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Volume doze
Nicola Abbagnano
HISTÓRIA DA FILOSOFIA
VOLUME XII
III
BERGSON
4,
@I, 01, energia finita, condicionada e limitada por situações, circunstâncias ou obstáculos
que podem também solidificá-la, desagradá-la, bloqueá-la ou dispersá-la. O próprio
Bergson declarou sob este aspecto o carácter original do seu espiritualismo. "0 grande erro
das doutrinas espiritualistas - disse ele (Evolution créatr., 1911, p. 291)-foi o de crer que
isolando a vida espiritual de tudo o mais, suspendendo-a no espaço mais alto possível sobre
a terra, a colocariam assim ao abrigo de qualquer ataque; como se assim não a tivessem
exposto a ser confundida com o efeito de uma miragem". As doutrinas espiritualistas
opuseram o testemunho da consciência aos resultados da ciência sem ter em conta estes
últimos ou até ignorando-os. Bergson pretende, ao invés, aceitar e fazer seus os resultados
da ciência, ter presente a exigência do corpo e do universo material a fim de entender a vida
da consciência e assim reconduzir a consciência mesma à sua existência concreta, que é
condicionada e problemática. O espiritualismo adquire, por isso, na sua obra um sentido
novo e tende a inserir a própria problematicidade na vida espiritual.
(1896) é dedicada ao estudo das relações entre corpo e espírito. Reporta a essência do
espírito à memória e atribui ao corpo a função de limitar e escolher as recordações para os
fins da acção. A evolução criadora (1907) é a sua obra principal, em que apresenta a vida
como uma corrente de consciência (impulso vital) que se insinua na matéria subjugando-a,
mas mantendo-se ao mesmo tempo limitada e
condicionada por ela. Em 1900, Bergson publicou os ensaios sobre o riso, (Le rire) que
continham também a sua doutrina sobre a arte; constituem três colectâneas de ensaios os
livros intitulados A energia espiritual (1919), Duração e simultaneidade (1922), a
de origem judaica, foi-se orientando cada vez mais para o catolicismo, no qual viu, segundo
declarou, o
pelo menos, o ponto de partida onde foi buscar a inspiração dela. Perante a imprecisão de
todas as doutrinas filosóficas, "uma doutrina - segundo afirma (La Pensée et le Mouvant,
1934, p. 8) - parecera-nos já fazer excepção e, provavelmente por isso, afeiçoaramo-nos a
ela desde a nossa primeira juventude. A filosofia de Spencer visava seguir o rasto das
próprias coisas e modelar-se pelos pormenores dois factos. Sem dúvida que procurava
ainda o seu ponto de apoio em vagas generalidades. Víamos bem a debilidade dos
Primeiros princípios, mas tal debilidade parecia-rios que derivava do facto de que o autor,
insuficientemente preparado, não pudera aprofundar as "ideias últimas" da mecânica.
Ganhou-nos o desejo de desenvolver esta parte da sua obra, completá-la e
consolidá-la. Foi então que se nos deparou a ideia do tempo. E aí aguardava-nos uma
surpresa". A surpresa consistiu em verificar que o tempo real, que tem um papel
fundamental na filosofia da evolução escapa às ciências matemáticas. Deste modo, a
filosofia de Bergson, nascida da tentativa de aprofundamento de um capítulo particular do
evolucionismo de Spencer, apresenta-se na sua origem como a transformação do
evolucionismo naturalista num evolucionismo espiritualista, que identifica o
]o
processo contínuo do passado que rói o futuro e cresce à medida que avança. A memória
não é uma
faculdade especial, mas é o próprio devir espiritual que espontaneamente conserva tudo em
si mesmo. Esta conservação total é ao mesmo tempo uma criação total, uma vez que nela
cada momento, embora seja o resultado de todos os momentos anteriores, é absolutamente
novo em relação a eles. "Para um ser consciente - diz Bergson - existir significa mudar,
mudar significa amadurecer, amadurecer significa criar-se indefinidamente a si mesmo"
(Evol. créat., p. 8).
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lhe atribui; pelo contrário, admite graus. Sentimentos e ideias que provêm de uma educação
mal compreendida chegam a constituir um eu parasitário que se sobrepõe ao eu
fundamental, diminuindo na mesma medida a sua liberdade. Muitos, afirma Bergson (Essai,
p. 127), vivem assim e morrem sem ter conhecido a verdadeira liberdade. Em contrapartida,
somos verdadeiramente livres quando os nossos actos emanam da nossa personalidade
inteira, quando entre esta e aqueles existe aquela semelhança indefinível que existe algumas
vezes entre o artista e a sua obra (1b., p. 131). A relação entre o eu e os seus actos não
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pode, portanto, ser explicada mediante o conceito de causalidade que serve para explicar os
liames entre os fenómenos naturais e tomá-los previsíveis. Os actos livres nunca são
previsíveis e, propriamente falando, não se pode dizer que o eu seja a causa deles, dado que
o eu não se distingue deles, senão que vive e se
que concerne à relação entre espírito e corpo, pela doutrina do paralelismo (ou monismo)
psicofísico (§ 660). Bergson considera, ao invés, que esta doutrina é equivalente, nos seus
resultados, à da consciência como epifenómeno dos dados físicos, própria do
evolucionismo materialista. "Quer se considere-afirma ele (Matière et mémoire, p. 4)-o
pensamento como uma simples função cerebral e o
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poder de acção do corpo vivo, que se insere activamente entre as outras imagens e provoca
o abalo e a readaptação; a recordação, como sobrevivência de imagens passadas, guia e
inspira a percepção (já que se age sempre tendo por base as experiências passadas) mas só
se torna verdadeiramente actual no
forma de uma representação mais completa, mais concreta e mais consciente, tendem cada
vez mais a confundir-se, com a percepção que as atrai e cujo
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adoptam. Portanto, não há nem pode haver no cérebro uma região em que as recordações se
fixem e se acumulem. A pretensa destruição das recordações por obra das lesões cerebrais é
apenas a
interrupção do progresso contínuo pelo qual a recordação se actualiza" (1b., p. 140). Donde
se conclui que a recordação pura (a consciência na sua duração real) não está ligada a
nenhuma parte do corpo e é, portanto, espiritualidade independente. "0 corpo
- diz Bergson (1b., p. 199) -, sempre orientado para a acção, tem por função essencial a de
limitar, com vista à acção, a vida do espírito". Esta função é exercida pelo corpo mediante a
percepção que é "a
acção possível do nosso corpo sobre os outros corpos". Quando se trata de corpos
circunstantes, separados do nosso por um espaço mais ou menos considerável, que mede a
longinquidade no tempo das suas promessas ou das suas ameaças, a percepção não faz mais
do que destroçar acções possíveis. Quando a distância decresce, a acção possível tende a
transformar-se em acção real, e quando se torna nula, isto é, quando o corpo se percebe a si
mesmo, a percepção delineia, não já uma acção virtual, mas
uma acção real. Surge então a dor, o esforço actual da parte ofendida para repor as coisas
no seu lugar; e nisto consiste a subjectividade da sensação efectiva (sentimento).
lados, os limites do corpo e, por conseguinte, da percepção e da acção que estão ligadas ao
corpo.
O corpo representa somente o plano da acção, ao
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espírito conserva o quadro de toda a vida passada e se identifica com a duração. Bergson.
substituiu assim o dualismo de corpo e espírito pelo dualismo da acção (ou percepção) e
memória. O escopo de L'évolution créatrice é a resolução deste dualismo.
Em primeiro lugar, Bergson reporta a vida bio- lógica à vida da consciência, à duração real.
A vida é sempre criação, imprevisibilidade e, ao mesmo tempo, conservação integral e
automática de todo o passado. Tal é a vida do indivíduo, assim como da natureza;
A unidade das várias direcções não é uma unidade de coordenação, de convergência, como
se a
profunda das variações, pelo menos das que se transmitem regularmente pela
hereditariedade, que se adicionam e criam novas espécies. Tudo isto, se exclui o plano
preestabelecido de qualquer teoria finalista, exclui também a hipótese de que a evolução se
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da sua disposição. Uns explicarão a posição de cada partícula mediante a acção que as
partículas próximas exercem sobre ela: esses serão os mecanicistas. Outros pretenderão que
um plano de conjunto presidiu a cada uma destas acções elementares: esses serão os
finalistas. A verdade é que há um acto invisível, o da mão que atravessou a linalha: os
inexauriveis pormenores dos movimentos das partículas, como a
sua ordem final, exprimem negativamente este movimento indiviso, porque é a forma
global da resistência, e não uma síntese de acções positivas elementares (É vol. créatr., p.
102-03). A acção indivisível da mão é a do impulso vital; subdivisão do impulso vital em
indivíduos e espécie, em cada indivíduo na variedade dos órgãos que o compõem e em
cada órgão nos elementos que o constituem, é devida à resistência da matéria bruta
(correspondente, no
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primeira bifurcação fundamental do impulso é a que deu origem à divisão entre a planta a o
animal, O vegetal caracteriza-se pela capacidade de fabricar substâncias orgânicas com
substâncias minerais (função clorofílica). Os animais, obrigados a
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existe inteligência sem traços de instinto, nem instinto que não esteja rodeado por um halo
de inteligência. Contudo, na sua forma perfeita, o instinto pode ser definido como a
faculdade de utilizar e construir instrumentos organizados, e a inteligência como a
faculdade de fabricar instrumentos artificiais e variar indefinidamente a sua fabricação.
Originariamente, o homem não é homo sapiens, mas homo faber (Ib., p. 151). A sua
característica é a de suprir a deficiência dos órgãos naturais de que dispõe mediante
instrumentos que lhe permitam defender-se contra os inimigos e contra a fome e o frio. Os
instrumentos que o homem cria artificialmente correspondem, na outra direcção da vida,
aos
órgãos naturais -de que o instinto se serve; e por isso o instinto e a inteligência representam
duas soluções divergentes, mas igualmente elegantes, de um só e mesmo problema (Évol.
créatr., p. 155). Mas enquanto a inteligência se orienta para a consciência, o instinto
orienta-se para a inconsciência. Quando a natureza fornece ao ser o instrumento que deve
em.
pregar, o ponto em que tem de aplicá-lo, o resultado que deve obter, a parte reservada à
escolha é extremamente débil, e por isso a consciência será também muito débil e
crepuscular. O instinto será, portanto, consciente só na medida em que for deficiente, isto é,
só na medida das contrariedades e dos obstáculos que encontrar na sua acção moral. Na
inteligência, pelo contrário, o estado normal é o deficit, isto é, o desnível entre a
representação e a acção. A inteligência deve, de facto, através de mil dificuldades, escolher
para o seu trabalho o lugar
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a forma e a matéria. E nunca poderá satisfazer-se inteiramente, uma vez que cada nova
satisfação criará novas necessidades. Desta diferença fundamental derivam as outras: a
inteligência é levada a considerar as relações entre as coisas, ao passo que o instinto se
dirige às próprias coisas; a inteligência é conhecimento de uma forma; o instinto,
conhecimento de uma matéria. Esta última característica constitui, à primeira vista, uma
superioridade da inteligência: uma forma, precisamente por estar vazia, pode ser preenchida
da maneira que se quiser e por isso todo o conhecimento formal é praticamente iliinitado e
um poder inteligente "traz em si o que lhe permite ultrapassar-se a si próprio". Todavia,
esta mesma característica formal priva a inteligência da capacidade de se deter na realidade
de que teria necessidade. "Há coisas -diz Bergson (1b., p. 165) -
que só a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si só, nunca poderá encontrar. Tais
coisas só o instinto as encontraria; mas nunca as procurará".
dança interna de um destes estados, decompõe-no numa série de estados ulteriores que
terão as mesmas
procura reproduzi-lo mediante a sucessão de tais instantes. Mas este mecanismo deixa
escapar o que é peculiar à vida: a continuidade do devir, em que não se podem distinguir
estados. Daí que todas as
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não é uma inferioridade sua, mas a condição êxito. A ciência visa à acção; saber equivale a
**Wo-,kr, isto é, A partir de uma situação dada para **J@f **etiegar a uma situação
futura. Avança por saltos, isto
é., por intervalos, que podem ser tão pequenos quanto se deseje, mas que nunca constituem
uma continuidade. A ciência só revela os seus limites quando procura compreender a vida.
Para compreender a vida é necessário um órgão completamente diferente da inteligência
científica. Existe tal órgão?
Vimos que a outra direcção fundamental da vida é o instinto. Mas a inteligência nunca se
separa completamente do instinto: é possível, portanto, um
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que, ao invés, as exigências da acção obrigam o homem a ler as etiquetas que a necessidade
da prática impõe à s coisas mediante a linguagem, o artista surge de quando em quando e
caracteriza-se pela capacidade de ver, escutar ou pensar sem se referir às necessidades da
acção. Se fosse possível um desprendimento completo de tais necessidades, ter-se-ia um
artista excelente em todas as artes, Mas, na realidade, acontece que o véu se levanta
acidental mente só de um lado, ou seja, na direcção de um só dos sentidos humanos; e
daqui deriva a diversidade das artes, a especialidade das predisposições (Le Rire, 1908, p.
160).
A intuição estética, no entanto, tende apenas ao individual e não pode ser o órgão de uma
metafísica da vida. Mas pode-se conceber uma investigação orientada no mesmo sentido
que a arte e que tenha por objecto a vida em geral. Uma investigação deste género será
propriamente filosófica, ou melhor, constituirá o próprio órgão da metafísica. Enquanto a
objecto apropriado na matéria imóvel, a metafísica tem o seu órgão na intuição e o seu
objecto apropriado na vida espiritual. Se a análise é o procedimento próprio do intelecto, o
procedimento próprio da intuição será a simpatia, "pela qual penetramos no interior de um
objecto para coincidir com o que ele tem de único e, portanto, de inexprimível" (La Pensée
et le mouvant, p. 205). Se a análise intelectual tem necessidade de símbolos, a metafísica
intuitiva é, ao invés, a ciência que pretende dispensar os
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único objecto da intuição é o espírito. Ela é "a visão directa do espírito por parte do
espírito". Contudo, o universo material não se apresenta opaco à intuição. Se o domínio
próprio desta é o espírito, "ela desejaria, no entanto, realizar nas coisas materiais a sua
participação na espiritualidade - e diríamos na espiritualidade, se não soubéssemos tudo o
que de humano ainda se mistura à nossa consciência, mesmo depurada e espiritualizada"
(1b., p. 37). A intuição pode ter significados diversos e não se pode definir univocamente.
Todavia, a sua característica fundamental é que pensa em termos de duração, isto é, de
espiritualidade ou de consciência pura. E é isto precisamente que faz dela o órgão
específico da metafísica. Entre a metafísica e a ciência, Bergson não pretende estabelecer
uma diferença de valor, mas somente de objecto e de método. À ciência compete o
conhecimento intelectual da matéria; à metafísica a intuição do espírito. Uma vez
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que o espírito e a matéria se tocam, também a ciência e a metafísica, hão-de ter uma
superfície periférica comum: poderão assim agir uma sobre a outra e estimular-se
mutuamente.
Para exercer a sua função, a filosofia deverá deixar de ser uma mera análise de conceitos
implícitos nas formas da linguagem e deverá tratar da própria existência real. Mas toda a
existência só pode ser dada numa experiência. Esta experiência chamar-se-á visão ou
contacto ou percepção externa em geral, se se trata de um objecto material; chamar-se-á
intuição se se trata do espírito. Até onde pode chegar a intuição? Só ela o pode dizer. "Ela
diz Bergson (Ib., p. 61)-chega. a possuir um fio: ela própria deverá ver se este fio vai até ao
céu ou se se detém a uma certa distância da terra. No primeiro caso, a experiência
metafísica relacionar-se-á com a dos grandes místicos; e eu posso comprovar, pela minha
parte, que esta é a verdade. No segundo caso, as experiências metafísicas permanecerão
isoladas umas das outras, sem no entanto se oporem umas às outras. Em qualquer caso, a
filosofia elevar-nos-á acima da condição humana".
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tos, poderá fazer supor que tal diversidade seja de algum modo irredutível, isto é, que a
matéria e o espírito constituam duas realidades últimas, ainda que em mútuo contacto e
com mútuas possibilidades de aproximação e de inserção. Porém, a Evolução criadora tem,
entre as suas partes mais significativas, uma "génese ideal da matéria" que é uma tentativa
para explicar a matéria mesma por meio de unia detenção virtual ou possível do impulso
vital, que é pura espiritualidade.
A evolução da vida surge à primeira vista a Bergson como o resultado do encontro e da luta
entre o espírito e a matéria. "Tudo se passa como se uma ampla corrente de consciência
tivesse penetrado na matéria, carregada, como toda a consciência, de uma enorme,
multiplicidade de virtualidades que se interpenetrassem. Ela impeliu a matéria para a
organização, mas o seu movimento foi a um tempo infinitamente atrasado e infinitamente
dividido" (Évol. créatr., p. 197). Mas a intuição não tarda em compreender que a
materialidade, como interrupção da tensão vital, como detenção virtual do impulso, como
aparição da extensão e da divisão dos entes e como inversão da ordem vital na ordem
estática da matéria, é, de algum modo, presente à própria consciência humana. "Quanto
mais tomamos consciência do nosso progresso na pura duração - diz Bergson. (1b., p. 219-
20) -tanto mais sentimos as
diversas partes do nosso ser entrarem umas nas outras e toda a nossa personalidade
concentrar-se num ponto, ou melhor, numa ponta, que se insere no futuro, acutilando-o sem
tréguas. Nisto consistem a
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vida e a acção livre. Deixamo-nos ir, ao invés; sonhamos em vez de agirmos. Neste mesmo
acto, o
nosso eu se dispersa; o nosso passado, que até àquele momento se recolhia em si mesmo no
impulso indivisível que nos comunicava, decompõe-se em mil recordações que se
exteriorizam umas em relação às outras. Renunciam a interpenetrar-se à medida que se
solidificam. A nossa personalidade desce assim na direcção do espaço". A materialidade é,
portanto, um movimento, ou melhor, uma suspensão virtual do movimento ou um obstáculo
ao movimento que se encontra na própria consciência.
Deste ponto de vista, a vida é "um. esforço para ascender pela vertente pela qual a matéria
desce". Se a vida fosse pura consciência, e, por maioria de razão, se fosse supraconsciência,
seria pura actividade criadora (Evol. créat., p. 267). Mas o limite da sua criatividade é-lhe
intrínseco: o seu movimento para a
frente complica-se com o seu movimento para trás, e este movimento para trás, a dispersão
da vida, a
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Nem mesmo no mundo humano, que é o mundo social, a consciência é pura actividade
criadora. O antagonismo de movimentos que a intuição descobre na consciência do eu e
que se volta a encontrar na vida como contraste entre impulso vital e materialidade, domina
também o mundo social. As sociedades humanas que historicamente se formaram e se
formam são sociedades fechadas, nas quais o indivíduo actua unicamente como parte do
todo, e que deixam uma margem mínima à iniciativa e à liberdade. A ordem social
modela--se pela ordem física, conquanto as suas leis não tenham a necessidade absoluta das
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leis físicas. Mas o indivíduo segue o caminho já traçado pela sociedade: automaticamente
obedece às regras desta e conforma-se aos seus ideais. A sociedade é a fonte das obrigações
morais. Estas não são, como queria Kant, exigências da pura razão, mas hábitos sociais que
garantem a vida e a solidez do corpo social. A razão entra nestas obrigações só para ditar as
modalidades do seu exercício mas nada tem a ver com a origem delas. Na base da
sociedade existe o costume de contrariar hábitos, e este é o único fundamento da obrigação
moral. O que na outra grande linha da evolução animal a natureza realizou mediante o
instinto, dando origem à colmeia e ao formigueiro, na linha da inteligência realizou-o
mediante o hábito. Nesta linha, deixou uma certa latitude à escolha individual, e, portanto,
todo o hábito moral tem uma certa contingência- Mas o seu conjunto, isto é, o hábito de
contrair hábitos, tem a mesma intensidade e regularidade que o instinto (Deux sources, p.
21).
Mas além da moral da obrigação e do hábito, que é própria de uma sociedade fechada,
existe a moral absoluta, a dos santos do cristianismo, dos sábios da Grécia, dos profetas de
Israel, que é a moral de uma sociedade aberta, Esta moral não corresponde a um grupo, mas
a toda a humanidade. Tem por fundamento uma emoção original, e continua o esforço
gerador da vida. A moral da obrigação é imutável e tende à conservação; a moral absoluta
está em movimento e tende ao progresso. A primeira exige a impersonalidade, porque a
conformidade a hábitos adquiridos; a segunda corresponde ao apelo
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de uma personalidade que pode ser a de um revelador da vida moral ou um dos seus
imitadores, ou também a da própria pessoa que age. A estas duas morais distintas
correspondem dois tipos diversos de religião.
BERGSON
carácter aleatório de todos os seus empreendimentos. A religião exerce também aqui unia
função defensiva, dando ao homem o sentido de uma protecção sobrenatural, que o subtraia
aos perigos e à incerteza do futuro. Finalmente, a religião fornece mediante as
O misticismo é muito raro e pressupõe um homem privilegiado e genial. Mas ele apela para
algo que existe em todos os homens; e mesmo quando não chega a comunicar aos outros
homens a sua força criadora, tende a subtraí-los ao formalismo da religião estática e produz
assim numerosas formas inter- .. ~..=- "0 resultado do misticismo - diz Bergson
(Deux Sources, p. 235) -é uma tomada de contacto e, por consequência, uma coincidência
par-
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única prova possível da existência de Deus. O acordo entre os místicos não só cristãos, mas
também pertencentes a outras religiões, é "o sinal de uma identidade de intuição, que se
pode explicar do modo mais simples pela existência real do Ser com o qual crêem estar em
comunicação" (ib., p. 265). A experiência mística leva a considerar o universo como o
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Bergson aspira a que surja algum génio místico que venha corrigir os males sociais e
morais de que sofre a humanidade. A técnica moderna, estendendo, a esfera da acção do
homem sobre a natureza, tem de certo modo engrandecido desmedidamente o corpo do
homem. Este corpo engrandecido "espera um suplemento de alma, e a mecânica exigiria
uma mística" (Ib,, p. 355). Os problemas sociais e políticos internacionais que nascem desta
desproporção poderiam ser eliminados por um renascimento do misticismo. Neste caso, a
mecânica que curvou ainda mais a humanidade para a terra, poderia servir-lhe para se
endireitar e olhar o céu. E a humanidade poderia então retomar no nosso planeta "a função
essencial do universo, que é uma máquina de fazer deuses" (1b., p. 343).
A doutrina da religião dinâmica que acabamos de expor é a parte mais débil de toda a obra
de Bergson, e é também aquela em que a elegância imaginativa do estilo do filósofo se
transforma abertamente em ênfase e oratória. A identificação da religião autêntica com o
misticismo não poderia ser
aceite por nenhuma das grandes religiões ocidentais; e a própria identidade, em que
Bergson insiste, das experiências místicas procedentes de religiões diversas é fortemente
suspeita. Na realidade, o misticismo, como o entende Bergson, tem um pressuposto
panteísta: a identidade substancial do homem e de Deus. O homem, enquanto constituído
na sua essência por um impulso vital super-individual e sobre-hu-
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~o que, como Bergson diz, "é divino ou é o próprio Deus", não é, na sua natureza espiritual,
senão um ou uma manifestação do divino ou de Deus. Mas a relação de íntima comunhão
entre o homem e Deus, a firmeza e a estabilidade da comunicação postulada pelo
misticismo tal como Bergson o entende, elimina de um golpe a vida religiosa. Nenhuma
religião, e muito menos o catolicismo para o qual iam as simpatias de Bergson nos últimos
anos, poderia considerar o universo como "uma máquina de fazer os deuses" e os homens
iguais a estes deuses. Bergson repetiu na sua última obra as linhas de um panteísmo
romântico para o qual o finito é manifestação e revelação do infinito e a individualidade do
homem se dissolve ou parece inconsistente e a sua liberdade se identifica com a
espontaneidade criadora da força cósmica.
A categoria que preside à duração real (na variedade das suas manifestações) é a própria
realidade, é a criação. Bergson define esta categoria como "a
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existe qualquer coisa ou alguém em geral, quando, afinal, poderia não existir nada. Ora,
este problema é puramente fictício, porque se baseia no uso arbitrário do termo nada, que
só tem sentido no seu
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"vazio". Quando dizemos que não existe nada, pretendemos dizer que o que existe não nos
interessa e que estamos interessados no que já não existe ou poderia ter existido. De modo
que a ideia do nada está ligada à de uma supressão real ou eventual e, por conseguinte, à de
uma substituição. Ora, a supressão, enquanto substituição, nunca pode ser total, uma vez
que nesse caso não seria substituição. O mesmo se pode dizer do problema da ordem. A
ordem torna-se um problema quando nos perguntamos porque é que ela existe em lugar da
desordem, e implica portanto, como problema, a legitimidade da ideia da desordem. Mas
esta ideia significa simplesmente a ausência da ordem procurada; e é impossível suprimir,
mesmo mentalmente, uma ordem sem fazer surgir dela outra. O problema fundamental da
gnoseologia revela-se, como o da metafísica, um problema fictício derivado do uso
arbitrário das palavras.
análise da categoria do possível; mas esta, infelizmente, não se encontra nas obras de
Bergson. De facto, Bergson entendeu sempre o possível no sentido de "virtual", no sentido
da potencialidade aristotélica e ignorou simplesmente ou passou em silêncio o seu
significado próprio de problemático. O possível, segundo Bergson, é apenas "a miragem do
presente no passado": à medida que a realidade se cria a si mesma, sempre imprevisível e
nova, a sua imagem reflecte-se por detrás no passado indefinido. A realidade mesma passa
deste -modo a ser possível, mas precisamente no momento em que se torna realidade:
a sua possibilidade não a precede verdadeiramente, mas segui-a (Ib., p. 128). Por outras
palavras, o possível é, para Bergson, a sombra virtual que a realidade, autocriando-se,
projecta no próprio passado. Esta sombra virtual não tem, evidentemente, nada a ver com o
sentido concreto da possibilidade presente, mesmo emotivamente, em toda a experiência ou
situação humana. Contudo, este sentido não é estranho à filosofia de Bergson que pôs em
luz na Evolução criadora o bloqueamento e a dispersão do impulso vital em muitas das suas
direcções e correntes, e exprimiu nas páginas finais das Deux sources as
que, explicitamente, o autor quis mantê-la. Sob este aspecto, encontra a sua continuação e o
seu enriquecimento no pragmatismo contemporâneo.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
40
41
IV
43
no mesmo período, uma excepção e só mais recentemente adquiriu uma certa importância e
significação. Neste sentido, portanto, a palavra idealismo não se presta para indicar
nenhuma orientação histórica determinada mas apenas uma doutrina gnoseológica que,
sendo comum a orientações diversas, não caracteriza historicamente nenhuma.
Neste estudo, empregaremos o termo de idealismo no seu sentido especificamente
histórico, ou seja, no sentido de uma orientação que principia com a
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As manifestações técnicas deste último idealismo são precedidas por uma verdadeira
floração romântica que se verifica na Inglaterra e na América pouco antes dos meados do
século XIX. Em Inglaterra, os poetas Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) e
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manifesta e actua em graus diversos em todas as coisas. Carlyle exalta o mistério que
envolve "o mais estranho de todos os mundos possíveis". O universo não é um armazém ou
um fantástico bazar, mas o místico templo do espírito. A segurança de que a
ciência tem de possuir a chave do mundo da natureza é ilusória. O milagre que viola uma
suposta lei da natureza não pode ser, em compensação, a acção de uma lei mais profunda,
que vise pôr a força material ao serviço da energia espiritual? Na realidade, todas as coisas
visíveis são sinais ou emblemas: a matéria só existe para o espírito: não é mais do que a
encarnação ou a representação exterior de uma
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primeira vez num escrito intitulado Natura (1836) e foi depois defendida em numerosos
Ensaios. A sua obra Homens representativos (1850) reduz (como os
axiomas da física não são mais do que a tradução das leis -da ética. Mas o espírito humano
é o próprio espírito de Deus. "0 inundo - diz Emerson (Nature, ed. 1883, p. 68), -procede do
mesmo espírito de que procede o corpo do homem: é uma inferior e mais remota
encarnação de Deus, uma projecção de Deus no inconsciente. Mas difere do corpo num
aspecto importante: não está como o corpo, sujeito à vontade humana. A sua ordem serena
é inviolável para nós. Ele é, portanto, para nós, o testemunho presente do Espírito divino, é
um ponto fixo em
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A primeira manifestação original do idealismo inglês deve-se ao filósofo Tomás Hill Green
(1836-82). Green é autor de duas longas Introduções às duas partes do Tratado da natureza
humana de Hume (ed. 1874-1875) e dos Prolegómenos à ética (1883), que é a sua obra
principal, e de outros ensaios menores. A Hume e, em geral, ao empirismo, Green objecta
que é impossível reduzir a natureza
ideias apresentam entre si. Toda a percepção ou ideia só pode ser reconhecida na sua
singularidade
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por uma consciência que não é idêntica a elas, porque delas se distingue no próprio acto do
reconhecimento; e toda a conexão ou sucessão de ideias só o é para uma consciência, que
não é em si mesma conexão ou
sucessão, mas compreende em si tais coisas. De facto, o sujeito que reconhece uma ideia ou
a relação entre várias ideias, não pode ser, por sua vez, uma ideia, porque isto implicaria
que uma ideia fosse, ao mesmo tempo, todas as outras. E não pode ser um composto de
sensações ou de ideias porque as ideias na consciência se sucedem umas às outras, e a
sucessão não pode constituir um composto. É necessário, portanto, que o sujeito esteja fora
das ideias para que perceba as ideias, e fora da sucessão para que perceba a
sucessão. Por outros termos, deve ser um Sujeito único, universal e eterno. Um sujeito desta
espécie é também o pressuposto tácito de todo o naturalismo mas torna impossível o
próprio naturalismo. Se o
mundo é uma série de factos, a consciência não pode ser um destes factos, porque um facto
não pode compreender em si todos os outros. A natureza é uma contínua mudança; mas
uma mudança não pode produzir a consciência de si mesma, porque esta deve estar
igualmente presente em todos os estádios da mudança. As relações entre os factos surgem
mediante a acção de uma Consciência unificante que não se reduz a um dos factos relativos.
Assim, as relações temporais só o são para uma consciência eterna. Deste modo, Green
deduz a necessidade de uma Consciência absoluta (isto é, infinita e eterna) da própria
consideração da realidade natural a que
49
Todavia, a consciência humana tem uma história no tempo, e Green não nos esconde a
dificuldade que este facto fundamental e inigualável apresenta para a sua teoria da
consciência absoluta. A sua solução é que a história não pertence verdadeiramente à
consciência, mas apenas ao processo através do qual o organismo animal se toma o veículo
da consciência mesma. A nossa consciência, segundo afirma, pode significar duas coisas:
ou a função de um organismo animal, que se tornou, gradualmente
tempo e de determinante do devir. A consciência, que varia a cada momento, que está em
sucessão, e em cada um de cujo§ estados sucessivos depende de uma série de eventos
interiores e externos, é consciência no primeiro sentido. A nossa consciência, com as suas
relações características em que o tempo não entra, que não devêm mas são de uma vez por
todas o que são, é a consciência no outro sentido (Prol. to Ethios, p. 73). Esta distinção
elimina toda a incompatibilidade entre a afirmação da consciência absoluta e a admissão de
que todos os processos do cérebro, dos nervos e dos tecidos, todas as funções da vida e do
sentido, têm uma história estritamente natural. Tal incompatibilidade só existiria se estes
processos e funções constituíssem realmente o homem
50
consciência na qual este algo já existe. A consciência eterna, Deus, é, pois, ab aeterno tudo
o que o homem tem a possibilidade de chegar a ser. Não só é o Ser que nos fez, no sentido
de que existimos como um
objecto da sua consciência, como a natureza, mas é também o Ser em que existimos e ao
qual somos idênticos na medida em que é tudo o que o espírito humano é capaz de chegar a
ser (1b., p. 198). A vida moral impele o homem para o aperfeiçoamento individual e a
satisfação das suas próprias exigências; mas esta tendência universaliza-se e racionaliza-se
imediatamente porque o seu termo é a
consciência absoluta em que todos os homens estão igualmente presentes. Devido a isto o
bem foi concebido como uma actividade espiritual de que todos podem e devem participar
e, portanto, como uma
vida social em que todos os homens devem cooperar livre e conscientemente e em que deve
dominar a
Esta concepção de Green foi a base constante do idealismo inglês posterior. John Caird
(1820-98) fez dele a base de uma filosofia da religião (Introdução à filosofia da religião,
1880). O fundamento da religião é, segundo Caird, a unidade do finito e do infinito:
unidade que é plenamente realizada e
actual na vida divina, mas que o homem só pode alcançar através de um infinito progresso,
que é exactamente a sua vida religiosa. "A religião é a elevação do finito para o infinito, o
sacrifício de todo o desejo, inclinação ou volição que me pertence como indivíduo privado,
a absoluta identificação do meu querer com o querer de Deus" (Intr., ed. 1889, p, 283).
Eduard Caird (1835-1908) fazia de uma concepção análoga o critério de uma crítica
miinuciosa e pedante da doutrina kantiana (A filosofia crítica de Kant, 2 vol., 1889) e a
base para entender A evolução da religião (1893). Com efeito, delineia três formas
"teoricamente progressivas da consciência religiosa. A Primeira é a objectiva, segundo a
qual Deus é
52
§ 704. BRADLEY
A maior figura do idealismo inglês é Francisco Herberto Bradley (1846-1924) que elegeu
para tema fundamental da sua especulação o antigo e sempre novo contraste entre aparência
e realidade, que dá o título à sua obra principal (Aparência e realidade,
1893). Bradley é também autor de Estudos éticos, (1876), Princípios de lógica (1893),
Ensaios sobre a
53
sujeito ou eu. Bradley encontra em todas elas a mesma dificuldade fundamental: toda a
relação tende a identificar o que é diverso, e nisso é contraditória. Toda a relação modifica
os termos relativos, mas cada um destes termos cinde-se em duas partes: uma, modificada,
e outra, que permanece inalterada: e
nova relação, o que implica uma nova modificação e uma nova cisão; e assim até ao
infinito. Deste modo, a relação que deveria tornar inteligível a unidade dos termos relativos,
não faz mais do que dividi-los e
reflexão filosófica, numa miríade de termos no interior de outros termos que não estão
juntos de nenhuma maneira inteligível. Nem mesmo o eu, segundo Bradley, escapa a esta
dificuldade. É, no entanto, verdade que a existência do eu está de algum modo fora de
qualquer dúvida, mas só como unidade da experiência imediata, anterior à reflexão
racional. Esta unidade deveria ser entendida e justificada racionalmente; mas logo que se
inicia esta tentativa introduzindo a distinção entre eu e não eu, as dificuldades inerentes a
toda a relação deparam-se-nos imediatamente e o eu torna-se inconcebível.
Nenhum aspecto do inundo finito se salva da contradição, e nenhum deles pode ser
considerado real. Nem sequer o mundo da pura lógica se salva da contradição. Os
Princípios de lógica de Bradley e os numerosos ensaios que dedicou a problemas de lógica
põem em relevo as contradições que se ani-
54
nham no acto lógico fundamental. O juízo é, segundo Bradley, a referência de uma ideia à
realidade, a qualificação da realidade mediante um conceito que é tomado como símbolo e
significado dela. Por outros termos, todo o juízo implica uma ideia que não é uma simples
ideia, mas uma qualidade do real. Mas se é assim, a multiplicidade e a variedade dos juízos
implica que estes sejam incompatíveis e contraditórios. É bem certo que todo o juízo
qualifica a realidade sob certas limitações ou condições; mas, dado que estas limitações ou
condições qualificaria, por seu
turno, a própria realidade, a contradição não é eliminada mas apenas multiplicada (Essays,
p, 229).
O facto de todo o mundo da experiência e do pensamento ser aparência não significa que se
possa admitir uma realidade em si para além dele mesmo.
Toda a realidade era si não poderia ser senão o termo de uma experiência ou de um acto
lógico e
Todavia, esta mesma condenação radical implica, segundo Bradley, a posse de um critério
absoluto de verdade. Se rejeitarmos como aparente o que é contraditório, consideramos
implicitamente como real o que é isento de contradições e, portanto, absolutamente
consistente e válido. A ausência de contradição implica um carácter positivo e não deve ser
uma pura abstracção. As aparências devem pertencer à realidade porque o que parece de
algum modo existe, quanto mais não seja como aparência. A realidade que o critério da não
contradição nos faz entrever deve portanto conter em si todo o mundo fenoménico de forma
coerente e harmoniosa. Além
55
disso, não pode ser outra coisa senão consciência porque só a consciência é real. Ao mesmo
tempo, esta consciência universal, absoluta e perfeitamente coerente, não pode ser
determinada mediante nenhum dos aspectos da consciência finita (sensação, pensamento,
vontade, etc.), porque tais aspectos são contraditórios. Por outro lado, não deve conter a
divisão entre objecto e sujeito que é própria da consciência finita. Todas estas
determinações negativas implicam a impossibilidade de um conhecimento pormenorizado
da consciência absoluta. Pode-se ter dela uma ideia abstracta e incompleta, embora
verdadeira: mas não se pode reconstruir a
experiência especifica em que ela realiza a sua perfeita harmonia. Tão-pouco a moralidade
pode ser
atribuída ao absoluto. Pode-se supor que neste cada coisa finita atinja a perfeição que
busca; mas não que obtenha a perfeição que busca. No absoluto, o
finito deve ser mais ou menos transmudado e, portanto, desaparecer como finito; e tal é
também o destino do bem. Os fins que a afirmação e o sacrifício do eu podem atingir estão
para lá do eu e do significado dos actos morais. No absoluto, onde nada se pode perder,
todas as coisas perdem o seu carácter mediante uma nova acomodação ou um complemento
mais ou menos radical. Nem o bem nem o mal se subtraem a este destino (Appearance, p.
420). Assim entram, certamente, no absoluto o espaço, o tempo, a individualidade, a
natureza, o corpo, a alma; mas tudo entra nele, não com a sua constituição finita, mas com
uma reconstituição radical, cujas características é- impossível determinar com precisão. No
abso-
56
luto tão-pouco pode subsistir a diversidade entre o sujeito e o objecto, que é inerente a todo
o pensamento finito, o qual é sempre pensamento de algo ou acerca de algo, e implica
portanto uma relação interna que o tome contraditório. O absoluto não pode ser concebido
como alma ou como complexo de almas, porque isto implicaria que os centros finitos de
experiência se mantivessem e fossem respeitados dentro do absoluto: e esse não é o destino
final e último das coisas. Não conhece progressos nem retrocessos. Estes são aspectos
parciais, próprios da aparência temporal e têm apenas uma verdade relativa. "0 absoluto não
tem história, embora contenha inúmeras histórias" (Ib., p. 500). Nem é pessoa, uma vez que
uma pessoa que não seja finita é algo sem sentido (Ib., p. 532).
reais. O argumento ontológico pode ser interpretado como uma ilustração desta doutrina
dos graus de verdade. Decerto que se deve reconhecer que desde o momento em que a
realidade é qualificada como pensamento, deve possuir todas as características im-
57
falsa abstracção do meu particular ponto de vista for corrigida e ampliada, essa ideia pode
ter desaparecido completamente. Por isso, nem toda a ideia será verdadeiramente real;
contudo, quanto maior é a perfeição de um pensamento, a sua possibilidade e a sua interna
necessidade, tanto maior será a realidade que ele possui. A esta exigência nem mesmo
a ideia do absoluto se subtrai, já que toda a ideia, por muito verdadeira que seja, nunca
inclui a totalidade das condições requeridas e é por isso sempre abstracta, enquanto que a
realidade é concreta.
Bradley renovou assim a tese hegeliana da identidade entre o finito e o infinito, mas
renovou-a com o espírito de um cepticismo radical que se recusa
a determinar, seja de que maneira for, as vias e as formas de uma tal identidade. O processo
do pensamento que para Hegel é uma dialéctica que demonstra efectivamente tal
identidade, é, para Bradley ao invés, a confirmação da natureza contraditória do finito e,
portanto, da exigência da sua transmutação total no infinito. Bradley admite, na verdade,
diversos graus de verdade e de realidade; mas, ao mesmo tempo entre os graus mais altos e
o absoluto
58
abre um fosso intransponível, uma vez que tudo no absoluto deve ser transformado e
reajustado até nos seus mais íntimos elementos (Appearance, p. 529). A identidade do finito
e do infinito, que levara Hegel a demonstrar a intrínseca racionalidade do finito e a aceitá-la
como infinito, levou Bradley a
Alfredo Eduardo Taylor (1869-1945), tão conhecido pelos seus estudos sobre Platão (1926)
e sobre a filosofia grega, numa obra que obteve muito êxito na Inglaterra, Elementos de
metafísica (1903), tenta preencher com algum conteúdo concreto a ideia do absoluto que na
doutrina de Bradley era uma pura forma vazia, indeterminável. Entende o absoluto como
uma sociedade de indivíduos que estivessem teleologicamente ordenados à unidade do
conjunto. Uma sociedade humana, em sentido próprio, é de facto uma unidade de estrutura
finalista, que não o é apenas para o observador sociólogo, mas também para os seus
membros, a cada um dos quais activamente atribui um lugar em relação a todos os outros.
Embora o eu e a sociedade não sejam
59
n**xak'@b que aparências finitais, Taylor crê que o predomínio da categoria da cooperação
na vida humana tornará ~Ivel considerar o absoluto como uma sociedade espiritual. Frente
a estas determinações mais positivas da natureza está o ponto de vista negativo de H. H.
Joachim, que se atém às teses de Bradley (A natureza da verdade, 1906; Estudos lógicos,
1948) e as utiliza como critério para uma crítica da unida-de da substância ---spinosiana
(Estudo sobre a ética de Espinosa, 1911).
rito finito. É somente pela existência da natureza que os espíritos finitos adquirem a sua
consistência e se tornam a cúpula viva entre a natureza e o absoluto. O reconhecimento da
negatividade elimina, segundo Bosanquet, todas as dificuldades do conceito de absoluto. A
prova positiva a seu favor apoia-se, logicamente, no principio de contradição, entendido do
modo concreto a que nos referimos. Quando o processo pelo qual a contradição é
normalmente removida nas questões humanas é considerado absolutamente válido, pode-se
ver nele uma unidade perfeita, na qual as contradições são completamente destruídas,
embora permaneça a diversidade ou o aspecto negativo. Com a solução das contradições, a
experiência humana transmuda-se radical. mente na vida quotidiana; pode-se entender
portanto a sua total transmutação no absoluto. Neste está eternamente e perfeitamente
realizado aquele processo de unificação lógica que na vida humana é progressivo e gradual.
§ 706. MCTAGGART
A nova orientação do idealismo, devida aos pensadores que acabámos de examinar, implica
uma divisão radical do significado e da importância que Hegel atribuíra à dialéctica; e tal
revisão é obra de John McTaggart (1866-1925), autor de Estudos sobre a dialéctica
hegeliana (1896), de Estudos sobre a cosmologia hegeliana (1901), de um Comentário à
lógica de Hegel (1910) e de uma obra em dois volumes, A natureza da existência (1921-
27). Na primeira das suas
61
~s McTaggart mostrou que a lei da dialéctica hegeliana não se mantém inalterada desde o
princípio até ao fim do seu processo. Nas primeiras categorias da lógica (a do ser) a
passagem da tese à antítese não é a transição a uma fase superior e complementar, e a
síntese é uma consequência da tese e da antítese conjuntas. Mas nas categorias da essência,
a antítese é, ao invés, complementar da tese, é mais concreta e verdadeira do que ela e
representa um progresso; a antítese já não resulta do confronto entre tese e antítese mas
procede unicamente desta última. Finalmente, nas categorias do conceito, os momentos já
não se opõem um ao outro, de maneira que a antítese não é uma antítese real e cada termo é
um progresso em relação ao outro. Isto demonstra, segundo McTaggart, que a mola real do
procedimento hegeliano não é a contradição (como o próprio Hegel afirmou) mas a
discrepância entre a ideia perfeita e concreta que está implícita na consciência e a ideia
abstracta e imperfeita que se tornou explícita. A característica do processo dialéctico é a
busca, por parte do momento abstracto ou imperfeito da consciência, não da sua negação
como tal, mas do seu complemento. A dialéctica não constitui a verdade, uma vez que o
processo da verdade excluiria a dialéctica mesma. Isto levou MeTaggart a impugnar o
principio fundamental de Hegel: a racionalidade de real. A realidade, não se pode revelar ao
homem na sua perfeita racionalidade, já que implica sempre, e não outra coisa, a
contingência dos dados sensíVeis, sem os quais as categorias da razão ficam Vazias, e a
insatisfação dos nossos desejos, que não
62
poderia existir num universo perfeito. O processo dialéctico revela esta imperfeição porque,
enquanto existe, não há perfeição, já que o processo tende a uma síntese que está longe de
verificar-se. Mas se
63
diferenciação do Absoluto. Os eus são, portanto, eternos e o Absoluto não é mais do que a
unidade destes eus: uma unidade que é tão real como as suas diferenciações e como a
própria unidade do ou finito, tal como este se manifesta -imperfeitamente neste mundo
imperfeito. Como unidade de um sistema de eu, o absoluto não pode ser entendido como
pessoa ou eu, e, portanto, não pode ser qualificado como
Deus. Para entender em que consiste a sua unidade, McTaggart examina os vários aspectos
da experiência humana. Exclui que a unidade sistemática do absoluto possa ser concebida
como uma unidade de conhecimento: o conhecimento verdadeiro, sendo uniforme em todos
os eus, não explica a sua diferenciação originária. Pelo mesmo motivo, o absoluto não pode
ser vontade porque a vontade perfeita, como satisfação perfeita, é uniforme e não explica a
diferenciação. Resta então a emoção. Se o perfeito conhecimento e a perfeita satisfação são
idênticos em todos os eus, não há razão para supor que o perfeito amor
não seja, em troca, diferente em cada eu e não seja, portanto, a base -da diferenciação
requerida pelo absoluto. O conteúdo da vida do absoluto não pode ser, portanto, senão o
amor: não a benevolência, nem o amor da verdade, da virtude ou da beleza, nem o desejo
sexual, mas "o amor apaixonado que tudo absorve e tudo consome" (Ib., p. 260). Só o amor
supera a dualidade e estabelece um equilíbrio completo entre o sujeito e o objecto.
Enquanto o conhecimento deixa sempre fora de si o objecto conhecido
64
dever ou uma imposição, mas uma harmonia em que as duas partes têm iguais direitos. Não
se ama uma
pessoa pelas suas qualidades, mas é antes a atitude perante as suas qualidades que é
determinada pelo facto de elas lhe pertencerem. Ademais, o amor
justifica-se por si mesmo. E o ponto mais próximo do absoluto que o homem pode alcançar
é precisamente um amor de que não se pode dar outra razão que não seja o facto de duas
pessoas pertencerem uma
ferenciação da existência implica que ela tenha qualidades, as quais terão, por seu turno,
outras qualidades e assim sucessivamente; no início da série deverá haver algo existente
que tenha qualidades
sem ser qualidade: e isso será a substância. É indubitável que a substância não é nada fora
das suas qualidades-, mas isto não quer dizer que ela não seja algo em conjunção com elas.
A substância é diferenciada, isto é, verdadeiramente unia pluralidade, de substâncias, entre
as quais devem existir relações. A relação é uma determinação última e indefinível, como a
qualidade; e gera, por seu turno, qualidades, porque os termos relativos adquirem, como
tais, novas qualidades. Cada substância tem a sua própria natureza e pode ser
individualizada nesta natureza por uma descrição suficiente. Os grupos de substâncias são
infinitos, porque cada grupo pode ser assumido como membro de si próprio; e a substância
que compreende todas as outras como partes suas é o universo. O universo é caracterizado
intrinsecamente pela posse de diversas substâncias, de modo que, se uma destas fosse
diferente, o próprio universo na sua totalidade seria diferente. Toda a substância é
infinitamente divisível, isto é, tem partes dentro de partes até ao infinito. Para explicar a
relação entre -uma substância e as suas partes e entre as várias substâncias, MeTaggart
introduz o conceito da correspondência determinante. É uma forma de correspondência tal
que, se se verifica entre uma substância C e a parte de uma substância B, uma descrição
suficiente de C, que inclua a sua relação com a parte de B, determina intrinsecamente uma
descrição suficiente desta
66
parte de B e de cada membro do grupo B-C, assim como de cada membro de uma parte de
tais membros, e assim sucessivamente até ao infinito. A correspondência determinante é
uma relação causal, que estabelece e funda a ordem do universo. A sua natureza é
esclarecida pela aplicação que MeTaggart faz Ma no segundo volume da sua obra: é a
percepção imediata que um eu tem de outro eu.
cisamente emoção de amor. O resultado das análises deste filósofo, em que o princípio
idealista se alia curiosamente a um método de análise que se assemelha muito ao da lógica'
matemática e ao critério objectivista do realismo contemporâneo, é o reconhecimento de
um universo formado de centros espirituais, de eus, que uma forma de experiência imediata
(a percepção emotiva ou amor) unifica num sistema dialecticamente organizado.
McTaggart conclui a sua obra com a esperança que já havia formulado nas suas análises
hegelianas, a saber: dado que se deve entender o absoluto não como presente mas como
futuro, ele deverá realizar-se como um bem infinito após um período finito, embora
longuíssimo, de tempo; e deverá realizar-se como estado de amor perfeito, comparado com
o qual até o mais alto arroubo místico não é mais do que uma tentativa aproximativa e
longínqua. Para MeTaggart, o passado e o
presente, são manifestações imperfeitas e preparatórias do futuro. Isto é, sem dúvida, uma
repetição do conceito de Fichte e de Schelling do progresso necessário da história, com a
diferença, porém, de que o
termo que será alcançado após um período muito longo, mas finito, de tempo.
§ 707. ROYCE
68
(1890), assim como de uma Introdução ao estudo da filosofia (1890) e de um ensaio sobre,
Dante (0 sentido espiritual da "Divina Comédia", 1889), O interesse de Harris é
fundamentalmente religioso. Admite três estádios do conhecimento: o que considera o
,69
70
sentido, Royce diz que a ideia é -uma vontade que busca a sua própria determinação.
Mesmo as ideias expressas como hipóteses ou definições universais
ou como juízos de tipo hipotético ou -matemático, não fazem mais do que destruir certas
possibilidades e implicar a determinação do seu objectivo final mediante determinadas
negações.
71
por ser igual, unida no todo dentro do qual habita. Toda a consciência finita se dilata assim
no absoluto até se identificar com ele, mas esta identificação não implica o anulamento da
individualidade mas antes o seu complemento, a realização de uma
parte mais interessante da obra de Royce. Recorre à teoria dos números como havia sido
elaborada por Cantor e por Dedekind: o número é um sistema auto-representativo, um
sistema cujas partes representam o todo, no sentido de que têm, por seu
turno, elementos que correspondem. termo a termo aos elementos do todo. Royce esclarece
por sua
conta este conceito como o exemplo de um mapa geográfico idealmente perfeito que deve,
para o ser, conter tanto a ubicação como os contornos da sua própria posição: de modo que
acabará por conter mapas dentro de mapas até ao infinito. Os sistemas auto-representativos
são, por outros termos, os sistemas que contêm infinitas partes semelhantes ao
de imagens próprias, um sistema de partes dentro de partes até ao infinito. Uma concepção
semelhante do infinito já não está sujeita às dificuldades que Bradley apresentara. A infinita
subdivisão a que dá lugar, segundo Bradley, toda a relação, logo que é considerada
analiticamente, e que era para ele o
Esta doutrina do absoluto marca a primeira fase do pensamento de Royce. A segunda fase,
caracterizada por uma tentativa diferente, a de determinar a natureza intrínseca do absoluto,
aparece pela
73
conceito. É evidente, por exemplo, que "o espírito do nosso próximo" não é um dado
sensível nenhuma noção universal e que deve ser objecto de uma
74
A tese de Royce é a de que o universo é constituído por sinais reais e pela sua interpretação;
e
que o processo da interpretação tende a fazer do universo uma comunidade espiritual. Uma
interpretação é real, se for real a comunidade que ela exprime, e só é verdadeira se a
comunidade alcança o seu objectivo através dela. Toda a filosofia é, inevitavelmente, uma
doutrina que nos aconselha a proceder como se o mundo tivesse certas características. Mas,
contrariamente ao que Vaihinger afirma (§ 753), Royce crê que o como se não é apenas
uma ficção ou um sistema de ficções, senão que pode justificar uma única atitude frente ao
mundo: a que tende a considerar praticamente real um reino do espírito, uma comunidade
universal e divina, e reconhece claramente que é impossível ao indivíduo salvar-se por si
só, do ponto de vista prático: e que também é impossível, do ponto de vista teorético, que
ele encontre por si só a verdade no âmbito da sua experiência privada, sem ter em conta a
velação que o liga à comunidade. Tal é, segundo Royce, a atitude própria do cristianismo e,
em particular, do cristianismo paulino, que vê o reino dos céus realizado na igreja, isto é, na
comunhão dos fiéis. O amor cristão assume, na pregação de S. Paulo, a forma da fidelidade
à comunidade: e a fidelidade à comunidade exprime a natureza mesma da vida moral.
75
comunidade que é real não porque se encontre historicamente realizada, mas por ser o
eterno fundamento da ordem moral. Todavia, quis sugerir também um meio prático para a
realização desta grande comunidade, e viu tal meio num sistema de seguros. Com efeito, o
seguro é uma associação fundada no princípio triádico da interpretação: o seguro, o
segurador e o beneficiado, e nela os obstáculos à associação transformam-se numa ajuda à
associação mesma (A esperança da grande comunidade, 1916). Royce sugeriu também o
seguro contra a guerra (Guerra e seguro, 1914). Mas esta curiosa mescla de negócios e de
moralismo cristão não nos deve impedir de considerar um dos espíritos mais abertos e
geniais do idealismo contemporâneo. Afinal de contas, se o infinito é a imagem ou a
reprodução do infinito, também os negócios em geral, e
76
Numa discussão pública efectuada em 1885, entre Royce e outros filósofos na Universidade
da Califórnia, G. H. Howison (1834-1916) reprovou a Royce o anular no eu infinito a
personalidade finita do homem e a do próprio Deus. Ao idealismo monista de Royce,
Howison contrapunha um idealismo pluralista, segundo o qual a realidade é, nas suas
diversas ordens, uma sociedade de espíritos eternos, em que os membros encontram a sua
igualdade na tarefa comum de alcançar o único ideal racional, que é Deus mesmo (A
concepção de Deus,
1897). A uma preocupação análoga obedecia em
As teses gerais do idealismo foram mais tarde apresentadas na América por James
Greighton (1861-1924); (Estudos de filosofia especulativa, 1925) e por Mary Whiton
Calkins, que se vincula directamente à especulação de Royce; e em Inglaterra por David
George Richte (1853-1903) e por John Stuart Mackenzie (1860-1935) em (Apontamentos
de metafísica, 1902; Leituras sobre o humanismo, 1907;
77
único conteúdo dos diversos indivíduos e deve ter um único cognoscente, que é Deus
mesmo; o qual é, portanto, o conhecedor universal, implícito em
78
simples ideia, não poderia oferecer o critério para ser reconhecida como tal, de modo que
nem mesmo
a ideia da experiência social seria possível se tal experiência não fosse real (0 significado
de Deus na experiência humana, 1912; O eu, o seu corpo e a sua liberdade, 1928; Tipos de
filosofia, 1929; Pensamentos sobre a morte e sobre a vida, 1937; A ciência e a ideia de
Deus, 1944).
ou uma relação objectiva. Mas pode ser reconhecida e conhece-se nos produtos da sua
criação: nos valores éticos, religiosos e sociais e no mundo da história (0 idealismo e a
idade moderna, 1918). Uma opinião análoga sobre a actividade espiritual encontra-se na
obra do inglês Richard Burdon Haldane (1857-1928) que se valeu do principio da
relatividade do conhecimento para determinar a natureza do absoluto (0 reino da
relatividade, 1921; outras obras suas: O caminho da realidade, 2 vol. 1903-04; A filosofia
do humanismo, 1922). O princípio da relatividade implica que o significado da realidade
não é o mesmo em todos os graus em que ela se divide, e que só pode ser expresso em cada
grau nos termos que lhe são peculiares. De acordo com isto, Deus
79
ph41. of T. H. G., Londres, 1896; A. E. TAILOR, The Problem of Conduct, Londres, 1901,
p. 50-88; H. SIDGWICK, Lectures on the Ethic8 of T. H. Green, M. H. Sp~er and J.
Martineau, Londres, 1902; P. L. NETTLESHIP, Memoir of T. H. G., Londres, 1906. ,Sobre
Eduarido Caird: H. JONES,e J. H. MUIRHEAD, The Life and Phil. of E. C., Glasgow,
1921.
§ 704. De BrAdley, lista dos -escritos menores em ABBAGNANO, op. cit., p. 265.
Sobre Bradley: STRANGE, in "Mind", N. S., 1911; BROAD, ibid., 1915; DE ;SARLO,
Filosofia del tempo nostro, Florença, 1916, p. 115-56; TAYLOR, WARD, STOUT,
DAWES, MCKS, MUIRHEAD, SCHILLER, in ",3"d", 1925; E. DuPRAT, Bradley, París;
R. W. CHuRcff, B.s, Nova Iorque, 1942; W. F. LOFTHOUsE, F. H. B., Londres, 1949.
§ 707. Sobre ROYCE: o número que lhe dedicou a "Ph~ophical Review", 1916, 111, com
colaboração de HOWISON, DEWEY, CALKINS, ADAMS, BARON, SPAULDING,
COHEN, CABOT, HORNE, HOCKING, RAND. ALGRATI, Un pensatore americano:
J.R., Milão, 1917; TEDESCH, in "Giorn. critico della fil. italiana", 1926; ALBEGGIANI,
II @@i&tema filosofico di J.R., Palermo, 1929; 1-1. G. TOWSEND, Philosophical Ideas in
the United States, Nova lorque, 1934, cap. I; R. B. PERRY, In the Spirit of William James,
New Haven, 1938, cap. I; G. MARCEL, La Métaphysique de Royce, Paris, 1945; J. E.
82
Smim, R.s Social Infinite Nova lorqule, 1950; J. H. COTTON, R. on the Human Self,
~bridge, Mass, 1954.
§ 708- Sobre Umison: G. H. Hotoison, Philosopher and Teacher; a Selec~ from his
Writings with a Biographical Sketch, ao cuidado de J. W. BucKHAm, Berkeley. Cal., 1934
(com bíblIog.).
83
v
O IDEALISMO ITALIANO
Na segunda metade do século XIX a doutrina de Hegel teve na Itália o seu centro de estudo
e de difusão na Universidade de Nápoles, onde a professaram Augusto Vera (1813-85), um
modesto mas típico hegeliano da direita com tendências teístas e catolicizantes, e Bertrand
Spaventa (1817-83). Spaventa iniciou a sua actividade cerca de 1850 com ensaios sobre
Hegel e a filosofia moderna italiana e europeia (recolhidos mais tarde por Giovanni Gentile
com os títulos de Escritos filosóficos, 1901; Princípios de Ética, 1904; De Sócrates a Hegel,
1905). Os seus escritos mais completos e significativos são: Prólogo e introdução às lições
de filoso-
85
fia na Universidade de Nápoles (1862), publicados de novo por Gentile em 1908 com o
título de A filosofia italiana e as suas relações com a filosofia europeia, e os Princípios de
filosofia (1867) publicados também de novo por Gentile com acrescentamento de partes
inéditas e com o título de Lógica e Metafísica (1911). Spaventa é também autor de uma
monografia intitulada A filosofia de Gioberti, de que apenas saiu o primeiro volume em
1963, e de um estudo com o título Experiência e metafísica publicada postumamente por
Jaia em 1888.
as afinidades entre as filosofias europeias mediante uma pretensa unidade da estirpe ariana,
indo-germânica, ou indo-europeia, que se teria dividido em seguida, progredindo umas
vezes mais outras vezes
menos, e mais na Alemanha do que nos países latinos (A fil. ital., 1909, p. 49). A filosofia
italiana
86
devia, pois, voltar a pôr-se ao nível da alemã. Com efeito, no Renascimento, a Itália foi a
iniciadora da filosofia moderna. Bruno equivale, sem mais, a Espinosa, só com a diferença
de que nele existe uma certa perplexidade quanto ao conceito de Deus, entendido umas
vezes como sobrenatural outras como a natureza mesma (Ib., p. 105). Vico, substituindo a
metafísica da mente pelo ser, desempenha na
Itália a função que na Alemanha desempenhou Kant. Gallupi é um "kantiano, mau grado
seu".
Rosmini, como Kant, descobre "a unidade do espírito", embora deixe na obscuridade e
incompreendido este conceito; e, finalmente, Gioberti completa Rosmini, como Fichte,
Schelling e Hegel completam Kant, e descobre a verdadeira Ideia que não é o ser, mas sim
o Espírito. Será talvez supérfluo chamar a
atenção dos leitores da presente obra, para o carácter arbitrário destas determinações
históricas. Espinosa não pode ser identificado com Bruno, porque supõe o racionalismo
geometrizante de Descartes e
mas num princípio mais profundo e menos aparente, que é a comum fé romântica na
tradição. Quanto à pretensa "nacionalidade" da filosofia italiana, tra-
87
de 1 uma fábula não menos pueril do que a "tradição itAlica" de que falavam os
giobertianos, com a agravante da não inócua mitologia da estirpe ariana, indo-germânica ou
indo-europeia.
88
Spaventa de que "as primeiras categorias exprimem, da maneira mais simples e abstracta, a
natureza, o organismo e diria mesmo o ritmo da mente" (Scritti fil., II, p. 239) é também, de
um ponto de vista hegeliano, plenamente ortodoxa.
89
governo fantoche que aquelas haviam instaurado. Isto foi talvez para ele um acto extremo
de fidelidade romântica ao regime que o honrara como o seu máximo representante
cultural; a muitos italianos pareceu, ao invés, uma traição. Foi morto no limiar da sua
habitação, em Florença, a 15 de Abril de
1944. A sua filosofia, no entanto, deve ser entendida
90
e julgada independentemente do fascismo, no qual não tem decerto raízes nem buscou
inspiração; e
a sua personalidade pode ser agora melhor recordada na generosidade dos seus traços
humanos do que nas suas atitudes políticas.
Gentile expôs pela primeira vez o princípio da sua filosofia no ensaio O acto do
pensamento como acto puro (1912); e logo depois definiu a sua atitude em relação a Hegel
em A reforma da dialécttica hegeliana (1913). A sua obra mais vigorosa é A teoria geral do
espírito como acto puro (1916); a mais vasta e complexa é o Sistema de lógica como teoria
do conhecer (2 vol., 1917-22). Em 1912 publicou o
Gioberti, 1923).
91
O erro de Hegel consistiu, segundo Gentile, em ter tentado uma dialéctica do pensado, ou
seja, do conceito ou da realidade pensável (como lógica e
como natureza), dado que só pode haver dialéctica, isto é, desenvolvimento e devir, do
pensante, ou
Este princípio que leva decididamente até às suas últimas consequências a tese apresentada
por Fichte na primeira Doutrina da ciência, realiza a rigorosa e total imanência de toda a
realidade no sujeito pensante. Nem a natureza nem Deus, nem sequer o passado e o futuro,
o mal e o bem, o erro e a verdade, subsistem de qualquer forma fora do acto do
pensamento. Os desenvolvimentos que Gentile deu à sua doutrina consistem
essencialmente em mostrar a imanência de todos os aspectos da realidade no pensamento
que os põe, e em reduzi-los a este. O pensamento em acto é o Sujeito transcendental, o Eu
universal ou infinito. O sujeito empírico, o homem individual e particular, é um objecto do
Eu transcendental, um objecto que ele põe (isto é,
92
empíricos; mas não se resolvem nesse terreno. "Não se resolvem senão quando o homem
chega a sentir as necessidades dos outros como necessidades próprias, e a própria vida, por
conseguinte, não encerrada no apertado círculo da sua personalidade empírica, mas -
entendida sempre em expansão, na actividade de um espírito superior a todos os outros
interesses particulares, e ao mesmo tempo imanente no centro mesmo da sua personalidade
mais profunda" Qb., 2, § 5).
93
tanto interiores à consciência mesma. Pelo mesmo motivo não pode haver verdadeira
dialéctica do ser
Deste ponto de vista, é evidente que a natureza, como uma realidade pressuposta ao
pensamento, é uma ficção; e como multiplicidade empírica de objectos espaciais e
temporais, se resolve na actividade espacializadora e temporalizadora do eu que a pensa
95
(Deus, natureza, ideia, facto contingente) é necessário, sem liberdade porque já está posto
pelo pensamento: é o resultado do processo, resultado que é, precisamente porque o
processo terminou, isto é, se concebe terminado, fixando-o e abstraindo-o um momento
como resultado" (1b., 12, § 19). O pensamento pensante é sempre livre, mas uma liberdade
que se identifica com a sua intrínseca necessidade racional e é, portanto, hegelianamente
entendida como coincidência de liberdade e necessidade.
96
GENTILE
examina, pois, o que ele chama o logos abstracto, ou seja, a consideração abstracta pela
qual o objecto em
geral, que é a raiz de toda a negatividade ou desvalor e portanto, também do erro ou do mal,
é considerado uma realidade por si, independente do espírito que a pensa. Parte do princípio
de que o logos abstracto é necessário ao logos concreto. "Para que se actualize a concreção
do pensamento, que é negação da imediatez de toda a posição abstracta, é necessário que a
abstracção seja não so negada mas também afirmada; do mesmo modo que para manter
aceso o fogo que destrói o combustível é necessário que haja sempre combustível e que este
não seja subtraído às chamas devoradoras, mas seja efectivamente queimado" (Sist. di log.,
1, J.a , 7 ; § 9).
O lugar abstracto é considerado na expressão que assumiu na lógica tradicional, cujas
formas são por isso submetidas à análise crítica. Conceito, juízo e
silogismo são as formas do pensável, isto é, do objecto pensado enquanto tal: exprimem,
portanto, a objectividade, o ser, a natureza e não são susceptíveis de movimento, de
progresso, de dialéctica, tudo coisas que pertencem à actividade espiritual que só podem,
portanto, entender-se e justificar-se na subjectividade do sujeito pensante. O logos
abstracto, objecto da lógica grega e medieval é, pois, enquanto abstracto, um erro; mas é
um erro necessário, porque é devido à necessária objectivação do sujeito pensante e é
continuamente resolvido e superado na actividade deste sujeito: "A lógica do abstracto
nasceu historicamente e nasce eternamente, se assim nos podemos exprimir, naquele estado
de espírito
97
natureza, como ele crê, mas o próprio conhecimento da natureza, não o concreto, mas o seu
conceito do conceito" (Sist, li log., 11, 3a4, § 3).
Com este ponto se relaciona a teoria do erro, que é um dos aspectos mais característicos da
atitude filosófica de Gentile. O pensamento em acto é sempre, como tal, verdade, realidade,
bem, prazer, positividade. O erro, o mal, a dor, etc., subsistem nele apenas como os seus
momentos superados, como posições já ultrapassadas e desvalorizadas. "Toma-se qualquer
erro e demonstra-se bem que é tal; e
ver-se-á que não há ninguém que o queira perfilhar ou sustentar. O erro é, pois, erro
enquanto superado: por outras palavras, enquanto se apresenta ao
nosso conceito, como o seu não-ser. É, portanto, como a dor, não uma realidade que se
opõe à realidade do espírito (conceptus sui), mas a própria realidade enquanto alcança a sua
realização: num
seu momento ideal" (Teoria gen., 16, § 8). O erro é sempre imanente à verdade como o
não-ser é imanente ao ser que devém. O conhecimento do erro, é, com efeito, verdade: o
conhecimento como tal é sempre verdadeiro (Sist. di log., I, 1.a 5 §§ 9-10). Naturalmente,
esta teoria do erro não explica o
98
tal; não explica, por exemplo, as doutrinas ou as opiniões filosóficas diversas das do
filósofo idealista. Mas Gentile declara que o filósofo idealista não tem a obrigação de
explicar este género de erros.
que, vulgarmente e segundo outros sistemas filosóficos por ele criticados, é também
pensamento, e implica um correspondente modo de conceber verdade e
erro, é decerto uma pretensão absurda. O erro actualmente superado pelo seu contrário (que
é o único erro do qual o nosso idealismo pode falar) não é certamente o erro, por exemplo,
de quem está contra nós, e
resiste aos nossos argumentos e persiste na sua afirmação para nós evidentemente falsa;
nem o erro cometido, para dar um outro exemplo, por Platão na
próprio antagonista é interior ao filósofo e só é real nele; e mesmo quando ressurge até ao
infinito na sua distinção, esta distinção volta sempre a ser anulada.
O traço característico desta teoria é a identificação entre o filósofo idealista e o espírito
universal: basta que a anulação "de golpe" dos erros adversários se realize na interioridade
do filósofo idealista para que se considere essa anulação realizada até ao infinito
99
Como quer que seja, tal pressuposto domina todo o desenvolvimento do pensamento de
Gentile. O ignoto, por exemplo, enquanto é conhecido como
tal, já não é o ignoto; "é enquanto não é". E assim a morte, a qual "não existe". "A morte é
temível porque não existe, como não existe a natureza nem o passado, como não existem os
sonhos. Há o homem que sonha, mas não as coisas sonhadas. E assim a morte é negação do
pensamento mas não pode ser actual o que se realiza pela negação que o
pensamento faz de si mesmo. Com efeito, só se pode conceber o pensamento como imortal,
porque é infinito" (Sist. di log. II, 4.a 2 § 3). E assim a ignorância só existe no acto em que
é reconhecida como
tal e, por isso mesmo, superada como ignorância; e não existem problemas senão enquanto
resolvidos, embora toda a solução se transforme num novo problema que é, no entanto,
imediatamente uma nova solução (1b., 11, 4 a, 5, §§ 4-5). Por consequência, a filosofia é
perene, porque é sempre esta filosofia, ou seja, filosofia do acto pensante; idealismo. E
dado que não existe uma filosofia estritamente objectiva "a verdade da filosofia ou a
filosofia verdadeira a que o filósofo tende, não pode ser outra senão uma elaboração da sua
própria
100
É fácil dar-se conta da apreciação que se pode fazer da ciência deste ponto de vista. A
ciência é sempre particular porque tem a seu lado outras ciências e carece, portanto, da
universalidade que é própria da filosofia. Pressupõe primeiramente, e
inclui em si (Teor. gen., 22, §§ 1-7). É este o único elemento que, de algum modo, a salva,
porque o
101
Ir-,
(histori" rerum gestarum) e por reduzir a história à historiografia, ou seja, à
contemporaneidade do acto pensante, de um "presente absoluto que não desaparece e não
se precipita no seu oposto" e que é "0 eterno, tal como reluz no acto do espírito que o
busca, no acto do pensamento que pensa" (Sist. di log., 11, 4a, 6 § 2). A pretensa
objectividade da verdade histórica não é outra senão a mediação ou sistematização do
pensamento que, mediando-se ou demonstrando-se, se põe como verdade imutável e é já,
em rigor, tal pela imanente mediação pela qual o eu se põe como não-eu (1b., § 8). A busca
da individualidade nos acontecimentos históricos não pode ser senão a busca daquele
verdadeiro eu que e o Eu universal e pensante. "0 Sócrates histórico, com a sua positiva
individualidade, então sim, torna-se apreensível; mas enquanto o construímos como
personalidade que revive na nossa e actualmente é a nossa (ib., § 4). Uma vez mais parte do
postulado do conhecer como identificação do sujeito consigo mesmo.
102
gentiliana: conhecer algo significa para o sujeito assimilá-lo a si e identificá-lo consigo. "A
obra que se conhece-diz Gentile (Fil. dellarte, p. 100)-, não é a que está ali, no tempo,
dividida por nós, mas
a que, ao invés, vamos procurar longe de nós (e precisamente pela actual experiência por
nós vivida), mas que, uma vez encontrada, se nos manifesta e faz valer como próxima, ou
melhor, como nossa e constitutiva da nossa actual experiência". Posto isto, o significado da
arte, de toda a obra de arte, não poderá consistir senão no próprio objecto pensante; e,
precisamente, na "forma do eu como puro sujeito" (1b., p. 131). Mas como puro sujeito o
eu nunca é actual, porque a sua actualidade, o acto do seu pensar está no seu objectivar-se;
mas
neste objectivar-se a arte, como pura subjectividade, já foi transcendida. "A arte pura é
inactual e, por isso, não pode ser apreendida na sua pureza. Isto não significa, porém, que
ela não existe, mas somente que não se pode separar, tal como é e por aquilo que é
propriamente, do resto do acto espiritual, em que existe, e em que, ademais, demonstra toda
a sua energia existencial" (1b., p. 135). Por conseguinte, a arte não é, como se costuma
dizer, um produto de fantasia; não existe uma fantasia como faculdade, ou função especial
da actividade espiritual, distinta do pensamento. A actividade espiritual é sempre
pensamento, ainda quando, na interioridade do pensamento, se possam distinguir vários
momentos. A arte é o momento da subjectividade pura ou inactual que se torna actual no
pensamento, se converte em expressão. A expressão
103
para além da diversidade empírica dos homens individuais (ib., p. 205). Sentimento é o
corpo não na sua presumida imediatez física, mas na sua actualidade consciente-,
sentimento é também a linguagem, que é decerto pensamento na multiplicidade do seu
Por outro lado, a técnica artística é, em troca, pensamento; mas é um pensamento "que
retorna ao sentimento e com ele se encontra e é por isso dirigido e animado por ele" (Ib., p.
237). A pretensa exteriorização da obra de arte não é, na realidade, senão a sua interna
realização por obra do sujeito. No sujeito encontra também a sua beleza a natureza, "não já
dividida nas suas partes, mas reunida naquela unidade e infinidade que é própria do sujeito
e do mesmo sujeito" (1b., p. 262). Se como pura objectividade e, portanto, como puro
sentimento, a
104
mesmo tempo que a sua actualidade, no pensamento, isto é, na filosofia. Possui, portanto,
uma eticidade imanente pela qual pode valer como educadora do género humano. Nas suas
produções históricas (embora não esteticamente válidas, porque só o são no pensamento e
para o pensamento) a arte tem também, segundo Gentile, um carácter nacional (Ib., p. 237).
Quanto à relação entre arte e religião, trata-se de uma correlação necessária que implica a
sua recíproca oposição e exclusão dialéctica. Com efeito, a arte é o momento da pura
subjectividade espiritual, a religião é o momento da pura objectividade, do objecto que é
absolutamente negador do sujeito (Deus), do infinito como objecto.
Este conceito da religião foi formulado por Gentile na Teoria geral do espírito e no Sumário
de pedagogia e confirmado nos Discursos de religião (1920). A religião é "a exaltação do
objecto, subtraído aos vínculos do espírito, em que consiste a
idealidade, a cognoscibilidade e racionalidade do objecto mesmo" (Teoria, 14, § 7). Como
negação do sujeito no objecto, a religiosidade determina a
105
pelo da graça que o bem (Deus) faz de si ao sujeito" (Somm. di ped., 1, 3 a, 4, § 4). A
essência da religião é, portanto, o misticismo que é a anulação do sujeito no objecto e pela
qual o ser de Deus é o não ser do sujeito (Disc. di rel., p. 78). A consequência da
religiosidade é o agnosticismo, que é o carácter negativo de todas as teologias místicas ou
estritamente religiosas Qb., p. 81). A religiosidade pertence, pois, propriamente ao lugar
abstracto, isto è, à posição abstracta e errónea de um objecto, que se supõe anterior ao
sujeito e considerado independente dele. Somente a filosofia a restitui à sua concreção,
mostrando no próprio objecto da religião uma posição ou criação do sujeito. E, neste
sentido, a filosofia imanentista é a "verificação do cristianismo" , que foi o primeiro a
afirmar o princípio da interioridade espiritual. Por sua vez, o acto espiritual, a única
realidade positiva e concreta já não pode ser divinizada e tornar-se objecto de adoração ou
de culto. "0 acto é a filosofia: e a filosofia da filosofia não é mais do que filosofia. Assim, o
acto, na sua imanente realidade, não se objectiva e não se põe diante de si mesmo" (Ib., p.
88). De maneira
106
filosofia (Sobre uma nova demonstração da existência de Deus, 1932; A minha religião
1943). Falou também de uma religião sua e até mesmo de um catolicismo seu. Mas,
evidentemente, o adjectivo destrói aqui o substantivo. Para chegar a reconhecer a validade
da religião, Gentile deveria ter abandonado, como fez Fichte, o princípio da identidade do
finito e do infinito e chegar a admitir que o
infinito está para além do finito, isto é, do homem que filosofa, do sujeito pensante, o qual
em comparação com ele não é mais do que a imagem ou a
repetição temporal do seu eterno processo. Mas nada estaria mais longe da intenção de
Gentile, o
Uma sociedade de homens, isto é, de seres finitos ligados entre si e ao mundo que os
alberga por necessidades e exigências de diversa natureza é, do ponto de vista de Gentile,
um verdadeiro absurdo. Por isso, nos Fundamentos da filosofia do direito (1916), assim
como no seu último escrito Génese e estrutura da sociedade (1946), e noutros escritos
menores circunstanciais e políticos, Gentile não faz outra coisa senão reduzir à
interioridade do acto espiritual a sociedade e o estado, a moral, o direito
107
entre os homens. Sociedade e estado, e, por conseguinte, direito e política não estão,
segundo ele, inter homines, mas in interiore homine. Na primeira obra, procurou esclarecer
a natureza do direito recorrendo à dialéctica de o que quer e o querido, que é perfeitamente
idêntica à de pensante e pensado, já que nenhuma distinção é possível entre pensamento e
infinita é vontade criadora e infinita. Em relação à moralidade, que é vontade do bem, isto
é, criação do bem no acto de o querer, o direito é o querido, ou seja, não já vontade em acto
mas vontade passada ou conteúdo do querer; portanto, também, "não já liberdade que é
força, mas força sem liberdade, não já objecto que é sujeito, mas objecto oposto ao
sujeito" (Fond., p. 58-59). A vontade que quer é já para si mesma o seu próprio mandato ou
a sua
própria lei; quando encontra diante de si uma ordem ou uma lei, trata-se de um momento
seu objectivado, e fixado abstractamente nessa sua objectividade. "0 poder soberano, o
querer tom-no já em si; e fora dele, onde empiricamente se vê armado de espada, não pode
vê-lo senão através do que já tem no seu
íntimo, onde está a raiz e a verdadeira substância da sociedade e do estado" (Ib., p. 61). Por
conseguinte, a coactividade do estado ou das normas jurídicas é, ela também, interior e
espiritual; e direito e moral, em última análise, identificam-se, como se identificam o estado
e o indivíduo, na actualidade do querer volitivo ou do sujeito pensante (1b., p. 69).
escrito de Gentile. Aqui rejeita-se a distinção entre o privado e o público e com ela a
possibilidade de pôr limites à acção do estado. E, com efeito, a distinção não pode manter-
se se se admite como único indivíduo o Eu universal e infinito: na realidade, tal distinção
pressupõe a singularidade e a irredutibilidade do indivíduo e, ao mesmo tempo, a sua
109
com o pressuposto que sustenta toda a dialéctica de Gentile: conhecer é identificar, eliminar
a alteridade, assimilar ao sujeito pensante tudo o que não é o
historiográfica de Gentile, dominada como é pelo pressuposto citado e pelo conceito de que
a história
não é mais do que a eternidade no acto pensante, não tem valor -senão como aspecto da sua
especulação sistemática. Nos seus numerosos trabalhos históricos, Gentile procurou sempre
rastrear no passado apenas os elementos assimiláveis à filosofia -do actualismo. A sua
historiografia filosófica reduz-se, pois, a isolar certos elementos de pensamento dos
complexos individuais e históricos -de que fizeram parte e a assimilá-los aos conceitos
próprios do actualismo. Esta forma de historiografia filosófica foi com frequência seguida
por numerosos discípulos que Gentile teve na Itália nos anos que vão da primeira à segunda
guerra mundial com resultados quase nulos ou decepcionantes, seja do ponto de vista
historiográfico, seja do teorético.
110
até ao início de 1903, colaborador da sua revista "La Critica"), Croce rompeu com ele
quando se
declarou hostil ao governo fascista (já instaurado havia alguns anos) de que Gentile se
tornara o expoente filosófico oficial. A esta ruptura, seguiu-se, por ambas as partes, uma
polémica miúda, azeda e
pouco edificante, que durou muitos anos. O regime fascista, certamente para se salvar de
um alibi face aos meios culturais internacionais, permitiu tacitamente a Croce uma certa
liberdade de crítica política, de que ele usou efectivamente nos livros e nas notas que ia
publicando na "Critica" para fazer a
defesa dos ideais da liberdade, tanto mais eficaz quanto era alheia a toda a retórica e
impregnada de cultura e de pensamento. Nos anos do fascismo e
da segunda guerra mundial a figura de Croce assumiu por isso, aos olhos dos italianos, o
valor de um
mundo em que o espírito prevaleça sobre a violência. E assim se mantém ainda hoje,
embora se verifique
111
o eclipso das ideias filosóficas de Croce até nos domínios em que exerceram a maior
influência, ou seja, na estética e na teoria da história.
112
dedica-das por Croce a Vico e a Hegel (A filosofia de Vico, 1911; Ensaio sobre Hegel,
1912) e os estudos reunidos na sua obra Materialismo histórico e economia marxista
(1900). Os Escritos de história literária e política, constituem, pois, um esclarecimento e
uma reforinulação dos princípios filosóficos de Croce perante um grande número de
problemas críticos.
que importa, em todo o caso, é -dar-se conta de que nela o adjectivo modifica radicalmente
o substantivo e que, portanto, o historicismo crociano é radicalmente diverso -do resto do
historicismo contemporâneo. Este (como veremos, § 735), centra-se em
substituído pelo principio hegeliano da identidade entre racionalidade e realidade, entre ser
e dever ser. Croce, de facto, contrapõe o historicismo ao ilumi-
113
nismo que, como "racionalismo abstracto", considera "a realidade dividida em supra-
história e história, num mundo de ideias ou de valores e num mundo que os reflecte ou os
reflectiu até agora, de um modo fugaz e imperfeito, e ao qual convirá impô-los de uma vez,
fazendo suceder à história imperfeita, ou à história pura -e simplesmente, uma realidade
racional perfeita". O historicismo crociano não é, pois, senão o racionalismo absoluto
hegeliano. E, de facto, Croce vê (a justo título) e louva em Hegel, sobretudo, "o ódio contra
o abstracto e o imóvel, contra o dever ser que não é, contra o ideal que não é real" (Ensaio
sobre Hegel, 1927, p. 171). "Com Hegel-diz ainda Croce (0 carácter da filosofia moderna,
p. 41) -Deus -descera definitivamente do céu à terra, e já não havia que buscá-lo fora do
mundo, onde apenas se encontraria uma pobre abstracção, forjada pelo espírito do homem
em determinados momentos e para certos fins. Com Hegel adquirira-se a consciência de
que o homem é a sua história, a história a única realidade, a história que se faz como
liberdade e se pensa como necessidade, e já não é a sucessão caprichosa dos eventos contra
a coerência da razão, mas actuação da razão, a qual deve ser qualificada de irracional só
quando se despreza e se desconhece a si mesma na história. A este historicismo absoluto,
reduziu também a doutrina de Vico, pondo de parte na filosofia de Vico todos os elementos
contraditórios ou, que de qualquer forma, não eram compatíveis com tal ponto de vista.
Contudo, Croce reprovou a Hegel o ter admitido a possibilidade da natureza como "algo
diferente
114
do espírito", o ser tornado pesado e escolástico o seu sistema com o uso e o abuso da forma
triádica e, sobretudo, a confusão do nexo dos distintos com a dialéctica dos opostos. Isto é,
Hegel confundiu a distinção e a unidade que existe entre as formas e os
diversos graus do espírito com a oposição dialéctica que se encontra no âmbito de cada
grau (belo e feio na arte, verdadeiro e falso na filosofia, útil e inútil na economia, bem e
mal na ética). os opostos condicionam-se mutuamente (não existe belo sem feio, etc.), mas
os distintos, isto é, os graus do espírito, condicionam-se só na ordem da sua sucessão.
Croce admite quatro destes graus que se reagrupam nas
e a prática. Arte e filosofia constituem a forma teorética; economia e ética a forma prática.
A arte é conhecimento intuitivo ou -do particular; a filosofia conhecimento lógico ou do
universal; o momento económico é a volição do particular; o momento ético é a volição do
universal. Cada momento condiciona o momento subsequente, mas não é, por sua vez,
condicionado por ele: a filosofia é condicionada pela arte, que lhe fornece com a linguagem
o
eficácia da acção, condiciona o momento ético que dirige a vontade eficaz e praticamente
activa para fins universais. A vida do espírito desenvolve-se circularmente no sentido de
que torna a percorrer incessantemente os seus momentos ou formas fundamentais; mas
torna-os a percorrer enriquecida de
115
cada vez pelo conteúdo das precedentes circulações e sem se repetir nunca. Nada existe
fora do espírito que devém e progride incessantemente: nada existe fora da história, que é
precisamente este progresso e
este devir.
A arte é o primeiro momento do espírito universal. Croce define-a como visão ou intuição,
mas considera-a como -teoria ou contemplação e atribui-a à forma teorética do espírito. "0
artista produz uma
imagem ou fantasma; e aquele que aprecia a arte dirige o olhar para o ponto que o artista
lhe indicou, olha pelo respiradouro que aquele lhe abriu e reproduz em si aquela imagem"
(Novos ensaios de estética, p. 9). Mas intuição significa "a imagem no seu valor de mera
imagem, a pura idealidade da imagem"-, exclui, pois, a distinção entre realidade e
irrealidade, que é própria do conhecimento conceptual e filosófico. Este é sempre realista
porque tende a
arte não é um acto utilitário e nada tem a ver com o útil, e com o prazer ou com a dor; nem
é um acto moral, e por isso exclui de si as valorizações pró-
116
louvável nem reprovável. O artista, como tal, é sempre moralmente inocente. A sua
verdadeira moralidade é intrínseca ao seu escopo ou à sua missão de artista, é o seu -dever
para com a arte.
imagem sem o sentimento é vazia. A arte distingue-se, pois, tanto do vão fantasiar como -
da passionalidade tumultuosa do sentimento imediato. Recebe do sentimento o seu
conteúdo, mas transfigura-o em pura forma, ou seja, em imagens que representam a
libertação da imediatez e a catarse do passional.
Como intuição, a arte identifica-se com a expressão. Uma intuição sem expressão não é
nada: uma fantasia musical só existe quando se concretize nos sons, uma imagem pictórica
só o é quando pintada. A expressão artística é intrínseca à intuição e identifica-se com ela.
Mas a expressão artística é diversa da expressão técnica que é devida à mera necessidade
prática de tomar possível a reprodução da imagem para si e para os outros. A técnica é
consti-
117
túída: por actos práticos, guiados, como todos os actos práticos, por conhecimentos. Como
tal, é diferente da intuição, que é pura teoria: e pode-se ser
grande artista e mau técnico. É pela técnica que "com a palavra e com a música se unem as
escrituras e os fonógrafos; com a pintura, as telas e os retábulos
linguagem explica o poder que esta exerce sobre todos os homens: se a poesia fosse uma
língua à parte, uma "linguagem dos deuses", os homens nem sequer a entenderiam.
Nos últimos escritos, e sobretudo no volume Poesia (1936), Croce insiste cada vez mais no
carácter expressivo da arte. A expressão poética, enquanto
118
119
dá lugar, não a palavras, mas a sons articulados, dos quais a actividade prática se serve para
suscitar determinados estados de alma. A expressão literária, é "uma das partes da
civilização e da educação semelhante à cortesia ou ao galanteio", e consiste na harmonia
entre as expressões poéticas e as
não poéticas (passionais, em prosa, oratórias), de modo que estas últimas, no seu curso,
embora sem se renegarem a si mesmas, não ofendem a consciência poética e artística (1b.,
p. 33). O que há de fundamental na expressão poética é o ritmo, "a alma da expressão
poética, e, portanto, a expressão poética mesma, a intuição ou ritmo do universo, como o
pensamento é a sistematização dele". E o ritmo é próprio de toda a arte: em cada uma delas
toma caminhos próprios, que são infinitos e inclassificáveis. Sobre a sua natureza e sobre a
sua relação com a
expressão, Croce pouco diz, a não ser que o subentenda nas explicações que deu sobre o
ritmo e a harmonia na história -da estética desde a antiguidade até hoje. Através das
expressões não poéticas e, sobretudo, através da expressão oratória o espírito é reportado ao
sentimento, que é a própria vida prática, a partir da qual recomeça um novo ciclo, constante
no seu ritmo já assinalado, ritmo que cresce sobre si mesmo, num incessante
aperfeiçoamento e
CROCE
tinguir facilmente das expressões que não são estéticas. Todavia, o próprio reconhecimento
da realidade de tais expressões assinala o acto de decadência e de morte da filosofia do
espírito. Se existem formas ou modos de expressão que não são poesia ou arte, a poesia ou
arte não são tais enquanto expressão condicionada de uma determinada maneira; e se as
condições que fazem da expressão uma expressão poética são a teorese, o conhecer, a
universalidade, a totalidade, a infinidade, etc., ou seja, caracteres ou determinações que
encontram a sua
fico, a coisa é, pelo menos, desconcertante. Acrescente-se que a redução (que aquela teoria
implica) das expressões não poéticas (filosóficas ou oratórias) a "sons articulados" vem a
ter o seu oposto simétrico na tese de alguns epistemologistas contemporâneos (por ex.,
Ayer) que reduzem a simples "emissões de voz" as expressões não científicas ou, pelo
menos, não verificáveis empiricamente, e este elucidativo confronto tomará inútil o juízo.
É, enfim, evidente que a identificação da linguagem com a
expressão poética toma impossível entender a unidade da poesia com as outras artes
(música, pintura, escultura, etc.); e de facto, para justificar esta unidade, Croce é obrigado a
recorrer ao antiquado e, segundo parecia, já inútil conceito de ritmo.
autêntica personalidade humana, e que se traduz igualmente nas obras e na vida (a qual, por
isso, não pode ser excluída ao julgar-se a obra), não é devidamente considerada nas
formulações teóricas e nas
A tese fundamental da Lógica (1908) é a identidade entre filosofia e história. Croce defende
esta tese mostrando a identidade entre o conceito e o juízo definidor que o expressa, e entre
o juízo definidor e o juízo individual ou percepção, que é o juízo sobre a realidade concreta
ou fáctica. Mas o juízo sobre a realidade concreta ou fáctica é o juízo histórico: de modo
que o verdadeiro pensar, o pensar lógico, é sempre pensar histórico; mais ainda, identifica-
se com a história enquanto pensamento. Todavia, este conceito, que acaba por se revelar
idêntico ao saber histórico, é, sobretudo, o Conceito: isto é, o próprio Espírito na forma da
sua autoconsciência racional. Não tem, pois, nada que ver com os conceitos de que se fala
na linguagem comum e na ciência; e estes, segundo Croce, não são verdadeiramente
conceitos, mas pseudo-conceitos. ou ficções conceptuais. Para explicar a sua origem e a sua
função, Croce recorre à forma prática do espírito e reproduz a doutrina de Mach (§ 785)
sobre a função económica dos conceitos científicos. Os pseudo-conceitos
123
fala tem a sua utilidade, porque facilita a recordação dos conhecimentos possuídos e-
permite extraí-los oportunamente do seio do cosmos ou do aparente, mente inconsciente e
esquecido. Para este fim se constroem os instrumentos das ficções conceptuais, que
tornaram possível, por meio de um nome, despertar e unificar a multidão das
representações, ou, pelo menos, indicar com suficiente exactidão qual a
forma prática tem lugar o erro, que cai fora do conhecimento, que é sempre verdade
absoluta. "Aquele que comete um erro não tem nenhum poder para Iorcer, desvirtuar ou
corromper a verdade, que é o seu próprio pensamento, o pensamento que opera nele como
em todos; ainda mais, logo que toca o
pensamento, é tocado por ele: pensa e não erra. Tem apenas o poder prático de passar do
pensamento ao
facto; e um fazer e não já um pensar é abrir a boca ou emitir sons aos quais não
corresponda um pensamento ou, o que é o mesmo, não corresponda um
pensamento que tenha valor, precisão, coerência, verdade: sujar uma tela a que não
corresponda uma
imagem, rimar um soneto combinando frases de outros que simulem a genialidade ausente"
(1b., p. 254-55). As ciências, como pseudoconceitos, e os erros de
124
bloco por Croce na forma prática do espírito e considerados para todos os efeitos não como
conhecimentos, mas como acções.
ao saber histórico. O próprio Croce acabou por empregar a palavra "natureza" para indicar
o "processo prático dos desejos, dos apetites, da cupidez, das satisfações e insatisfações que
surgem, das -emoções que os acompanham, dos prazeres e das dores" (últimos ensaios,
1935, p. 55). Mas acrescenta que se deve conceber a natureza "dentro do espírito, como
uma forma particular ou categoria do próprio espírito, e como a mais elementar das formas
práticas, aquela em que também a forma prática superior, ou seja, a eticidade,
perpetuamente se traduz e se encarna e na qual o próprio pensamento e a
125
-Pertencem à forma económica do espírito além da ciência natural, o erro, o mal, etc., e até
o direito e o estado. Já em 1907, num ensaio intitulado Redução da filosofia do direito à
filosofia da economia, Croce sustentara esta tese, a qual mais tarde confirma e
sistematicamente, desenvolve no terceiro volume da Filosofia do espírito (Filosofia da
prática, económica e ética, 1909) e mantém e defende nos escritos posteriores (Ética e
política, 1931). Já na primeira destas obras, Croce identifica resolutamente a categoria do
direito com a da utilidade e da força. Reconhecia, portanto, a existência de direitos imorais
ou até direitos inerentes às associações delituosas. "0 direito de uma associação a delinquir
- dizia (Rid., et., ed., 1926, p. 40) - encontra a oposição do direito de uma sociedade mais
vasta; submeter-se-á a este segundo, como ao mais forte; submeter-se-á merecidamente,
como o não moral ao moral: mas vive como direito e está submetido como direito".
Todavia, o direito não é imoral mas amoral, isto é, precede a vida moral e é independente
dela. É força enquanto acção eficaz que atinge um determinado fim útil; e é condição da
própria moral, enquanto esta não pode deixar de traduzir-se em acção e, por conseguinte,
em utilidade e força. Estas teses fundamentais foram sempre mantidas firmemente por
Croce. Portanto, o estado é considerado por ele nada mais do que "um processo de acções
úteis de um
126
forçado, mas forçado, isto é tal que surge sob a "força" de certos factos e, por conseguinte,
"condicionado" : se a condição de facto muda, o consenso, como é natural, é retirado,
desencadeia-se o debate e a luta, e um novo consenso se estabelece sob nova condição. Não
há formação política que se subtraia a esta alternativa: no mais liberal dos estados, como na
mais opressiva das tiranias, existe sempre o consenso, e é sempre forçado, condicionado e
mutável. Se assim não fosse, não haveria nem o Estado nem a vida do Estado" (Ib., p. 221).
O erro da concepção ética do estado, tal como, por exemplo, se encontra em Hegel, consiste
em ter concebido a vida moral numa forma da vida política e do estado inadequada para
ela. A vida moral, ao invés, não se deixa reduzir à vida política mas transborda dela e
contribui para desfazer e refazer perpetuamente a vida do estado. É igualmente erróneo,
segundo Croce, o
a "liberdade" e a "fraternidade" são palavras vazias que merecem todos os vitupérios e cuja
verdadeira
127
origem reside "nos esquemas da matemática e da mecânica, inaptos a compreender o ser
vàvente" (1b., p. 226).
no sentido materialista dos socialistas e dos comunistas: num e noutro caso, o ideal
transcendente que se procura traduzir em factos não pode deixar de ser simplesmente
imposto à humanidade. Esta concepção pode lar lugar, não a revoluções, mas a reacções; a
ela se devem todas as crises e doenças nas
128
129
A identificação entre história e filosofia exposta pela primeira vez na Lógica (1908), foi o
tema fundamental da filosofia crociana. "Se o juízo - diz Croce (A história como
pensamento e como acção,
1938, p. 19)-,é relação entre sujeito e predicado, o sujeito, ou seja o facto, qualquer que
seja, que se julga, é sempre um facto histórico, algo que devêm, um processo em curso,
porque factos imóveis não se encontram nem se concebem no mundo da realidade". É juízo
histórico a mais óbvia percepção judicativa, por exemplo a de uma pedra: "porque a
suas vibrações" (1b., p. 5). As fontes da história (documentos ou relíquias) não têm outro
fim senão o de estimular e formar no historiador estados de alma que já existem nele. "0
homem é um microcosmos, não em sentido naturalista, mas em sentido histórico, um
compêndio da história universal" (1b., p. 6). A necessidade e o estado de alma constituem,
no entanto, apenas a matéria necessária da história; o conhecimento histórico não pode ser a
sua reprodução passiva, mas deve superar a vida vivida para a representar em forma de
conhecimento. Devido a esta transfiguração, a história perde o seu
131
homem do peso opressivo do passado. Num certo sentido, o homem é o seu próprio
passado, que o
conhecimento, redu-lo a problema mental e a verdade, que vale como premissa para a acção
futura. "Só o juízo histórico, que liberta o espírito da compreensão do passado e, puro como
é e alheio às partes em conflito, guardião contra os seus ímpetos e os seus engodos, mantém
a sua neutralidade e procura unicamente fornecer a luz que se lhe pede; só ele toma possível
a formação do propósito prático que abre a vida ao desenvolver-se da acção e, com o
processo -da acção, às oposições, entre as quais ela deve actuar, do bem e do mal, do útil e
do nocivo, do belo e do feio, do verdadeiro e do falso, e, em
Talvez pareça assim, que o sentimento e a acção cairiam fora da história, que é
conhecimento racional perfeito. Pelo contrário, caem, segundo Croce, somente fora do
conhecimento, no domínio da forma prática do espírito. As angústias, as esperanças, as
lutas, etc., todos os impulsos dos homens, pertencem à consciência moral, são "história. no
seu fazer-se". Mas seja como acção vivida, seja como conhecimento lógico, a história é
sempre racionalidade plena, progresso. O chamado elemento irracional da história é
constituído pelas manifestações da vitalidade: vitalidade que não é decerto a civilidade ou a
moralidade, mas condição e premissa necessária de uma e de outra; e como tal, plenamente
racional (A his-
132
preparação de nova vida e, portanto, progresso" (1b., p. 38). Nem poderia ser de outro
modo porque o verdadeiro sujeito -da história é, sempre, em última análise, o espírito
infinito. A -história não é "a
obra impotente, e sempre ininterrupta do indivíduo empírico e irreal, mas a obra daquele
indivíduo verdadeiramente real, que é o espírito no seu eterno individualizar-se. Por isso ela
não tem de defrontar nenhum adversário, pois todo o adversário é também o seu súbdito,
isto é, um dos aspectos daquele dialectismo que constitui o seu ser íntimo" (Teoria e
história da historiografia, p. 87).
Todavia, nos últimos escritos, sob o impulso das vicissitudes históricas contemporâneas
que se prestam mal a confirmar a perfeita racionalidade da história e a sua total justificação,
Croce introduz uma
distinção que deveria evitar que aquela tese servisse para a cínica aceitação do facto
consumado ou do êxito. Quer dizer, distinguiu a racionalidade da história da racionalidade
do imperativo moral. Tudo na história é racional porque tudo nela "tem a sua
razão de sem. Mas racional é também o imperativo moral, ou seja, "aquilo que a cada um
de nós, nas condições determinadas em que é colocado, a consciência moral manda fazem -
(A história, p. 199). Ora, o imperativo moral neste sentido é próprio do dever ser que
pretende dar lições ao ser, contra o qual se encarniçou sempre o desprezo de Hegel e
133
toda a decadência um progresso, em todo o mal um bem e na obra do diabo a própria obra
de Deus. Tal foi, de facto, sempre a atitude de Hegel e tal continua a ser a atitude de Croce
filósofo. Apelar então para o imperativo moral como para algo racional de outro género,
significa querer dar, como indivíduo, lições à história, como homem lições a
Deus. Por outras palavras, traduzir, não um racional mas um irracional, e restaurar a
desprestigiada e
no seu conjunto imediata, à qual não se pode reportar o progresso, já que só se pode referir
este
134
ao nosso conceito das categorias e não às categorias mesmas (A história, p. 25). E por esta
visão é levado a considerar as dúvidas e as desconfianças que às vezes surgem, com
respeito ao progresso, como impulsos sentimentais e cegos que devem ser banidos pela
reflexão histórica (0 progresso como estado de alma e o progresso como conceito
filosófico, "Critica", Julho de 1948). Por outro lado, insiste na liberdade e na
responsabilidade do indivíduo frente às suas tarefas e, por conseguinte, na obrigatoriedade
moral de atitudes que não sejam a pura e simples aceitação do facto consumado. Num
ensaio de 1929 (últimos ensaios, 1935, p. 295 segs.) exprimiu este contraste equiparando-o
ao que existe entre a graça e o livre arbítrio; e viu a solução do mesmo no "alternado operar
do pensamento e da acção, da teoria a da práxis, de duas categorias do espírito e da
realidade, que só o são uma mediante a outra, e no seu distinguir-se ou pôr-se se resolvem
naquela ú nica unidade concebível que é o
eterno unificar-se". Mas é precisamente este eterno unificar-se que resulta impossível. Não
se trata, com efeito, de simples proposições ou posições lógicas, mas de atitudes humanas;
e a atitude de quem tudo justifica, exclui e condena a atitude de quem se sente responsável
pelos ideais e pelas acções que livremente escolheu.
A identidade entre filosofia e história conduz à negação de toda a filosofia que não se
reduza à consideração da história e dos seus problemas, e à definição da filosofia como
"metodologia da historiografia". O conceito de uma filosofia que se situe
135
para além e fora da história ou que se ocupe de problemas universais eternos é "a ideia da
filosofia". Ela só pode dar origem a discussões intermináveis, próprias dos filósofos de
profissão, mas completamente fora do círculo vital do pensamento. "Qualquer problema
filosófico resolve-se unicamente quando é posto e tratado com referência aos factos que o
fizeram nascer e que cumpre entender para o entendem (A história, p. 144). A unidade do
problema com a sua solução exclui que haja problemas insolúveis. A solução elimina o
problema e
novos problemas são postos ou impostos pela vida e pela acção. À filosofia não é dado
pensar os universais sem os individualizar e, portanto, sem os
tomar históricos, como não é possível à historiografia conhecer a individualidade dos factos
sem os
os problemas que ele procurou fazer seus estilhaçam o quadro das categorias prévias e
revoltam-se contra elas. Mas precisamente por este aspecto a obra de Croce é extremamente
significativa para a filosofia contemporânea-
136
a cultura italiana do período compreendido entre as duas guerras. Actuou no mesmo sentido
que a filosofia de Gentile, apesar da inimizade que se criou entre os dois filósofos e da
diversidade das suas doutrinas. Contudo, não deu lugar, no campo filosófico, a nenhum
desenvolvimento original ou enriquecimento das suas teses fundamentais; em troca,
determinou novos rumos no campo da crítica literária e artística, especialmente em Itália,
apesar de tal influência estar actualmente a desaparecer da cultura italiana.
NOTA BIBLIOGRÁFICA
Estã em curso a edição dm obras completas de Gentile, ed. Sansoni de Florença. Bibliog. de
V. A. BELLEzzA, Bibliogr. degli scritti di G.G., vol. IIII de G.G., Ia vita e il p~ero, ao
cuidado da fundação "Gentile", Florença, 1950.
137
os volumes publicados pela "Fundação G.G. para os estudos filosóficos" e inütulados: G.G.
La i>ita e il pensiero contêm numerosos escritos (interpretativos e
138
vi
O NEO-CRITICISMO
A filosofia passou a ser entendida e aplicada, desde o neo-criticismo, como reflexão crítica
sobre a
ciência (ou sobre qualquer outra forma da experiência humana) tentando encontrar na
ciência (ou, em geral, nessa outra forma de experiência) as condições que a tornam válida.
O neo-criticismo admite assim a validade da ciência, do mesmo modo que aceita a validade
do mundo moral e estético. Mas o criticismo é contrário à afirmação do carácter absoluto
ou metafísico da verdade científica, defendido pelo positivismo; e é, por outro lado,
contrário a qualquer tipo de metafísica ou de integração metafísico-religiosa do saber
científico, segundo as vias do espiritualismo e do idealismo. A metafísica
139
subjectivas que se encontram ligadas à ciência, à moralidade ou à arte. Assim acontece com
o neo-criticismo, se bem que esteja impregnado pela polémica contra o empirismo e o
psicologismo, que reduzem a validade do conhecer (ou da moralidade ou da arte) às
condições em que estas actividades se manifestam no homem. O "retorno a Kant" é
portanto o retorno ao ensinamento fundamental do filósofo de Kõnigsberg, isto é, à
exigência de não reduzir a filosofia à psicologia, à fisiologia, à metafísica ou à teologia,
mas sim de restituí-Ia à sua tarefa de análise das condições de validade do mundo do
homem.
O retorno a Kant verificou-se na Alemanha pouco depois dos meados do séc. XIX. O
primeiro impulso partiu dos escritos de **HeIraholtz, do aparecimento da monografia de
Kuno Fischer sobre Kant (1860) e da obra de Zeller Sobre a significação e o
fim da gnoseologia (1862). Em 1865, Otto Uebmann (1840-1912) publicou o livro Kant e
os seus epígonos, em que traçava a análise de cada uma das quatro orientações da filosofia
alemã post-kantiana
140
nossos órgãos dos sentidos por acção das forças externas. Os sinais não são cópias nem
reproduzem os
caracteres dos objectos externos; mas, contudo, estão relacionados com eles. A relação
consiste em que o mesmo objecto, nas mesmas circunstâncias, provoca o aparecimento do
mesmo sinal na consciência. Esta relação permite-nos comprovar as leis dos processos
externos, isto é, a sucessão regular das causas e dos efeitos, o que basta para provar que as
leis do mundo real se reflectem no mundo dos sinais e,
141
por conseguinte, para fazer deste último um conhecimento verdadeiro. Helmholtz aceita a
doutrina kantiana do carácter transcendental do espaço e do tempo mas nega que tenham
carácter transcendental os axiomas da geometria. A existência das geometrias não-
euclideanas demonstra que os espaços matemáticos, mesmo sendo intuíveis, não se baseiam
em axiomas transcendentais porque são construções empíricas que têm como fundamento
comum a intuição pura do espaço. Segundo Helmholtz, idealismo e realismo são puras
hipóteses que é impossível refutar ou provar de modo decisivo. O único facto independente
de qualquer hipótese é a regularidade dos fenómenos e, por isso, o único carácter essencial
da realidade é a lei. O mérito imortal de Kant foi, precisamente, o ter demonstrado que o
princípio da causalidade, no qual toda a lei se funda, é uma noção a priori. 'Na mesma linha
se move Frederico Alberto Lange (1828-75), conhecido principalmente pela sua História do
materialismo (1866, enriquecida e aumentada na 2.a ed. de 1873), que constitui uma
tentativa para chegar ao criticismo através da crítica do materialismo. Com efeito,
reconhecida a tese fundamental do materialismo, isto é, a estreita conexão ida actividade
espiritual com o organismo fisiológico, é preciso ainda reconhecer, segundo Lange, que
este mesmo organismo, como todo o mundo corpóreo, do qual faz parte, só é conhecido por
nós através das imagens que produz. As conclusões. fundamentais da teoria do
conhecimento são, por conseguinte, três: "l.a -o mundo sensível é um pro-
142
duto da nossa organização. 2.1 -Os nossos órgãos visíveis (corpóreos) são, como as
restantes partes do mundo fenoménico, somente imagens de um objecto desconhecido. 3 a-
o fundamento transcendente da nossa organização é, pois, desconhecido para nós, do
mesmo modo que as coisas que actuam sobre ela. Só se nos depara o produto de dois
factores: o nosso organismo e o objecto transcendente (Gesch. des Mater., 11, 7 a ed.,
1902, p. 423). Uísto resulta que "o reduzir todo o elemento psíquico ao mecanismo do
cérebro e dos nervos (como faz o materialismo) é o caminho mais seguro para chegar a
admitir que aqui termina o horizonte do nosso saber sem alcançar o espírito em si" (Ib., p.
431). Nesse sentido é aceite a tese kantiana de que toda a realidade, apesar da sua rígida
concatenação causal, não é mais que fenómeno. A coisa em si não é mais que um conceito
limitativo, algo inteiramente problemático, que se admite corno causa dos fenómenos, mas
da qual nada se pode afirmar positivamente (Ib., p. 49). Lange crê que o verdadeiro Kant é
o da Crítica da Razão Pura e que a tentativa de Kant de sair, como fez nas outras obras, dos
limites do fenómeno para alcançar o mundo noménico é impossível, Os próprios valores
morais e estéticos têm a sua raiz no mundo dos fenómenos e carecem de significado fora
dele (1b., p. 60). Existe, certamente, um caminho para ir mais além dos fenómenos, mas
não e o do saber positivo: é o caminho da livre criação poética. O homem tem, certamente,
necessidade de completar a realidade fenoménica, com um mundo ideal criado por ele
próprio. Mas a livre criação
143
deste mundo não pode tomar a forma enganadora de uma ciência demonstrativa; e se a
toma, o materialismo ali está para destruir o valor de toda a especulação audaz e para
manter a razão dentro dos limites do que é real e demonstrável (1b., p. 45). Deste ponto de
vista, o valor da religião não consiste no seu conteúdo teórico, mas no processo espiritual
de elevação por sobre o real e na criação de ,uma pátria espiritual que ela determina.
"Acostumemo-nos - diz Lange (1b., p. 548) - a atribuir ao princípio da ideia criadora em si,
deixando de lado toda a sua conformidade com o conhecimento histórico e científico e
também toda a falsidade deste conhecimento, um valor superior àquele que se lhe tem
atribuído até agora: acostumemo-nos a ver no
mundo das ideias uma representação figurada da verdade na sua totalidade, tão
indispensável para o
144
revela nada sobre a natureza da coisa em si, mas permite afirmar a sua existência. o facto de
que a
uma sensação sucede outra (por ex., a passagem do azul ao roxo) implica uma alteração
produzida no objecto em si, ainda que não permita decidir em que consiste. A realidade do
objecto em si não é excluída pelo facto da consciência ter simplesmente uma relação com
ele. "Não contradiz nenhum conceito do nosso pensamento supor que o que se converte em
objecto, ao entrar na relação que constitui a ciência, exista também independentemente
desta relação. MaIs ainda, esta afirmação está necessariamente unida à ideia de relação: o
que não existe não pode entrar em nenhuma relação" (Des phil. Kritizismus, 11, 11, p. 142).
O objecto em
si só pode ser caracterizado dizendo-se que é aquele que fica da nossa representação total
dos fenómenos depois de ter eliminado dela todos os elementos subjectivos: este resíduo
objectivo não é mais do que a regularidade dos próprios fenómenos e, por isso, como
Helmholtz, reconhece Rielid na lei o único carácter da realidade em si (Ib., p. 173). Por
outro lado, a mesma função sintética do sujeito que unifica e ordena os dados sensíveis
deve ter a sua contrapartida objectiva na realidade. Com efeito, se não houvesse nada que
correspondesse à unidade lógica do pensamento, esta unidade seria inaplicável; por isso ela
é somente o reflexo da unidade na natureza e no pensamento (1b., 11, 1, págs. 219 e segs.;
11, R, págs. 61 e segs.). É evidente que, deste ponto de vista, a oposição entre sujeito e
obj=to perio o seu carácter originário: o eu e o não-eu só são
145
146
das doutrinas filosóficas, 1885-6; A nova monadologia (de colaboração com L. Prat), 1899;
Os dilemas da metafísica pura, 1903; História e solução dos problemas metafísicos, 1901;
O personalismo,
1901. Renouvier declara explicitamente que aspira a continuar e levar a termo a obra de
Kant, e que aceita do positivismo a redução do conhecimento às leis dos fenómenos porque
esta redução concorda com o método de Kant,(Essais, 1, 1854, págs. X-XI). Por
conseguinte, a filosofia tem por objecto estabelecer as -leis gerais e os limites do
conhecimento (Ib., p. 363); e Renouvier considera idolatria e fetichismo filosófico toda a
metafísica, descobrindo o seu princípio na distinção entre Tealidade e representação. Como
tantos outros kantianos e neo-kantianos, crê que o princípio fundamental do criticismo é a
redução de toda a realidade à representação (Ib., p. 42).
presentado como a relação comum das relações de outros fenómenos diferentes" (Ib., p.
54). Deste ponto de vista, todos os seres são "conjuntos de fenómenos unidos por funções
determinadas". Assim, a
consciência é uma função especial dos fenómenos que se manifestam nessa esfera
representada que é o indivíduo orgânico (Ib., p. 83). O saber e a ciência tendem a
estabelecer as relações entre os fenómenos e entre as leis, procurando uma síntese única
cujos limites corresponde à crítica estabelecer (1b., págs.
86 e segs.). Todo o saber se baseia, portanto, na
categoria de relação, da qual são determinações e
de se identificar com o filósofo, impedir este de lhe dedicar uma parte na obra que ela
reivindica totalmente? O objecto da crítica é precisamente estudar o eu como algo distinto
do eu e como uma entre outras coisas representadas" (Ib., p. 398).
que é dado possui, necessariamente, as determinações que fazem dele algo finito. O mundo
real é um todo finito e as teses das antinomias kantianas são verdadeiras. É necessário, pois,
admitir que o mundo é limitado, no espaço e no tempo, que a sua divislibilidade tem um
termo e que depende ele uma ou
mais causas, que não são efeitos, mas causas primeiras. "0 mundo-diz Renouvier (Ib., 1,
pág-s.
282-3) depende de uma ou mais causas que não são efeitos, mas actos antecedentes: tende
para um ou mais fins, cujos meios adquiridos não se prolongam interminavelmente no
passado nem no futuro; e e~ fins e estas causas estão n&e, de algum modo, já que todo o
devir implica força e paixão; e como
149
algo que exclui toda a pluralidade, sendo incapaz de a explicar, ou se considera como uma
verdadeira consciência, como uma força e uma paixão dirigida a outros actos e a outros
estados e, neste caso, a pluralidade, e precisamente a pluralidade das pessoas, é-lhe já
intrínseca. A hipótese da emanação coincide pois, substancialmente, com a da pluralidade
múltipla, o todo, pela única razão de que o
é, para Reinouvier, o dado originário. "Nós subsfituímos o Uno puro, ídolo dos metafísicos,
pela unidade múltipla, a todo, pela única razão de que o
mundo, actual e originariamente, é uma síntese determinada, não, uma tese **abstraci 'a"
(Essais, 1, p. 357). Renouvier sustenta que isto é tudo quanto se pode dizer sobre síntese
total do mundo e que to-aos os
suas ulteriores determinações não podem encontrar resposta, porque não têm um sentido
definível nos limites do conhecimento, humano.
Na Nova monadologia (1899) volta a propor, não obstante, tais problemas e, reafirmando
substancial-
150
mente -as teses dos Ensaios, chega a renovar a concepção cíclica do mundo tal como se
encontra nos Padres da Igreja grega, especialmente em Orígenes (§ 146). Renouvier aceita
explicitamente (Nova monad., p. 505) a tese de uma pluralidade de mundos sucessivos, nos
quais a passagem de um mundo para outro é determinada pelo uso que o homem faz da
liberdade em cada um deles; e pretende corrigir a
tese de Orígenes no sentido de que "o fim alcançado volta a unir-se com o princípio, não na
indistinção das almas mas na humanidade perfeita, que é a
Esta necessidade domina o seu conceito da história. Podem reconhecer-se na história duas
espécies de leis: em primeiro lugar as leis empíricas, estabelecidas pela observação, e
contingentes na sua aplicação; em segundo lugar, as leis a priori, que deveriam depender de
uma única dei e originar o
povos do mundo. "As leis empíricas pressupõem o livre arbítrio humano e a não
predeterminação dos grandes acontecimentos, pêlo menos do ponto de
151
moral é uma função da história, no sentido de que a própria consciência moral se formou e
desenvolveu através da história, que é a própria experiência humana no seu
desenvolvimento (Ib., págs. 551-2).
O progresso não é, pois, uma lei fatal. Considerá-lo
152
como tal significa debilitar a consciência imoral e dispor-se a declarar como necessário e
justo tudo o
153
mudado bruscamente" (Uchro-nie, 2.a ed., 1901, p. IX). Baseando-se nesta consideração,
imagina os
Imperador Carlos Magno, tivesse sido radicalmente diferente do que de facto foi. Neste
caso, a Europa encontrar-se-ia agora numa condição de paz e de justiça social. As guerras
religiosas teriam acabado e teriam conduzido à tolerância universal. Também teriam
acabado as guerras comerciais, parecendo incapazes de criar o monopólio único para que
tende a avidez de cada nação, e as guerras nacionais ou
de proeminência teriam, por seu lado, cedido o seu lugar à implantação da liberdade e da
moralidade no Estado. **Mém disso, o trabalho seria tão honrado como o exercício mais
digno da actividade humana e a obra do governo considerada como um trabalho de
interesse público dirigido para o bem comum (1b., págs. 285-6).
A utopia histórica de Renouvier parece basear-se precisamente na tese que nega: uma
profecia, tanto no que se refere ao passado como ao futuro, somente é possível se se admite
a necessidade da história. O carácter problemático da história torna indeterminadas as
relações entre os acontecimentos, e por isso não se pode encontrar nenhuma relação nas
hipóteses fictícias que se podem formular, nos
se que podem ser introduzidos na consideração dos factos. Renouvier dá-se parcialmente
conta desta dificuldade e observa no fim da obra que, admitido um desvio possível num
certo momento do curso
154
histórico, outros desvios -se apresentam noutros pontos, tornando sumamente incerta e
arbitrária a construção hipotética. Mas afirma que a sua finalidade foi eliminar a ilusão do
facto consumado, "a ilusão da necessidade preliminar devido à qual o facto realizado seria
o único, entre todos os outros imagináveis, que teria podido realmente suceder" Ub., p.
411). Dado que se trata de uma fusão, deve poder-se dissipá-la reclamando o direito de
introduzir na série efectiva dos factos da história um certo número de determinações
diferentes das que se produziram, Esta tentativa terá, em todo o caso, "obrigado o espírito a
deter-se um momento no pensamento dos possíveis que não se verificaram e elevar-se
assim mais resolutamente ao pensamento dos possíveis que estão ainda em suspenso no
mundo" (ib., p. 412). A utopia histórica, por outras palavras, é sugerida a Renouvier pela
exigência de subtrair o homem à tirania do facto e da **Ausão da necessidade. E pode
duvidar-se da eficácia da utopia, mas não do valor da exigência.
A lógica (1874) de Lolze renovou e valorizou a distinção estabelecida por Kant entre o
aspecto psicológico e o aspecto lógico-objectivo do conhecimento. Esta distinção converte-
se em característica das diversas tendências do neo-criticismo. O neo-criticismo inglês
desenvolveu-se em estreita conexão
155
a escola de Marburgo, dado que apresenta como aspecto característico uma certa tendência
para o empirismo.
de uma vasta obra intitulada A metafísica da experiência (4 vols., 1898), de outros livros e
ensaios menores (Tempo e espaço, 1865; A teoria da prática, 1870; A filosofia da reflexão,
1878; e de numerosos ensaios publicados nas actas da Aristotelian Society e no "Mind"). A
metafísica da experiência é unia análise subjectiva da experiência que tem por fim
reconhecer o significado e as condições da consciência, por um lado, e das realidades
diferentes da consciência, por outro. A análise da consciência neste sentido é, segundo
Hodgson (Met. of Exp.,
1, págs. IX-XI), a mesma que Kant tinha iniciado, mas liberta do pressuposto a que o
próprio Kant e os filósofos que dele receberam a sua inspiração o
tinham vinculado, isto é, da distinção entre sujeito e objecto, dado como verdade última
fora de discussão. A distinção entre sujeito e objecto é substituída em Hodgson pela
distinção entre o conteúdo objectivo da consciência e o facto ou o acto da sua percepção. A
análise do mais simples estado de consciência, por exemplo, de um ;som, revella
imediatamente estes dois aspectos distintos e, contudo, inseparáveis. "Designando o
conteúdo pelo qual (whatness) da percepção ou da experiência, podem chamar ao facto de
que seja percebido o seu que (thatness), isto é, a sua existência enquanto é conhecida no
presente. Nenhuma 'destas duas partes da experliência total existe separadamente da outra:
são
156
distinguíveis, inseparáveis e medidas uma pela outra" (Met. of Exp., 1, p. 60). Essência e
existência, qual o que, são os dois aspectos opostos e conexos da experiência: a existência
identifica-se com o ser percebido, conforme a fórmula de BerLdIcy esse est percipi; a
essência é o próprio conteúdo da percepção, é o qual do que existente.
Estas considerações de lIodgson, ainda que apresentadas em polémica com Kant e com os
kantianos, tendem para o mesmo objectivo das correntes do neo-criticismo contemporâneo:
o de distinguir o
conteúdo objectivo da experiência (na validade que lhe é própria) dos actos ou factos
psíquicos aos quais se apresenta unido. Hodgson distingue, com efeito, o aspecto
psicológica do conhecimento intelectual e
o seu aspecto lógico. Pode ser considerado como um processo ou facto existente e
denomina-se então pensamento, juízo ou raciocínio, e pode ser considerado como um modo
de conhecimento e é então uma forma conceptual, que utiliza conceitos tais como
condição, possibilidade, alternativa, etc. (Ib., p. 383). Do mesmo modo, a consciência (ou a
experiência na sua totalidade) pode ser considerada como uma realidade existente ou
como conhecimento; como realidade existente desenvolve-se para diante e move-se do
presente para o futuro; como conhecimento é reflexiva e do presente volta ao passado.
Por isso o problema da consciência pode ser duplo: ou é problema relativamente à essência
da consciência e corresponde à metafísica, ou é problema relativamente à existência da
consciência, isto é, relativamente às condições do seu ser de facto, e
157
Mesmo quando Hodgson parte do princípio esse est percipi, e afirma que o sentido geral da
realidade é o facto de que se dá a experiência (1b., p. 458), não se detém na tese idealista;
analisa assim a formação, no seio da experiência, de uma realidade objectiva e, também, de
unia realidade que existe independentemente de ser percebida. ou pensada (mesmo quando
não é independente do acto de pensamento que a reconhece como tal). Contudo, o "mundo
externo" de que nos fala é considerado externo unicamente em relação ao corpo, enquanto
ocupa um lugar no espaço juntamente com os outros objectos da experiência (Met. of Exp.,
1, p. 267).
De inspiração kantiana é, também, aquilo que Hodgson chama "a parte construtiva da
filosofia". A filosofia é uma análise da experiência e a experiência não pode ser
transcendida. Contudo, os seus limites e as suas lacunas fazem pensar num "mundo
invisível" do qual não temos conhecimento positivo, e de que só possuímos aquelas
características gerais que podem inferir-se das suas relações necessárias com o
Crítica da Razão Prática de Kant (1b., IV, p. 399). "Os sentimentos, cuja eleição prática é
um mandato da consciência e cujo triunfo é a convicção da fé, são conhecidos e
experimentados por nós justamente
158
como sentimentos pessoais, apenas enquanto são sentidos por certas pessoas relativamente
a outras. Mas quando pensamos que o seu triunfo se baseia providencialmente na natureza
do universo, não podemos pensar o próprio, universo senão como pessoal, apesar de esta
tentativa de realizar especulativamente o pensamento falhar necessariamente e
159
quais se desenvolve, por tais experiências, a distinção entre sujeito e objecto, a gnoseologia,
contrariamente, ocupa-se do valor ou da validade dos conceitos baseados nesta distinção; e
os seus problemas surgem do reconhecimento da antítese, da qual a psicologia traça a
formação.
própria ideia. O estado psíquico pelo qual o conteúdo é apreendido não participa dos
caracteres deste conteúdo: o acto de apreender o vermelho não é, ele próprio, vermelho,
bem como o acto de apreender um triângulo não é triangular. Nós temos consciência nos
nossos estados mentais e através deles; mas não temos consciência deles. Este segundo
princípio corta a passagem para o idealismo subjectivo, já que evita a redução do objecto
conhecido a um
Adamson não considera que a unidade da percepção seja um princípio primitivo; será antes
um
160
categorias são unicamente os modos por que o espírito organiza e acomoda as suas
experiências, modos que foram também plasmados pela experiência que organizam.
Vislumbra-se na doutrina de Adamson a tendência para o real-ismo, que devia tomar como
como uma aproximação gradual e contínua para um fim supremo, do qual seriam
realizações parciais ,todos os desenvolvimentos da realidade cósmica e humana. A noção
de fim, segundo ele, é uma categoria prática que não encontra aplicação para além dos
limites da experiência individual. Por isso, o
161
conhecimento está com a limitada porção da realidade que lhe é dada. Mas crê que o
problema da existência deste espírito não pode ser definitivamente resolvido.
estudo sobre Os conceitos de fenómeno e nómeno lia sua relação segundo Kant (escrito em
alemão e publicado na Alemanha, 1897) e de dois livros, As bases filosóficas do teísmo
(1937) e Realismo crítico 1(1938), pode considerar-se discípulo, de Adamson. Hicks toma
como ponto de partida a distinção feita já por Hodgson e Adamson, entre existência e
essência, o qual e o que; e serve-se dela para chegar à conclusão de que o objecto é apenas
uma
fase mais completa e melhor determinada do próprio conhecimento. Com efeito, a soma das
características apreendidas de um qualquer objecto (o conteúdo apreendido ou a aparência
do objecto) nunca iguala a soma das características que constituem a essência completa (ou
conteúdo) do próprio objecto. A primeira nunca pode ser considerada como realidade
existente porque é sempre uma selecção das características constitutivas do objecto. Ela é o
qual, e a
162
realidade como tal. Este conceito da realidade, considerado como termo final do processo
cognitivo (mais do que como seu ponto de partida), é o
Windelband considera a filosofia como "a ciência crítica dos valores udiversais". Os
valores universais constituem o seu objecto; o carácter crítico caracteriza o seu método. Por
esta via encaminhou Kant a filosofia. Kant foi o primeiro que distinguiu nitidamente o
processo psicológico, em conformidade com cujas leis os indivíduos, os povos e a espécie
humana alcança´m determinados conhecimentos, do valor de verdade de tais
conhecimentos. Todo o pensamento que pretende ser conhecimento contém uma ordenação
das representações, que não é só produto de associações psicológicas mas também a regra a
que deve ajustar-se o pensamento verdadeiro. Na multiplicidade de séries representativas
que se formam em cada indivíduo segundo a necessidade psicológica da associação, há
algumas que expressam esta regra, a qual lhes confere a objectividade e é, portanto, o único
objecto do conhecer. Kant destruiu definitivamente a concepção grega da alma como
espelho passivo do mundo e da verdade como cópia ou imagem de uma realidade externa.
Para Kant, o objecto do conhecimento, o que mede e determina a sua verdade, não é uma
realidade externa (que como tal seria inalcançável e inverificável), mas a regra intrínseca do
próprio conhecimento. Posto isto, a tarefa da filosofia crítica é a de interrogar-se sobre a
existência de uma ciência, um pensamento que tenha um valor absoluto e necessário de
verdade; a existência de urna moral, isto é, um querer e um agir que tenham valor absoluto
e necessário de bem;
164
e a existência de uma arte, ou seja, um intuir e um sentir que possuam valor absoluto e
necessário de beleza. Em nenhuma das suas três partes a filosofia tem como objecto próprio
os objectos particulares que constituem o material empírico do pensamento, do querer, do
sentir, mas somente as normas
às quais o pensamento, o querer e o sentir devem conformar-se para ser válidos e possuir o
valor a que aspiram.
Por outras palavras, a filosofia não, tem por objecto juízos de facto, mas juízos valorativos
(Beurteilungen), isto é, juízos do tipo "esta coisa é boa", que incluem uma referência
necessária à consciência que julga. Todo o juízo valorativo é, com efeito, a reacção de um
indivíduo dotado de vontade e sentimento ante um determinado conteúdo representativo. O
conteúdo representativo é produto da necessidade natural ou psicológica; mas a reacção
expressa no juízo que o valora pretende uma validade universal, não no sentido de que o
juízo seja reconhecido de facto por todos, mas unicamente rio sentido de que deve ser
reconhecido. Este deve possuir é uma obrigatoriedade que nada tem que ver com a
necessidade natural. "0 sol da necessidade natural afirma Windelband (Prãludien, 4.a ed.,
1911, 11, págs. 69 e segs.), resplandece por igual sobre o justo e sobre o injusto. Mas a
necessidade, que observamos, de validade das determinações lógicas, éticas e estéticas, é
uma necessidade ideal, uma necessidade que não é a do Müssen e do não-poder- ser-de-
outro-modo, mas a do Sollen e do poder-ser-de-outro-modo". Esta necessidade ideal consti-
165
tui uma consciência normativa que a consciência, empírica encontra em si e à qual deve
conformar-se. A consciência normativa não é uma realidade empírica ou de facto, mas um
ideal, e as suas leis não são leis naturais que devam necessariamente verificar-se em todos
os factos singulares, mas normas às quais devem conformar-se todas as valorações lógicas,
éticas e estéticas. A consciência normativa é um sist ema de normas que, assim como valem
objectivamente, também devem valer subjectivamente, ainda que na realidade empírica da
vida humana só em parLe. A filosofia pode também definir-se, por conseguinte, como "a
ciência da consciência normativa"; e como tal, ela própria é um conceito ideal que só se
realiza dentro de certos limites. A realização das normas na consciência empírica constitui a
liberdade, a qual se pode, por isso, definir como "a determinação da consciência empírica
por parte da consciência normativa". A religião considera a
ideal. Nisto consiste a santidade de Deus, Nisto também consiste a antinomia insolúvel da
religião. "A representação transcendente deve identificar em
166
Num ensaio de 1894, História e ciência natural, retomando e criticando a ideia exposta por
Dilthey na Introdução às ciências do espírito (1883), Windelband delineou uma teoria da
historiografia, estabelecendo a distinção entre ciências naturais e ciências do espírito. As
ciências naturais procuram descobrir a lei a que obedecem os factos e SãO, por isso,
ciências noinotéticas; as ciências do espírito, por outro lado, têm como objecto o singular
na
sua forma historicamente determinada e são, por isso, ciências ideográficas. As primeiras
têm como objectivo final o reconhecimento do universal; as segundas tendem,
contrariamente, para o reconhecimento do singular, quer seja um facto ou uma série de
factos, a vida ou a natureza de um homem ou de um povo, a natureza e o desenvolvimento
de uma língua, de uma religião, de uma ordem jurídica ou
167
dois tipos de consideração entrecruzam-se numa mesma disciplina, como sucede na ciência
da natureza orgânica, a qual tem carácter nomotético enquanto descrição sistemática e
carácter ideográfico ao considerar o desenvolvimento dos organismos sobre a
§ 728. RICKERT
Em estreita relação com Windelband está a filosofia de Heinrich Rickert (1863-1936), que
foi professor em Friburgo e Heidelberga. Os seus escritos principais são: O objecto do
conhecimento (1892); Os limites da formação dos conceitos científicos (1896-1902);
Ciências da cultura e ciências da natureza (1899); A filosofia da vida (1920), Sistema de
168
conteúdos da consciência e, por isso, a sua relação não é a que existiria entre um sujeito e
uma realidade transcendente, mas a que existe entre dois objectos ;do pensamento. Por
conseguinte, o critério e a medida da verdade do conhecimento (o seu verdadeiro objecto)
não é a realidade externa. Conhecer significa julgar, aceitar ou refutar, aprovar ou reprovar:
significa, pois, reconhecer um valor. Mas enquanto valor, que é objecto de uma valoração
sensível (por exemplo, de um sentimento de prazer), vale somente por determinado eu
individual e num momento dado, o valor que é reconhecido no juízo deve valer para todos e
em todos os tempos. O juízo que eu formulo, ainda que se refira a representações que vão e
vêm, tem um valor duradouro enquanto não puder ser diferente do que é. No momento em
que se julga, pressupõe-se algo que vale eternamente, e
esta suposição é propriedade exclusiva dos juízos lógicos. Nestes, eu sinto-me ligado por
um senti-
169
monto de evidência, determinado por uma **patéacia à qual me submeto e que reconheço
como obrigatória. Este sentimento dá ao juízo o carácter de no-, cessidade incondicionada.
Mas tal necessidade não tem nada que ver com a necessidade causal das representações: é
uma necessidade ideal, um imperativo cuja legitimidade se reconhece e é aceite
conscientemente. Neste imperativo, neste dever ser, consiste a verdade do juízo. O objecto
do conhecimento, aquilo que dá ao conhecimento o seu valor de verdade, é o dever ser, a
norma. Negar a norma
é impossível, porque significa tornar impossível qualquer juízo, inclusive o que nega. O
dever ser precede o ser. Não se pode dizer que um juízo é verdadeiro por exprimir o que é;
mas só se pode dizer que algo é se o juízo que o expressa é verdadeiro pelo seu
está 'para além do sujeito e do objecto. A filosofia deve também mostrar a relação recíproca
entre o mundo da realidade e o reino dos valores. Esta relação é o acto de valorar, que
expressa o sentido do valor e que. por isso, determina uma terceira esfera, que se situa junto
à da realidade e à dos valores: o reino do significado. O acto de valorar não tem uma
existência psíquica porque se encaminha, para além desta, para os valores; mas também não
é um valor; é um terceiro reino ao lado dos outros dois.
suprimidos e ocultos, dilui-se a mais profunda exigência dessa filosofia dos valores que
Rickert quer defender. E os sarcasmos que num escrito polémico, A filosofia da vida, dirige
a Nietzsche, Dilthey, Bergson e outros, frente aos quais afirma que a filosofia não é vida,
mas reflexão sobre a vída, dissimula mal o seu ressentimento relativamente a umponto de
vista que acentua um aspecto do homem que não encontra reconhecimento nem
**caNmento algum na **fossillização escolástica a que ele próprio reduziu o mundo dos
valores. Estes são, com efeito e antes de mais, possibilidades da existência humana e,
precisamente por isso, são ignorados ou negados por Rickert.
A parte mais interessante da sua filosofia é a que se refere à distinção entre ciências da
natureza e ciências do espírito, distinção que Rickert toma substancialmente de Windelband
e que comenta largamente na sua obra Sobre os limites da formação do conceito científico
que tem como subtítulo "Introdução lógica às ciências históricas". A distinção entre
ciências naturais e ciências históricas não se baseia no objecto, mas no método. A mesma
realidade empírica pode ser considerada, segundo um e outro ponto de vista lógico, como
natureza ou como
(Ib., p. 389). Ora, segundo Rickert, esta pretensão é antes um direito. A história não é o
fundamento possível de nenhuma "intuição do mundo" limitada ou parcial; e a filosofia tem
como única tarefa dirigir-se, seguindo os valores que a história encarna, para o intemporal e
o eterno.
A filosofia dos valores teve, na Alemanha, nos primeiros decénios deste século, numerosos
partidários, que renovaram, desenvolvendo-os em diversas direcções, os temas propostos
por Windelband e Rickert e muitas vezes influenciando-os pelos de outras correntes
contemporâneas.
Bruno Bauch (1877-1942), numa monografia sobre Kant (1917), que é a sua obra principal,
interpreta a coisa em si no sentido da filosofia dos valores como regra lógica que vale,
independentemente do nosso entendimento, para o nosso entendimento; e segue,
contrariamente, a tendência da escola de Marburgo ao eliminar o **&afismo kantiano entre
intuição e categoria e ao considerar o conhecimento como um progresso infinito do
pensamento para a determinação da experiência.
174
valores com o idealismo de Fichte. Põe como fundamento de todos os valores uma
actividade livre, um super-eu ou eu universal do qual cada eu singular é uma parte. Esta
actividade, de cunho fichteano, encontra a sua expressão originária no valor religioso, isto
é, na santidade, à qual se reduzem, portanto, todos os outros valores. Estes são agrupados
em duas grandes classes: valores imediatos ou vitais e valores criados ou culturais. Cada
uma destas classes divide-se numa esfera tripla: o mundo externo dos objectos, o mundo
dos sujeitos e o
mundo interno. Em cada uma destas classes de valores, Münsierberg estabelece divisões e
subdivisões, até apresentar um quadro escolástico exaustivo de todos os valores possíveis.
Mas nesta sistematização de Münsterberg, assim como na de Rickert, a filosofia dos valores
revela claramente o seu carácter pesado e dogmático: os problemas são, não resolvidos,
mas simplesmente eliminados com a
Em Itália, foi seguida uma direcção semelhante por Guido Della Vafle (1884-1962) que
utilizou a
filosofia dos valores como fundamento de uma teoria da educação (Teoria geral e formal do
valor como fundamento de uma pedagogia filosófica. As premissas da axiologia pura,
1916; A pedagogia realista como teoria da eficiência, 1924).
175
Teve, pelo contrário, um êxito decididamente teológico na filosofia dos valores. o trabalho
do americano Wilbur Marshall Urban (1873-1952) que se inspirou principalmente em
Rickert (caloração, a sua natureza e as suas leis, 1909; O fundo inteligível, 1929;
Humanidade e divindade, 1951).
filósofos da escola de Marburgo são levados a integrar Kant com Platão, que viu na ideia
pura o
176
mais universal e fundamental é o juízo de origem. * este juízo se deve que -alguma coisa
seja dada. * "dado" não é um material bruto oferecido ao pensamento mas, como se torna
nítido nas matemáticas, é o que o próprio pensamento pode encontrar. Um dado é, neste
sentido, o sinal x das matemáticas, que significa não a indeterminação mas a
179
fundamental. "Sem a unidade do objecto, afirma Cohen (1b., p. 339), não há unidade da
natureza. Mas o objecto tem a sua unidade não na causalidade, mas no sistema. Portanto, a
categoria do sistema, como a categoria do objecto, é a categoria da natureza. Por isso
determina o conceito do objecto como objecto da ciência matemática da natureza". O
conceito não é nunca uma totalidade absoluta, mas somente o princípio de uma série
infinita que avança de termo a termo.
categoria que torna possível unir o caso individual e o universal na lei científica e é, por
isso. o fundamento da dedução e do procedimento silogístico (1b., págs. 256 e segs.). Ã
dedução reduz-se também a indução, a qual não é mais do que uma dedução d'isjunti-va.
No âmbito desta categoria encontram-se os fundamentos da ló gica do raciocínio, em que
termina e culmina a lógica do juízo.
volveu-se como uma duplicação da própria ciência, duplicação que pretende fundar as
bases da mesma, mas que não consegue mais do que torná-las rígidas, eliminando aquele
carácter funcional e operativo que as torna instrumentos prontos e eficazes da investigação
científica. Reduzindo o seu conhecimento ao seu conteúdo objectivo, a indagação sobre a
ciência converte-se em investigação sobre conteúdos objectivos da ciência; mas esta
indagação não pode ter a pretensão, que conserva em Cohen, de fundar a validade de tais
conteúdos de uma maneira diferente da que a ciência utiliza operatoriamente e, por assim
dizer, caminhando. Pode dizer-se, pois, que a lição confiada implicitamente no princípio de
Cohen foi mais efiicazmente realizada pelas correntes metodológicas, que evitam
hipostasiar os resultados
Juntamente com a lógica, Cohen admite, como ciências filosóficas, a ética e a estética,
entendidas respectivamente como "ciência do querer puro" e
"ciência do sentimento puro". Mas, neste terreno, a obra de Cohen é muito mais débil e
menos original que no da lógica.
O objecto da ética é o dever ser (Sollen) ou ideia: e a -Ideia não é mais do que "a regra do
uso prático da razão". "Sóra-ente no dever ser consiste o querer. Sem dever ser não há
querer, mas unicamente desejo. Através do dever ser a vontade realiza e conquista um
autêntico sem (Ethik, 2.a ed.,
1907, p. 27). A ética é uma ciência pura, precisa-
181
lei de unidade. A acção a que ele obriga é a unidade de acção; e na unidade de acção
consiste a
unidade do homem (1b., p. 80). Mas o homem não é unidade, isto é, individualidade e
pessoa, no seu isolamento, mas apenas como membro de uma pluralidade de indivíduos, e
toda a pluralidade pressupõe, finalmente, uma totalidade. Por seu lado, toda a totalidade
tem graus diversos até à sua verdadeira unidade, que é a humanidade no seu conjunto, na
qual apenas o homem individual encontra a sua realização. Cohen insiste, por isso, na
fórmula do imperativo categórico de Kant, que prescreve a cada um tratar a humanidade,
tanto nas outras pessoas como em nós mesmos, sempre como um fim, nunca como um
meio. O sistema dos fins é o objectivo final do dever ser moral e, neste sistema dos fins,
Cohen vê a ideia do socialismo, a qual exige, precisamente, que o homem valha como fim
para si mesmo e seja reconhecido na liberdade e dignidade da sua pessoa. "Como se
concilia -pergunta Cohen (Ib., 2.a ed., 1907, p. 322)-a dignidade da pessoa com o facto de
que o valor do trabalho seja determinado no mercado como o de uma mercadoria? Este é o
grande problema da política moderna e, por isso, também da ética moderna". Contudo,
Cohen é contrário ao
182
moral implícita -no aperfeiçoamento progressivo da humanidade como tal, perante o qual
devem inclinar-se as formas do direito e do estado.
valor eterno.
A religião não ;tem lugar no sistema de Cohen. Enquanto :aplica a Deus o conceito de
pessoa, a
conceito e a sua existência significam somente que não é uma ilusão crer, pensar e conhecer
a unidade dos homens. Deus proclamou-a, Deus garante-a; à parte isto, Deus não explica
nada nem significa nada. Os atributos, em que consiste a sua essência, não são propriedade
da sua natureza, mas antes as direcções nas quais se irradia toda a sua relação com os
homens e nos homens" (Ethik, p. 55). Deus é, pois, um simples conceito moral; e, na moral,
a religião encontra a sua única justificação possível, Quando, em troca, atribui a Deus
características (como as
de vida, espírito, pessoa, ete), que a moral não justifica, desemboca fatalmente no mito.
183
mais importante dos quais versa sobre Platão: A doutrina platónica das ideias (1903).
Natorp recolhe e justifica historicamente nesta obra a interpretação de Platão exposta
esporádica e ocasionalmente nas obras de Cohen. Esta interpretação é a antítese da
tradicional, iniciada por Aristóteles, segundo a qual o mundo das ideias é um mundo de
objectos dados, de super-coisas, análogas e correspondentes às coisas sensíveis. Neste
sentido, as ideias não são objectos mas 1&s e métodos do conhecimento. Com efeito, são
concebidas por Platão como objectos do pensamento puro, e o pensamento puro não pode
impor uma realidade existente, ainda que absoluta, mas
fundamentos da ciência. "A ideia expressa o fim, o ponto infinitamente afastado, ao qual
conduzem os caminhos da experiência; são, por isso, as leis do procedimento científico"
(Matos Ideenlehre, págs.
215, 216). A "participação" dos fenómenos no mundo ideal significa que os fenómenos são
graus de desenvolvimento dos métodos ou procedimentos que são as ideias. E que as ideias
sejam arquétipos dessas imagens que são as coisas, significa somente que o
184
NATORP
legalidade do pensamento puro (Ib., p. 1). Natorp põe, por isso mesmo, como subtítulo da
sua monografia platónica o de "Guia para o idealismo", entendendo por idealismo (do
mesmo modo que Coheri) o seu neo-criticismo objectivista.
A principal obra de Natorp é a que versa sobre os Fundamentos lógicos das ciências exactas
(1910), cujos resultados são recapitulados na breve, mas completa, apresentação da sua
doutrina, intitulada Filosofia (1911). Dedicou, porém, uma grande parte da sua actividade à
psicologia e à pedagogia (Pedagogia social, 1899; Pedagogia geral, 1905; Filosofia e
pedagogia, 1909; Ensaios de pedagogia social, 1907; Psicologia geral, 1912). Natorp foi,
como Cohen, defensor de um socialismo não materialista (Idealismo social, 1920); e
também, como Cohen, da superioridade e primado espiritual do povo alemão (A hora dos
alemães, 1915; Guerra e paz, 1916; A missão mundial dos alemães, 1918).
Segundo Nalorp, "a ciência não é mais do que a consciência no ponto mais elevado da sua
clareza e determinação. O que não pudesse elevar-,se ao nível da ciência seria apenas uma
consciência obscura e, por conseguinte, não uma consciência no pleno sentido da palavra,
se é que consciência significa clareza e -não obscuridade" (Phil. und Pãd., 2.a ed
1923, p. 20). A filosofia é também conhecimento; mas conhecimento que não se dirige ao
objecto, mas sim a unidade do próprio conhecimento. O objecto do conhecimento é
inesgotável e o conhecimento pode aproximar-se mais ou menos dele, mas nunca o alcança.
Todo o conhecimento é um pro-
185
cesso infinito, mas é um processo que não está privado de lei nem de direcção. Se o objecto
do conhecimento é o ser, é preciso dizer que só no
é o eterno x (o que deve ser conhecido) que cada passo do conhecimento determinar
melhor; mas o
Também Natorp, divide a filosofia em lógica, ética e estética. A lógica considera o método
do conhecimento tal como está em acto nas ciências exactas, isto é, na matemática e nas
ciências matemáticas da natureza. Matemática e lógica são substancialmente** Uônticas.
"A matemática versa sobre o desenvolvimento da lógica; em particular, sobre a
ló-ica deve ser reconduzida" (Phil., 3 a ed., 1921, p. 41). Esta unidade central da lógica é o
pensamento, como criação ou processo vivente. A forma originária do juízo, na qual o
pensamento se expressa, não é A=A, mas XA, onde X representa um problema, uma
indeterminação, que o pensamento procura resolver numa certa direcção. Esta resolução é
um processo de separação e unificação, no qual as variantes não são dadas (como
acreditava Kant) mas, são consideradas pelo pensamento juntamente com a característica
que lhes é comum.
186
Mas com isto o dado torna-se o "dever ser" da experiência e situa-se no próprio coração da
lógica. "0 dever ser, afirma Natorp, mostra-se como o mais profundo fundamento de toda a
validade de ser que seja própria da experiência. A lei do dever ser deve ser considerada em
função do progresso infinito da experiência. Assim, encontramo-nos lançados na
187
não fiquemos parados num determinado estádio dela, que não nos detenhamos aí, mas que
avancemos sempre" (Ib., p. 71). A ética é precisamente a ciência deste dever ser, o qual,
enquanto lei -da vontade, prescreve o progresso para uma comunidade total e
mesmo conteúdo objectivo das três ciências filosóficas (!lógica, ética e estética) mas vivido
sob a forma de subjectividade, isto é, da intimidade espiritual. Apesar disso, a religião faz
desta subjectividade um
188
§ 732. CASSIRER
A escola de Marburgo influiu eficazmente sobre a filosofia alemã dos primeiros decénios
deste século; as ressonâncias do seu princípio fundamental (redução do conhecimento a
objectiVidade pensável) notam-se também em orientações filosóficas diversas: na filosofia
dos valores, na fenomenologia e em certas formas de realismo (como a teoria dos objectos).
A interpretação ética do socialismo, proposta por Cohen e Natorp, encontrou também
numerosos continuadores; entre outros, Karl Vorlânder, autor de um estudo comparativo de
Kant e-Marx, e Eduard Bernstein, discípulo de Marx, autor de uma obra intitulada Sobre a
história e a teoria do socialismo (1901).
189
origens dos objectos da ciência ou das outras actividades humanas nas estruturas que
garantem a valida-de de tais objectos.
Em primeiro lugar essas estruturas são funções e não substâncias. Na sua obra intitulada
Conceito de substância e conceito de função, Cassirer estabelece uma posição entre os dois
conceitos e nota como a ciência tinha abandonado, a partir dos Princípios da mecânica
(1894) de Hertz, o conceito de substância e, simultaneamente, a noção da ciência como
190
instrumento que está na origem da validade de tais formas, ou seja, a linguagem. Deste
ponto de vista, a linguagem não é apenas, nem principalmente, um
viva da lei que governa uma sucessão concreta de imagens intuitivas. O significado de um
conceito já não adere a um substracto intuitivo, a um datum ou dabile, sendo pelo contrário
uma bem definida estrutura relacional adentro de um sistema de juízos e de verdades" (Ib.,
111, 111, cap. 11).
Quando Cassirer tenta resumir numa definição do homem os resultados das suas
investigações sobre o
mundo humano, afirma que o homem é um animal simbólico, isto é, falante. "A razão,
afirma, é um termo assaz inadequado para compreender todas as
formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. Mas todas estas
formas são simbólicas. Por consequência, em vez de definir o homem como animal
rationale, podemos defini-lo como animal symbolicum. Fazendo assim. indicamos aquilo
que especificamente o distingue e podemos percorrer a nova estrada que se abre ao homem,
a estrada para a civilização" (Essay on Man, cap.
11). O campo específico da actividade humana, aquele campo onde o homem manifesta de
forma evidente a sua liberdade de iniciativa e a sua responsabilidade, ou seja, a história, é
ele mesmo, segundo Cassirer, condicionado pela expressão simbólica. De facto, não é
possível fazer história sem
193
disse sobre a "compreensão" dos factos, das personalidades e das instituições históricas,
exprime precisamente a exigência de referir factos, personalidades ou instituições a uma
interpretação que lhes revela o seu verdadeiro significado. Com efeito, um facto não é
histórico se não tiver um significado. "0 suicídio de Catão não foi apenas um acto físico; foi
um acto simbólico. Foi a expressão de um
grande carácter; foi o último protesto do espírito republicano romano contra uma nova
ordem das coisas" (Ib., cap. X). Também a história é uma "forma simbólica".
§ 733. BRUNSCHVIEG
o seu significado primordial. É também autor de estudos históricos sobre Espinosa (1894) e
Pascal (1932), e expressou pela primeira vez os seus pontos de vista fundamentais num
livro intitulado A modalidade do juízo (1897).
195
produz o saber científico e as outras manifestações humanas (arte, moral, religião), com o
princípio crítico, que reflecte sobre estas produções espirituais. A redução total do espírito,
em todas as suas manifestações, à reflexão crítica, é o fim que Brunschvicg tenta atingir em
todos os campos, procurando demonstrar que é própria do desenvolvimento histórico do
saber do mundo humano em geral.
É evidente que este ponto de vista exclui todo o realismo, qualquer afirmação de unia
realidade em si que não se reduza ao objecto considerado ou
196
produzido pelo acto de entender. Exclui, pois, uma realidade empírica independente do
pensamento reflexivo. Mas não reconhece à razão a liberdade absoluta de mover-se e
produzir sem limites nem disciplina. Contrariamente à imaginação criadora do artista ou do
poeta, a razão está submetida à prova dos factos e à sua obscura oposição: encontra, a
197
produz o saber científico e as outras manifestações humanas (arte, moral, religião), com o
princípio crítico, que reflecte sobre estas produções espirituais. A redução total do espírito,
em todas as suas manifestações, à reflexão crítica, é o fim que Brunschvieg tenta atingir em
todos os campos, procurando demonstrar que é própria do desenvolvimento histórico do
saber do mundo humano em geral.
É evidente que este ponto de vista exclui todo o realismo, qualquer afirmação de uma
realidade em
196
produzido pelo acto de entender. Exclui, pois, uma realidade empírica independente do
pensamento reflexivo. Mas não reconhece à razão a liberdade absoluta de mover-se e
produzir sem limites nem disciplina. Contrariamente à imaginação criadora do artista ou do
poeta, a razão está submetida à prova dos factos e à sua obscura oposição: encontra, a
197
escala de valores fixos, e cede ao homem a liberdade do seu futuro (1b., p. 726). O espírito
humano cria os valores morais, como cria os científicos e os estéticos. "Em todos os
domínios, os heróis da vida espiritual são aqueles que, sem referir-se a modelos superados,
a precedentes já anacrónicos, lançaram à sua frente as **"bas da inteligência e verdade
destinadas a criar o universo moral, do mesmo modo que criaram o universo material da
gravitação e da electricidade" (Ib., p. 744). Do mesmo modo que a
para introduzir assim na raiz da nossa vontade unia condição de reciprocidade, que é a regra
da justiça e o fundamento do amor (Ib., págs. 11, 12).
198
supremo que é verdade e amor e não pode estar revestido de nenhum outro atributo (De Ia
connaissance de soi, p. 190). Brunschvicg, que chama também humanismo à sua doutrina,
afirma a total imanência de Deus no mundo e precisamente no esforço da reflexão humana.
"Um Deus está presente em
todo o esforço de coordenação racional, em virtude do qual o espírito une a mínima parte
do ser, o
verdade. Não é alguém que façamos entrar no círculo dos nossos afectos, que converse
connosco no decurso de um diálogo, no qual, quaisquer que sejam a sua altura e a sua
beleza, é certo que só o
199
mundo humano, é concebida por ele como actividade espontânea e em certa medida
criadora, de acordo com o modelo do impulso vital de Bergson.
O tom da filosofia de Brunschvicg é decididamente optimista: o progresso é a lei do
desenvolvimento da actividade crítico-racional; e todo o futuro da história humana é o
progressivo prevalecer desta actividade.
§ 734. BANFI
200
BRUNSCI1VICG
com o psicologismo, o juízo é uma relação entre duas ideias, entre dois elementos de
consciência, para BanE ele é uma relação objectiva, uma "relação essencial" entre os seus
termos, relação e que pertence
201
mundo diverso e vivo da arte, se não se quer prender à vida interior que se encontra, em
todos os seus aspectos, em profunda tensão... deve ser concebida em função das leis a priori
que constituem
O seu princípio de autonomia estética, e segundo as
202
tese típica do marxismo segundo a qual a filosofia deve transformar o mundo em vez de se
limitar a interpretá-lo. O materialismo dialéctico aparece agora a Banfi como o instrumento
conceptual de uma razão concreta e histórica. Com efeito ele elimina do conhecer, em
primeiro lugar, o momento mítico, dogmático ou abstractamente valorativo e
tende por isso a garantir "o desenvolvimento infinito e a articulação aberta do saber". E em
segundo lugar elimina a sabedoria abstracta e reconhece à acção uma função construtiva e
criadora sendo, nesse sentido, um "humanismo histórico", isto é, a realização de uma nova
humanidade de acordo com a
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 723. Sobre Liebmann: "Kantstudien", 17, 1910, fascículo de estudos, de vários autores,
que lhe são dedicados.
203
De Helmholtz, adém dos escritos citados: Vortrãge und Reden, 5.a ed., Braunschweig,
1903; Schriften zur Erkenntnisstheorie, ed. por P. Hertz e M. Schlick, Berlim, 1921.
Sobre Lange: H. VAMINGER, Hartmann, DOring und Lange, Iserlohn, 1876; E. von
HARTMANN, NeUkantianismus, jgchopenhauerianismus und Hegelianismus in ihrer
Stellung zu den philosophischen Aufgaben der Gegenwart, Berlim, 1877; H. COMN, em
"Preussische Jahrbücher", 1876; S. H. BRAUN, F. A. L. aIs Sozia10konom., Halle, 1881.
§ 724. De Renouvier, além dos ;escritos cit.: Correspondance de R. et Secrétan, Paris, 1910;
La recherche dlune première vérité (fragmentos póstumos), Paris, 1924.
204
§ 726. Sobre Hodgson: H. WILDON CARR, em "Mind", N. S., VIIII, 1899; ld., em
"Mind", 1912; J. S. MACKENZIE, em "International Journal of Ethics", 1899; DE
SARLO, em "Riv. Fil.", 1900; L. DAURIAC, em "L'Année Philosophique", 1901. ,Sobre
Adamson: H. JONES, em "Mind", N. S., XI,
1902; G. DAWES HICKS, em "Mind", N. S., XIII, 1904; Id., Critical Realism, em "Studies
in the Phil. of Mind and Nature", Londres, 1938.
De Dawes Hicks: Critical Realism, em "Studies in the Phil. of Mind and Nature", Londres,
1938.
205
§ 732. De Cassirer, além dos escritos citados no texto: Determinismus und Indeterminismus
in der modernen PhysiL-, Gõteborg, 1936; Zur Logik der Kulturwissenschaften, Gõteborg,
1942; The Philos. of E. C., dirigido por P. A. SchiIpp, Evam ton, 1949 (com bibliografia).
§ 733. De Brunschvieg, além dos já citados no texto: Introduction à Ia vie de l'esprit, Paris,
1900; Llidéalisme contemporain, 2.a ed., Paris 1921; Nature et liberté, Paris, 1921; e ainda
artigos no "Bulletin de Ia Soe. franç. de phil.", 1903, 1910, 1913, 1921,
19231 1930 e em "Revue de Métaph. et de Morale",
1908, 1920, 1923, 1924, 1925, 1927 e 1930.
§ 734. De Banfi: existe uma edição completa das suas obras, em italiano, pela Ed. Parenti
de Florença.
206
VII
O HISTORICISMO
§ 735. A FILOSOFIA E O MUNDO HISTóRICO
Pode-se designar pelo nome de historicismo toda a filosofia que reconheça, como sua tarefa
exclusiva ou fundamental, a determinação da natureza e da validade dos instrumentos do
saber histórico. O historicismo não é, ou pelo menos não pretende ser exclusivamente uma
metafísica ou uma teologia da história, uma sua visão ou interpretação global que pode
obter-se mesmo prescindindo das limitações do saber histórico de que o homem dispõe e
dos meios através dos quais o conseguiu. Se o termo fosse compreendido deste modo, ele
seria inadequado para designar uma corrente específica da filosofia contemporânea porque
se prestaria igualmente a designar quaisquer concepções do mundo histórico, ou como tal
quali-
207
2.0-0 historicismo supõe que os instrumentos do conhecimento histórico são, pela sua
natureza ou, quanto mais não seja, pela sua modalidade, diferentes dos utilizados pelo
conhecimento natural. Surge aqui, a propósito do conhecimento histórico,
de orientação na variabilidade dos eventos históricos. Introduz-se assim uma teoria dos
valores como parte integrante das filosofias historicistas.
O historicismo apresenta-se com estas características na corrente da filosofia alemã que vai
de Dilthey a Weber e que encontra neste último a sua
resultados por ela conseguidos. A definição que Croce deu da filosofia como "metodologia
da historiografia" presta-se bem a exprimir a natureza do historicismo. Mas a tese de Croce
de que toda a realidade é história e nada mais do que história elimina os
209
Romantismo (Experiência vivida e poesia, 1905), e, ainda, sobre estética moderna ( As três
etapas da estética moderna, 1892). Enquanto nestes e em outros
e no espírito (póstumo).
210
Os últimos escritos ou, melhor dizendo, os posteriores a 1905, são os mais importantes
visto conterem a expressão mais amadurecida do pensamento de Dflthey.
riência externa, mas sim através da experiência interna, a única pela qual o homem se
apreende a
si mesmo. Dilthey chama Erlebenis a esta experiência, e considera-a como a fonte donde o
mundo externo retira "a sua origem autónoma e o seu material" (Gesammelte Schriften, 1,
p. 9). Erlebenis significa "experiência vivente" ou "vivida" e distingue-se, por exemplo, da
"reflexão" -de Locke porque tem não só o carácter de uma representação mas, também, o
do sentimento e da vontade. Isto constitui a quarta distinção fundamental entre ciência da
natureza e
No entanto, esta diferença entre os objectos de cada um dos dois grupos de ciências não se
baseia, segundo Dilthey, numa diversidade metafísica ou de substância que lhes seja
inerente. Também não é redutível, como queria Windelband, a uma simples diferença de
método, terá antes a sua raiz numa diversidade de atitude, ou seja, na diversidade de
relações que o homem vem a estabelecer entre si e o objecto de cada um dos dois grupos de
investigação. Nas ciências naturais o homem tenta construir uma totalidade a partir de uma
pluralidade de elementos separados, enquanto que nas ciências do espírito parte da relação
imediata que existe com o objecto. É por isso que o ideal das ciências da natureza é a
conceitualidade e o das ciências do espírito é a
212
individualidade; mas, como a individualidade não pode ser atingida a não ser através de um
conjunto complexo de actos generalizantes, ela apresenta-se, nas ciências do espírito, sob a
forma de tipo. No Contributo ao estudo da individualidade, Dilthey considera o tipo como
sendo o termo médio entre a uniformidade e o indivíduo, isto é, como um conjunto de
caracteres constantes que têm relações funcionais um com o outro, que variam
correlativamente e que se acompanham constantemente (1b., V, p. 270).
O tipo é, segundo Dilthey, o objecto específico da poesia e, em geral, da arte, que ele
considera, por isso, um "órgão da compreensão da vida" Qb., p.
274); e esta noção serve-lhe para definir a tarefa das ciências do espírito como sendo a "de
unir num sistema a constatação do elemento comum num
Todas as análises de Dilthey, que nos seus escritos revia sistematicamente as suas posições,
a fim de aclarar e determinar (nem sempre com sucesso)
213
ponto de partida ou fundamento. Dado que a experiência vivida é, enquanto tal, subjectiva,
íntima e
esforços no sentido de encontrar as relações entre ela e os elementos que possam tornar
possível e que justifiquem a objectivação e a comunicação dessa experiência vivida. Nos
Estudos sobre os fundamentos das ciências do espírito e na Construção do mundo histórico
Dilthey viu na expressão e no
"processo em que, de forma externa, reconhecemos algo interno" (Ges. Schrift., VII, p.
309). O homem deixa de estar isolado, a sua vida deixa de estar fechada na intimidade do
seu ou, pois encontra em si mesma uma existência autónoma e um desenvolvimento
próprio. As relações com a natureza externa e com os outros homens pertencem à sua vida
e encontram o seu órgão fundamental no compreender. O compreender é, deste ponto de
vista, o reviver e o reproduzir a experiência doutrem: é assim possível um sentir em
conjunto com os outros e um
214
participar das suas emoções (1b., VII, p. 205). No compreender realiza-se pois a unidade do
sujeito e
do objecto que é característica das ciências do espírito. "0 compreender, afirma Dilthey, é o
reencontro do eu no tu; mas o espírito atinge graus sempre superiores de conexão, e esta
identidade do espírito no eu, no tu, num qualquer sujeito de uma comunidade, em qualquer
sistema de cultura e, finalmente, na totalidade do espírito e na história universal, torna
possível a colaboração das diversas operações nas
ciências do espírito. O sujeito do saber é aqui idêntico ao seu objecto e este é o mesmo em
todos os graus da sua objectivação" (Ib., p. 191).
categorias da razão histórica. Tais categorias não são formas a priori do intelecto;
constituem antes os modos de apreensão do mundo histórico e também as estruturas
fundamentais desse mundo. O seu significado objectivo é, porém, o mais relevante, já que
não pode ser esclarecido senão através de uma análise do mundo histórico.
A primeira categoria do mundo histórico, sobre a qual se baseiam todas as outras, é a vida.
A vida não é, para Dilthey, nem uma noção biológica nem
hegelianos, espírito objectivo. Mas o espírito objectivo, que para Hegel era a própria razão
tornada instituição ou sistema social, é para Dilthey apenas o conjunto das manifestações
em que a vida se objectivou no decurso do sou desenvolvimento e que acompanham este
desenvolvimento. Afirma Dilthey: "Tudo sai da actividade espiritual e adquire portanto o
carácter de historicidade, inserindo-se, como produto da história, no próprio mundo
sensível. Desde a distribuição das árvores num parque ou das casas numa estrada, desde os
instrumentos do trabalhador manual até às sentenças de um tribunal, tudo está à nossa volta,
em qualquer altura, surgindo historicamente. O espírito, hoje, introduz-se nas próprias
manifestações da vida e, amanhã, faz a sua
história. Enquanto o tempo passa, nós continuamos rodeados pelas ruínas de Roma, pelas
catedrais, pelos castelos. A história não está separada da vida, não se distingue do presente
pela sua distância temporal" (Ges. Schrilt. VII, p. 148).
DILTHEY
seu significado. O significado de uma estrutura qualquer pode por isso ser determinado a
partir dos valores e dos fins em que ela se centra.
Segundo Dilthey, a época histórica possui em alto grau esta característica de auto-
centralidade. "Toda a
época é determinada de uma forma intrínseca pelo sentido da vida, do mundo sentimental,
da elaboração dos valores e das respectivas representações ideais dos fins. É histórico todo
o agir que se insira neste sentido: ele constitui o horizonte da época e
217
que se possam encontrar na história" (Ib., p. 186). Não existe porém um determinismo
rigoroso no que respeita à natureza e ao comportamento dos indivíduos que pertencem a
determinada época histórica; em todas as épocas se podem encontrar forças contrárias às
que constituem a estrutura dominante. Cada época implica uma referência à época
precedente, da qual recebe os efeitos nas suas forças activas e implica, desse modo, o
esforço criador que prepara a época seguinte. "Assim como ela se originou pela
insuficiência da época precedente, do mesmo modo leva consigo os limites, os desacordos e
as dores que preparam a época futura". O florescimento de uma época é breve; e de uma
época a
outra vai-se transmitindo "a sede de uma satisfação total, que nunca pode ser saciada" (Ib.,
p. 187).
A esta sucessão das épocas não preside, segundo Dilthey, nenhum princípio infinito ou
providencial. Dilthey pensa que "toda a forma da vida histórica é finita" e que, portanto,
não é possível o recurso
218
todas as filosofias "traços de natureza formal" que são essencialmente dois: toda a filosofia
se baseia, em primeiro lugar, na totalidade da consciência e
filosofia tenta alcançar uma validade universal. Devido à primeira característica, a filosofia
é uma intuição do mundo e apresenta, portanto, uma forma fundamental comum com a
religião e a arte. De facto, em cada momento da nossa existência está implícita uma relação
da nossa vida singular com o
mundo que nos rodeia como uma totalidade intuída. A intuição filosófica do mundo
distingue-se da religiosa pela sua validade universal e da artística por
ser uma força que quer reformar a vida (Das Wesen der Phil., em Ges. Schrift., V, p. 400).
Quando a
219
nas diferenças decisivas das várias intuições do mundo. Estes tipos são três:
homem e o mundo; mas não é possível uma relação total que resulte do conjunto destas três
categorias. Isto significa que a metafísica é impossível: deverá, com efeito, tentar unir
ilusoriamente tais categorias ou mutilar a nossa relação vivida com o mundo, reduzindo-a a
uma só delas. A metafísica é impossível mesmo no âmbito de cada um dos três tipos
fundamentais, já que não é possível determinar a unidade última da ordem causal
(positivismo), nem o valor incondicionado (idealismo objectivo), nem o fim absoluto
(idealismo subjectivo). Contudo, a última palavra não é a relatividade das intuições do
mundo mas a soberania do espírito frente a todas elas e, ao mesmo tempo, a consciência
positiva de que na sua
única realidade do mundo (Ib., p. 406). O carácter mais universal da filosofia consiste na
natureza da compreensão objectiva e do pensamento conceptual, no qual se baseia. O
proceder do pensamento expressa a necessidade da natureza humana de estabelecer
solidamente a posição do homem frente ao
221
mundo, o esforço por romper os laços que prendem a vida às suas condições limitadoras.
Este esforço constitui a função universal da filosofia e a última unidade de todas as suas
manifestações históricas.
§ 739. SIMMEL
222
Se bem que a filosofia de Siminel se oriente para o relativismo, ela começou por defender
algumas exigências da escola de Baden, em primeiro lugar a de reconhecer ao valor ou
dever ser uni status independente das situações históricas. Assim, na Introdução à ciência
moral, Simmel afirma que o
dever ser é uma "categoria natural do pensamento", do mesmo modo que o ser,
reconhecendo depois que ele age e vive somente na consciência empírica do homem e em
relação com o conteúdo psicológico dela. E nos Problemas fundamentais, da filosofia,
juntamente com o sujeito e o objecto, considerados nas suas relações funcionais, Simmel
reconhece a
223
Por se preocupar com o problema da história, Simmel. é levado a pô-lo em termos análogos
aos utilizados por Kant ao considerar o problema da natureza: trata-se agora de determinar
a possibilidade da história, do mesmo modo que Kant determinou a possibilidade da
natureza. Mas a solução dada por Simmel é completamente diferente da de Kant. A
possibilidade da história não reside em condições a
material historiográfico e o constituem numa imagem que não é de modo algum a cópia dos
dados em que se baseia, são eles próprios empíricos e pertencem à experiência psicológica,
pelo que "a psicologia é o a priori da ciência histórica" (Die Probleme der
Geschichtesphilosophie, p. 33). Como condições psicológicas, as categorias da investigação
histórica podem modificar-se, e modificam-se, com o desenvolvimento histórico; e, assim,
acontece que a realidade histórica pode ser interpretada segundo diversas categorias e dar
lugar a diversas representações historiográficas. Não são portanto, no sentido próprio, leis
da realidade histórica. O reagrupamento dos factos segundo um determinado conceito não
vale como lei determinante que supõe a acção de factores objectivos constantes (Ib., p. 91).
Deste ponto de vista, não se pode pôr o problema do significado total da história e toda a
sua solução é reenviada para o domínio da fé (Ib., págs. 72 e segs.). Analogamente, a
sociologia não pode ter a pretensão de esclarecer a natureza e o significado da sociedade
como um todo; ela tem simplesmente como objecto
-9 2 4
Num artigo de 1895, ao polemizar contra a noção de verdade absoluta, Simmel chega a
reconhecer o carácter pragmático da própria verdade. Se, de facto, negarmos o valor
absoluto da verdade, não poderemos aplicar-lhe outro critério senão o da sua utilidade, ou
seja, o da sua coerência com a prática, e nesse caso a verdade é o resultado da selecção
biológica e identifica-se com a própria finalidade da espécie humana. Estes conceitos
orientam a sua ulterior actividade para uma metafísica da vida. Deste ponto de vista, a
filosofia não é uma ciência objectiva mas "a reacção do homem à totalidade do sem.
É assim que ela aparece definida nos Problemas, fundamentais da filosofia. O que a impede
de reduzir-se
a uma opinião do sujeito individual é a sua tipologia, ou seja, o facto de ela não exprimir o
indivíduo mas antes a espiritualidade típica: a qual garante uma possibilidade de
comunicação entre os indivíduos que filosofam, mas não a concordância das suas filosofias.
As análises históricas de Simmel tendem precisamente a caracterizar algumas destas
espiritualidades típicas; é assim que ele vê em Schopenhauer e Nietzsche dois tipos opostos
e inconciliáveis de filosofia: a negação do valor da vida e a afirmação do seu valor para
além de qualquer pri-
225
vação ou dor. Mas deste ponto de vista a vida torna-se o verdadeiro e único sujeito da
história e -a
única substância das coisas: uma realidade metafísica. Mais do que para Dilthey, que
considerara a vida apenas enquanto situação do homem no
mundo, esta noção remete talvez para Bergson. Simmel entende a vida no sentido da
duração real de Bergson. (§ 693), ou seja, como continuidade em que o presente inclui o
passado e não como sucessão de estados diferentes ou diferenciáveis. Neste sentido a vida é
o próprio tempo concreto, enquanto que o
226
ideal (valor, dever ser, forma, mundo histórico) parece ter sido o tema constante da filosofia
de Simmel.
§ 740. SPENGLER
técnica (1931); Anos de decisão (1933). Estes escritos defendiam, contra o liberalismo, a
democracia e o capitalismo, um ideal político semelhante ao do nazismo: um estado
autoritário baseado no poder militar e numa classe trabalhadora disciplinada e
privada de influência política. Este ideal era apresentado como sendo o conveniente para a
"Europa" e, em geral, para a "raça branca"; mas o instrumento da sua realização deveria ser
a Alemanha.
Spengler imobiliza numa dualidade metafísica a diferença objectiva que Dilthey tinha
reconhecido existir entre a natureza e a história. Para Dilthey, a natureza e a história eram
dois objectos diferentes
227
estudados por duas ordens de investigação diferentes, para Spengler são duas realidades
metafísicas incomensuráveis. A natureza é o mundo dos produtos do devir, daquilo que foi
produzido pela vida e que se destacou dela; a história é o mundo do devir, da vida que cria
incessantemente novas formas. Na natureza vale a necessidade causal que se manifesta na
uniformidade e na repetição e que pode ser
expressa por fórmulas matemáticas; na história vale a necessidade orgânica que é própria
do que é singular e não-repetitivo. A natureza pode ser apreendida por uma lógica
mecânica; a história só o pode ser por uma ló gica orgânica que encontra o seu
228
(Zivilisation), onde ela alcança "os estados extremos e mais refinados" de que já são apenas
capazes os
Dilthey tinha falado da "auto-centralidade das estruturas históricas", no sentido de que cada
estrutura histórica admite um núcleo central de valores ou ideais que dá significado a todas
as suas manifestações: Spengler, considerando a cultura como um organismo e o organismo
como uma totalidade cujas partes têm necessariamente relações recíprocas, pensa que cada
aspecto da cultura é uma manifestação necessária da própria cultura e que não tem sentido
fora dela. Toda a cultura tem uma forma específica de considerar a natureza, ou melhor,
tem uma "natureza" própria, uma ciência, uma filosofia, uma moral, que lhe estão
indissoluvelmente ligadas do mesmo modo que os membros de um organismo se encontram
ligados ao seu todo. No âmbito da cultura, todas estas manifestações têm um valor
absoluto; fora dela não têm nenhum valor. No entanto, se bem que não exista nenhuma
ciência, filosofia ou moral universal que seja válida para todas as
culturas, toda a ciência, filosofia ou moral é absoluta e necessária no seio da cultura a que
pertence.
O relativismo dos valores, que era um dos resultados da filosofia de Dilthey, transforma-se
em Spengler num absolutismo relativo dos valores: relativo porque é limitado à duração da
cultura em que se integra. Devido à conexão de todos os aspectos de uma cultura e à
necessidade que preside ao seu surgir, ao seu florescer e à sua morte, nenhuma
229
cultura oferece aos homens qualquer possibilidade de escolha, quer no que respeita ao seu
desenvolvimento ou às suas articulações internas, quer no que respeita ao seu ciclo vital.
Uma necessidade inexorável preside a todo o seu desenvolvimento e a todas as suas
vicissitudes; esta necessidade é o destino (Untergang des Abendlandes, 1, págs. 152 e
segs.). Os homens podem certamente tentar opor-se ao destino da cultura a que pertencem;
mas o insucesso inevitável da sua acção em tal sentido equivale a
uma reprovação moral e histórica. A única acção justificada e justificável é a inspirada pelo
reconhecimento do destino e orientada na mesma direcção em
que ele se manifesta: é o próprio sucesso desta acção que a justifica. "Nós, diz Spengler,
não temos a liberdade de realizar isto ou aquilo, mas sim a liberdade de fazer aquilo que é
necessário ou de não fazer nada; e qualquer tarefa que tenha surgido por necessidade da
história irá avante com a ajuda de cada um dos indivíduos ou contra eles. Ducunt fata
volentem, nolentem trahunt" (Ib., 11, p, 630).
É a partir destas bases que Spengler prevê o inevitável ocaso da cultura ocidental. Esta já
atingiu a fase de "civilização", ou seja, da plena maturidade que inicia a decadência e
precede a morte. A crise da moral e da religião, e especialmente a desta última já que "a
essência de todas as civilizações é a religião"; o prevalecer da democracia e do socialismo
que subvertem as relações naturais do poder; a equivalência, própria da democracia, entre o
dinheiro e o poder político, e que significa o
lavra, o "desabar de todos os valores" de que Nietzsche foi o profeta mas que o Ocidente
mostra já em acto, são os precursores infalíveis da morte da civilização ocidental. O último
acto desta civilização será um retorno ao cesarismo, que constituirá o prelúdio de um
retorno ao estado primitivo (Ib.,
11, cap. V).
§ 741. TROETSCH
231
priori religioso que pertence à própria razão e cuja existência é demonstrada pelo
sentimento de obrigação que acompanha a religião, assim como pela posição orgânica que
ela ocupa na economia da consciência e pela causalidade autónoma que a re-
232
ligião mostra ter no mundo histórico. Apesar de estar em relação com as outras formas do
processo histórico (economia, política, ciência, arte, etc.) e
sendo em certos aspectos condicionada por essas
formas (Troeltsch não exclui sequer a influência, mostrada por Marx, do processo histórico
sobre a religião, se bem que pense que ela não se manifesta necessariamente), a religião
manifesta uma causalidade autónoma em virtude da qual certos acontecimentos religiosos
(como seja o aparecimento do Cristianismo e da Reforma) mostram ser produtos de
factores especificamente religiosos. Segundo Troeltsch, esta causalidade autónoma da
religião pode ser
interpretada como a manifestação ou a presença do infinito (ou seja, de Deus) no finito, isto
é, na consciência individual do homem (Gesammelte Schriften, II, p. 764). Com efeito,
pode-se considerar o mundo espiritual como sendo independente da causalidade natural e
submetido à acção imediata de Deus: uma
acção que pode ser mais forte ou mais débil, mais ou menos compreensível, mais ou menos
pessoal; mas que justifica a superioridade do Cristianismo o
qual, melhor do que as outras religiões, a reconheceu e afirmou no seu carácter sobrenatural
e transcendente.
A especulação de Troeltsch sobre a religião move-se assim entre dois polos: por um lado o
reconhecimento da historicidade radical ida religião e, por outro, o reconhecimento do seu
fundamento transcendente na base da causalidade autónoma da história religiosa. Esta
polaridade mantém-se nas análises que fez do historicismo, primeiro na obra O his-
233
toricismo e o seu problema (1922), onde se reúnem os ensaios sobre este assunto que
escrevera des&-,
1916, e depois em cinco lições que deveria ter proferido em Inglaterra, mas que não pôde
dar por ter sido surpreendido pela morte, e que foram publicadas postumamente com o
título O historicismo e _q sua superação (1924). O historicismo, para Troeltsch, é a
historização de toda a realidade e de todo o valor, o dissolver-se, no fluxo heraclitiano do
devir, de todas as criações humanas: estado, direito, moral, religião, arte, etc.. Do ponto de
vista historicista, a
234
pertencem. "A relatividade dos valores, diz Troeltsch, só tem sentido se neste relativo
existe um absoluto vivo e criador. Se assim não acontecesse, tratar-se-ia de uma mera
relatividade e não de uma relatividade dos valores. Esta última pressupõe um
processo vital do Absoluto, através do qual este surge em cada ponto da forma mais
apropriada a
esse ponto" (Ib., 111, p. 212). Por outras palavras, a relatividade, histórica e o absoluto dos
valores coincidem: por se encontrarem nas suas formas históricas relativas, os valores
constituem a presença, na
própria história, de um princípio absoluto que Troeltsch chama, assim como Leibniz,
"consciência universal" e que, ainda de acordo com Leibniz, se manifestaria nas
consciências individuais. Estas relevam, precisamente, de uma identidade ou encontro do
Infinito e do finito; e é por essa razão que podem comunicar entre si. Todo o mónada se
pode entender com os outros mónadas através da transmissão da consciência universal de
que todos eles constituem manifestações (1b., p. 685).
A identidade entre infinito e finito, entre o absoluto dos valores e a relatividade histórica,
não é apenas uma dimensão vertical da história, devendo também encontrar a sua realização
no próprio decorrer da história. Esta realização está confiada, segundo Troeltsch, ao esforço
criador dos homens e, em particular, a uma filosofia da história que se
proponha obter "um critério, um ideal, -uma ideia de uma nova unidade cultural a criar
partindo daquilo que existe no presente, presente este considerado como sendo uma
situação complexa resultante
235
de séculos de história" (Ib., 111, p. 112), Tal realização consiste, portanto, na elaboração de
um ideal de civilização que valha como indicação dos fins que o desenvolvimento histórico
deve atingir e
§ 742. MEINECICE
A obra de Friedrich Meinecke aproxima-se dia de Troeltsch, tendo-a, de resto, influenciado
na sua última fase, Meinecke (1862-1954) foi principalmente um historiador da Alemanha
moderna, tendo começado por ver na história do Estado Alemão uma
fusão feliz do poder material e dos valores espirituais ou, segundo a sua expressão, do
Kratos e do Ethos. Esta fusão era considerada por ele (sobretudo na obra Cosmopolitismo e
estado nacional, 1908) não apenas como a justificação histórica do estado nacional alemão
mas, também, como o critério da avaliação histórica e da orientação política; critério que
ele considerava ser a maior conquista do romantismo contra o iluminismo. Meinecko via no
236
237
consistirá em considerar, não a identidade daqueles dois princípios, mas a sua polaridade:
isto é, a oposição que os relaciona e através da qual podem encontrar uni equilíbrio que, no
entanto, nunca é estável ou definitivo.
238
Meinecke recorre a Ranke sintetizando assim as suas posições: "um Deus superior ao
mundo que, além de ser criado por ele, é percorrido pelo seu espírito e por isso lhe é afim, e
também ao próprio tempo, igualmente imperfeito em tantos aspectos" (Ib., 11, p. 645). O
pressuposto romântico da identidade entre finito e infinito é assim acentuado por Meinecke,
mas limitado no que respeita ao infinito, no sentido de que este transcende o finito, isto é, a
história: um sentido que, no entanto, o romantismo tinha conhecido na sua segunda fase e
que constitui, como se viu, o fundamento do retorno romântico à tradição (§ 613).
ram-lhe sugeridos precisamente por esta actividade. Os seus escritos fundamentais são os
seguintes: Sobre a história das sociedades mercantis na Idade Média (1889); O significado
da história agrária romana para o direito público e privado (1891); As relações entre os
trabalhadores agrários na Alemanha oriental (1892); A ética protestante e o espírito do
capitalismo (1904-1905); As seitas protestantes e o espírito do capitalismo (1906) As
relações agrárias na
posição de Weber caracteriza-se: pela critica da escola histórica da economia que via em
todo o sr, tema económico a manifestação do "espírito de um povo"; pela crítica do
materialismo histórico que, segundo Weber, esquematiza de forma dogmática as relações
entre as formas de produção e de trabalho e as outras manifestações de vida em sociedade,
isto quando tais relações, em sua opinião, se iriam esclarecendo progressivamente, de
acordo com os aspectos particulares da sua evolução, e pelo reconhecimento da influência
que podem ter as for-
240
mas culturais, a religião por exemplo, sobre a estrutura económica. Este último ponto é
esclarecido na obra sobre A ética protestante e o espírito do capitalismo, na qual Weber
mostra como a ética calvinista foi favorável ao capitalismo, à procura do lucro como fim.
em si mesmo, independentemente da sua utilidade, e à consciência do dever profissional
como dever moral.
No campo -da investigação metodológica, Weber aceita álbuns dos resultados fundamentais
do historicismo alemão, principalmente o reconhecimento do carácter individual do objecto
das ciências histórico-sociais. "Um ponto de partida de grande interesse nas ciências
sociais, afirma, é sem dúvida a configuração real, portanto individual, dia vida social que
nos rodeia, se é verdade que, considerada como um
todo, ela é universal, não é menos verdade que ela só pode ser atingida individualmente e a
partir de outros níveis sociais de cultura, os quais, por sua
241
historicidade de um objecto é constituída pela sua relação com o valor (§ 728). Mas corrige
esta tese ao afirmar que a relação entre objecto e valor depende do investigador; não se
trata, como pretendia Rickert, de uma conexão necessária de uni certo objecto com
um certo valor transcendente. Isto implica a relatividade dos critérios de escolha do
conhecimento histórico e ainda a **imilateí-alidade da pesquisa histórica que, conforme se
orienta para um ou outro
valor, assim vai delimitando o seu campo. Deste ponto de vista, toda a disciplina constitui o
seu próprio objecto, orientando as escolhas que efectua para os
valores que correspondem aos seus interesses. É por isso que "são as ligações conceptuais
do problema que se encontram na base do campo de trabalho das ciências, e não as
conexões objectivas entre as coisas: quando se estuda um novo problema usando novos
métodos, e desse modo se descobrem verdades que dão lugar a novos pontos de vista
significantes, surge uma 'ciência'" (Ges. Aufsülre z. Wiss., p. 166). O conhecimento
histórico é portanto assistemático, no sentido de que não pode dar lugar a
um sistema total **def"tivo das ciências da cultura. E a própria cultura não constitui um
único campo de investigação mas sim um conjunto de campos autónomos cuja coordenação
depende do diferente desenvolvimento de cada um desses campos.
decisão sobre os objectos que têm ou não -valor, quer dizer, daquilo que é ou não
significativo, daquilo que é " importante" ou não. A investigação não pode ser iniciada e
conduzida sem este factor decisivo que é a escolha do investigador, mas por outro lado,
segundo Weber, este factor não torna subjectiva ou arbitrária toda a investigação, não limita
a sua validade ao investigador que a efectuou. Com efeito, qualquer que seja o valor que
guiou o
trabalho do investigador, os resultados da sua pesquisa devem ter uma validade objectiva,
isto é, devem ser válidas "para todos quantos queiram a
verdade", e tal validade pode ser conseguida devido à dIsciplina própria da investigação,
disciplina que, segundo Weber, é de natureza causal.
O recurso à explicação causal, considerada própria não só das ciências naturais como
também das historico-sociais, é o ponto fundamental em que
243
e a possibilidade de tal escolha baseia-se uma vez mais nos valores que orientam essa
mesma investigação. Em segundo lugar, trata-se de determinar, **In,
enti*c os elementos de uma série causal assim individualizada, um esquema de relações que
seja susceptível de verificação ou de controle. A esta segunda exigência corresponde o uso
da noção de pos-
244
O recurso a esta noção faz-se isolando num processo histórico uma ou mais componentes
causais objectivas, supondo que essas componentes se modificam e verificando-se se, com
tal modificação, o
processo histórico se teria mantido igual àquele que nós conhecemos ou, se assim não
acontecesse, qual seria a nova forma que revestiria (1b., p. 273). Como ilustração deste
modo de proceder, Weber apresenta um exemplo tirado da Geschichte des Altertums de
Edward. Mayer, sobre o significado histórico da batalha de Maratona. Aqueda batalha foi a
decisão entre duas possibilidades: de um lado, o prevalecimento de -uma cultura
religioso-,teocrática, de outro a vitória do mundo espiritual helénico, de cujos valores
culturais sornos, ainda hoje, herdeiros. Em Maratona prevaleceu esta segunda
possibilidade; foi esta a condição preliminar de um curso de acontecimentos bastante
importantes na história universal. Ora o nosso interesse histórico por aquele acontecimento
baseia-se precisamente, segundo Weber, no
insubstituíveis valores culturais entre os quais se verificou aquela decisão, seria impossível
determinar o significado; e seria portanto impossível compreender porque razão não
consideramos esse acontecimento como sendo equivalente a uma escaramuça
245
entre duas tribos cafres ou indianas" (Ges. Aufsã!ze z. Wiss., p. 274). Por outros termos, a
explicação causal não consiste, segundo Weber, em reconhecer um acontecimento como
sendo necessariamente determinado pela série causal (que é, no entanto, necessária) dos
acontecimentos precedentes, mas sim em
seja, enquanto designa uma antecipação, previsão ou prospectiva com uma base real
controlável.
Mas para que a possibilidade possa ser reconhecida, neste sentido, como sendo objectiva,
ela deverá ser, por um lado, baseada em "factos" que possam ser averiguados e que
pertençam à situação histórica considerada, e.. por outro lado, deverá estar de acordo com
**"ro,,ras empíricas ,crais", ou
246
"pureza ideal" na realidade empírica, mas que servem como meio para a entender e para
explicar os
247
A investigação histórica, devido ao seu carácter ,individualizante, não pode deixar, segundo
Weber, de utilizar conceitos universais ou gerais que são próprios das ciências que têm
como fim a formulação de leis. Entre as ciências nomológicas consideradas como
instrumentos da indagação historiográfica, Weber considerou principalmente a sociologia,
podendo considerar-se como um dos resultados mais importantes da sua obra a
determinação da natureza e :da tarefa da sociologia.
compreender histórico estava para ele, intrinsecamente ligado à experiência vivida, isto é, à
penetração puramente interior do espírito pelo próprio espírito. A posição de Weber é, neste
ponto, oposta à de Dilthey: o compreender histórico deve realizar-se sobre a dimensão
objectiva do mundo espiritual o
não sobre a sua dimensão subjectiva. Ora esta dimensão objectiva é o objecto específico da
sociologia,
* qual -se torna deste modo, e em lugar da psicologia,
* ciência auxiliar fundamental da historiografia. No entanto, a sociologia não é apenas isto:
ela é primordialmente uma ciência autónoma que encontra o seu objecto específico na
uniformidade existente nas acções humanas, isto é, na atitude (Verhalten). "A atitude
humana, afirma Weber, apresenta conexão e regularidade de desenvolvimento
relativamente a qualquer devir. Aquilo que é próprio, pelo menos
248
MAX WEBER
ordem já estabelecida. Em -imbos os casos essa referência aos actos alheios *welui uma
expectativa de uma determinada atitude iossível de outros inctivíduos e orienta-se pelo
@w.IMhlo das diversas possibilidades que é necessário ter em conta como possíveis
consequências do seu IUúe U@o agir. "Um fundamento significativo e "~ ~-Mite
importante do agir, afinna Weber, é a maior ou menor probabilidade,
Z196
expressa por um juizo de possibilidade objectiva, de que tal expectativa tenha razão de ser"
(Ges. Aufsãtze z. Wiss., p. 441). Por outras palavras, é possível compreender e explicar
uma atitude individual a partir da possibilidade objectiva de que a
expectativa de quem a assume !tenha um eco nas atitudes dos outros. Podemos
compreender, por exemplo, a atitude de um batoteiro partindo apenas da possibilidade
objectiva -de que os outros participantes no jogo observem, de acordo com a expectativa do
batoteiro, as regras do jogo. É deste modo que a noção de possibilidade objectiva que
Weber tinha considerado como fundamento do compreender historiográfico, acaba por
assumir uma função dominante na própria "sociologia interpretativa". Unia atitude que se
baseia no cálculo (mesmo subjectivo) das possibilidades oferecidas pelas atitudes de
outrem é, segundo Weber, uma atitude "racional", ou seja, que atinge os seus fins. Com
efeito, esta atitude "orienta-se exclusivamente a partir dos meios que se considera
(subjectivamente) adequados aos fins concebidos (subjectivamente) de forma precisa" (Ib.,
p. 428).
250
absoluta racionalidade relativamente aos fins é apenas um caso limite, uma construção
ideal.
251
própria de ambos os grupos. Por outro lado, esclareceu o carácter específico que a
explicação causal assume no domínio idas ciências da cultura; e serviu-se do conceito de
possibilidade objectiva como base para o esclarecimento ;deste problema. Mas apesar da
diversidade específica dos instrumentos de que dispõem, os dois grupos de ciências têm em
comum, segundo Weber, a sua tarefa fundamental: a descrição dos fenómenos. Se bem que
Weber entenda o termo "descrição" no sentido restrito de simples registo dos factos,
polemizando contra a validade de qualquer outro sentido desse termo e preferindo ater-se a
palavras como "constatação" e similares, é do ideal da descrição (no sentido mais geral que
serviu às ciências da natureza, do século XVII até aos primeiros decénios do nosso século,
para se distinguir da velha ciência aristotélica, libertar-se das suas sobrevivências e
esclarecer quais as suas efectivas possibilidades de investigação) que Weber se utiliza para
atingir os mesmos fins no campo das ciências da cultura. Mas se no campo das ciências da
natureza a "descrição" se opunha à "explicação" ou "hipótese" metafísica, no das ciências
da cultura a "descrição" opõe-se à "valoração".
Pode-se encontrar esta oposição em toda a obra de Weber, mas onde ela se encontra melhor
expressa é num ensaio de 1917 sobre a "avalorabilidade" (Wertfreiheit) da sociologia e da
economia. Estas ciências, na opinião de Weber, podem exclusivamente constatar ou
descrever a realidade empírica e for-
252
deles se sucede um outro; qual a probabilidade de aplicação dessa regra". Fora do campo -
dessas ciências, o juízo valorativo propor-se-á questões de um
outro género: "0 que se deve fazer numa dada situação concreta e de que ponto de vista é
que essa situação pode ser considerada ou não satisfatória" (Gesammelte Aufsãtze zur
Wissenschftslehre, p. 495). É óbvio que Weber não nega que a ciência possa e
deva ocupar-se dos valores e das valorações, que são factos. do mesmo modo que quaisquer
outros; mas observa que "quando, aquilo que vale normativamente se torna objecto duma
investigação empírica perde, como objecto, o carácter normativo: é considerado como
existente, não como válido" (1b., p. 517). O que, neste caso, a ciência assume
legitimamente como objecto de investigação não é a validade dos valores mas a sua
realização: ou melhor os meios para os realizar e os conflitos a que tal realização dá
origem. Por outros termos, e segundo uma fórmula que Weber já tinha ilustrado no ensaio
sobre a objectividade das ciências sociais, a consideração científica diz respeito à técnica
dos meios e não à valoração dos fins (1b., págs. 149 e segs.). A valoração é uma tomada de
posição prática, uma
decisão que respeita a cada homem e à qual nenhum homem se pode subtrair, mas que não
é satisfeita pela tarefa descritiva da ciência. Mesmo questões
253
relativamente simples como, por exemplo, a da medida em que um fim pode legitimar os
meios indispensáveis, a de ter-se ou não em conta as suas possíveis consequências
indesejáveis ou o poder-se diminuir os conflitos entre fins diferentes -todas elas são objecto
de opção ou -de compromisso, não de ciência. "A nossa ciência, diz Weber, que é
rigorosamente empírica, não pode pretender tirar ao
indivíduo esta possibilidade de opção e não pode sequer suscitar a aparência de ser capaz
de o fazer".
ciência a consideração dos conflitos a que pode conduzir a opção dos fins e que são
conflitos entre valores ou entre esferas de valores. Weber acentua a importância destes
conflitos. "Entre os valores Oxiste, em última análise (e em quaisquer condições), não uma
simples alternativa mas sim uma luta mortal, sem possibilidades de conciliação como, por
exemplo, entre "Deus" e o "Demónio". Entre eles não é possível nenhuma conciliação ou
compromisso; e não é possível, bem entendido, devido àquilo que cada um deles significa"
(Ib., p. 493). A relatividade dos valores, entendida como conexão orgânica entre os valores
e a sua época ou o seu ambiente cultural, é excluída, segundo Weber, pela presença
inevitável do conflito entre os valores: conflito que coloca o
homem, como afirmava Platão referindo-se à alma, na situação de dever escolher o seu
próprio destino, ou seja, "o sentido do seu agir e do seu sem.
Este conflito manifesta-se sobretudo no campo da ética: como conflito entre a ética da
intenção ou do "querer puro" e a ética da responsabilidade
254
que julga a acção partindo das consequências previstas como possíveis ou como prováveis.
As regras de conduta de ambas as éticas manifestam-se imediatamente em contradição,
contradição essa que não pode ser resolvida pela própria ética. Ã ética da responsabilidade
interessa essencialmente considerar a relação entre meios e fins e a situação, de facto em
que deve ser explicada. a acção humana-, mas
mesmo essa não nos oferece um meio de orientação na luta política, na qual existe uma
inesgotável contradição entre valores. Concluindo, do mesmo modo que as ciências
naturais nos dizem o que devemos fazer se quisermos dominar tecnicamente a vida, sem, no
entanto, nos dizerem se tal domínio tem algum sentido, também as ciências da cultura nos
permitem compreender os fenómenos políticos, artísticos, literários e sociais a partir das
condições em
que surgiram, sem nos -dizerem, no entanto, se tais fenómenos têm ou tiveram algum valor
ou mesmo
se valerá a pena tentarmos conhecê-lo. Neste sentido, a própria ciência é uma "vocação"
(Beruf): a vocação da clareza, isto é, do conhecimento que o homem pode ter dos fins das
suas próprias acções e dos meios para os realizar (Ib., p. 592).
§ 747. TOYNBEE
Toynbee concorda com Spengler ao assumir como unidade mínima da indagação histórica a
civilização (ou cultura), e ao considerar esta indagação como tendo por fim a formulação de
uma morfologia da civilização, isto é, uma ciência das "leis" que presidem ao seu
desenvolvimento; mas opõe-se polemicamente a Spengler quando efectua esta indagação,
como ele próprio declarara, recorrendo ao método empírico da tradição inglesa e não ao
método apriorístico da tradição alemã (Civilization ou Trial, p. 10). Por conseguinte, a
civilização não é para Toynbee um organismo sobreposto às necessidades do determinismo
biológico mas sim uma totalidade de relações não-necessárias entre indivíduos que
encontram nela uma forma de comunicarem, mas que conservam a sua capacidade de
iniciativa e um certo grau de liberdade. Deste ponto de vista, é possível uma comparação
entre as civilizações, as quais não são (como pensava Spengler) mundos absolutos fechados
sobre si mesmo. A ciência empírica da história consiste precisamente em comparar as
diferentes civilizações e em encontrar no desenvolvimento de cada uma delas os traços que
lhes sejam comuns
ou uniformes: que, por um lado, permitam a compreensão das conexões causais que se
verificam no âmbito de uma mesma civilização ou na relação entre diferentes civilizações e
que, por outro lado, consistam na formulação, a partir destas conexões, de urna previsão
provável sobre o desenvolvimento
256
de uma determinada civilização. Tudo isto, segundo Toynbee, não permite que se reduza o
desenvolvimento das diferentes civilizações a um único esquema, já que tais civilizações
conservam linhas de desenvolvimento independentes e processos evolutivos diversos (A
study of History, 1, págs. 149 e segs.).
Deste ponto de vista não se podem encontrar factores que determinem, necessariamente a
génese e o desenvolvimento das civilizações. Os dois factores a que mais frequentemente se
atribui este poder determinante, o ambiente físico-social e a raça, são ambos criticados por
Toynbee ao afirmar que se
sua acção deveria ser sempre uniforme e conduziria sempre aos mesmos efeitos; o que na
realidade não acontece. Por outro lado, isto não significa que a acção dos homens na
história seja independente de quaisquer condições que a limitem, ou seja, absolutamente
livre; Toynbee elabora sobre este assunto a sua mais famosa doutrina, a da provocação e
resposta. Uma civilização surge, diz Toynbee, quando um grupo de homens consegue
fornecer uma resposta eficaz a uma provocação do ambiente físico e
do ambiente social que o rodeia. Todo o ambiente físico-social, toda a situação em que os
homens se encontrem, coloca-os perante uma provocação; mas a natureza da resposta que
elos derem a tal provocação não pode ser previsível de forma rigorosa, dependendo por isso
dos próprios homens (A Study of History, 1, págs. 271 e segs.). O reconhecimento de um
certo grau de liberdade no agir humano é indispensável, segundo Toynbee, para
compreender
257
a diferente génese e o diferente desenvolvimento que tiveram as civilizações humanas
quando se encontraram perante condições objectivas uniformes e constantes-Mas, por outro
lado, este grau de liberdade não é infinito: a situação em que os homens se encontram actua
como limite condicionante. Podemos dizer, para exprimir o ponto de vista de Toynbee, que
a
provocação consiste sempre num problema ao qual os homens dão uma solução: o
problema condiciona a solução mas admite, em si mesmo, várias soluções, pertencendo aos
homens a opção entre estas diferentes soluções. Isto explica a diversidade recíproca das
civilizações e, ao mesmo tempo, a uniformidade que elas apresentam e que as torna
confrontáveis.
É sobre esta base que Toynbee nega a legitimidade da pretensão, defendida por Spengler,
de prever infalivelmente a morte da civilização ocidental. Esta civilização encontra-se
certamente em crise; mas a
sua sorte não pode ser determinada antecipadamente, visto depender do modo como os
homens que nela vivem possam responder a esta provocação. Toynbee pensa, no entanto,
que a sorte de uma civilização está necessariamente relacionada com um reforço do espírito
religioso. Neste ponto, a sua doutrina resulta estéril, acentuando-se tal situação nos últimos
livros que escreveu. Como resultado dever-se-ia concluir que a génese e o desenvolvimento
de todas as civilizações ocorrem segundo determinadas linhas que só podem ser
encontradas empiricamente, e que a comparação entre elas exige a determinação de tais
linhas mediante critérios metodológicos precisos; mas Toynbee dá
258
mais importância a este último aspecto, elaborando um conjunto de 21 civilizações sem que
tal número seja suficientemente justificado e escolhendo certas determinações constitutivas
dessas civilizações sem
que o desenvolvimento das várias religiões deve conduzir a "um mútuo reconhecimento ida
sua unidade essencial apesar da sua diversidade" (1b., VII, p. 448). Esta doutrina torna-se
assim uma espécie de teologia da história e um anúncio profético do êxito místico final da
história humana.
Resulta evidente do que foi dito neste capítulo que o historicismo (como, aliás, todas as
correntes filosóficas) não constitui no seu conjunto uma doutrina única e coerente que se
fosse diversificando, em cada pensador, por aspectos particulares. A unidade do
historicismo (como de todas as outras correntes) é a unidade do problema que ele enfrenta:
o do conhecimento histórico, do seu objecto e dos
259
seus métodos. Pode-se sem dúvida estabelecer uni balanço dos resultados obtidos por esta
corrente pondo em evidência os pontos em que haja acordo unânime, ou quase unânime, de
todos os seus defensores: dela resulta, por exemplo, o reconhecimento do carácter
individual do objecto histórico e, por outro lado, o do carácter específico do instrumento de
que se serve o conhecimento histórico, isto é, o da compreensão ou da interpretação
historiográfica. Mas, para além da constatação da existência destes pontos, que foram, aliás,
atingidos e justificados diferentemente por cada um dos pensadores, e da unidade do
problema, não se pode falar do "historicismo" como tratando-se de uma doutrina única e
simples que possa ser examinada, discutida e refutada na sua totalidade. Mas até mesmo
esta tentativa, que foi realizada por muitos escritores contemporâneos, revela, na
disparidade dos alvos que cada um -deles pretendia atingir com a sua crítica, o erro de tal
atitude. Com efeito, estabelece-se por um lado a equação entre historicismo e relativismo e
objecta-se precisamente ao historicismo a sua incapacidade de garantir o carácter normativo
dos valores e a obra da razão, como fez Leo Strauss (Natural R!-*ght and History [Direito
natural e história], 1953); ou a sua incapacidade de dar um sentido total à história, como fez
Jaspers (Vom Ursprung und Ziel der Geschichte [A origem e o fim da história], 1949); ou a
tentativa de substituir uma fé fictícia à autêntica fé religiosa, como fez Karl Lõwith
(Meaning in His- tory [Significado da história], 1949). Ou então negu-se aquela
identificação e vê-se no historicismo a
')60
defesa dos valores humanos, como fez Theodor Litt (Die Wiedererweckung des
geschichtlichen Bewusstsein [0 despertar da consciência histórica], 1956)-, ou ainda urna
manifestação ido "essencialismo", isto é, da metafísica tradicional e, parcialmente, o
recurso a esquemas científicos superados por esse carácter metafísico, como fez Karl
Popper (The Poverty of Historicism [A pobreza do historicismol,
1944). Em todas estas interpretações e críticas descuram-se precisamente as manifestações
mais salientes do historieismo, isto é, os resultados obtidos por Dilthey e Weber.
A primeira direcção foi a adoptada pelo Círculo de Viena (§ 808) e, especialmente, por
Otto Neurath
261
Pode-se dizer, em apoio desta segunda corrente metodológica, que o esquema explicativo
de que se
263
NOTA BIBLIOGRÁFICA
§ 736. U@ Dilthey, existe uma bibliografia completa das suas obras em "Archiv für
Geschichte, der Phil.", 1912, págs. 154-61. Os escritos destle autor foram recrlhidos em
Gc_,avi~Ite Schriften, 12 vols., Leipzig, 1923-36. Critica della ragione storica, antologia de
escritGs de Dilthey com introwdução e, bíbliografia do Pietro R(ssi, Turim, 1954.
264
§ 740. De Spengller, Der Untergang des AbendIandes vem citado na edição definitiva, 2
võls, Munique, 1918-22. Trad. italiana de J. EVolia, Milão, 1957.
§ 742. De Meinecke, além das obras citadas lio texto, os ensaios recolhidos em Vop
geschiclitliehcn
265
Sinn und vom Sinn der Geschichte, Leipzig, 1939; trad. italiana, Nápoles, 1948.
Sobre Meinecke: CROCE, La storia come pensiero e come azione, Bari, 1938, págs. 51-73;
W. HOFER, Geschicht8chreibung und Weltan-schauung, Munique,
1950; CHABOD, in "Rivista Storica Italiana", 1955, págs.
272-88; W. STARK, Introdução à tradução inglesa da Ide'a da razão de Estado, publicada
sob o titulo MacMavellism, New Haven, 1957.
§ 744. Sobre a metodologiade, Weber: B. PFISTER, -Die Entwicílung zum Idealtypus (Ei-
ue A1ethodolog@sche Untersuchung über das Verhã1tnis von Theorte und Geschichte bei
Menger, Schmoller und M. W.), Tübingen, 1928; W. BIENFAIT, M. W.Is Lehre vom
266
§ 747. De Toynbee: foram traduzidos para italiano os dois primeiros volumes da sua obra
principal sob o titulo Panorami della storia, Milão, 1954; Civiltà al paragone, trad. italiana
de G. Paganelli e A. Pandolfi, Milão, 1949; Il mondo e Poccidente, @trad. italiana de G.
Cambon, Milão, 1956.
Sobre Toynbee: P. GEYL, The Pattern of the Past, Boston, 1949; E. F. J. ZAHN, T. und
das Problem der Geschichte, Kõln und OppIaden, 1954; PIETRo Rossi, in "Filosofia",
1952, págis. 207-50; Storia e storicismo nella filosofia contemporanea, cit., págs. 333-60;
O. ANDERLE, Das universalhistorische System A. J. T., Frankfurt am. Main, 1955 (inclui
uma bíbliografia).
§ 748. Sobre os autores citados na última parte do capitulo, consultar PIETRo Rossi, Storia
e storicismo nella filosofia contemporanea, cit., e as indicações bibliográficas nele
incluídas.
267
íNDICE
aberta ... ... ... ... ... . 1. 30 § 700. Religião estática e religião dinâmica ... ...
... ... ... ... 32 § 701. O possível e o virtual - . ... ... 36
IV-0 IDEALIS1W0 INGLÊS E NORTE-AMERICANO ... ... ... ... ... ... ... ... 43
269
§ 704. Bradley ... ... ... ... ... ... 53 § 705. Desenvolvimento do idealismo
inglés ... ... ... ... ... ... ... 59 § 706. MeTaggart ... ... ... ... ... 61 § 707.
Royce ... ... ... ... ... ... 68 § 708. Outras manifestações do idealismo inglês e
norte-americano 77
§ 709. Características e origens do idealismo italiano ... ... ... ... ... 85 §710. Gentile:
Vida e Obra ... ... ... 90 §711. Gentile: o acto puro ... ... ... 92 §712.
Gentile: a dialéctica -do concreto e
§713. Gentile: a arte ... ... ... ... 102 §714. Gentile: a religião ... ... ... ... 105
§715. Gentile: o direito e o estado ... 107 §716. Croce: Vida e Obra ... ... ...
111
270
§ 717. Croce: a filosofia do espírito ... 113 § 718. Croce: a arte ... ... ... ... ...
116 § 719. Cr(>ce: a ciência, o erro e a forma
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