esponta- neamente. Entretanto, desta vez a situagao de pora parecia mais preocupante para seus pais. atin de a tosse ¢ 2 afonia terem voltado, ela se mostrava desanimada, cansada e desatenty jeolando-se € mostrando'se agressiva com 8 pais. Um dia eles encontraram em cima de sua Rerivaninha uma carta de despedida, na qual a jovem dizia que nio conseguia mais supor™ arivida, Muito abalado, o pai.entio decidiu qovdla novamente até Freud apés Dora perder aconsciéncia. ‘Na primeira entrevista com 0 empresa rio, Freud perguntou a respeito da historia de vida de sua filha, sobre a infancia e episédios dos quais ela provavelmente nao se Jembraria - mas que poderiam fornecer dados importantes para o tratamento psicanalitico. O intuito era recuperar lembrancas da paciente, fazendo, com isso, desaparecer os sintomas que a per turbavam. Pela primeira vez, Freud combinou essa estratégia com a interpretacao sistemati- cade sonhos. A familia de Dora mantinha ja havia al- gum tempo uma estreita amizade com o casal formado pelo Sr. e Sra. K. Dora dedicava-se a cuidar das criangas da familia K, e era ami- ga.e confidente da mulher, que, por sua vez, era muito proxima do pai de Dora. Chegara a. pa MENTE £ CEREBRO dele em tuma das intimeras vezes em nfermo. As familias faziam muitas tas, e foi numa dessas ocasides que vitpca teria sido abordada de forma sedutora lo Sr. K. Dora teria reagido e obrigado seu ni a pedir explicagdes com o amigo. Contudo, Sr. K. negou a acusagao e atribuiu a atitude da jovern literatura de contetido moralmen- aa yvidoso que estaria Tendo, Dessa forma le nao apenas colocou em diivida as palavras ‘te Dora como também levanton suspeitas de que temas de cunho sexual teriam instigado a imaginagao da jovem a inventar tal cena. O ai viu-se assim dividido entre 0 amigo ea fi- bigua e a tolerancia pater- Iha. A situagao am! na para com a situagao teriam sido a causa do malestar da jover, que culminou maf ideias quicidas e no bilhete de despedida. Dessa for- saa extrema Dora exigia que seu pai rompesse relagdes com o casa K. Freud comegou 0 tratamento com Dora, pedindo que ela apresentasse seu proprio re- trato da situagao. A paciente confirma que em do lago, durante uma um passeio em torno viagem, de fato 0 St. K. iniciara uma conversa que culminaria em um galanteio, 20 qual ela respondeu com uma bofetada. Contudo aquela do era a primeira vez que o Sr. K. a abordara dessa forma. Aos 14 anos Dora ja havia sofrido uma investida dele, Naquela ocasido, 0 St. K. a convidou para um passeio com ele e sua mu- Iher, combinando de se encontrarem na loja do casal, Nodia marcado, Dora foi até o local, mas encontrou apenas o Sr. K., que lhe pediu que o aguardasse enquanto terminava de fechar ; loja. Ela aguardava quando ele a agarrou e yeijou sua boca. i i i - Sie aca pee ainda estava aberta. Ela As col rae ai doa ninguém, a ae 2 ode 1» passou a evitar ficar a s6s cuidat que cairaet viagers jum com o St. K. Depois disso, ela desenvolveu um sinto- ma histérico de conversio manifestado no corpo. Sen- tia uma presso no térax, como se estivesse envolvida pelos bragos do senhor K., 0 que fazia Freud pensar em ‘um excesso psiquico que se manifestava_fisicamente. Como Dora mostrava um inusitado conhecimento da vida sexual, o analista se perguntava se a pressio sentida nio seria um deslocamento decorrente da eregio do Sr. K. no momento em que a abracou. Quando Freud pergunta por detalhes da narrativa e pelos precedentes do relaciona- mento da moca com o Sr. K., ela diz que cortou relagdes com esse homem e se pos a falar de seu pai, afirmando que as relacées entre ele ea ra. K. eram de natureza bem menos ino- cente do que eles estavam dispostos a admitir. Freud se surpreende com a impressionante habilidade da jovem em reconstituir os fatos que provam a natureza amorosa do relaciona- mento. Ao tratar do tema, a meméria da pa- ciente mostra-se intacta, como se nenhuma lembranga tivesse sido recalcada. O trauma, ou seja, aquilo que desencadeou o esqueci- mento e a formagio do sintoma, estava em outro lugar. Segundo Dora, sua mae mostrava-se au- sente, excessivamente preocupada com os afa~ zeres domésticos e desinteressada da dinami- ca familiar, Parecia crédula e ingénua quanto 4 boa indole da Sra. K., sempre que possivel mencionando como a mulher havia sido boa para com seu marido ao cuidar dele nos perio- dos de enfermidade. Um di uma sobre a escrivan enconitraram jha da moga aM yso Pre pedicla na qual Clee eRarlonselenecimon vier arta de cles TALVEZ UMA PAIXAO £ importante ressaltar que Dora tinha relagées distintas com os pais. Nunca se deu muito bem com a mae, mas era bastante proxima do pai, apesar das brigas re~ centes, Ela o recriminava recorrentemente por seu relacionamento com a Sra. K. Formava-se assim, da perspectiva da paciente, a imagem de um acordo tacito envolvendo a complacén- cia da mie, o relacionamento entre a Sra. K. € seu pai, eo lugar da prépria Dora nessa trama como moeda de troca oferecida ao St. K. Em sintese, era como o pai propusesse ao amigo: “minha filha pela sua mulher”. Maso quadro era confuso. Em alguns mo- mentos, Dora confessava exagerar nas demin- cias sobre seu pai, fazendo Freud suspeitar que essas acusagées macigas fossem enderecadas a ela prépria e a sua vida de fantasia. De fato, a jovem chegou a admitir que, durante algum tempo, facilitara 0 romance dos dois, mos- trando-se ciimplice do relacionamento. Freud se perguntava o que teria aconteci- do para que ela se voltasse contra essa situa- go. Dora nao sabe dizer ao certo, mas inusi- tadamente se lembra de uma governanta que trabalhava em sua casa. Freud fica atento, porque sabe — pela experiéncia com outros COLECAO CASOS CLINICOS 65 ONal ¢ Nn, pacientes — que esta ai, em alguma medida, uma resposta importante, Dora fala da governanta como uma mu Ther jovem e atenciosa, com quem ela se dava muito bem, A amizade durou até o momento em que Dora, que era muito sagaz, percebeu queaempregada Ihe dispensava especial aten- io somente na presenga de seu pai. Isso levou a menina a concluir que a governanta estava interessada nele e que a afeicao para com Dora era apenas pretexto para uma aproximagao. Dora sentiu-se traida — e esta teria sido a ma- triz de uma situagdo que viria a se repetir com a Sra. K. Apesar do rancor que sentia pela mulher, ela se lembrou de algo em si mesma que era parecido com ela. Assim como a governanta, Dora se mostrava carinhosa e atenciosa com 0s filhos do casal K. Nesse momento, Freud a interrompe, sugerindo que talvez ela também estivesse apaixonada pelo Sr. K. A moga nao admite, mas, apés algumas associagdes, a ne- gagio torna-se dificil de ser sustentada, e ela finalmente reconhece que poderia ter estado apaixonada por ele, Apesar dessa revelacao, os sintomas his- téricos persistem. As semanas passam, e Dora 65 MENTE — CEREBRO mG] 0 (em Counce! yheclon niralnial continua a tossire te, Freud investiga entio sentido simbilico de taig sintomas, j4 que nio esta vam relacionados a nenhy ma causa fisioldgica, Ao mesmo tempo, escuta com atengio o que sua paciente diz até que capta, no duplo sentido de uma expressio alema, uma diresio para o desenvolvimento da ana Dora insistia que a Sra. K, s6 amava seu pai porque ele era um homem de posses (Ver- miégen), Entretanto, essa expressio “homem de recursos” pode significar em alemao “homem impotente”, Freud ressalta essa ambiguidade, e cla concorda que seu pai era, de fato, no seu entender, sexualmente impotente, em decor- réncia de uma doenca anterior. Diante disso, Freud aponta uma virtual contradicao entre sua insisténcia em que havia um caso amoroso entre o empresirioea Sra. K. eo fatodequeele era incapaz de manter uma erecdo. Dora res- ponde que é perfeitamente possivel que haja relagdo sexual nesses casos, j& que se pode utilizar outras partes do corpo, como a boca. Freud imediatamente lhe aponta que é exata- mente essa a regio de seu corpo atingida pela afoniae pela tosse. A paciente se lembra entao de uma cena da infancia em que ela chupava 0 polegar esquerdo enquanto com a mio direita puxava o Iébulo da orelha do irmao, sentado quieto a seu lado. Com essa informagio, Freud conclui que Dora estaria realizando o desejo — agora intoleravel — de participar da rela- do sexual entre seu pai ea Sra. K, O sintoma seria uma espécie de encenagao do ato deseja- do, Quando sentia irritacao na garganta, que lise. precedia a tosse, ela estaria participando sim- bolicamente da cena de sexo oral que suposta~ mente ocorria na relacao entre seu pai e a Sta. K, Dessa forma, seu sintoma se formaria por mimese, por identificacao. A jovem aceita em siléncio essa explicagao, e logo depois sua tos- se cessa completamente. Freud entio diz a Dora que ela poderia ter sido apaixonada por seu paiem uma época bem precoce da vida. No comego, um pouco confu- sa, ela diz nao se lembrar de nada, mas logo de- pois se recorda de um episédio envolvendo sua prima de 7 anos, com a qual diziam ser muito parecida na infancia. A menina cochichou ao ouvido de Dora que odiava a mie e que quan- do ela morresse iria se casar com o pai. Freud entende essa associagio como uma confirma- cao de sua hipétese. Entretanto, permanecia o fato de que no inicio do relacionamento da Sra. K. com seu pai Dora nao tinha citimes. O que ateria feito reavivar repentinamente essa pai- xo infantil pela figura paterna? Freud avalia se essa revivescéncia nao se- ria uma forma de levantar uma espécie de de- fesa contra'um desejo, agora tornado incons- ciente: “Sua paixdo pelo Sr. K. ndo estaria por trds dessa preocupacao excessiva com a vida amorosa de seu pai?”, Dora responde com vee- méncia. Contudo, uma negativa exagerada reativa as vezes pode denunci da verdade ecer. Alguns dias depois, a paciente chega extremamente Jo. Estava muito porque havia sido seu aniversdrio, e, a0 ‘ontrario do que ocorria nos anos anteriores, no ganhou um presente do Sr. K. Freud rcebe que, de fato, aquele homem nao era indiferente para Dora. Na sessio seguinte a revelagdo dessa frus- tra¢do, a moga relata um sonho: “yma casa estava em chamas. Papai es- tava ao lado de minha cama, acordou-me, € eu me vesti rapidamente, Mamie ainda que- ria salvar sua caixa de joias, mas papai disse: “Nao quero que eu e meus dois filhos nos quei- memos por causa de sua caixa de joias". Des~ cemos a escada As pressas, ¢ logo que me vi do lado de fora, acorde’ Osonhoeraainda mais intrigante porque retornara varias vezes. Um sonho de repeti¢ao geralmente anuncia a presenca de um desejo que ainda nio se cumpriu, Dora o teve em trés ocasides seguidas durante a viagem na qual se deu a investida amorosa do Sr. K. Ela se lembrava de uma briga dos pais pouco antes da primeira ocorréncia do sonho. Seu pai discutiu com sua mae porque ela cos- tumava trancar a porta da sala de jantar — 2 timica de acesso ao quarto do irmao de Dora. 0 pai dizia: “Pode acontecer alguma coisa du- rante a noite e ser necessario sair”, £ claro que havia outros motivos para alguém sair duran- tea noite, mas Dora pensa logo em um incén- dio, Ela se lembra logo em seguida que, quan- do chegaram a casa onde ficariam durante a viagem, sob forte temporal, seu pai alertou da possibilidade de um incéndio, ja que nao havia para-raios por perto. Reclinando-se sobre o diva, como quem descobre uma pista importante que se deve olhar de muito perto, Freud pergunta por que ela teria tido esse sonho por trés vezes conse- cutivas apés esse dia. A isso Dora responde com uma nova série de associagées livres, Na tarde que se seguira ao passeio pelo lago, ocor- rido pela manhi, ela cochilara em um sofa no quarto em que estava dormindo e acordou sur- preendida pela presenca do Sr. K. em pé ao seu lado. A moga Ihe pediu explicades sobre sua presenga ali, mas ele disse que viera buscar COLEGAO CASOS CLINICOS . 67 68 MENTE E CEREBRO algo e que no deivaria de entrar nesse quay, to quanito quisesse, Dora pedin uma chave aposento a Sra. K, € conseguin se trancar orn iranga, Mas no dia seguinte a chaye desa: . fazendo a suspeitar que fora o sr, se parece o responsivel. Freud logo perce que nessa lembran, estio presentes alguns elementos do sonhy. uum homem (seu pai ou o Sr. K.) a surpreende durante o sono, a ideia de se trancar (soja pela importunagio do Sr. K., seja a cena do irmao trancado em apuros). £6 também em razig da presenga repentina do Sr. K. em seu quarto que Dora conta que “se vestia rapidamente”, tal como ocorre em seu sonho, em que deve deixar a casa onde ha um incéndio, RAIVAE TERNURA Aangiistia que Dora sentiy nas noites seguintes ao galanteio, por estar na mesma casa que o Sr. K. e longe de seu pai — que ficavaem um hotel préximo—, fezcom que ela tivesse o sonho algumas vezes. Trata-se de uum sonho de alerta, vigilincia e protesio, que se repetiria até que sua fonte de angiistia fosse suprimida e ela se sentisse salva. Mas Dora traz ainda associagSes impor- tantes sobre a caixa de joias de sua mae. Freud Nota que em alemao.a palavra Schmuckkastchen, (caixa de joias) tem duplo sentido: cla pode designar também os Senitais femininos, No sonho, uma das ideias trazidas por Dora é a de que sua caixa de joias esta em perigo coma Presenca do St. K. na casa, Seu pai chega para salva-la “do fogo” desse encontro, O incéndio epresenta assim os perigos da tensio sexual, Resta ainda a palavra “Joia” (Schmuck), Dora se lembra que sua mie havia pedido ao pai um Dora pensou que aceitaria de bom grado o pre sente que a mie recusara, mas ela nioganhou nenhuma joia de seu pai. Em contrapartida, o St. K. recentemente Ihe dera uma caixa de joias bem cara. Talvez ela tivesse pensado que *na medida em que este Ihe deu um presente, nada mais justo que retribut-lo—com sua ‘cai xa de jéias”. Assim, ela estaria oferecendo ao sr. K. 0 que sua mulher recusava, da mesma forma como aceitaria de seu pai o que sua mie dispensava.Talvez assim Dora pudesse dar a seu pai o que também sua mie nio entregava —acaixa de jéias, signo da unio eda separa gio entre os pais, simbolo da troca entre seu paieo Sr. K., uma referéncia aos érgios geni- tais femininos, Com todo esse trabalho de interpretagio do sonho feito por Dora, Freud concluiu que o pai da moca apareceu para salvé-la do Sr. K., mas também da tentacao da prépria Dora em ceder As investidas. Para se proteger, ela se vol- tou para aquele que foi, um dia, o objeto deseu amore fonte de sua protecao: a figura paterna. ‘Até esse momento, estava claro para Freud que Dora era apaixonada pelo Senhor K. equeela havia se refugiado das ameacas dessa paixao voltando sua atengao para 0 pai. Entre- tanto, isso impunha uma nova pergunta: por que ela teria ficado tao desolada apés o galanteio do homem amado? A chave desse enigma remetia a investigagio do papel da Sra. K. na vida psi- quica de Dora. Freud notou que ela nunca falava dessa mulher com raiva, contra- riando a reacdo plausivel eesperada, uma vez que a irtualmente mulher se envolvia com seu pai ameagando 0 casamento com a mie que, por sua vez, tolerava as investidas de seu proprio marido em relagio a Dora, Havia ainda 0 sen~ timento de ternura de Dora pelos filhos do ca- sal K. Em dado momento, Dora pés-se a falar das qualidades femininas daquela mulher, exaltando seu charme e a beleza de seu formo- so corpo alvo, em tm tom que lembrava mais ode uma amante que o de uma amiga. Quan- do se referia ao relacionamento da Sra. K. com seu pai, surpreendentemente, Dora parecia ter mais citime dela do que dele. Contudo, apés a investida amorosa do Sr. K., a moga passou a detestar nao séaele, mas também a esposa, exigindo que sua familia rompesse com todos os K. Freud sabia que, diferentemente do que acontecera na ocasiao da primeira investida do Sr. K. na loja, Dora contara 0 ocorrido ao pai, que, na primeira oportunidade, foi conversar com amigo sobre a acusagdo. Lembremos que a resposta defen- ‘iva do Sr. K. sugeria que Dora andava lendo livros indecorosos, que teriam instigado sua imaginagio e fantasias. Mas como ele saberia de algo tao intimo, como a leitura preferida de uma menina de 16 anos? Essa s6 podia ser aeeSeUiSoinne) nolo 'do desejo areferéncia aos Ss femininos COLECGAO CASOS CLINICOS 49 uma informagio obtida por intermédio da Sra. K., que, como antiga confidente da jovern, co- nhecia os seus interesses literarios. A Sra. K. proferia assim abrir maoda amizade com Dora para nio renunciar a seu amante, ja que, se 0 Sr. K. figurasse como culpado nessa histéria, poderia haver um rompimento entre as fami lias, Dora nao suportava o fato de que, entre claea Sra. K., seu pai havia escolhidoa Sra. K. 0 édio ao pai foi alimentado primariamente por um segundo sentimento de traigao, com a Sta, K, =a preferida de seu pai —, que revelara segtedos que partilhava com Dora para sair-se da situagio, Tudo isso fez Freud suspeitar que Dora redobrava seu ddio pelo pai e 0 acusava demasiadamente de traigio para, na realida- de, ocultar ou deslocar as acusagoes & Sra. K., assim como para, paradoxalmente, salvar seu amor por ela. Essa foi, na verdade, a grande traigao so- frida por Dora: a de uma mulher que ela tanto admirava e estimava. Traigao que se repete e se atualiza, pela segunda vez, ja que Dora ha- via experimentado situagao similar com a go- vernanta de sua casa. Foi esse o grande mal- estar que a fez recalcar a informagao sobre a fonte de seu conhecimento sobre sexo — os A Sra. K. preteriu a ( la eclone (Ca mylene elle] are! Tenn Ble Il rac We 70 MENTE & CEREBRO exsisealic livros que lia ~e que catalisou seu sofrimen. to, culminado em ideias suicidas, Foi por iggy que logo depois da defesa do Sr. K. das acusa. gies do pai — € nie antes, quando 0 quadrg ji havia se instalado ~ os sintomas de Dory se agravaram. Freud percebia que toda essa ligacio de Dora coma Sra. K., assim comoa sua excessivg preocupagio com a vida sextal de seu pai, fa ia com que ela ficasse emocionalmente presa ao relacionamento amoroso: desse casal ~ do qual obviamente era excluida. Entretanto, ao longo da analise, Freud percebeu que Dora comegou a mudar sua po: sigio. Isso foi evidenciado pelo segundo sonho trazido por ela: “Eu estava passeando por uma cidade que nao conhecia, vendo ruas e pracas que me eram estranhas. Cheguei entioa uma casa onde eu morava, fui até meu quarto e ali encontrei uma carta de mamie. Dizia que, ‘como eu safra de casa sem o consentimento de meus pais, ela ndo quis me escrever contando que papai estava doente, ‘Agora ele morreu, e, se quiser?, vocé pode vir’. Fui entao para a estagao e perguntei umas 100 vezes onde fi- cava o local de embarque. Recebia sempre a mesma resposta: cinco minutos. Vi entio 4 minha frente um bosque espesso no qual penetrei, e ali mais uma vez perguntei a um homem onde ficava a estagio, Ele respondeu: ‘Mais duas horas e meia’ e pediu-me que o deixasse me acompanhar. Recusei e fui sozinha. Vi a estagao a minha frente, mas nao conseguia alcangé-la. Ai me veio o sentimento habi tual de angtistia que se tem os sonhos quando nao se consegueiradiante- pepois eu estava em casa; nesse meio-temPo. tinha de ter viajado, mas nada sei sobre isso. pirigi-me a uma portaria e perguntei 20 por: ro onde ficava nossa casa. Uma criada abriu teil ‘A mamie e 0S porta para mim e respondeu: outros ja estao no cemitério™. ‘A cidade desconhecida remontava a um presente recebido por um pretendente: umm al pum com paisagens de uma estagao de aguas na Alemanha. O rapaz foi trabalhar para ter qportunidade de adquirir um posto melhor &, com isso, poder se casat com Dora, Ela vislum- prava a possibilidade de casar, de ter sua pro- pria vida amorosa, mas ela eo noivo deveriam aguardar, nao podiam ainda adiante”, dado que o rapaz deveria esperar pelo cargo. A parte em que ela perambulou pelas uas Jembra uma visita a uma famosa galeria de arte em Dresden, onde deixou de seguir 0 guia para ficar diante dos quadros que mais Ihe agradaram. Um em especial chamou sua atencio: a Madona Sistina, diante do qual per maneceu por cerca de duashoras. Na véspera do sonho, em uma reuniao doméstica, alguém fizera um brinde a satide deseu pai, Dora notou sua expresso cansada, jaque ele vivia doente, e pensou no tempo de vida que lhe restaria. A mensagem que no so- nho contém a mencdo a morte dele remete a carta que ela escreveu sobre seu possivel suict dio—talvez uma tentativa de se vingar do pai. Ou isso apenas designaria a morte simbélica do espago amoroso ocupado pelo pai de Dora, permitindo que ela preenchesse esse lugar com outro homem? As duas possibilidades nao se excluem no inconsciente. A frase “se vocé quiser?, vocé pode vir", com um. enigmatico ponto de interrogacao no meio, temete a carta escrita pela Sra. K. a Dora, na frase, com o mes i fi ual havia exatamente essa frase t ji jo —a Sra. K, alias, convidara mosinal deslocad r Doran fazera viagern na qual ot. K- desferiu seu infeliz galanteio. GEOGRAFIA SEXUAL qudo mais uma vez le; ava a cena da investida amorosa as margens do lago. Por que, afinal, Dora nao cedeu ao ho- mem por quem seria apaixonada? Freud pede 4 paciente que narre mais uma vez, © agora a cena. Mas 0 tinico ele- detalhadamente, ssi : mento novo que aparece é uma frase proferi- da pelo St. K.: "Minha mulher nada significa para mim’, Diante de tal afirmagio, Dora es- pariceia o Sr. K. Ela quis voltar 2 casa sozinha a pée perguntou a um homem com quem cru- Jou a que distancia ficava, obtendo a resposta: “puas horas e meia”, Essa cena ocorrera ém frente ao lago, diante de um bosque, que, S°° gundo Dora, era muito parecido com o do so- rho, No dia anterior, ela vira em um quadro fam bosque onde, 2o fundo, havia figuras de ninfas, Freud nota que, para descrever a cena do quadro assim como a cena de seu sonho, ela usa a palavra alema Vorhof, que significa “ves- tibulo”, “patio anterior”. Mas, para quem tem habito de ler enciclopédias cientificas como Dora, o termo pode também remeter a acepcao técnica da palavra, uma regio especifica da genitalia feminina. Outro vocabulo ajusta-se 3 série “ninfas”, que, em alemao, comporta igualmente, na linguagem cientifica, 0 sen- tido de pequenos labios, proximos aos pelos pubianos — o “bosque denso”. Essa imagem, carregada de simbolismo sexual, somada 3 en- trada em cena de um homem, faz Freud pen- sar na hipétese de que o sonho continha uma fantasia de defloracéo em meio a uma verda- deira geografia sexual. Quando lhe comunica sua hipétese, Dora lembra-se de mais um tre- COLECGAO CASOS CLINICOS n 12 MENTE E CEREBRO ¥ 1 Be cho do sono, Ela foi calmamente a seu quar. toe comegou a ler um livro grande que estaya we prea escrivaninha, Freud pergunta seo livrg evr o formato de enciclopédia, ela respon. a afirmativamente, Ele sabia que esse tipo de tiveo é fonte, para criangas e adolescentes, dag respostas aos mistérios da sexualidade, « 5 feria passivel ler umm desses calmamente fory do olhar dos pais. Ora, no sonho, o pai de Dora esta morto, € ela pode conhecer e viver sua se- xualidade a vontade. Nessa altura, 0 tratamento de Dora pa- rece encontrar um horizonte promissor; con- tudo & nesse momento que algo perturba essa suposigio, Dora chega alguns minutos atra- fada para a sessio e deita-se vagarosamente no diva, Trata-se da segunda sessao destinada a destrinchar os significados latentes do se- undo sonho, e Freud, com entusiasmo, diz a tla: “Estou feliz com os progressos que conse- guimos obter até agora! Estamos avancando a passos largos em diregdo a cura!”. Mas Dora, em tom completamente dissonante do utiliza- do pelo analista, retruca com desdém: “Ora, serd que apareceu tanta coisa assim?”, Diante de tal descompasso, Freud fica alerta, e no dia seguinte recebe a revelacdo bombastica: “O senhor sabe, doutor, que hoje estou aqui pela iiltima vez?”, diz Dora ao chegar a sesso. Em seguida afirma que tomou a decisao ha uns 14 dias, Freud Ihe responde que isso soa como um aviso prévio dado a uma empregada ou gover nanta. A paciente, de fato, lembra-se de uma governanta dos K, que lhes dera aviso prévio quando Dora estava na casa de campo deles. Essa jovem, alguns dias antes do assédio do Sr. K. no lago, havia dito a Dora que fora seduzida pelo patrao, Assim como a Dora, ele teria dito 4 governanta que sua mulher nada significava para ele, Entende-se entao por que Dora reage yiolentamente 4 aproxi- magio do Sr. K. — suas palavras foram a senha da mentira, a marca de sua equivaléncia 4 governanta, o sinal de que ela mesma nada representava para ele, pepois de ceder ao St. K., ele teria passado a tratar a funciondria com desprezo. Ela decide, entio, perma- necer mais alguns dias tra- palhando na casa para se certificar se 0 patrio no voltaria atras. Freud percebe entio que o tapa de Dora no Sr. K. foi dado em decorréncia do citime que sentiu ao ouvir a mesma frase usada para outra mulher. Nota também que Dora havia esperado mais alguns dias para contar a cena para seus pais, pois — assim como a jovem governanta — es- perava que o Sr. K, renovasse sua investida de forma que ela pudesse comprovar que o interes se dele era genuino. Ela esperou exatamente I¢dias, 0 que indica uma identificagao com a governanta, Mas o homem nao s6 nao renovou seu pedido, como, além disso, fez Dora cair no ridiculo, ao expor suas intimidades. Freud entende a reacao inesperada de Dora para com ele como a vinganga que ela nao pode atuar com o Sr. K, Assim como a paciente fez com o Sr. K., ela se mostrou receptiva em um primeiro momento, para em seguida des- ferir seu golpe, um tapa — abandonando-o re~ pentinamente, ainda que se prejudicasse com isso, Freud diz tudo isso a Dora, que, como de hibito, assente com a cabeca. Mas por que ain- da assim ela abandona a andlise? O que teria feito Freud — ou deixado de fazer — para que o atendimento de Dora tivesse tal desfecho? Rovcanmeonirenere Ra] isdo, porém, a prejucica DORA 0 abandono do tratamento surge como uma vinganga cla ——S\Ura) RELEVANCIA HISTORICA A INAUGURAGAO DA PSICANALISE Freud levou cinco anos pata concluir a redacio deste caso. Na época em que atendia a paciente, ele estava as voltas com a publi- cacao de sua obra-prima, A interpretagio dos so- ‘thos (1900), na qual apresenta informacées do atendimento de Dora para ilustrar a aplicagao da interpretagao do material onirico, Entre- tanto, no posfacio, afirma nao ter conferido adevida importancia a dois aspectos do caso: a transferéncia e a ligacao especial de Dora coma Sra. K. Descrita desde Estudos sobre a histeria (1895), a transferéncia é 0 fenémeno clinico pelo qual o paciente revive e atualiza com o psicanalista suas lembrangas, afetos e situacdes diversas, a um sé tempo lembrando e elaborando simbo- licamente os sentidos do que foi vivido. Entre- tanto, a pessoa em andlise pode servir-se desse fenémeno para vivenciar conflitos, elaboré-los e integré-los ao psiquismo. Por serem emo- cionalmente intensas e, em geral dolorosas, COLECAO CASOS CLINICOS 73 mie que surg ple as transferéncias foram tidas inkl mpecilho & andlise, © sietencia, pois impatiam que 2 inved gato ase seu curso. Diferente mente de outros os haseados na sugestdo e na influéncia, 2 psicanalise s© dis tingue pela atengdo que confere a esse Fendmne no, tomando-o como principal instrument do tratamento. omo um como um dos sintomas rete métodos clin id da indicio de per ERIE SCKonecnnce lo o process chave para Seu n (eh S 50, Nall ir eM tO’ Lembremos de alguns dos elementos pre- sentes no primeiro sonho de Dora: 0 pai, 0 St. K. e 0 fogo. Apés dias de exaustiva interpre” tagio, Freud chega ao principal significado: a moga volta-se para o pai, que aparece No so” nho como um salvador capaz de arrancé-la da tentacio de realizar seu desejo com o Sr. K. A teria satisfeito Freud interpretacao do sonho nesse ponto se, no dia seguinte a tiltima for- mulagio, a jovem nao tivesse acrescentado um novo elemento: ela acordara sentindo cheiro de fumaca, revelando uma associacao com fogo, elemento que ja constava entre aqueles analisados antes, Entretanto, ha aqui uma relagio direta com a figura do préprio Freud, ja que ele habitualmente fumava charutos du- rante as sessOes, Também o pai de Dora fuma- 1% MENTE E CEREBRO ebel one como comoo St. K. Assim, Dota insere Freud ween Hina associativa desses dois impor mons de stta vida, Cornando-o inter com eles. Teazido postetiormente love ter sido para ela 0 mais ditii or dito, aquele que estatia mais recalcagg J Jernbra-se de que Dora ja havia sido boi. = que era fUmante — portant ter tido sabor de fumaga, A paly, vra “fumaga” é vinculada ao beijo do Sr. K., e, Amedi- da que também Freud 6 as. sociado a esse homem, ele langa a hipétese de que ela teria desejado ser beijada pelo proprio Freud durante uma sessio. Posteriormen- te, o analista atribuia isso a causa do abandono do tra- tamento — provavelmente, uma experiéncia insupor- tavel para Dora. Ele percebeu todo esse movimento transferencial, mas nao o interpre- tou suficientemente, ja que estava mais preo- cupado com as intervengées sobre o material onirico, Assim reconheceu tardiamente o papel central do lugar em que Dora o colocava, ou seja, ‘como o homem que nao prestava — tal como seu paiecomoo Sr. K,—emerecia um “tapa no os- to” —oabandono, nocaso de Freud. Tal comono sonho, ela preferiu seguir sozinha a ser acom- panhada por um homem. ‘Aqui, Freud parece perceber que transfe- réncia nao sé pode surgir em todo tratamento, como é peca-chave para seu manejo, j4 que é com base no lugar que os pacientes colocam seus analistas que estes podem interpretar 0 paciente de forma a tornar consciente a repeti- oe, dessa forma, conduzir a analise. va tantes ho wel cambi esse dado de Freud jada pelo St. 0 beijo deve Entretanto, passados ainda mais alguns anos ap6s a escrita do posficio, Freud conside- ra, em uma nota de rodapé inserida posterior” mente, que 0 erro técnico mais provavel para o fim da anilise de Dora tenha sido a falta de percepsio de que a tendéncia homossexual da jovem era 0 fato psiquico mais importante em jogo em sua analise, Ele lamenta nao ter investigado mais a fundo a fonte do conheci- mento da paciente sobre a sexualidade. Ele co- gitaquea nao comunicagio disso Dora tenha causado a interrupcao de seu tratamento. Se tivesse feito essa interpretagio, supde Freud, aanilise do segundo sonho teria seguido seu curso e, provavelmente, desembocado no tema da ligago homossexual de Dora com a Sra. K- Ele encerra reconhecendo que demorou a per- ceber 0 aspecto homossexual que sempre hé nos neurdticos. Fragmento da andlise de um caso de histeria €, entretanto, 0 caso-modelo da psicanilise, que inaugura a técnica, j4 que é 0 relato de um tra- tamento feito totalmente com base na associa~ do livre e na interpretacao dos sonhos — pro- cedimentos essencialmente analiticos. Mas sua importancia nao se encerra af: ajudou a mostrar ao criador da psicandlise a relevancia da bissexualidade na vida do neurético, Outro ponto fundamental: revelou a importancia da interpretagao correta para a manuten¢ao de uma boa transferéncia, calcada na confianca no trabalho do analista. Além disso, Dora nao apresenta um qua- dro com sintomas extraordindrios. Pelo con- trario, Trata-se de uma manifestagao leve de histeria, uma petite hystérie, como a denomina Freud, E 0 que isso traz de novo para a psica~ nilise? A constatacdo de que assim como os sonhos ou assim como os atos falhos sao pro- duzidos por qualquer um, os tragos de histeria ou de outras psicopatologias podem ser identi- ficados em qualquer pessoa. ‘Ao mesmo tempo que e: Dora, Freud langava a Interpretagdo dos sonhos (1900) e a Psicopatologia da vida cotidiana a9ov, textos que tinham como argumento xiltimo a tese de que todos ternos inconsciente, todos temas algo recalcado e, portanto, algo de pa- toldgico. Dora nao era louca. Pelo menos, nao mais que qualquer pessoa que apresente uma dor sem causa organica ou tragos de depressio em algum momento. Nesse sentido, Freud revolucionaa aborda- gem da histeria formulada até entio, vitimas de preconceito, era comum — € talvez ainda seja — as histéricas serem vistas como menti- rosas, ja que apresentavam sintomas sem que existisse uma disfungao orgdnica correlata. ‘A patologia sempre foi tida como essen~ cialmente feminina. Os egipcios j4 falavam dela como uma doenca da mulher. O préprio termo histeria vem do adjetivo ustericos, que se refere ao titero, A palavra foi usada pela pri- meira vez por Hipécrates (século 4° a.C.), 0 pai da medicina, a quem se atribui a primeira tentativa de explicacao dessa doenga. Para os antigos, quando nao era encontrada nenhuma causa organica para o problema, acreditava- se que o titero — que era como um animal in- domavel — circulava pelo corpo causando os mais diversos sintomas. Isso ocorria por al- gum descontentamento ligado a reprodugao: insatisfacdo sexual ou a propria frustragao por nao ter filhos, Na Idade Média, muitas mulhe- Tes eram queimadas na fogueira por apresen- tar comportamentos histéricos, entao compre- endidos como possessio demoniaca. . Nas décadas precedentes a Freud, a his- teria foi gradualmente sendo vista de forma menos preconceituosa e mais cientifica. Os screvia 0 caso de COLECAO CASOS CLINICOS 75 % MENTE & CEREBRO cos jeareMartin Charcot (1825-189)) pertiheirn (18371919) destacavarsg meantes estudiosos da Aea na épo- co primeiro, do Hospital da Salpetriére, em, quem Freud chegow a estudar por um petioda ateibuia a histeria a um entra: perma hereditatio do sistema nervosa ¢ viva a hipmose para demonstrar sua tse, fesee um método muito eficaz de suas ideias foram bastante di- tat foi o pioneiro a falar sobre pernheim, da Escola de vanga, atribufa aos sintomas con: vrose psiquica, criada a partir de uma ideia inserida por sugestao. Segundo essa logica, S¢° pensamento gera a doenga, a forma de sentire pensar favorece acura. Freud liza, num prii meiro momento, a hipnose e, e posteriormente a sugestio vyisando efeitos curativos, Ele ra, mas pensava que as causas spejam ser buscadas na historia de vida des sas pacientes € recorria 4 hipnose e a suges- tao para resgatar essa hist6ria. Com 0 tempo, Freud percebeu, porém, que 0 método nao era tao eficaz e passou a adotar a associacio livre para obter o mesmo resultado, sendo 0 caso de Dora o paradigmatico dessa nova técnica, Freud viu que os sintomas histéricos tra ziam sentidos a ser desvendados juntamente com os pacientes. No caso de Dora, esses sig: nificados ndo se restringiram a suas fixagdes edipicas ou a seus anseios de sexualidade ado- lescente — Dora denunciou muito sobre a so- ciedade de sua época. Se a cultura reacionaria vienense produ- ziu sintomas histéricos devido ao excessivo controle, depois de modernizada ela continuou a favorecé-los, Lembremos que o pai de Dora vem a Freud com a demanda de que ele devolva ttyprelite come impo" 0, di ea paris, com queei utiliz embora no tratament. fundidas, e Char histeria masculina. Nancy, na FF yersivos uma ge util de seu mest de Bernheim, apostava na cu gua filha ao bom caminho, jo seja, a0 lugar das “mu theres comportadas”, que pio ousavam denunciar as mentiras de uma socieda- de hipécrita — um meio no qual parecia aceitivel que 9 proprio empresario insi tisse que entre ele @ a Sra. ._ nao havia nada além de oa Brae amizade, Dora, _provavelmente gob a influéncia do irmio humanista e socialista, 1é muito. Ela, que nio queria ser como sua mie, pertence a ge- aco que inicia mudangas culturais: nio se interessava pelo servico doméstico, gostava de estudar e fumar e, principalmente, nao fin- giaacreditar que a Sra. K. fosse simplesmente uma pessoa generosa com seu pai, Seu espfrito denunciador ia muito além da imagem que as geragdes femininas tinham como ideal: valo- rizando a submissao e condescendéncia, prin- cipalmente nas camadas sociais mais abasta- das, como era o seu caso, em que as aparéncias eram tao importantes. ‘A histeria apresenta esse duplo aspecto de deniincia e de fragilidade, infantilidade e passividade, proprio de alguém que espera ser cuidado. Os pés-freudianos exploraram dife- tentes aspectos dessa patologia. Analistas in- gleses atentaram para a fixacao na fase oral (fase em que a crianga experimenta o mundo pela boca: mama ou coloca qualquer objeto na boca), No caso, o ato de chupar o dedo na infancia estaria diretamente ligado aos sin- tomas na garganta, de tosse e rouquidao, tal como Freud havia proposto, mas também — ai &st4 a grande contribuicao dessa escola — era i fonte de onde deriva sua dinamica mental infantilidac snte quisesse ser cuidada baseada na oralidade. Tal como um bebé que recebe tudo de que precisa exclusivamente do mundo externo, a paciente é extremamente demandante — ela mobiliza sua famélia com sua doenca — e procura ser o centro das aten- g6es, tal como um bebé. Com Dora, percebe-se papel da fixagao nas fases infantis do desen- volvimento para a constituicao do psiquismo e, em especial, a importancia da fase oral na sexualidade adulta para a constituicio da histeria. Jacques Lacan, por sua vez, desenvolve sua linha de raciocinio partindo do dltimo questionamento de Freud — aquele que versa sobre a homossexualidade de Dora. Para ele, ela era avida por reconhecimento, buscando- o por meio de identificacdes, seja com homens (0 Sr. K. ou seu pai) ou com mulheres (a Sra. K,). Devido a bissexualidade ligada a identifi- cacao, a histérica, para Lacan, pode ora ser vi- ril como um homem, ora fragil e demandante como uma mulher. Assim, por ter questdes relacionadas & identificacao em jogo, o interesse de Dora pelo Sr. K, ndo era decorrente de um desejo por ele como homem, mas da vontade de que ele a re- conhecesse como mulher, mesmo quando se COLEGAO CASOS CLINICOS 77 Jiao que é set eum mais viril. Ela nto s por esse motive, langara's Nese sentidl sa demarvda de am Lacan aponta que Jo tinha mais to menos de essa mostra mulher ¢, busca identificatéria em relagio ao St. K infantil — nao sexual. Dota insistia com Freud que 0: nenhum interesse NO ‘Sr. K., muit 0 sexual, ¢ que havia se desinter nteio, Para o analista teve a moga ligada ao sra.K. haveria ot cunh do por ele apés seu gala francés, que mais mant 1, K. foi o vinculo desse homem com a alvo do principal interesse da jovern. Ele afir ma que Freud errou ao considerar o interesse sexual sempre dirigido ao sexo oposto. Nesse sentido, teria sido um equivoco a insisténcia na interpretagio transferencial, segundo a qual ele proprio estaria no lugar do Sr. K, Nao que isso nio fosse verdade, mas no era o fato mais pungente para Dora ¢ provavelmente aparecia por tris de sua fala desdenhosa quan’ do Freud se mostrou empolgado com 0 avango da andlise: “Ora, sera que apareceu tanta coi saassim? SUFICIENTEMENTE FEMININAS Lacan tam- bém descobre muito sobre o desejo ferninino quando tenta responder & famosa pergunta do criador da psicanslise: “O que quer uma mu- Iher?”. A questdo ja estava presente para Dora em seu interesse homosexual pela Sra. K. Ou seja, o que ela desejava nio era relacionar-se sexualmente com alguém do mesmo géne- ro, mas saber de que se tratava ser mulher, 0 que lhe parecia que a Sra. K. sabia muito bem. Ela precisava saber como uma mulher deve~ ria ser para ser reconhecida como tal e, para isso, precisava teruma mulher como modelo, como suporte para sua identificacao. Em seu desejo, portanto, Dora estava em busca do seu reconhecimento como mulher. Assim, Lacan 78 MENTE E CEREBRO colca a ena na questo da Kemagdo ng sresnvotvimento da bisteria, Faje enn dia, mesmo dentro da psicans. histeria permanece a mes. ina deode de Freud. Ao considerate ini qtomatologia, alguns autores questionary ragotia se aplica em todos 08 €asos em edd sintomas que embrem a Bisteria, a ue possivel encontrar ainda histéricas sefgesicas” como Dora ou Anna O., que apre- veut eragos de passividade einfantlidade; serestanto elas tém personalidade marcante, eens tamben sio vitimas de muito preconce- as Mustia e humor deprimido. Nelas, oas- pecto passive é mais proeminente, € no os eivindicativas como as primeiras, tumam ser faa autoestima é baixa, ¢, diferentemente das primeiras, que cultivam uma relagio es treita com o pai, nesse segundo caso a figura paterna aparece como distante e idealizada, Quando meninas, nao se sentiram suficiente- mente femininas para competir coma maena lise discute-se s¢ a a época seac disputa pelo pai. Entretanto, ha situa‘ sintomatologia aparentemente histérica, mui- to florida e rica em diversidade, mas acompa- nhada de tragos psicéticos. Sio os chamados casos borderline, em que a linha diviséria en- tre a neurose e a psicose (loucura) nao é clara. Nesses casos, ha forte tendéncia de controlar 0 meio, quase chegando a uma rejeicao da reali dade, similar A que ocorre com psicéticos. As pacientes apresentam sintomatologia pseudoe- dipica, o que leva a falsos diagnésticos iniciais, nos quais sao tidas como histéricas classicas. Ainda hoje se discute se o manejo analitico des- se tipo de caso seria o mesmo que 0 praticado comas histéricas classicas ou se seria mais ade~ quado um tratamento mais préximo ao dado aos psicéticos, des em que ha uma A histeria, como entidade nosoldgica, é questionada também pel la psiquiatria, Em 1980, ela desapareceu do principal catilogo de diagndstico psicopatologico, o Manual diagnésti co cestatistico dos transtornos mentais, DSM, atual- mente em sua quarta versao, Desde a terceira revisdo, em 1980, foi deixada de lado a influ: éncia psicanalitica em sua elaboragio, 0 foco foi retirado da dinamica interna do paciente, e passou a ser dada especial importancia aos sintomas, fazendo com que a histeria fosse pulverizada em diversas categorias, que se multiplicam a cada nova versio, © que Freud chamou de histeria poderia ser classificado, segundo 0 DSM-IV, nio como um, mas como varios transtornos. A sintomatologia histérica pode ser encontrada em transtornos depressi vos de ansiedade, alimentares, de personali- dade, entre outros. O fato é que a histeria de Dora continua a suscitar uma gama de refle- xdes te6ricas e clinicas, = VALESCA BRAGOTTO BERTANHA é psicéloga ¢ psicanalista, mestre em filosofia da psicandlise, membro doDepartamento de Formacao.em Psicandlise do Sedese doLatesfip-USP. DOR Londres taean Sinraund Freu

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