You are on page 1of 151

História da Filosofia

Volume doze
Nicola Abbagnano

obra digitalizada por ângelo Miguel Abrantes.


Se quiser possuir obras do mesmo tipo ou, por outro lado, tem livros que não se importa de
ceder, por favor, contacte-me:
Ângelo Miguel Abrantes, R. das Açucenas, lote 7, Bairro Mata da Torre, 2785-291, S.
Domingos de Rana.
telef: 21.4442383.
móvel: 91.9852117.
Mail: angelo.abrantes@clix.pt
Ampa8@hotmail.com.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

VOLUME XII

TRADUÇÃO 'DE: ANTÓNIO RAMoS ROSA CONCEIÇÃO JARDIM EDUARDO


LúClõ NOGUEIRA

EDITORIAL PRESENÇA - Lisboa 1970

TITULO ORIGINAL STORIA DELLA FILOSOFIA

Copyright by NICOLA ABBAGNANO

III

BERGSON

§ 692. BERGSON: VIDA E OBRA

A obra de Bergson apresenta-se-nos, logo à primeira vista, como a máxima expressão do


espiritualismo francês, que principia com Maine de Biran e continua numa numerosa
família de pensadores franceses contemporâneos (§ 675). No entanto, pode ser também
legitimamente incluída no quadro do evolucionismo espiritualista que teve representantes e
defensores em todos os países da Europa (§ 660). Além disso, interessa-se por alguns temas
da critica da ciência e do pragmatismo.

O seu traço mais característico é, no entanto, o espiritualismo. O tema fundamental, ou


antes, o único tema, da investigação bergsoniana, é a consciência; mas a originalidade desta
investigação consiste no facto de não considerar a consciência como uma energia infinita e
infinitamente criadora, mas

4,

@I, 01, energia finita, condicionada e limitada por situações, circunstâncias ou obstáculos
que podem também solidificá-la, desagradá-la, bloqueá-la ou dispersá-la. O próprio
Bergson declarou sob este aspecto o carácter original do seu espiritualismo. "0 grande erro
das doutrinas espiritualistas - disse ele (Evolution créatr., 1911, p. 291)-foi o de crer que
isolando a vida espiritual de tudo o mais, suspendendo-a no espaço mais alto possível sobre
a terra, a colocariam assim ao abrigo de qualquer ataque; como se assim não a tivessem
exposto a ser confundida com o efeito de uma miragem". As doutrinas espiritualistas
opuseram o testemunho da consciência aos resultados da ciência sem ter em conta estes
últimos ou até ignorando-os. Bergson pretende, ao invés, aceitar e fazer seus os resultados
da ciência, ter presente a exigência do corpo e do universo material a fim de entender a vida
da consciência e assim reconduzir a consciência mesma à sua existência concreta, que é
condicionada e problemática. O espiritualismo adquire, por isso, na sua obra um sentido
novo e tende a inserir a própria problematicidade na vida espiritual.

Henri Bergson nasceu em Paris a 18 de Outubro de 1859 e morreu a 4 de Janeiro de 1941.


Foi durante muitos anos professor no Colégio de França. A primeira obra que publicou
intitula-se o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1889), que logo no título
mostra o que será o método da filosofia bergsoniana: libertar das estruturas intelectuais
fictícias a vida original da consciência para a atingir na sua pureza. A segunda obra,
Matéria e memória

(1896) é dedicada ao estudo das relações entre corpo e espírito. Reporta a essência do
espírito à memória e atribui ao corpo a função de limitar e escolher as recordações para os
fins da acção. A evolução criadora (1907) é a sua obra principal, em que apresenta a vida
como uma corrente de consciência (impulso vital) que se insinua na matéria subjugando-a,
mas mantendo-se ao mesmo tempo limitada e

condicionada por ela. Em 1900, Bergson publicou os ensaios sobre o riso, (Le rire) que
continham também a sua doutrina sobre a arte; constituem três colectâneas de ensaios os
livros intitulados A energia espiritual (1919), Duração e simultaneidade (1922), a

propósito da teoria de Einstein, e O pensamento e o

movente (1934). Em As duas fontes da moral e da religião (1932), Bergson. mostrou o


significado ético e religioso da sua doutrina.

Após a publicação destas obras, Bergson, que era

de origem judaica, foi-se orientando cada vez mais para o catolicismo, no qual viu, segundo
declarou, o

complemento do judaísmo. Mas (como disse num


passo do seu testamento [19371 revelado pela sua mulher), r-enunciou a uma expressa
conversão devido à onda de anti-semitismo que se espalhara pelo mundo. "Quis-escreveu
ele-permanecer entre os

que amanhã serão perseguidos".

§ 693. BERGSON: A DURAÇÃO REAL

O ponto de partida e o fundamento de toda a filosofia de Bergson é a doutrina da duração


real.
O próprio Bergson indicou a fonte desta doutrina, ou

pelo menos, o ponto de partida onde foi buscar a inspiração dela. Perante a imprecisão de
todas as doutrinas filosóficas, "uma doutrina - segundo afirma (La Pensée et le Mouvant,
1934, p. 8) - parecera-nos já fazer excepção e, provavelmente por isso, afeiçoaramo-nos a
ela desde a nossa primeira juventude. A filosofia de Spencer visava seguir o rasto das
próprias coisas e modelar-se pelos pormenores dois factos. Sem dúvida que procurava
ainda o seu ponto de apoio em vagas generalidades. Víamos bem a debilidade dos
Primeiros princípios, mas tal debilidade parecia-rios que derivava do facto de que o autor,
insuficientemente preparado, não pudera aprofundar as "ideias últimas" da mecânica.
Ganhou-nos o desejo de desenvolver esta parte da sua obra, completá-la e

consolidá-la. Foi então que se nos deparou a ideia do tempo. E aí aguardava-nos uma
surpresa". A surpresa consistiu em verificar que o tempo real, que tem um papel
fundamental na filosofia da evolução escapa às ciências matemáticas. Deste modo, a
filosofia de Bergson, nascida da tentativa de aprofundamento de um capítulo particular do
evolucionismo de Spencer, apresenta-se na sua origem como a transformação do
evolucionismo naturalista num evolucionismo espiritualista, que identifica o

processo contínuo, incessante e progressivo da evolução com o devir temporal da


consciência.

A duração real é, de facto, o dado da consciência, despojado de toda a superestrutura


intelectual ou

simbólica e reconhecido na sua simplicidade originária. A existência espiritual é uma


mudança incessante, uma corrente contínua e ininterrupta que varia

]o

permanentemente, não substituindo todo o estado de consciência por outro, mas


dissolvendo os próprios estados numa continuidade fluída. Não existe um substracto imóvel
do eu sobre o qual se projectasse a sucessão dos estados conscientes. A duração é o

processo contínuo do passado que rói o futuro e cresce à medida que avança. A memória
não é uma
faculdade especial, mas é o próprio devir espiritual que espontaneamente conserva tudo em
si mesmo. Esta conservação total é ao mesmo tempo uma criação total, uma vez que nela
cada momento, embora seja o resultado de todos os momentos anteriores, é absolutamente
novo em relação a eles. "Para um ser consciente - diz Bergson - existir significa mudar,
mudar significa amadurecer, amadurecer significa criar-se indefinidamente a si mesmo"
(Evol. créat., p. 8).

A vida espiritual é, essencialmente, autocriação e liberdade, No Ensaio sobre os dados


imediatos da consciência (1889), Bergson mostrou como toda a

discussão entre deterministas e indeterministas nasce da tentativa de entender a vida da


consciência, que é movimento e duração, servindo-se dos esquemas extraídos do estudo da
matéria, que é extensão e

imobilidade. Não é possível reduzir a duração da consciência ao tempo homogéneo de que


fala a ciência, o qual é constituído por instantes iguais que se sucedem. O tempo da ciência
é um tempo especializado e que perdeu por isso o seu carácter original. Nem tão-pouco é
possível falar de uma multiplicidade de estados de consciência análoga à multiplicidade dos
objectos espaciais que se separam e se excluem uns

11

os estados de consciência se unificam. Todos


,,

fluída corrente da consciência, da qual não p

em distinguir a não ser por um acto de abstracção, e o tempo é, na consciência, a corrente,


da mudança, não uma sucessão regulada de instantes homogéneos. Só o labor abstracto do
intelecto e o uso da linguagem, que se encontra intimamente ligado àquele, transformam
esta corrente contínua numa

multiplicidade de estados de consciência diversos, numeráveis e imóveis. Sendo assim, não


se pode dizer (como faz o determinismo) que a alma é determinada por uma simpatia, por
um ódio ou por qualquer outro sentimento, como por uma força que actue sobre ela. Tais
sentimentos, quando atingem uma certa profundidade, não são forças estranhas à alma, mas
cada um deles constitui a alma inteira; e dizer que a alma se determina sob a influência de
um deles significa reconhecer que se determina por si mesma e, que, portanto, é livre. Além
disso, a liberdade não tem o carácter absoluto que o espiritualismo algumas vezes

lhe atribui; pelo contrário, admite graus. Sentimentos e ideias que provêm de uma educação
mal compreendida chegam a constituir um eu parasitário que se sobrepõe ao eu
fundamental, diminuindo na mesma medida a sua liberdade. Muitos, afirma Bergson (Essai,
p. 127), vivem assim e morrem sem ter conhecido a verdadeira liberdade. Em contrapartida,
somos verdadeiramente livres quando os nossos actos emanam da nossa personalidade
inteira, quando entre esta e aqueles existe aquela semelhança indefinível que existe algumas
vezes entre o artista e a sua obra (1b., p. 131). A relação entre o eu e os seus actos não

12

pode, portanto, ser explicada mediante o conceito de causalidade que serve para explicar os
liames entre os fenómenos naturais e tomá-los previsíveis. Os actos livres nunca são
previsíveis e, propriamente falando, não se pode dizer que o eu seja a causa deles, dado que
o eu não se distingue deles, senão que vive e se

constitui neles. A liberdade é indefinível, porque coincide com o próprio processo da


vida consciente. Defini-Ia, isto é, exprimi-Ia numa fórmula de linguagem, significa
transferi-Ia para o plano da consideração espacial e dos objectos físicos, mas aqui não
existe senão o determinismo, porque desapareceu precisamente o que constitui a
consciência: a duração real.

§ 694. BERGSON: ESPÍRITO E CORPO

O evolucionismo espiritualista caracteriza-se, no

que concerne à relação entre espírito e corpo, pela doutrina do paralelismo (ou monismo)
psicofísico (§ 660). Bergson considera, ao invés, que esta doutrina é equivalente, nos seus
resultados, à da consciência como epifenómeno dos dados físicos, própria do
evolucionismo materialista. "Quer se considere-afirma ele (Matière et mémoire, p. 4)-o
pensamento como uma simples função cerebral e o

estado de consciência como um epifenómeno do estado cerebral, quer se encarem os


estados do pensamento e os estados do cérebro como traduções em duas línguas diferentes
do mesmo original, supõe-se tanto num caso como noutro o mesmo princípio: se

13

pudéssemos penetrar no interior de um cérebro que trabalha e assistir ao entrecruzamento


dos átomos de que é feito o córtex cerebral ou se, por outro lado, possuíssemos a chave da
psicofisiologia, saberíamos pormenorizadamente tudo o que sucede na consciência
correspondente". Contra esta adequação ou equivalência do psíquico e do físico é dirigida a
tese que Bergson expõe em Matéria e memória (1896). Bergson começa por rejeitar tanto o
realismo como o idealismo, no que concerne à realidade da matéria, Apela para o "senso
comum", o qual afirma, é certo (como faz o realista) que o objecto existe
independentemente da consciência que o percebe, mas crê (como faz o idealista) que este
objecto é perfeitamente idêntico ao dado sensível. Por outros termos, para o senso comum o
objecto não é mais do que uma imagem, mas uma imagem existente. No sistema de
imagens, a que o mundo se reduz, uma, no entanto, se apresenta com características
especiais: o nosso corpo, que é o único meio para agir sobre as imagens. A percepção é,
precisamente, o acto da inserção activa daquela imagem que é o nosso corpo no sistema das
outras imagens: é acção, e não contemplação.

Há, portanto, uma diferença radical entre a percepção e a recordação. Considera-se,


habitualmente, que a diferença entre estes dois elementos é apenas de grau, e que a
recordação é uma percepção menos intensa ou mais ténue. Segundo Bergson, isto é um erro
comum à psicologia materialista e à espiritualista. Entre a percepção e a recordação existe,
pelo contrário, uma diferença de natureza. A percepção é o

14

poder de acção do corpo vivo, que se insere activamente entre as outras imagens e provoca
o abalo e a readaptação; a recordação, como sobrevivência de imagens passadas, guia e
inspira a percepção (já que se age sempre tendo por base as experiências passadas) mas só
se torna verdadeiramente actual no

acto da percepção mesma. Por consequência, a função do corpo, interposto entre os


objectos que actuam sobre ele e aqueles sobre os quais ele actua, é a de um condutor,
incumbido de recolher os movimentos e de os transmitir, quando não os detém, a certos
mecanismos motores, determinados se a acção for reflexa, escolhidos se a acção for
voluntária. "Tudo se passa, como se uma memória independente recolhesse as imagens ao
longo do curso do tempo, à medida que se produzem, e como se o nosso corpo, com tudo o
que o circunda, não fosse mais do que uma dessas imagens, a última, a que obtemos a cada
momento praticando um corte instantâneo no devir em geral" (Matière et mémoire, p. 81).

Bergson distingue três termos: a recordação pura, a recordação-imagem e a percepção,


termos estes que explicam a passagem da duração real, como puro processo espiritual, à
percepção, em que a duração se torna acção e reacção das imagens entre si. "As ideias, as
puras recordações, chamadas do fundo da memória, desenvolvem-se em recordações-
imagens cada vez mais capazes de se inserirem no sistema motor. À medida que estas
recordações tomam a

forma de uma representação mais completa, mais concreta e mais consciente, tendem cada
vez mais a confundir-se, com a percepção que as atrai e cujo

15

adoptam. Portanto, não há nem pode haver no cérebro uma região em que as recordações se

fixem e se acumulem. A pretensa destruição das recordações por obra das lesões cerebrais é
apenas a

interrupção do progresso contínuo pelo qual a recordação se actualiza" (1b., p. 140). Donde
se conclui que a recordação pura (a consciência na sua duração real) não está ligada a
nenhuma parte do corpo e é, portanto, espiritualidade independente. "0 corpo
- diz Bergson (1b., p. 199) -, sempre orientado para a acção, tem por função essencial a de
limitar, com vista à acção, a vida do espírito". Esta função é exercida pelo corpo mediante a
percepção que é "a

acção possível do nosso corpo sobre os outros corpos". Quando se trata de corpos
circunstantes, separados do nosso por um espaço mais ou menos considerável, que mede a
longinquidade no tempo das suas promessas ou das suas ameaças, a percepção não faz mais
do que destroçar acções possíveis. Quando a distância decresce, a acção possível tende a
transformar-se em acção real, e quando se torna nula, isto é, quando o corpo se percebe a si
mesmo, a percepção delineia, não já uma acção virtual, mas

uma acção real. Surge então a dor, o esforço actual da parte ofendida para repor as coisas
no seu lugar; e nisto consiste a subjectividade da sensação efectiva (sentimento).

A vida espiritual transcende, pois, por todos os

lados, os limites do corpo e, por conseguinte, da percepção e da acção que estão ligadas ao
corpo.
O corpo representa somente o plano da acção, ao

passo que a memória pura é o plano em que o

16

espírito conserva o quadro de toda a vida passada e se identifica com a duração. Bergson.
substituiu assim o dualismo de corpo e espírito pelo dualismo da acção (ou percepção) e
memória. O escopo de L'évolution créatrice é a resolução deste dualismo.

§ 695. BERGSON: O IMPULSO VITAL

A Evolução criadora mostra-nos, de facto, como o próprio mundo da acção e da percepção,


enquanto sistema de imagens exteriorizadas e espacializadas e, por conseguinte, objecto da
inteligência e da ciência, se constitui em virtude daquele mesmo movimento que é o
processo temporal da vida consciente. A obra tende a mostrar que, enquanto a inteligência é
incapaz de compreender a natureza da vida, esta, como evolução espiritual, torna possível
explicar a

natureza e a origem da inteligência e dos seus objectos.

Em primeiro lugar, Bergson reporta a vida bio- lógica à vida da consciência, à duração real.
A vida é sempre criação, imprevisibilidade e, ao mesmo tempo, conservação integral e
automática de todo o passado. Tal é a vida do indivíduo, assim como da natureza;

mas as perspectivas de uma e de outra são distintas. Cada um de nós, considerando


retrospectivamente a sua história, verificará que a sua personalidade infantil, ainda que
indivisível, reunia em si pessoas diversas que podiam coexistir no estado nascente, mas que
a pouco e pouco se foram tomando incompatíveis, pondo-nos cada vez mais perante a
necessi-
17

dàde de uma escolha. "A via que percorremos no

tempo-diz Bergson (Évolution créatr., p. 109)está salpicada de fragmentos de tudo o que


começávamos a ser, de tudo o que poderíamos ter chegado a ser. Nós não podemos viver
senão uma única vida; por isso devemos escolher. A vida da natureza, ao invés, não é
obrigada a semelhantes sacrifícios: conserva as tendências que num certo ponto se
bifurcaram e cria séries divergentes de espécies que evoluem separadamente. Por outros
termos, a vida não segue uma linha de evolução única e simples. Desenvolve-se "corno um
feixe de caules" criando, pelo simples facto do seu crescimento, direcções divergentes entre
as quais se divide o seu impulso originário. As bifurcações do seu desenvolvimento são por
isso inúmeras. Mas muitas são também as vias sem saída em relação aos poucos grandes
caminhos que ela tem aberto.

A unidade das várias direcções não é uma unidade de coordenação, de convergência, como
se a

vida realizasse um plano preestabelecido. O finalismo, neste sentido, é excluído; a vida é


criação livre e imprevisível. Trata-se, ao invés, de uma unidade que precede a bifurcação,
isto é, da unidade da vis a tergo, do impulso que a vai pouco a pouco realizando.
O impulso da vida, conservando-se ao longo das linhas de evolução nas quais se divide, é a
causa

profunda das variações, pelo menos das que se transmitem regularmente pela
hereditariedade, que se adicionam e criam novas espécies. Tudo isto, se exclui o plano
preestabelecido de qualquer teoria finalista, exclui também a hipótese de que a evolução se

18

tenha dado mediante causas puramente mecânicas.


O mecanismo não pode explicar a formação de órgãos complicadíssimos que têm, no
entanto, uma função bastante simples, como é o caso do olho. Bergson serve-se da imagem
de uma mão que atravessa a limalha de ferro que se comprime e resiste à medida que a mão
avança. A certa altura, o esforço da -mão esgotar-se-á e, no mesmo preciso momento, as
partículas da limalha ter-se-ão justaposto e coordenado numa forma determinada: a da mão
que se detém e de uma parte do braço. Se supusermos que a mão e o braço permaneceram
invisíveis, os espectadores procurarão nas partículas de limalha e nas forças internas da
massa, a causa

da sua disposição. Uns explicarão a posição de cada partícula mediante a acção que as
partículas próximas exercem sobre ela: esses serão os mecanicistas. Outros pretenderão que
um plano de conjunto presidiu a cada uma destas acções elementares: esses serão os
finalistas. A verdade é que há um acto invisível, o da mão que atravessou a linalha: os
inexauriveis pormenores dos movimentos das partículas, como a

sua ordem final, exprimem negativamente este movimento indiviso, porque é a forma
global da resistência, e não uma síntese de acções positivas elementares (É vol. créatr., p.
102-03). A acção indivisível da mão é a do impulso vital; subdivisão do impulso vital em
indivíduos e espécie, em cada indivíduo na variedade dos órgãos que o compõem e em

cada órgão nos elementos que o constituem, é devida à resistência da matéria bruta
(correspondente, no

exemplo citado, à limalha de ferro).

19

primeira bifurcação fundamental do impulso é a que deu origem à divisão entre a planta a o
animal, O vegetal caracteriza-se pela capacidade de fabricar substâncias orgânicas com
substâncias minerais (função clorofílica). Os animais, obrigados a

andar e a procurar alimento, evoluíram no sentido da actividade locomotora, e, portanto, de


uma consciência cada vez mais desperta. As duas tendências dissociaram-se ao crescerem,
mas na forma rudimentar implicam-se reciprocamente; e o mesmo impulso que levou o
animal a prover-se de nervos e centros nervosos, conduziu à aquisição por parte da planta
da função clorofílica (Ib., p. 124). Por outro lado, nem mesmo a vida animal se desenvolveu
ao longo de uma única linha. Os Artrópodes e os Vertebrados são as linhas em que a
evolução da vida animal no sentido da mobilidade e da consciência teve maior êxito. As
outras duas direcções da vida animal, as indicadas pelos Equinodermes e pelos Moluscos,
foram ter a um beco sem saída. A evolução dos Artrópodes alcançou o seu ponto
culminante nos insectos e, em particular, nos Himenópteros, a dos Vertebrados, no homem.
Nestas duas direcções, o progresso efectuou-se de forma diferente, pois que, na primeira
direcção se dirigiu para o instinto, na segunda para a inteligência.

§ 696. BERGSON: INSTINTO E INTELIGÊNCIA

Instinto e inteligência são tendências diferentes mas conexas e nunca absolutamente


separáveis. Não

20

existe inteligência sem traços de instinto, nem instinto que não esteja rodeado por um halo
de inteligência. Contudo, na sua forma perfeita, o instinto pode ser definido como a
faculdade de utilizar e construir instrumentos organizados, e a inteligência como a
faculdade de fabricar instrumentos artificiais e variar indefinidamente a sua fabricação.
Originariamente, o homem não é homo sapiens, mas homo faber (Ib., p. 151). A sua
característica é a de suprir a deficiência dos órgãos naturais de que dispõe mediante
instrumentos que lhe permitam defender-se contra os inimigos e contra a fome e o frio. Os
instrumentos que o homem cria artificialmente correspondem, na outra direcção da vida,
aos

órgãos naturais -de que o instinto se serve; e por isso o instinto e a inteligência representam
duas soluções divergentes, mas igualmente elegantes, de um só e mesmo problema (Évol.
créatr., p. 155). Mas enquanto a inteligência se orienta para a consciência, o instinto
orienta-se para a inconsciência. Quando a natureza fornece ao ser o instrumento que deve
em.

pregar, o ponto em que tem de aplicá-lo, o resultado que deve obter, a parte reservada à
escolha é extremamente débil, e por isso a consciência será também muito débil e
crepuscular. O instinto será, portanto, consciente só na medida em que for deficiente, isto é,
só na medida das contrariedades e dos obstáculos que encontrar na sua acção moral. Na
inteligência, pelo contrário, o estado normal é o deficit, isto é, o desnível entre a
representação e a acção. A inteligência deve, de facto, através de mil dificuldades, escolher
para o seu trabalho o lugar
21

a forma e a matéria. E nunca poderá satisfazer-se inteiramente, uma vez que cada nova
satisfação criará novas necessidades. Desta diferença fundamental derivam as outras: a
inteligência é levada a considerar as relações entre as coisas, ao passo que o instinto se
dirige às próprias coisas; a inteligência é conhecimento de uma forma; o instinto,
conhecimento de uma matéria. Esta última característica constitui, à primeira vista, uma
superioridade da inteligência: uma forma, precisamente por estar vazia, pode ser preenchida
da maneira que se quiser e por isso todo o conhecimento formal é praticamente iliinitado e
um poder inteligente "traz em si o que lhe permite ultrapassar-se a si próprio". Todavia,
esta mesma característica formal priva a inteligência da capacidade de se deter na realidade
de que teria necessidade. "Há coisas -diz Bergson (1b., p. 165) -
que só a inteligência é capaz de procurar, mas que, por si só, nunca poderá encontrar. Tais
coisas só o instinto as encontraria; mas nunca as procurará".

Tudo isto determina as capacidades e os limites da inteligência humana. A inteligência está


virada, fundamentalmente, para os fins da vida, serve para construir instrumentos
inorgânicos e só se encontra à vontade quando tem que lidar com a matéria inorgânica. Mas
a matéria inorgânica é solidificação, imobilidade, descontinuidade: a inteligência tende,
portanto, a transformar tudo o que considera em elementos sólidos, descontínuos e imóveis.
Por isso o devir se lhe apresenta como uma série de dados, em que cada um permanece a si
mesmo e, portanto, imutável. Mesmo quando a sua atenção se fixa na mu-
22

dança interna de um destes estados, decompõe-no numa série de estados ulteriores que
terão as mesmas

características de fixidez e imobilidade. Assim, a inteligência deixa fugir precisamente o


que há de novo na evolução da vida e caracteriza-se por uma natural incompreensão do
movimento e da vida.

Bergson define o funcionamento da inteligência como um mecanismo cinematográfico. De


facto, a

inteligência colhe instantâneos imóveis do devir e

procura reproduzi-lo mediante a sucessão de tais instantes. Mas este mecanismo deixa
escapar o que é peculiar à vida: a continuidade do devir, em que não se podem distinguir
estados. Daí que todas as

tentativas da inteligência para compreender o devir não consigam senão transformá-lo


numa série de imobilidades sucessivas, que já nada têm da continuidade originária. Surgem
então as objecções de Zenão de Eleia contra o movimento: objecções irrefutáveis do ponto
de vista da inteligência porque fundadas na espacialização do devir, na sua redução a uma
série de imobilidades sucessivas. A incapacidade da inteligência perante a vida é a
incapacidade da ciência, que se funda na inteligência. A ciência obtém os maiores sucessos
no mundo da natureza inorgânica, onde a duração real da consciência é substituída por um
tempo homogéneo e uniforme (constituído por instantes iguais), que na realidade já não é
tempo, mas espaço. A este tempo espacializado é aplicável a medida científica; ao invés, o
tempo verdadeiro, a duração, não é susceptível de medida porque não apresenta nenhuma
uniformidade e é criação contínua. Todavia, este método da

23

não é uma inferioridade sua, mas a condição êxito. A ciência visa à acção; saber equivale a
**Wo-,kr, isto é, A partir de uma situação dada para **J@f **etiegar a uma situação
futura. Avança por saltos, isto
é., por intervalos, que podem ser tão pequenos quanto se deseje, mas que nunca constituem
uma continuidade. A ciência só revela os seus limites quando procura compreender a vida.
Para compreender a vida é necessário um órgão completamente diferente da inteligência
científica. Existe tal órgão?

§ 697. BERGSON: A INTUIÇÃO

Vimos que a outra direcção fundamental da vida é o instinto. Mas a inteligência nunca se
separa completamente do instinto: é possível, portanto, um

retorno consciente da inteligência ao instinto: tal retorno é a intuição. A intuição é um


instinto que se tomou desinteressado, consciente de si, capaz de reflectir sobre o seu objecto
e de o estender indefinidamente (Évolut. Créatr., p. 192). Que um tal esforço é possível,
prova-o a presença no homem da intuição estética, que dá lugar à arte. A intuição estética,
na verdade, faz-nos captar a individualidade das coisas que escapa à percepção comum,
inclinada a reter dos objectos só as impressões úteis para os fim da acção. Por outros
termos, a intuição tira à arte aquele véu que as exigências da acção interpõem entre nós e as
coisas, véu sem o qual todos os hoIliens poderiam entrar em comunicação imediata com

as coisas mesmas e ser naturalmente artistas. Dado

24

que, ao invés, as exigências da acção obrigam o homem a ler as etiquetas que a necessidade
da prática impõe à s coisas mediante a linguagem, o artista surge de quando em quando e
caracteriza-se pela capacidade de ver, escutar ou pensar sem se referir às necessidades da
acção. Se fosse possível um desprendimento completo de tais necessidades, ter-se-ia um
artista excelente em todas as artes, Mas, na realidade, acontece que o véu se levanta
acidental mente só de um lado, ou seja, na direcção de um só dos sentidos humanos; e
daqui deriva a diversidade das artes, a especialidade das predisposições (Le Rire, 1908, p.
160).

A intuição estética, no entanto, tende apenas ao individual e não pode ser o órgão de uma
metafísica da vida. Mas pode-se conceber uma investigação orientada no mesmo sentido
que a arte e que tenha por objecto a vida em geral. Uma investigação deste género será
propriamente filosófica, ou melhor, constituirá o próprio órgão da metafísica. Enquanto a

ciência tem o seu órgão na inteligência e o seu

objecto apropriado na matéria imóvel, a metafísica tem o seu órgão na intuição e o seu
objecto apropriado na vida espiritual. Se a análise é o procedimento próprio do intelecto, o
procedimento próprio da intuição será a simpatia, "pela qual penetramos no interior de um
objecto para coincidir com o que ele tem de único e, portanto, de inexprimível" (La Pensée
et le mouvant, p. 205). Se a análise intelectual tem necessidade de símbolos, a metafísica
intuitiva é, ao invés, a ciência que pretende dispensar os

símbolos. Com efeito, possui de um modo absoluto

25

e infinitamente a realidade, em vez de a conhecer; coloca-se directamente nela, em vez de


adoptar pontos de vista em torno dela e por isso a atinge para lá de toda a expressão,
tradução ou representação simbólica (Ib., p. 206).

Bergson apela continuamente para a intuição ao

longo de toda a sua investigação. A intuição revela-nos a duração da consciência e põe-nos


em guarda contra a espacialização da mesma operada pela inteligência. É a intuição que nos
torna conscientes da nossa liberdade. É também a intuição que nos permite recuperar o
impulso vital que é a força criadora de toda a evolução biológica. Na realidade, o

único objecto da intuição é o espírito. Ela é "a visão directa do espírito por parte do
espírito". Contudo, o universo material não se apresenta opaco à intuição. Se o domínio
próprio desta é o espírito, "ela desejaria, no entanto, realizar nas coisas materiais a sua
participação na espiritualidade - e diríamos na espiritualidade, se não soubéssemos tudo o
que de humano ainda se mistura à nossa consciência, mesmo depurada e espiritualizada"
(1b., p. 37). A intuição pode ter significados diversos e não se pode definir univocamente.
Todavia, a sua característica fundamental é que pensa em termos de duração, isto é, de
espiritualidade ou de consciência pura. E é isto precisamente que faz dela o órgão
específico da metafísica. Entre a metafísica e a ciência, Bergson não pretende estabelecer
uma diferença de valor, mas somente de objecto e de método. À ciência compete o
conhecimento intelectual da matéria; à metafísica a intuição do espírito. Uma vez

26

que o espírito e a matéria se tocam, também a ciência e a metafísica, hão-de ter uma
superfície periférica comum: poderão assim agir uma sobre a outra e estimular-se
mutuamente.

Para exercer a sua função, a filosofia deverá deixar de ser uma mera análise de conceitos
implícitos nas formas da linguagem e deverá tratar da própria existência real. Mas toda a
existência só pode ser dada numa experiência. Esta experiência chamar-se-á visão ou
contacto ou percepção externa em geral, se se trata de um objecto material; chamar-se-á
intuição se se trata do espírito. Até onde pode chegar a intuição? Só ela o pode dizer. "Ela
diz Bergson (Ib., p. 61)-chega. a possuir um fio: ela própria deverá ver se este fio vai até ao
céu ou se se detém a uma certa distância da terra. No primeiro caso, a experiência
metafísica relacionar-se-á com a dos grandes místicos; e eu posso comprovar, pela minha
parte, que esta é a verdade. No segundo caso, as experiências metafísicas permanecerão
isoladas umas das outras, sem no entanto se oporem umas às outras. Em qualquer caso, a
filosofia elevar-nos-á acima da condição humana".

§ 698. BERGSON: GÉNESE IDEAL DA MATÉRIA

A recusa de Bergson em admitir qualquer diferença de valor entre a metafísica e a ciência e


a sua afirmação de que a metafísica e a ciência se distinguem unicamente pela diversidade
dos seus objec-

27

tos, poderá fazer supor que tal diversidade seja de algum modo irredutível, isto é, que a
matéria e o espírito constituam duas realidades últimas, ainda que em mútuo contacto e
com mútuas possibilidades de aproximação e de inserção. Porém, a Evolução criadora tem,
entre as suas partes mais significativas, uma "génese ideal da matéria" que é uma tentativa
para explicar a matéria mesma por meio de unia detenção virtual ou possível do impulso
vital, que é pura espiritualidade.

A evolução da vida surge à primeira vista a Bergson como o resultado do encontro e da luta
entre o espírito e a matéria. "Tudo se passa como se uma ampla corrente de consciência
tivesse penetrado na matéria, carregada, como toda a consciência, de uma enorme,
multiplicidade de virtualidades que se interpenetrassem. Ela impeliu a matéria para a
organização, mas o seu movimento foi a um tempo infinitamente atrasado e infinitamente
dividido" (Évol. créatr., p. 197). Mas a intuição não tarda em compreender que a
materialidade, como interrupção da tensão vital, como detenção virtual do impulso, como
aparição da extensão e da divisão dos entes e como inversão da ordem vital na ordem
estática da matéria, é, de algum modo, presente à própria consciência humana. "Quanto
mais tomamos consciência do nosso progresso na pura duração - diz Bergson. (1b., p. 219-
20) -tanto mais sentimos as

diversas partes do nosso ser entrarem umas nas outras e toda a nossa personalidade
concentrar-se num ponto, ou melhor, numa ponta, que se insere no futuro, acutilando-o sem
tréguas. Nisto consistem a
28

vida e a acção livre. Deixamo-nos ir, ao invés; sonhamos em vez de agirmos. Neste mesmo
acto, o

nosso eu se dispersa; o nosso passado, que até àquele momento se recolhia em si mesmo no
impulso indivisível que nos comunicava, decompõe-se em mil recordações que se
exteriorizam umas em relação às outras. Renunciam a interpenetrar-se à medida que se
solidificam. A nossa personalidade desce assim na direcção do espaço". A materialidade é,
portanto, um movimento, ou melhor, uma suspensão virtual do movimento ou um obstáculo
ao movimento que se encontra na própria consciência.

Deste ponto de vista, a vida é "um. esforço para ascender pela vertente pela qual a matéria
desce". Se a vida fosse pura consciência, e, por maioria de razão, se fosse supraconsciência,
seria pura actividade criadora (Evol. créat., p. 267). Mas o limite da sua criatividade é-lhe
intrínseco: o seu movimento para a

frente complica-se com o seu movimento para trás, e este movimento para trás, a dispersão
da vida, a

solidificação que procura deter o fluxo criador, é a

imaterialidade. "Na realidade, a vida é um movimento, a materialidade é o movimento


inverso, e cada um destes dois movimentos é simples, uma vez que a matéria que forma um
mundo é um fluxo indiviso, como indivisa é a vida que a atravessa, recortando nela os seres
vivos, Destas duas correntes, a segunda opõe-se à primeira; não obstante, a primeira obtém
alguma coisa da segunda: daí resulta aquele modus vivendi que é, precisamente, a
organização" (Ib., p 271). A organização biológica, toma, para os nossos, sentidos e para a
nossa inteligência, a forma de

29

partes extrínsecas umas às outras no tempo e no espaço, porque fechamos os olhos à


unidade 1) impulso que, através das gerações, une os órgãos aos órgãos, os indivíduos aos
indivíduos, as espécies às espécies, e faz de toda a série dos vivos uma única onda que
corre através da matéria. Mas assim que, mediante a intuição, estalamos o esquema
solidificado da inteligência, tudo se põe de novo em movimento e se resolve no movimento.
Este movimento é continuado na natureza unicamente pelo homem, já que, em toda a parte,
salvo no homem, a consciência se viu bloqueada e impedida de chegar à sua

forma. Só o homem continua o movimento criador do impulso vital e o continua nas


manifestações que lhe são próprias: a moral e a religião.

§ 699. BERGSON: SOCIEDADE FECHADA E SOCIEDADE ABERTA

Nem mesmo no mundo humano, que é o mundo social, a consciência é pura actividade
criadora. O antagonismo de movimentos que a intuição descobre na consciência do eu e
que se volta a encontrar na vida como contraste entre impulso vital e materialidade, domina
também o mundo social. As sociedades humanas que historicamente se formaram e se
formam são sociedades fechadas, nas quais o indivíduo actua unicamente como parte do
todo, e que deixam uma margem mínima à iniciativa e à liberdade. A ordem social
modela--se pela ordem física, conquanto as suas leis não tenham a necessidade absoluta das
30

leis físicas. Mas o indivíduo segue o caminho já traçado pela sociedade: automaticamente
obedece às regras desta e conforma-se aos seus ideais. A sociedade é a fonte das obrigações
morais. Estas não são, como queria Kant, exigências da pura razão, mas hábitos sociais que
garantem a vida e a solidez do corpo social. A razão entra nestas obrigações só para ditar as
modalidades do seu exercício mas nada tem a ver com a origem delas. Na base da
sociedade existe o costume de contrariar hábitos, e este é o único fundamento da obrigação
moral. O que na outra grande linha da evolução animal a natureza realizou mediante o
instinto, dando origem à colmeia e ao formigueiro, na linha da inteligência realizou-o
mediante o hábito. Nesta linha, deixou uma certa latitude à escolha individual, e, portanto,
todo o hábito moral tem uma certa contingência- Mas o seu conjunto, isto é, o hábito de
contrair hábitos, tem a mesma intensidade e regularidade que o instinto (Deux sources, p.
21).

Mas além da moral da obrigação e do hábito, que é própria de uma sociedade fechada,
existe a moral absoluta, a dos santos do cristianismo, dos sábios da Grécia, dos profetas de
Israel, que é a moral de uma sociedade aberta, Esta moral não corresponde a um grupo, mas
a toda a humanidade. Tem por fundamento uma emoção original, e continua o esforço
gerador da vida. A moral da obrigação é imutável e tende à conservação; a moral absoluta
está em movimento e tende ao progresso. A primeira exige a impersonalidade, porque a
conformidade a hábitos adquiridos; a segunda corresponde ao apelo

31

de uma personalidade que pode ser a de um revelador da vida moral ou um dos seus
imitadores, ou também a da própria pessoa que age. A estas duas morais distintas
correspondem dois tipos diversos de religião.

§ 700. BERGSON: RELIGIÃO ESTÁTICA E RELIGIÃO DINÂMICA

O nascimento das superstições religiosas é explicado por Bergson. mediante a função


fabuladora. As superstições têm, de facto, um carácter fantástico, mas não podem ser
reduzidas à fantasia que actua nos inventos científicos e nas realizações artísticas. A função
fabuladora nasce no curso da evolução por uma exigência puramente vital. A inteligência,
que é o instrumento principal da vida humana (a qual, como se viu, se rege somente
enquanto é capaz de fabricar instrumentos artificiais), ameaça voltar-se contra a própria
vida. O ser dotado de inteligência é levado, de facto, a pensar apenas em si mesmo

e a desprezar os seus laços sociais. A religião é a


reacção defensiva da natureza contra o poder dissolvente da inteligência: os seus mitos e
superstições servem para impelir o homem para os seus semelhantes, subtraindo-o ao
egoísmo em que a inteligência o faria cair. Além disso, a inteligência mostra claramente ao
homem a sua natureza mortal, e isso representa para uma mentalidade primitiva um
segundo perigo, contra o qual a religião reage com a crença na imortalidade e com o culto
dos mortos. Em ter-
32

BERGSON

ceiro lugar, a inteligência faz perceber claramente ao

homem a imprevisibilidade do futuro e, portanto, o

carácter aleatório de todos os seus empreendimentos. A religião exerce também aqui unia
função defensiva, dando ao homem o sentido de uma protecção sobrenatural, que o subtraia
aos perigos e à incerteza do futuro. Finalmente, a religião fornece mediante as

crenças e as práticas mágicas a possibilidade de crer numa influência do homem sobre a


natureza muito superior à que o homem pode efectivamente alcançar mediante a técnica.

Uma religião assim constituída é, segundo Bergson, infra-intelectual. É, em geral, a reacção


defensiva da natureza contra o que há de deprimente para o indivíduo e de dissolvente para
a sociedade no exercício da inteligência. É, pois, uma religião natural no sentido de que é
um produto da evolução natural. Mas a par desta religião estática, a religião dinâmica
constitui a forma supra-intelectual da religião, que retoma e continua directamente o
impulso vital originário. Bergson identifica a religião dinâmica com o nústicismo.

O misticismo é muito raro e pressupõe um homem privilegiado e genial. Mas ele apela para
algo que existe em todos os homens; e mesmo quando não chega a comunicar aos outros
homens a sua força criadora, tende a subtraí-los ao formalismo da religião estática e produz
assim numerosas formas inter- .. ~..=- "0 resultado do misticismo - diz Bergson
(Deux Sources, p. 235) -é uma tomada de contacto e, por consequência, uma coincidência
par-
33

com o esforço criador que a vida manifesta,

é de Deus, se não é Deus mesmo".


O misticismo antigo, tanto o platónico como o

oriental, é um misticismo da contemplação: não acreditou na eficácia da acção humana. o


misticismo completo é o dos grandes místicos cristãos (5. Paulo, Sta. Teresa, S. Francisco,
Joana de Are), para os quais o êxtase não é um ponto de chegada, mas o
ponto de partida de uma acção eficaz no mundo.
O amor do místico pela humanidade é o próprio amor de Deus: é um amor que não conhece
problemas nem mistérios, porque continua a obra da criação divina (Ib., p. 251). A
experiência mística fornece a

única prova possível da existência de Deus. O acordo entre os místicos não só cristãos, mas
também pertencentes a outras religiões, é "o sinal de uma identidade de intuição, que se
pode explicar do modo mais simples pela existência real do Ser com o qual crêem estar em
comunicação" (ib., p. 265). A experiência mística leva a considerar o universo como o

aspecto visível e tangível do amor e da necessidade de amar. "Deus é amor e é objecto de


amor: aqui está todo o misticismo". (1h., p. 270). Só o amor justifica a multiplicidade dos
seres vivos e, portanto, a realidade do próprio universo, requerido pela existência de seres
distintos entre si e por Deus. Bergson aceita francamente uma concepção optimista do
mundo". "Existe um optimismo empírico-diz ele (1b., p. 280) - que consiste simplesmente
em verificar dois factos: em primeiro lugar, que a humanidade julga boa a vida no seu
conjunto porque está ligada a ela, em segundo lugar, que existe uma alegria sem

34

mescla, situada para já do prazer e da dor, que é o

estado de alma definitivo do místico".

Bergson aspira a que surja algum génio místico que venha corrigir os males sociais e
morais de que sofre a humanidade. A técnica moderna, estendendo, a esfera da acção do
homem sobre a natureza, tem de certo modo engrandecido desmedidamente o corpo do
homem. Este corpo engrandecido "espera um suplemento de alma, e a mecânica exigiria
uma mística" (Ib,, p. 355). Os problemas sociais e políticos internacionais que nascem desta
desproporção poderiam ser eliminados por um renascimento do misticismo. Neste caso, a
mecânica que curvou ainda mais a humanidade para a terra, poderia servir-lhe para se
endireitar e olhar o céu. E a humanidade poderia então retomar no nosso planeta "a função
essencial do universo, que é uma máquina de fazer deuses" (1b., p. 343).

A doutrina da religião dinâmica que acabamos de expor é a parte mais débil de toda a obra
de Bergson, e é também aquela em que a elegância imaginativa do estilo do filósofo se
transforma abertamente em ênfase e oratória. A identificação da religião autêntica com o
misticismo não poderia ser

aceite por nenhuma das grandes religiões ocidentais; e a própria identidade, em que
Bergson insiste, das experiências místicas procedentes de religiões diversas é fortemente
suspeita. Na realidade, o misticismo, como o entende Bergson, tem um pressuposto
panteísta: a identidade substancial do homem e de Deus. O homem, enquanto constituído
na sua essência por um impulso vital super-individual e sobre-hu-

35
~o que, como Bergson diz, "é divino ou é o próprio Deus", não é, na sua natureza espiritual,
senão um ou uma manifestação do divino ou de Deus. Mas a relação de íntima comunhão
entre o homem e Deus, a firmeza e a estabilidade da comunicação postulada pelo
misticismo tal como Bergson o entende, elimina de um golpe a vida religiosa. Nenhuma
religião, e muito menos o catolicismo para o qual iam as simpatias de Bergson nos últimos
anos, poderia considerar o universo como "uma máquina de fazer os deuses" e os homens
iguais a estes deuses. Bergson repetiu na sua última obra as linhas de um panteísmo
romântico para o qual o finito é manifestação e revelação do infinito e a individualidade do
homem se dissolve ou parece inconsistente e a sua liberdade se identifica com a
espontaneidade criadora da força cósmica.

§ 701. BERGSON: O POSSÍVEL E O VIRTUAL

As categorias metafísicas que Bergson explicitamente elucidou e estabeleceu como base da


sua investigação inspiram-se precisamente neste panteísmo romântico. Por isso se prestam
a justificar a filosofia de Bergson só naqueles aspectos em que ela é redutível a um tal
pensamento, mas não os outros, talvez mais vivos, pelos quais a filosofia bergsoniana se
insere no círculo da filosofia contemporânea.

A categoria que preside à duração real (na variedade das suas manifestações) é a própria
realidade, é a criação. Bergson define esta categoria como "a

36

novidade imprevisível" da evolução universal, enquanto é sempre evolução espiritual e que,


por isso, se revela directa e imediatamente na consciência. A ideia de criação não é mais do
que a percepção imediata que cada um de nós tem da sua própria actividade e das condições
em que ela se exerce. "Dêem-lhe o nome que quiserem - diz Bergson (Pensée et Mouv, p.
118-19 -, ela é o sentimento que temos de ser criadores das nossas intenções, das nossas
decisões, dos nossos actos, e, por consequência, dos nossos hábitos, dos nossos caracteres,
de nós mesmos. Artífices da nossa vida, e também artistas, quando queremos sê-,lo,
trabalhamos continuamente com a matéria que nos oferece o passado e o presente, a
hereditariedade e as circunstâncias, a fim de plasmarmos uma figura única, nova, original,
imprevisível como a forma que o escultor imprime ao barro".

Esta simples verificação imediata, elimina, segundo Bergson, todos os problemas da


metafísica e da teoria do conhecimento, uma vez que elimina o

problema do ser (e do nada) e o da ordem (e da desordem). O problema da metafísica


consiste em perguntar-se porque é que existe o ser, porque é que Z,

existe qualquer coisa ou alguém em geral, quando, afinal, poderia não existir nada. Ora,
este problema é puramente fictício, porque se baseia no uso arbitrário do termo nada, que
só tem sentido no seu

terreno, precisamente o do homem: o da acção e da fabricação. "Nada" designa a ausência


do que buscamos, do que desejamos ou do que esperamos, mas
não designa positivamente nada do que percebemos

37

ou pensamos. que é sempre um "pleno", nunca um

"vazio". Quando dizemos que não existe nada, pretendemos dizer que o que existe não nos
interessa e que estamos interessados no que já não existe ou poderia ter existido. De modo
que a ideia do nada está ligada à de uma supressão real ou eventual e, por conseguinte, à de
uma substituição. Ora, a supressão, enquanto substituição, nunca pode ser total, uma vez
que nesse caso não seria substituição. O mesmo se pode dizer do problema da ordem. A
ordem torna-se um problema quando nos perguntamos porque é que ela existe em lugar da
desordem, e implica portanto, como problema, a legitimidade da ideia da desordem. Mas
esta ideia significa simplesmente a ausência da ordem procurada; e é impossível suprimir,
mesmo mentalmente, uma ordem sem fazer surgir dela outra. O problema fundamental da
gnoseologia revela-se, como o da metafísica, um problema fictício derivado do uso
arbitrário das palavras.

Estas análises, que Bergson desenvolveu amplamente na Evolução criadora e repetiu e


confirmou depois, mais recentemente (Pensée et Mouv., p. 122 sgs.), figuram entre as mais
merecidamente famosas da filosofia contemporânea, mas não serviam para o fim que ele
pretende atingir, isto é, a geração do problema da metafísica ou da metafísica como
problema. Com efeito, tais análises não conduzem à eliminação do nada e da desordem,
mas somente à definição destes como nulidade possível do ser e da ordem, ainda que seja
só no sentido da possível substituição deles por um ser ou por uma ordem em que o homem
não esteja interessado. Estas anã-
38

lises deveriam, portanto, ser completadas com uma

análise da categoria do possível; mas esta, infelizmente, não se encontra nas obras de
Bergson. De facto, Bergson entendeu sempre o possível no sentido de "virtual", no sentido
da potencialidade aristotélica e ignorou simplesmente ou passou em silêncio o seu
significado próprio de problemático. O possível, segundo Bergson, é apenas "a miragem do
presente no passado": à medida que a realidade se cria a si mesma, sempre imprevisível e
nova, a sua imagem reflecte-se por detrás no passado indefinido. A realidade mesma passa
deste -modo a ser possível, mas precisamente no momento em que se torna realidade:

a sua possibilidade não a precede verdadeiramente, mas segui-a (Ib., p. 128). Por outras
palavras, o possível é, para Bergson, a sombra virtual que a realidade, autocriando-se,
projecta no próprio passado. Esta sombra virtual não tem, evidentemente, nada a ver com o
sentido concreto da possibilidade presente, mesmo emotivamente, em toda a experiência ou

situação humana. Contudo, este sentido não é estranho à filosofia de Bergson que pôs em
luz na Evolução criadora o bloqueamento e a dispersão do impulso vital em muitas das suas
direcções e correntes, e exprimiu nas páginas finais das Deux sources as

suas preocupações pela sorte do homem no futuro. Isto implica, indubitavelmente, o


reconhecimento de uma radical incerteza, instabilidade e insegurança de desenvolvimento
da experiência humana, que aliás se encontra ensombrada pelo carácter de
"imprevisibilidade" que Bergson lhe atribui. Pode dizer-se que a experiência mística subtrai
o homem a esta condi-
39
ção (e à categoria da possibilidade que filosoficamente a exprime) para o vincular a uma
certeza em que já não subsistem problemas nem dúvidas sobre o futuro. Mas a consecução
e a consolidação da experiência mística, que vem a ser para o homem senão uma
possibilidade a que agarrar-se, um problema a resolver?

A filosofia de Bergson rompe, nalguns pontos essenciais, o quadro da necessidade


romântica em

que, explicitamente, o autor quis mantê-la. Sob este aspecto, encontra a sua continuação e o
seu enriquecimento no pragmatismo contemporâneo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 692. Passagens do testamento de B. em A.

BÉGUIN e P. THÉVENAZ, H.B., Neuchâtel, 1941. Sobre a bibliografia: A Contribution to


a Bibliography of H.B., Nova Iorque, 1913; e "Revue Internationale de Philosophie", 1949,
n. 10.

Alguns escritos menores de Bergson encontram-se recolhidos em Ècrits et Paroles, ao


cuidado de R. M. MOSSÉ-BASTIDE, Paris, 1957.

Sobre as relaçõe:s de B. com Maine de Biran: H. GAUBIER, in Études bergsoniennes, 1,


1948.

J. BENDA, Le Bergsonisme ou une philosophie de Ia mobilité, Paris, 1912; R.


BERTHELOT, Le pragmatisme chez Bergson, Paris, 1913; F. KOLGIATI, La filosofta di
R., Turim, 1914; J. MARITAIN, La philosophie bergsonienne, Paris, 1914; LE ROY, Une
philosophie nauvelle, Paris, 1914; H. H~DING, La philosophie de R., Paris,
1916; F. D'AMATO, 11 pensiero di E.B., Città di Castello,
1921; THIBAUDET, Le Bergsonisme, Paris, 1923; J. CHEVALIER, B., Paris, 1929;
JANNÉLÉVITC11, B., Paris, 1931;

40

A. METZ, Bergson et le Bergsonisme Paris, 1933; G. SANTAYANA, II pensiero


americano e aZtri saggi, Milão,
1939, p. 191-248; E. LF, Roy, B. RoMEYER, P. KUCHARSKI, A. FOREST, P.
D'AUREc, A. BRÉMOND, A. RICOEUR, Bergson et le Bergsonisme, in "Archives de
philosophie", V. XVII, e. 1; V. MATI-IIEU, R., II profondo e Ia sua espressione, Turim,
1954 (com bibl.).

§ 693. J. DELHOMME, Durée et vie dans Ia phitosophie de Bergson, in Êtudes


ber98oniennes, 11, 1949; E. BR£HIER, Images plotiniennes, images bergsoniennes, in
Êtudes bergsoniennes, E, 1949, V. MATMEU, op. Cit.

§ 696. L. HUSSON, L'intelectualisme de, Bergson, Paris, 1947.

§ 697. J. SEGOND, L'intuition bergsonienne, Paris,


1923; R. M. MossÉ-BASTIDE, L'intuition bergsonienne, in "Revue philosophique", 1948,
p. 195-206; F. DELATRIZE, Bergs,on et Proust, in Études bergsoniennes, 1, -1948.

§ 700. CARBONARA, in "Logos", Nápoles, 1934; H. IVIAVIT, Lex mesisage de Bergson,


in "Culture humaine,>,
1947, p. 491-501; H. SUNDIN, La théorie bergsonienne de Ia religion, Paris, 1948.

41

IV

O IDEALISMO INGLÊS E NORTE-AMERICANO

§ 702. CARACTERISTICAS DO IDEALISMO

O termo "idealismo" é empregado ordinariamente num sentido gnoseológico e serve,


portanto, para designar toda a doutrina que reduza a realidade a "ideia", isto é, a sensação, a
representação, a pensamento, a dado ou a elemento de consciência. Neste sentido, o
idealismo é o aspecto comum de doutrinas diversas e díspares e pode servir igualmente para
caracterizar, por exemplo, a doutrina de Berkeley ou de Hume e a de Schelling ou de
Hegel. Além disso, muitas correntes da filosofia contemporânea são, neste sentido,
igualmente idealistas: o espiritualismo e o neocriticismo, o transcendentalismo in- ,-lês e
norte-americano, o idealismo italiano, a filosofia

43

da acção e grande parte da fenomenologia. Este idealismo gnoseológico é o dominador


comum de todas as filosofias antipositivistas que caracterizaram os últimos decénios do
século passado e os primeiros do nosso; enquanto que o seu oposto, o realismo, foi,

no mesmo período, uma excepção e só mais recentemente adquiriu uma certa importância e
significação. Neste sentido, portanto, a palavra idealismo não se presta para indicar
nenhuma orientação histórica determinada mas apenas uma doutrina gnoseológica que,
sendo comum a orientações diversas, não caracteriza historicamente nenhuma.
Neste estudo, empregaremos o termo de idealismo no seu sentido especificamente
histórico, ou seja, no sentido de uma orientação que principia com a

chamada "filosofia clássica alemã" e pretende demonstrar a unidade ou a identidade de


infinito e finito, de espírito e natureza, de razão e realidade, de Deus e mundo. Neste
sentido, só poderão ser compreendidos sob a rubrica "idealismo" aqueles movimentos que
se vinculam estritamente às teses fundamentais do idealismo clássico alemão, isto é, o
idealismo inglês e norte-americano e o italiano. A característica principal deste idealismo,
tal como se verifica nas demais orientações, reside na maneira como entende e pratica a
filosofia: consiste essa maneira em mostrar a unidade entre o infinito e o finito, quer
partindo do infinito, quer partindo do finito, mas, de qualquer modo, mediante
procedimentos puramente "especulativos" ou "dialécticos".

44

§ 703. AS ORIGENS DO IDEALISMO INGLÊS E NORTE-AMERICANO

O idealismo inglês e norte-americano visa a mostrar a unidade entre o finito e o infinito


partindo do primeiro; ou, como também se pode dizer, por via negativa, isto é, mostrando
que o infinito, pela sua

intrínseca irracionalidade, não é real ou é real na medida em que revela e manifesta o


infinito, que é a

verdadeira realidade, e postulando portanto a resolução final do finito no infinito.

As manifestações técnicas deste último idealismo são precedidas por uma verdadeira
floração romântica que se verifica na Inglaterra e na América pouco antes dos meados do
século XIX. Em Inglaterra, os poetas Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) e

William Wordsworth (1770-1850) inspiraram-se, nas suas poesias (e o primeiro também


em ensaios literários e filosóficos) no idealismo de Schelling. Simultaneamente, o
idealismo encontrava na Inglaterra e

na América dois expositores e defensores que o revestiam de uma forma brilhante e


popular, embora superficial e enfática: Carlyle e Emerson.

Tomás Carlyle (1795-1881), depois de alguns ensaios e estudos em que se preocupava em


dar a conhecer ao público inglês a literatura romântica alemã, publicou o Sartor resartus,
que é ao mesmo tempo uma sátira alegórica da sociedade contemporânea e a expressão dos
seus princípios filosóficos. Num trabalho histórico, A revolução francesa (1837), exaltou
liricamente as grandes figuras dessa revolução; e na obra Os heróis (1841) concebeu a
história como

45

o campo de acção das grandes personalidades e estudou diversas manifestações do


heroísmo humano. Em numerosos ensaios posteriores dirigiu uma crítica mordaz à
sociedade mecânica exaltando liricamente, em oposição a ela, o ideal de uma vida espiritual
domina-da pela vontade e pelos valores morais. Em Sartor resartus, o universo é um
vestido, isto é, um

símbolo ou uma aparição do poder divino que se

manifesta e actua em graus diversos em todas as coisas. Carlyle exalta o mistério que
envolve "o mais estranho de todos os mundos possíveis". O universo não é um armazém ou
um fantástico bazar, mas o místico templo do espírito. A segurança de que a

ciência tem de possuir a chave do mundo da natureza é ilusória. O milagre que viola uma
suposta lei da natureza não pode ser, em compensação, a acção de uma lei mais profunda,
que vise pôr a força material ao serviço da energia espiritual? Na realidade, todas as coisas
visíveis são sinais ou emblemas: a matéria só existe para o espírito: não é mais do que a
encarnação ou a representação exterior de uma

ideia. No mundo da história, o poder divino manifesta-se naquelas grandes personalidades a


que Carlyle chama heróis. Os heróis são "os indivíduos da história universal" de que falava
Hegel, ou seja, os instrumentos da providência divina que domina a história, E tudo o que
na história humana encerra de grande e de duradouro é devido à sua acção.

Quase ao mesmo tempo Relph Waldo Emerson (1803-82) arvorava-se na América em


defensor do "transcendentalismo", ou seja, de um idealismo panteísta de cunho hegeliano.
Tal concepção surge pela

46

primeira vez num escrito intitulado Natura (1836) e foi depois defendida em numerosos
Ensaios. A sua obra Homens representativos (1850) reduz (como os

Heróis de Carlyle) a história à biografia dos grandes homens. A convicção fundamental de


Emerson é que em toda a realidade actua uma força superior que ele denomina de Super-
alma ou Deus. A única lei do homem consiste em conformar-se com esta força. O próprio
mundo é um símbolo e um emblema. A natureza é uma metáfora do espírito humano e os

axiomas da física não são mais do que a tradução das leis -da ética. Mas o espírito humano
é o próprio espírito de Deus. "0 inundo - diz Emerson (Nature, ed. 1883, p. 68), -procede do
mesmo espírito de que procede o corpo do homem: é uma inferior e mais remota
encarnação de Deus, uma projecção de Deus no inconsciente. Mas difere do corpo num
aspecto importante: não está como o corpo, sujeito à vontade humana. A sua ordem serena
é inviolável para nós. Ele é, portanto, para nós, o testemunho presente do Espírito divino, é
um ponto fixo em

referência ao qual podemos medir os nossos erros.

Assim que degeneramos, o contraste entre nós e a


nossa casa torna-se mais evidente, e nós tornamo-nos estranhos na natureza ao afastarmo-
nos de Deus". Emerson pode afirmar sobre esta base a identidade romântica entre filosofia
e poesia: uma e outra descobrem no mundo a sua força oculta, a Super-alma que o domina.
A Super-alma é o espírito de verdade que se revela no homem, como um olho que vê
através de uma janela aberta de par em par. É o

47

fundamento da comunicação entre os homens, que só é possível sobre a base de uma


natureza comum e impessoal, de Deus mesmo. É, enfim, a força, que actua no génio e nos
homens a quem a humanidade deve os seus maiores progressos (Essays, ed. 1893, 1, p.
270). A liberdade humana não consiste, pois, em fugir ao mundo e à necessidade que o
domina, mas sim em reconhecer a racionalidade e a perfeição desta necessidade e em
conformar-se a ela.

A verdadeira especulação idealista inicia-se em

Inglaterra com a obra de Jacob Hutchinson Stirling (1820-1909), O segredo de Hegel


(1865), obra muito pouco original, dedicada à exposição e à defesa do sistema hegeliano. O
segredo de Hegel é, segundo Stirling, a estreita relação de Hegel com a de Kant, de que a
primeira é a legítima e necessária consequência. Stirling via o ponto basilar do
hegelianismo na redução de toda a realidade ao pensamento infinito de Deus, de que o
próprio homem é um aspecto ou um elemento.

A primeira manifestação original do idealismo inglês deve-se ao filósofo Tomás Hill Green
(1836-82). Green é autor de duas longas Introduções às duas partes do Tratado da natureza
humana de Hume (ed. 1874-1875) e dos Prolegómenos à ética (1883), que é a sua obra
principal, e de outros ensaios menores. A Hume e, em geral, ao empirismo, Green objecta
que é impossível reduzir a natureza

a um conjunto de percepções ou ideias e que é impossível entender a conexão que tais


percepções ou

ideias apresentam entre si. Toda a percepção ou ideia só pode ser reconhecida na sua
singularidade

48

por uma consciência que não é idêntica a elas, porque delas se distingue no próprio acto do
reconhecimento; e toda a conexão ou sucessão de ideias só o é para uma consciência, que
não é em si mesma conexão ou

sucessão, mas compreende em si tais coisas. De facto, o sujeito que reconhece uma ideia ou
a relação entre várias ideias, não pode ser, por sua vez, uma ideia, porque isto implicaria
que uma ideia fosse, ao mesmo tempo, todas as outras. E não pode ser um composto de
sensações ou de ideias porque as ideias na consciência se sucedem umas às outras, e a
sucessão não pode constituir um composto. É necessário, portanto, que o sujeito esteja fora
das ideias para que perceba as ideias, e fora da sucessão para que perceba a

sucessão. Por outros termos, deve ser um Sujeito único, universal e eterno. Um sujeito desta
espécie é também o pressuposto tácito de todo o naturalismo mas torna impossível o
próprio naturalismo. Se o

mundo é uma série de factos, a consciência não pode ser um destes factos, porque um facto
não pode compreender em si todos os outros. A natureza é uma contínua mudança; mas
uma mudança não pode produzir a consciência de si mesma, porque esta deve estar
igualmente presente em todos os estádios da mudança. As relações entre os factos surgem
mediante a acção de uma Consciência unificante que não se reduz a um dos factos relativos.
Assim, as relações temporais só o são para uma consciência eterna. Deste modo, Green
deduz a necessidade de uma Consciência absoluta (isto é, infinita e eterna) da própria
consideração da realidade natural a que

49

o empirismo e o positivismo pretendiam reduzir a consciência.

Todavia, a consciência humana tem uma história no tempo, e Green não nos esconde a
dificuldade que este facto fundamental e inigualável apresenta para a sua teoria da
consciência absoluta. A sua solução é que a história não pertence verdadeiramente à
consciência, mas apenas ao processo através do qual o organismo animal se toma o veículo
da consciência mesma. A nossa consciência, segundo afirma, pode significar duas coisas:
ou a função de um organismo animal, que se tornou, gradualmente

e com interrupções, um veículo da eterna consciência; ou esta mesma eterna consciência,


que faz do organismo animal o seu veículo e está por isso sujeita a certas limitações, mas
conserva as suas características essenciais de independência em relação ao

tempo e de determinante do devir. A consciência, que varia a cada momento, que está em
sucessão, e em cada um de cujo§ estados sucessivos depende de uma série de eventos
interiores e externos, é consciência no primeiro sentido. A nossa consciência, com as suas
relações características em que o tempo não entra, que não devêm mas são de uma vez por
todas o que são, é a consciência no outro sentido (Prol. to Ethios, p. 73). Esta distinção
elimina toda a incompatibilidade entre a afirmação da consciência absoluta e a admissão de
que todos os processos do cérebro, dos nervos e dos tecidos, todas as funções da vida e do
sentido, têm uma história estritamente natural. Tal incompatibilidade só existiria se estes
processos e funções constituíssem realmente o homem

50

capaz de conhecimento; a actividade humana, ao invés, só se pode explicar mediante a


acção de uma consciência eterna, que se serve dela como de um órgão próprio e se
reproduz a si mesma através dela. Porque é que esta repetição deve existir, porque é que a
eterna consciência deve procurar e promover
a sua repetição imperfeita através dos órgãos e das funções do organismo humano, é um
enigma que Green considera insolúvel. "Devemos contentar-nos em dizer que, por muito
estranho que possa parecer, a coisa é assim" (Ib., p. 86). Como quer que seja, Green
considera que só o conceito de uma consciência absoluta pode justificar a ideia de
progresso, uma vez que os conhecimentos novos que o homem adquire não podem vir ao
ser no momento em que são descobertos; são já reais na consciência absoluta e o progresso
não é mais do que a adequação crescente da história animal da consciência à consciência
absoluta (1b., p. 75). Estas considerações estendem-se também à vida moral do homem. O
aperfeiçoamento do homem tende a um termo que é já plenamente real e completo na
consciência absoluta. Quando se diz que o espírito humano tem a possibilidade de realizar
alguma coisa que não se realizou ainda na

experiência humana, pretende dizer-se que há uma

consciência na qual este algo já existe. A consciência eterna, Deus, é, pois, ab aeterno tudo
o que o homem tem a possibilidade de chegar a ser. Não só é o Ser que nos fez, no sentido
de que existimos como um

objecto da sua consciência, como a natureza, mas é também o Ser em que existimos e ao
qual somos idênticos na medida em que é tudo o que o espírito humano é capaz de chegar a
ser (1b., p. 198). A vida moral impele o homem para o aperfeiçoamento individual e a
satisfação das suas próprias exigências; mas esta tendência universaliza-se e racionaliza-se
imediatamente porque o seu termo é a

consciência absoluta em que todos os homens estão igualmente presentes. Devido a isto o
bem foi concebido como uma actividade espiritual de que todos podem e devem participar
e, portanto, como uma

vida social em que todos os homens devem cooperar livre e conscientemente e em que deve
dominar a

harmoniosa vontade de todos (Ib., p. 311.).

Esta concepção de Green foi a base constante do idealismo inglês posterior. John Caird
(1820-98) fez dele a base de uma filosofia da religião (Introdução à filosofia da religião,
1880). O fundamento da religião é, segundo Caird, a unidade do finito e do infinito:
unidade que é plenamente realizada e

actual na vida divina, mas que o homem só pode alcançar através de um infinito progresso,
que é exactamente a sua vida religiosa. "A religião é a elevação do finito para o infinito, o
sacrifício de todo o desejo, inclinação ou volição que me pertence como indivíduo privado,
a absoluta identificação do meu querer com o querer de Deus" (Intr., ed. 1889, p, 283).
Eduard Caird (1835-1908) fazia de uma concepção análoga o critério de uma crítica
miinuciosa e pedante da doutrina kantiana (A filosofia crítica de Kant, 2 vol., 1889) e a
base para entender A evolução da religião (1893). Com efeito, delineia três formas
"teoricamente progressivas da consciência religiosa. A Primeira é a objectiva, segundo a
qual Deus é

52

concebido como um objecto entre os objectos (politeígnio, enoteísmo). A segunda é a


subjectiva, segundo a qual Deus é concebido como uma vontade espiritual que se revela na
autoconsciência dos homens (estoicismo, profetismo, puritanismo, Kant). A terceira é a
final e perfeita, em que Deus é reconhecido na verdadeira forma da sua ideia, isto é, como a
unidade do sujeito e do objecto e, portanto, como principio comum da exterioridade
cósmica e da interioridade espiritual.

§ 704. BRADLEY

A maior figura do idealismo inglês é Francisco Herberto Bradley (1846-1924) que elegeu
para tema fundamental da sua especulação o antigo e sempre novo contraste entre aparência
e realidade, que dá o título à sua obra principal (Aparência e realidade,
1893). Bradley é também autor de Estudos éticos, (1876), Princípios de lógica (1893),
Ensaios sobre a

verdade e a realidade (1914) e de muitos outros estudos de filosofia e psicologia.

Segundo Bradley, todo o mundo da experiência humana é aparência, e só é real a


consciência absoluta. O mundo da experiência é, com efeito, inteiramente irracional,
contraditório e incompreensível; e é assim porque todos os aspectos dele se baseiam em
relações e as relações são inconcebíveis. Bradley examina a relação entre qualidades
primárias e secundárias, entre a coisa e as suas qualidades, a relação espacial e temporal, a
zausal, a que constitui o

53

sujeito ou eu. Bradley encontra em todas elas a mesma dificuldade fundamental: toda a
relação tende a identificar o que é diverso, e nisso é contraditória. Toda a relação modifica
os termos relativos, mas cada um destes termos cinde-se em duas partes: uma, modificada,
e outra, que permanece inalterada: e

estas duas partes não podem unir-se senão por uma

nova relação, o que implica uma nova modificação e uma nova cisão; e assim até ao
infinito. Deste modo, a relação que deveria tornar inteligível a unidade dos termos relativos,
não faz mais do que dividi-los e

multiplicá-los internamente até ao infinito: por isso é contraditória. Todo o sistema da


experiência humana, assente nas relações, se pulveriza, mediante a

reflexão filosófica, numa miríade de termos no interior de outros termos que não estão
juntos de nenhuma maneira inteligível. Nem mesmo o eu, segundo Bradley, escapa a esta
dificuldade. É, no entanto, verdade que a existência do eu está de algum modo fora de
qualquer dúvida, mas só como unidade da experiência imediata, anterior à reflexão
racional. Esta unidade deveria ser entendida e justificada racionalmente; mas logo que se
inicia esta tentativa introduzindo a distinção entre eu e não eu, as dificuldades inerentes a
toda a relação deparam-se-nos imediatamente e o eu torna-se inconcebível.

Nenhum aspecto do inundo finito se salva da contradição, e nenhum deles pode ser
considerado real. Nem sequer o mundo da pura lógica se salva da contradição. Os
Princípios de lógica de Bradley e os numerosos ensaios que dedicou a problemas de lógica
põem em relevo as contradições que se ani-
54

nham no acto lógico fundamental. O juízo é, segundo Bradley, a referência de uma ideia à
realidade, a qualificação da realidade mediante um conceito que é tomado como símbolo e
significado dela. Por outros termos, todo o juízo implica uma ideia que não é uma simples
ideia, mas uma qualidade do real. Mas se é assim, a multiplicidade e a variedade dos juízos
implica que estes sejam incompatíveis e contraditórios. É bem certo que todo o juízo
qualifica a realidade sob certas limitações ou condições; mas, dado que estas limitações ou
condições qualificaria, por seu

turno, a própria realidade, a contradição não é eliminada mas apenas multiplicada (Essays,
p, 229).
O facto de todo o mundo da experiência e do pensamento ser aparência não significa que se
possa admitir uma realidade em si para além dele mesmo.

Toda a realidade era si não poderia ser senão o termo de uma experiência ou de um acto
lógico e

cairia por isso nas mesmas dificuldades fundamentais.

Todavia, esta mesma condenação radical implica, segundo Bradley, a posse de um critério
absoluto de verdade. Se rejeitarmos como aparente o que é contraditório, consideramos
implicitamente como real o que é isento de contradições e, portanto, absolutamente
consistente e válido. A ausência de contradição implica um carácter positivo e não deve ser
uma pura abstracção. As aparências devem pertencer à realidade porque o que parece de
algum modo existe, quanto mais não seja como aparência. A realidade que o critério da não
contradição nos faz entrever deve portanto conter em si todo o mundo fenoménico de forma
coerente e harmoniosa. Além

55

disso, não pode ser outra coisa senão consciência porque só a consciência é real. Ao mesmo
tempo, esta consciência universal, absoluta e perfeitamente coerente, não pode ser
determinada mediante nenhum dos aspectos da consciência finita (sensação, pensamento,
vontade, etc.), porque tais aspectos são contraditórios. Por outro lado, não deve conter a
divisão entre objecto e sujeito que é própria da consciência finita. Todas estas
determinações negativas implicam a impossibilidade de um conhecimento pormenorizado
da consciência absoluta. Pode-se ter dela uma ideia abstracta e incompleta, embora
verdadeira: mas não se pode reconstruir a

experiência especifica em que ela realiza a sua perfeita harmonia. Tão-pouco a moralidade
pode ser

atribuída ao absoluto. Pode-se supor que neste cada coisa finita atinja a perfeição que
busca; mas não que obtenha a perfeição que busca. No absoluto, o

finito deve ser mais ou menos transmudado e, portanto, desaparecer como finito; e tal é
também o destino do bem. Os fins que a afirmação e o sacrifício do eu podem atingir estão
para lá do eu e do significado dos actos morais. No absoluto, onde nada se pode perder,
todas as coisas perdem o seu carácter mediante uma nova acomodação ou um complemento
mais ou menos radical. Nem o bem nem o mal se subtraem a este destino (Appearance, p.
420). Assim entram, certamente, no absoluto o espaço, o tempo, a individualidade, a
natureza, o corpo, a alma; mas tudo entra nele, não com a sua constituição finita, mas com
uma reconstituição radical, cujas características é- impossível determinar com precisão. No
abso-
56

luto tão-pouco pode subsistir a diversidade entre o sujeito e o objecto, que é inerente a todo
o pensamento finito, o qual é sempre pensamento de algo ou acerca de algo, e implica
portanto uma relação interna que o tome contraditório. O absoluto não pode ser concebido
como alma ou como complexo de almas, porque isto implicaria que os centros finitos de
experiência se mantivessem e fossem respeitados dentro do absoluto: e esse não é o destino
final e último das coisas. Não conhece progressos nem retrocessos. Estes são aspectos
parciais, próprios da aparência temporal e têm apenas uma verdade relativa. "0 absoluto não
tem história, embora contenha inúmeras histórias" (Ib., p. 500). Nem é pessoa, uma vez que
uma pessoa que não seja finita é algo sem sentido (Ib., p. 532).

Desta doutrina substancialmente negativa do absoluto não deduz Bradley que o


conhecimento humano seja totalmente erróneo. Se este conhecimento não alcança nunca a
verdade, que seria a sua perfeita conversão e total conformidade com o absoluto, pode no
entanto atingir diversos graus de verdade. De duas aparências, a mais vasta e mais
harmoniosa é a mais real, porque se aproxima mais da verdade omnicompreensiva e total.
A verdade e o facto de requererem, para se converterem no absoluto, uma acomodação e
uma adição menor, são mais verdadeiros e

reais. O argumento ontológico pode ser interpretado como uma ilustração desta doutrina
dos graus de verdade. Decerto que se deve reconhecer que desde o momento em que a
realidade é qualificada como pensamento, deve possuir todas as características im-
57

plícitas na essência do pensamento. No entanto, a


prova ontológica vai além deste princípio genérico quando afirma não só que a ideia deve
ser real mas também que deve ser real como ideia. isto é falso, segundo Bradley, dado que
um predicado como tal nunca é realmente verdadeiro: deve estar sujeito, para o ser, a
adições e a acomodações. Assim, toda a ideia existente na minha mente pode qualificar
verdadeiramente a realidade absoluta; mas quando a

falsa abstracção do meu particular ponto de vista for corrigida e ampliada, essa ideia pode
ter desaparecido completamente. Por isso, nem toda a ideia será verdadeiramente real;
contudo, quanto maior é a perfeição de um pensamento, a sua possibilidade e a sua interna
necessidade, tanto maior será a realidade que ele possui. A esta exigência nem mesmo

a ideia do absoluto se subtrai, já que toda a ideia, por muito verdadeira que seja, nunca
inclui a totalidade das condições requeridas e é por isso sempre abstracta, enquanto que a
realidade é concreta.

Bradley renovou assim a tese hegeliana da identidade entre o finito e o infinito, mas
renovou-a com o espírito de um cepticismo radical que se recusa

a determinar, seja de que maneira for, as vias e as formas de uma tal identidade. O processo
do pensamento que para Hegel é uma dialéctica que demonstra efectivamente tal
identidade, é, para Bradley ao invés, a confirmação da natureza contraditória do finito e,
portanto, da exigência da sua transmutação total no infinito. Bradley admite, na verdade,
diversos graus de verdade e de realidade; mas, ao mesmo tempo entre os graus mais altos e
o absoluto

58

abre um fosso intransponível, uma vez que tudo no absoluto deve ser transformado e
reajustado até nos seus mais íntimos elementos (Appearance, p. 529). A identidade do finito
e do infinito, que levara Hegel a demonstrar a intrínseca racionalidade do finito e a aceitá-la
como infinito, levou Bradley a

negar a realidade finita como tal e a exigir a sua transmutação no infinito.

§ 705. DESENVOLVIMENTO DO IDEALISMO INGLÊS

Creen e Bradley inspiraram numerosos pensadores ingleses que apresentam de maneira


diversa a doutrina de uma consciência infinita na qual encontra a sua última realidade o
mundo finito.

Alfredo Eduardo Taylor (1869-1945), tão conhecido pelos seus estudos sobre Platão (1926)
e sobre a filosofia grega, numa obra que obteve muito êxito na Inglaterra, Elementos de
metafísica (1903), tenta preencher com algum conteúdo concreto a ideia do absoluto que na
doutrina de Bradley era uma pura forma vazia, indeterminável. Entende o absoluto como
uma sociedade de indivíduos que estivessem teleologicamente ordenados à unidade do
conjunto. Uma sociedade humana, em sentido próprio, é de facto uma unidade de estrutura
finalista, que não o é apenas para o observador sociólogo, mas também para os seus
membros, a cada um dos quais activamente atribui um lugar em relação a todos os outros.
Embora o eu e a sociedade não sejam

59
n**xak'@b que aparências finitais, Taylor crê que o predomínio da categoria da cooperação
na vida humana tornará ~Ivel considerar o absoluto como uma sociedade espiritual. Frente
a estas determinações mais positivas da natureza está o ponto de vista negativo de H. H.
Joachim, que se atém às teses de Bradley (A natureza da verdade, 1906; Estudos lógicos,
1948) e as utiliza como critério para uma crítica da unida-de da substância ---spinosiana
(Estudo sobre a ética de Espinosa, 1911).

Mais próximo do hegelianismo original encontra-se Bernardo Bosanquet (1848-1923), o


qual, no entanto, renovou por sua conta os princípios da lógica de Bradley (Lógica ou
morfologia do conhecimento, 2 vol., 1888) e é autor de uma História da estética (1892). No
Princípio da individualidade e do valor (1911) viu na contradição lógica uma experiência
vivida, análoga à dor e à insatisfação -e considerou-a como o motor de todo o progresso
espiritual. Isto significa que a negatividade não é uma imperfeição da experiência humana,
destinada a desvanecer-se, mas uma característica fundamental da realidade mesma. De
facto, quando se resolve uma contradição, resta sempre a negatividade, a qual, impelindo
continuamente todo o ser para além de si mesmo, é a própria lei da vida. A contradição é
uma negação não conseguida ou obstruída; a negatividade é uma contradição vitoriosa e
resolvida. A exigência necessária da negatividade leva Bosanquet a negar a identidade entre
natureza e espírito. A função da natureza é a de ser um objecto para a subjectividade
espiritual, o correlato exterior do espí-
60

rito finito. É somente pela existência da natureza que os espíritos finitos adquirem a sua
consistência e se tornam a cúpula viva entre a natureza e o absoluto. O reconhecimento da
negatividade elimina, segundo Bosanquet, todas as dificuldades do conceito de absoluto. A
prova positiva a seu favor apoia-se, logicamente, no principio de contradição, entendido do
modo concreto a que nos referimos. Quando o processo pelo qual a contradição é
normalmente removida nas questões humanas é considerado absolutamente válido, pode-se
ver nele uma unidade perfeita, na qual as contradições são completamente destruídas,
embora permaneça a diversidade ou o aspecto negativo. Com a solução das contradições, a
experiência humana transmuda-se radical. mente na vida quotidiana; pode-se entender
portanto a sua total transmutação no absoluto. Neste está eternamente e perfeitamente
realizado aquele processo de unificação lógica que na vida humana é progressivo e gradual.

§ 706. MCTAGGART

A nova orientação do idealismo, devida aos pensadores que acabámos de examinar, implica
uma divisão radical do significado e da importância que Hegel atribuíra à dialéctica; e tal
revisão é obra de John McTaggart (1866-1925), autor de Estudos sobre a dialéctica
hegeliana (1896), de Estudos sobre a cosmologia hegeliana (1901), de um Comentário à
lógica de Hegel (1910) e de uma obra em dois volumes, A natureza da existência (1921-
27). Na primeira das suas

61

~s McTaggart mostrou que a lei da dialéctica hegeliana não se mantém inalterada desde o
princípio até ao fim do seu processo. Nas primeiras categorias da lógica (a do ser) a
passagem da tese à antítese não é a transição a uma fase superior e complementar, e a
síntese é uma consequência da tese e da antítese conjuntas. Mas nas categorias da essência,
a antítese é, ao invés, complementar da tese, é mais concreta e verdadeira do que ela e

representa um progresso; a antítese já não resulta do confronto entre tese e antítese mas
procede unicamente desta última. Finalmente, nas categorias do conceito, os momentos já
não se opõem um ao outro, de maneira que a antítese não é uma antítese real e cada termo é
um progresso em relação ao outro. Isto demonstra, segundo McTaggart, que a mola real do
procedimento hegeliano não é a contradição (como o próprio Hegel afirmou) mas a
discrepância entre a ideia perfeita e concreta que está implícita na consciência e a ideia
abstracta e imperfeita que se tornou explícita. A característica do processo dialéctico é a
busca, por parte do momento abstracto ou imperfeito da consciência, não da sua negação
como tal, mas do seu complemento. A dialéctica não constitui a verdade, uma vez que o
processo da verdade excluiria a dialéctica mesma. Isto levou MeTaggart a impugnar o
principio fundamental de Hegel: a racionalidade de real. A realidade, não se pode revelar ao
homem na sua perfeita racionalidade, já que implica sempre, e não outra coisa, a
contingência dos dados sensíVeis, sem os quais as categorias da razão ficam Vazias, e a
insatisfação dos nossos desejos, que não

62

poderia existir num universo perfeito. O processo dialéctico revela esta imperfeição porque,
enquanto existe, não há perfeição, já que o processo tende a uma síntese que está longe de
verificar-se. Mas se

o processo dialéctico pertence ao espírito finito que vive no tempo e se aproxima


gradualmente do futuro, isso coloca o absoluto no futuro do próprio processo, isto é, no
último estádio de uma série em que os outros estádios se apresentam como temporais. A
ideia eterna e infinita encontra-se, pois, no termo

do processo temporal e é qualificada, não pela determinação da contemporaneidade e do


presente, mas pela do futuro. O absoluto não é um eterno presente segundo a concepção
clássica, que o hegelianismo primitivo e o próprio idealismo inglês haviam admitido, mas é
antes o termo do futuro. O tempo urge para a eternidade e cessa na eternidade. Isto torna
possível a esperança no triunfo final do bem no mundo.

Além disso, analogamente a Taylor, MeTaggart admite uma concepção pluralista e


sociológica do absoluto. Crê, de facto que o eu finito é o elemento último e irredutível da
realidade. A natureza do eu é paradoxal: por um lado, nada existe fora do eu porque tudo é
objecto do seu conhecimento; por outro lado, o eu distingue-se enquanto conhece tudo o
que conhece e pressupõe por isso que tudo o que conhece está fora dele. Assim, o eu inclui
e exclui ao mesmo tempo aquilo de que é consciente (Studies in Hegelian Cosmology, p.
23). Não existe outra explicação possível desta natureza paradoxal senão a de que o eu é a
absoluta realidade, a necessária

63
diferenciação do Absoluto. Os eus são, portanto, eternos e o Absoluto não é mais do que a
unidade destes eus: uma unidade que é tão real como as suas diferenciações e como a
própria unidade do ou finito, tal como este se manifesta -imperfeitamente neste mundo
imperfeito. Como unidade de um sistema de eu, o absoluto não pode ser entendido como
pessoa ou eu, e, portanto, não pode ser qualificado como

Deus. Para entender em que consiste a sua unidade, McTaggart examina os vários aspectos
da experiência humana. Exclui que a unidade sistemática do absoluto possa ser concebida
como uma unidade de conhecimento: o conhecimento verdadeiro, sendo uniforme em todos
os eus, não explica a sua diferenciação originária. Pelo mesmo motivo, o absoluto não pode
ser vontade porque a vontade perfeita, como satisfação perfeita, é uniforme e não explica a
diferenciação. Resta então a emoção. Se o perfeito conhecimento e a perfeita satisfação são
idênticos em todos os eus, não há razão para supor que o perfeito amor

não seja, em troca, diferente em cada eu e não seja, portanto, a base -da diferenciação
requerida pelo absoluto. O conteúdo da vida do absoluto não pode ser, portanto, senão o
amor: não a benevolência, nem o amor da verdade, da virtude ou da beleza, nem o desejo
sexual, mas "o amor apaixonado que tudo absorve e tudo consome" (Ib., p. 260). Só o amor
supera a dualidade e estabelece um equilíbrio completo entre o sujeito e o objecto.
Enquanto o conhecimento deixa sempre fora de si o objecto conhecido

e a volição nunca se satisfaz inteiramente porque o

objecto da satisfação lhe é estranho, o amor identifica

64

completamente objecto e sujeito. O amor não é uni

dever ou uma imposição, mas uma harmonia em que as duas partes têm iguais direitos. Não
se ama uma

pessoa pelas suas qualidades, mas é antes a atitude perante as suas qualidades que é
determinada pelo facto de elas lhe pertencerem. Ademais, o amor

justifica-se por si mesmo. E o ponto mais próximo do absoluto que o homem pode alcançar
é precisamente um amor de que não se pode dar outra razão que não seja o facto de duas
pessoas pertencerem uma

à outra (Ib., p. 278 sgs.).

Na sua última obra, A natureza da existência (1921-27) McTaggart expôs de novo em


forma sistemática as conclusões a que chegara através da crítica da doutrina de Hegel. O
primeiro volume desta obra examina as características gerais da' existência: não da
existência enquanto pensada, isto é, do conhecimento ou do pensamento, mas de toda a
existência em geral, e, portanto também do conhecimento, do pensamento e da crença que,
como tais, são igualmente existências. McTaggart declara que deste modo se vincula a um
idealismo ontológico, cujos representantes são Berkeley, Leibniz e Hegel.
O método de que se serve na descrição da existência em geral é o a priori; mas em dois
pontos McTaggart, apela para a experiência: para provar que algo existe e para provar que o
que existe é diferenciado. Fora destes dois pontos, o seu procedimento é a priori, e é
dialéctico no sentido que ele mesmo admitiu como próprio desta palavra, ou seja, não no
sentido de negatividade e de contradição, mas no de um procedimento racional, necessário
e progressivo. A di-
65

ferenciação da existência implica que ela tenha qualidades, as quais terão, por seu turno,
outras qualidades e assim sucessivamente; no início da série deverá haver algo existente
que tenha qualidades

sem ser qualidade: e isso será a substância. É indubitável que a substância não é nada fora
das suas qualidades-, mas isto não quer dizer que ela não seja algo em conjunção com elas.
A substância é diferenciada, isto é, verdadeiramente unia pluralidade, de substâncias, entre
as quais devem existir relações. A relação é uma determinação última e indefinível, como a
qualidade; e gera, por seu turno, qualidades, porque os termos relativos adquirem, como
tais, novas qualidades. Cada substância tem a sua própria natureza e pode ser
individualizada nesta natureza por uma descrição suficiente. Os grupos de substâncias são
infinitos, porque cada grupo pode ser assumido como membro de si próprio; e a substância
que compreende todas as outras como partes suas é o universo. O universo é caracterizado
intrinsecamente pela posse de diversas substâncias, de modo que, se uma destas fosse
diferente, o próprio universo na sua totalidade seria diferente. Toda a substância é
infinitamente divisível, isto é, tem partes dentro de partes até ao infinito. Para explicar a
relação entre -uma substância e as suas partes e entre as várias substâncias, MeTaggart
introduz o conceito da correspondência determinante. É uma forma de correspondência tal
que, se se verifica entre uma substância C e a parte de uma substância B, uma descrição
suficiente de C, que inclua a sua relação com a parte de B, determina intrinsecamente uma
descrição suficiente desta

66

parte de B e de cada membro do grupo B-C, assim como de cada membro de uma parte de
tais membros, e assim sucessivamente até ao infinito. A correspondência determinante é
uma relação causal, que estabelece e funda a ordem do universo. A sua natureza é
esclarecida pela aplicação que MeTaggart faz Ma no segundo volume da sua obra: é a
percepção imediata que um eu tem de outro eu.

De facto, depois de ter descrito as características da existência, MeTaggart procede (no


segundo volume) à determinação dos aspectos do Universo que devem ser considerados
reais. Declara irreais o tempo, a matéria, a sensação e toda a forma de pensamento
(incluídos o juízo e a imaginação) que não seja percepção. A razão disto está em que
nenhum destes aspectos da realidade se presta a ser determinado pela correspondência
determinante e, portanto, todos devem ser considerados inconsistentes e contraditórios. A
percepção, como consciência imediata da substância, ou seja, do eu, é, em troca,
perfeitamente definida pela correspondência determinante. De facto, um eu que percebe o
outro eu tem ao mesmo tempo a percepção de si próprio e do outro e a percepção destas
percepções, e assim sucessivamente até ao infinito. De sorte que uma descrição suficiente
da percepção de um deles implicará a suficiente descrição até ao infinito de partes desta
percepção. Por outros termos, estabelecer-se-á entre as duas substâncias um sistema
inexaurível de relações ao mesmo tempo racionalmente inteligíveis e imediatamente
vividas. E, de facto, a percepção de que fala McTaggart não é nem volição nem
pensamento, mas emoção e pre-
67

cisamente emoção de amor. O resultado das análises deste filósofo, em que o princípio
idealista se alia curiosamente a um método de análise que se assemelha muito ao da lógica'
matemática e ao critério objectivista do realismo contemporâneo, é o reconhecimento de
um universo formado de centros espirituais, de eus, que uma forma de experiência imediata
(a percepção emotiva ou amor) unifica num sistema dialecticamente organizado.
McTaggart conclui a sua obra com a esperança que já havia formulado nas suas análises
hegelianas, a saber: dado que se deve entender o absoluto não como presente mas como
futuro, ele deverá realizar-se como um bem infinito após um período finito, embora
longuíssimo, de tempo; e deverá realizar-se como estado de amor perfeito, comparado com
o qual até o mais alto arroubo místico não é mais do que uma tentativa aproximativa e
longínqua. Para MeTaggart, o passado e o

presente, são manifestações imperfeitas e preparatórias do futuro. Isto é, sem dúvida, uma
repetição do conceito de Fichte e de Schelling do progresso necessário da história, com a
diferença, porém, de que o

progresso não é até ao infinito, mas tende para um

termo que será alcançado após um período muito longo, mas finito, de tempo.

§ 707. ROYCE

Na América o primeiro representante do neo-idealismo é William Torrey Harris (1835-


1909), autor de uma exposição crítica da Lógica de Hegel

68

(1890), assim como de uma Introdução ao estudo da filosofia (1890) e de um ensaio sobre,
Dante (0 sentido espiritual da "Divina Comédia", 1889), O interesse de Harris é
fundamentalmente religioso. Admite três estádios do conhecimento: o que considera o

objecto, o que considera as relações entre os objectos e o, que considera as relações


infinitas e necessárias da existência dos objectos. Este terceiro estádio é preparatório do
conhecimento teológico e, portanto, da religião, porque descobre a actividade autónoma e
infinita que sustenta todas as coisas.

A maior figura do (dranscendentalismo" americano e o que mais contribuiu para a difusão


do idealismo de tipo anglo-saxónico foi Jostah Royce (1885-1916). Os escritos principais
de Royce são os seguintes: O aspecto religioso da filosofia, 1885; O espírito da filosofia
moderna, 1892; A concepção de Deus, 1895; Estudos sobre o bem e sobre o mal,
1898; O mundo e o indivíduo, 2 vol., 1900-1901; A concepção da imortalidade, 1904; A
posição actual do problema da religião natural, 1901-02; Apontamentos de psicologia,
1903; Herbert Spencer, 1904; A relação dos princípios da lógica como os fundamentos da
geometria, 1905; A filosofia da fidelidade,
1908; W. James e outros ensaios de filosofia da vida,
1911; As fontes da intuição religiosa, 1912; Princípios da lógica, 1913; O problema do
cristianismo, -1913; Conferências sobre o idealismo moderno, 1919; Ensaios fugitivos,
1920. Entre estes escritos, O mundo e

o indivíduo e O problema do cristianismo são os que exprimem as fases principais do


pensamento de Royce.

,69

O ponto de partida de Royce é a distinção entre o significado exterior e o significado


interno da ideia.
O significado externo da ideia é a sua referência a uma realidade exterior e diversa; o
significado interno é, ao invés, constituído pelo fim que a ideia se propõe, enquanto não é
apenas imagem de uma coisa, mas também a consciência do modo como nos propomos
actuar sobre a coisa que representa. -Royce procura reduzir o significado externo ao
significado interno. Crê-se, de ordinário, que a ideia é verdadeira quando corresponde ao
objecto real; mas o objecto real, que pode servir como medida da verdade da ideia, é só
aquele a que a ideia mesma se refere, isto é, o designado pelo significado interno dela. Não
existe um critério de verdade puramente externo: as ideias são como os instrumentos,
existem para um fim: são verdadeiras, como os instrumentos são bons, quando convêm para
tal fim. Por consequência, unia ideia não é um simples processo intelectual, mas também
um processo volitivo; e é indispensável ter em conta o fim para o qual a ideia tende para
ajuizar da validade da ideia. Isto implica que a ideia tende sempre a encontrar no seu
objecto o seu próprio fim, incorporado de um modo mais determinado do que aquele em
que ela o tem por si mesma. Por conseguinte, ao procurar o seu objecto, uma ideia não
procura outra coisa senão a própria determinação explícita e, finalmente, completa. O único
objecto em relação ao qual se pode medir a verdade da ideia não é portanto outro senão a
completa realização do fim implícito na própria ideia. Neste

70

sentido, Royce diz que a ideia é -uma vontade que busca a sua própria determinação.
Mesmo as ideias expressas como hipóteses ou definições universais

ou como juízos de tipo hipotético ou -matemático, não fazem mais do que destruir certas
possibilidades e implicar a determinação do seu objectivo final mediante determinadas
negações.

O limite ou a meta deste processo de determinação crescente é um juízo em que a vontade


exprime a sua determinação final. Mas este juízo não pode ser senão o acto de uma
Consciência que conclua e complete o que o sujeito finito a cada momento se propõe
conhecer. Todo o mundo da verdade e do ser deve estar presente numa Consciência
singular, que compreende todos os intelectos finitos numa única visão intuitiva eternamente
presente. Esta consciência não é só temporal, mas implica também uma visão compreensiva
da totalidade do tempo e do que este significa, Daí o título da obra principal de Royce: o
mundo é uma totalidade individual, na qual todos os fragmentos da experiência encontram
o seu complemento e a sua perfeição; é Deus mesmo. No absoluto encontram lugar a
ignorância, o esforço, o desaire, o erro, a temporalidade, a limitação-, mas também têm aí
lugar a solução dos problemas, a consecução dos fins, a superação dos defeitos, a correcção
dos erros, a

concentração do tempo na eternidade, a integração do que é fragmentário. Sobretudo, o


indivíduo que procede moralmente encontra em Deus o cumprimento total da sua boa
vontade: pode ser concebido como uma parte que é igual ao todo, e precisamente

71

por ser igual, unida no todo dentro do qual habita. Toda a consciência finita se dilata assim
no absoluto até se identificar com ele, mas esta identificação não implica o anulamento da
individualidade mas antes o seu complemento, a realização de uma

individualidade inteiramente determinada e perfeita. Royce afirma energicamente a


exigência da conservação das individualidades no absoluto; e para tornar inteligível esta
conservação, assim como para obviar às dificuldades que Bradley opusera a todas as
determinações do absoluto, recorre à teoria dos números.

O longo "Ensaio complementar" acrescentado ao primeiro volume da sua obra principal é


talvez a

parte mais interessante da obra de Royce. Recorre à teoria dos números como havia sido
elaborada por Cantor e por Dedekind: o número é um sistema auto-representativo, um
sistema cujas partes representam o todo, no sentido de que têm, por seu

turno, elementos que correspondem. termo a termo aos elementos do todo. Royce esclarece
por sua

conta este conceito como o exemplo de um mapa geográfico idealmente perfeito que deve,
para o ser, conter tanto a ubicação como os contornos da sua própria posição: de modo que
acabará por conter mapas dentro de mapas até ao infinito. Os sistemas auto-representativos
são, por outros termos, os sistemas que contêm infinitas partes semelhantes ao

todo; e a Consciência absoluta seria um sistema auto-representativo deste género no sentido


de que, compreendendo em si a totalidade dos espíritos individuais, implicaria
precisamente uma série ou cadeia
72

de imagens próprias, um sistema de partes dentro de partes até ao infinito. Uma concepção
semelhante do infinito já não está sujeita às dificuldades que Bradley apresentara. A infinita
subdivisão a que dá lugar, segundo Bradley, toda a relação, logo que é considerada
analiticamente, e que era para ele o

sinal da natureza contraditória e irracional da contradição (isto é, de todo o mundo da


experiência humana) já não é tal quando se considera até ao infinito um sistema auto-
representativo cuja natureza é definida precisamente por uma cadeia infinIta de partes
semelhantes. A proposição fundamental da lógica do ser: "tudo o que existe faz parte de um
sistema que se representa a si mesmo" permite, segundo Royce, conceber a verdadeira
união do uno e do múltiplo. Há uma multiplicidade que não é absorvida e transmudada mas
sim conservada no absoluto, e é a multiplicidade dos indivíduos que se unificam no
absoluto. O absoluto, o universo, é neste sentido, um sistema auto-representativo que, como
sujeito-objecto, implica uma imagem ou concepção completa ou perfeita de si. É uno pela
sua estrutura, porque é um sistema individual; mas, ao mesmo tempo, é infinito, porquanto
é uma cadeia de fins conseguidos. A sua forma é, pois, a de um eu, que se multiplica nas
imagens, por sua vez infinitas, que o absoluto determina por si mesmo nos eus individuais.

Esta doutrina do absoluto marca a primeira fase do pensamento de Royce. A segunda fase,
caracterizada por uma tentativa diferente, a de determinar a natureza intrínseca do absoluto,
aparece pela

73

primeira vez na Filosofia da fidelidade (1908) e

encontra a sua melhor expressão no Problema do cristianismo (1913). Na primeira fase,


Royce havia encontrado na teoria dos números de Cantor e Dedckind o instrumento
daquela determinação; na segunda fase encontra esse instrumento na doutrina de Peirce (§
750), que pusera em relevo o significado

e a importância do processo da interpretação considerado como o terceiro e superior


processo cognitivo, juntamente com a percepção e o pensamento. A consideração deste
processo é necessária, segundo Royce, quando se trata de objectos que não podem ser
assimilados nem à percepção nem ao

conceito. É evidente, por exemplo, que "o espírito do nosso próximo" não é um dado
sensível nenhuma noção universal e que deve ser objecto de uma

terceira forma de conhecimento, que é precisamente a interpretação. A interpretação é uma


relação triádica, na qual alguém, isto é, o intérprete, interpreta algo para alguém. Supõe
uma ordem determinada destes três termos, porque se a ordem muda, muda o próprio
sentido da interpretação. A relação interpretativa pode verificar-se também na interioridade
de uma única pessoa, e também neste caso existem três termos: o homem do passado, cujos
desejos e recordações são interpretados; o eu presente, que interpreta tudo isto, e o eu
futuro, para o qual esta interpretação é dirigida. A interpretação tem por objecto sinais, do
mesmo modo que a percepção tem por objecto coisas e o conceito universal.

74

A tese de Royce é a de que o universo é constituído por sinais reais e pela sua interpretação;
e

que o processo da interpretação tende a fazer do universo uma comunidade espiritual. Uma
interpretação é real, se for real a comunidade que ela exprime, e só é verdadeira se a
comunidade alcança o seu objectivo através dela. Toda a filosofia é, inevitavelmente, uma
doutrina que nos aconselha a proceder como se o mundo tivesse certas características. Mas,
contrariamente ao que Vaihinger afirma (§ 753), Royce crê que o como se não é apenas
uma ficção ou um sistema de ficções, senão que pode justificar uma única atitude frente ao
mundo: a que tende a considerar praticamente real um reino do espírito, uma comunidade
universal e divina, e reconhece claramente que é impossível ao indivíduo salvar-se por si
só, do ponto de vista prático: e que também é impossível, do ponto de vista teorético, que
ele encontre por si só a verdade no âmbito da sua experiência privada, sem ter em conta a

velação que o liga à comunidade. Tal é, segundo Royce, a atitude própria do cristianismo e,
em particular, do cristianismo paulino, que vê o reino dos céus realizado na igreja, isto é, na
comunhão dos fiéis. O amor cristão assume, na pregação de S. Paulo, a forma da fidelidade
à comunidade: e a fidelidade à comunidade exprime a natureza mesma da vida moral.

De facto, na Filosofia da Fidelidade, Royce vê o fundamento da moralidade na fidelidade a


uma tarefa, a uma missão livremente escolhida: tarefa ou missão que inclui sempre a
solidariedade com os

75

outros indivíduos, ou melhor, com uma comunidade de indivíduos. A fidelidade é, também,


o, critério que permite medir o valor das tarefas humanas, já que é evidentemente má uma
tarefa que toma impossível ou nega a fidelidade aos demais. A fidelidade à fidelidade é,
portanto, o critério supremo da vida moral.

Os últimos escritos de Royce tratam de delinear o que ele chamava de "Grande


Comunidade": uma

comunidade que é real não porque se encontre historicamente realizada, mas por ser o
eterno fundamento da ordem moral. Todavia, quis sugerir também um meio prático para a
realização desta grande comunidade, e viu tal meio num sistema de seguros. Com efeito, o
seguro é uma associação fundada no princípio triádico da interpretação: o seguro, o
segurador e o beneficiado, e nela os obstáculos à associação transformam-se numa ajuda à
associação mesma (A esperança da grande comunidade, 1916). Royce sugeriu também o
seguro contra a guerra (Guerra e seguro, 1914). Mas esta curiosa mescla de negócios e de
moralismo cristão não nos deve impedir de considerar um dos espíritos mais abertos e
geniais do idealismo contemporâneo. Afinal de contas, se o infinito é a imagem ou a
reprodução do infinito, também os negócios em geral, e

os seguros em particular, podem servir como instrumentos de manifestação ou de


realização do infinito. E o sistema de seguros, a que Royce aconselhava recorrer, é
certamente um progresso em relação ao esta-do prussiano, ao qual o seu mestre Hegel

76

pretendia confiar a total realização da Ideia infinita do mundo.

§ 708. OUTRAS MANIFESTAÇõES DO IDEALISMO INGLÊS E NORTE -


AMERICANO

Numa discussão pública efectuada em 1885, entre Royce e outros filósofos na Universidade
da Califórnia, G. H. Howison (1834-1916) reprovou a Royce o anular no eu infinito a
personalidade finita do homem e a do próprio Deus. Ao idealismo monista de Royce,
Howison contrapunha um idealismo pluralista, segundo o qual a realidade é, nas suas
diversas ordens, uma sociedade de espíritos eternos, em que os membros encontram a sua
igualdade na tarefa comum de alcançar o único ideal racional, que é Deus mesmo (A
concepção de Deus,
1897). A uma preocupação análoga obedecia em

Inglaterra J. H. Muirhead (Os, elementos da ética,


1892; Filosofia e vida, 1902-, Objectivos sociais, 1918) que, no entanto, via a salvação da
autoconsciência finita na necessária presença daquela negação dialéctica, na qual já
Bosanquet havia insistido.

As teses gerais do idealismo foram mais tarde apresentadas na América por James
Greighton (1861-1924); (Estudos de filosofia especulativa, 1925) e por Mary Whiton
Calkins, que se vincula directamente à especulação de Royce; e em Inglaterra por David
George Richte (1853-1903) e por John Stuart Mackenzie (1860-1935) em (Apontamentos
de metafísica, 1902; Leituras sobre o humanismo, 1907;

77

Elementos de filosofia construtiva; Valores Últimos,


1924).

Ocupam um lugar intermédio entre o idealismo

e o espiritualismo Simão Somerville Laurie (1829-1909) e o americano William Ernest


Hocking. O primeiro desenvolveu numa série de obras (Metafísica nova e velha, 1884-,
Ética, 1885; Sintética,
1906) um "realismo natural", que é, na realidade, um idealismo, e distingue vários planos
de realização do absoluto, considerando o absoluto mesmo imanente em todos e cada um
dos planos particulares. A distinção dos planos de realidade serve a
Laurie para reivindicar a autonomia do indivíduo. No indivíduo, o absoluto mesmo afirma
o seu ser, dando-lhe um carácter específico e um conteúdo a afirmar e fazendo-o subsistir
no seu pleno direito: na sua função de negação, que recebe do absoluto, o indivíduo é capaz
de resistir ao próprio absoluto (Synthetica, 11, p. 75). Segundo Hocking, em troca, Deus é
conhecido directamente pelo homem, na própria experiência sensível. Esta tem um

único conteúdo dos diversos indivíduos e deve ter um único cognoscente, que é Deus
mesmo; o qual é, portanto, o conhecedor universal, implícito em

todo o conhecimento objectivo. De modo que os

homens conhecem as outras coisas ou os outros espíritos só porque conhecem Deus: o


conhecimento de Deus fornece, de facto, a noção da experiência social, sem cuja posse
prévia o reconhecimento dos eus humanos não seria possível. Tão-pouco a ideia de Deus,
pressuposta pela experiência sensível e

pela experiência social, pode ser uma mera ideia e

78

não implicar a sua própria existência, já que, como

simples ideia, não poderia oferecer o critério para ser reconhecida como tal, de modo que
nem mesmo

a ideia da experiência social seria possível se tal experiência não fosse real (0 significado
de Deus na experiência humana, 1912; O eu, o seu corpo e a sua liberdade, 1928; Tipos de
filosofia, 1929; Pensamentos sobre a morte e sobre a vida, 1937; A ciência e a ideia de
Deus, 1944).

Uma visão mais próxima do idealismo italiano é a do norte-americano George P. Adams,


que afirma a independência da actividade espiritual do conteúdo da consciência e vê
precisamente em tal actividade o princípio criador da realidade. A actividade espiritual não
pode certamente ser considerada como um objecto sujeito ao domínio geral da experiência
e não pode ser descrito como uma forma

ou uma relação objectiva. Mas pode ser reconhecida e conhece-se nos produtos da sua
criação: nos valores éticos, religiosos e sociais e no mundo da história (0 idealismo e a
idade moderna, 1918). Uma opinião análoga sobre a actividade espiritual encontra-se na
obra do inglês Richard Burdon Haldane (1857-1928) que se valeu do principio da
relatividade do conhecimento para determinar a natureza do absoluto (0 reino da
relatividade, 1921; outras obras suas: O caminho da realidade, 2 vol. 1903-04; A filosofia
do humanismo, 1922). O princípio da relatividade implica que o significado da realidade
não é o mesmo em todos os graus em que ela se divide, e que só pode ser expresso em cada
grau nos termos que lhe são peculiares. De acordo com isto, Deus
79

ph41. of T. H. G., Londres, 1896; A. E. TAILOR, The Problem of Conduct, Londres, 1901,
p. 50-88; H. SIDGWICK, Lectures on the Ethic8 of T. H. Green, M. H. Sp~er and J.
Martineau, Londres, 1902; P. L. NETTLESHIP, Memoir of T. H. G., Londres, 1906. ,Sobre
Eduarido Caird: H. JONES,e J. H. MUIRHEAD, The Life and Phil. of E. C., Glasgow,
1921.

§ 704. De BrAdley, lista dos -escritos menores em ABBAGNANO, op. cit., p. 265.

Sobre Bradley: STRANGE, in "Mind", N. S., 1911; BROAD, ibid., 1915; DE ;SARLO,
Filosofia del tempo nostro, Florença, 1916, p. 115-56; TAYLOR, WARD, STOUT,
DAWES, MCKS, MUIRHEAD, SCHILLER, in ",3"d", 1925; E. DuPRAT, Bradley, París;
R. W. CHuRcff, B.s, Nova Iorque, 1942; W. F. LOFTHOUsE, F. H. B., Londres, 1949.

§ 705. Sobre Bosanquet: H. BOSANQUET, B. B., Londres, 1924; MUIRIlEAD, in "Mind",


N. S., 1923; ID, in "Journal Gf Plúl.", 1923, n., 25; HOERLE, ibid, 1923, n., 18; F.
HOUANG, Le néo-hegelianisme en Angleterre. La philosophie de B. B., Paris, 1954.

§ 706. Sobre MeTaggart: F. C. S. ScHiLLER, in "Mind", N. S., 1895; WATSON, in


"Philosophical ReVi,eW", 1895; MCGILVARY, in "Mind", N.S., 1898; BROAD in
"Mind", 1921; C. D. BROAD, Examination of Me. T's Philosophy, 2 vol. Cambrtdge,
1934-38.

§ 707. Sobre ROYCE: o número que lhe dedicou a "Ph~ophical Review", 1916, 111, com
colaboração de HOWISON, DEWEY, CALKINS, ADAMS, BARON, SPAULDING,
COHEN, CABOT, HORNE, HOCKING, RAND. ALGRATI, Un pensatore americano:
J.R., Milão, 1917; TEDESCH, in "Giorn. critico della fil. italiana", 1926; ALBEGGIANI,
II @@i&tema filosofico di J.R., Palermo, 1929; 1-1. G. TOWSEND, Philosophical Ideas in
the United States, Nova lorque, 1934, cap. I; R. B. PERRY, In the Spirit of William James,
New Haven, 1938, cap. I; G. MARCEL, La Métaphysique de Royce, Paris, 1945; J. E.

82

Smim, R.s Social Infinite Nova lorqule, 1950; J. H. COTTON, R. on the Human Self,
~bridge, Mass, 1954.

§ 708- Sobre Umison: G. H. Hotoison, Philosopher and Teacher; a Selec~ from his
Writings with a Biographical Sketch, ao cuidado de J. W. BucKHAm, Berkeley. Cal., 1934
(com bíblIog.).

Sobre Creighton: H. G. ToWNSEN, Philosophical Ideas in the Unite-d States, Nova


IoTque, 1934, p. 187 segs.

83

v
O IDEALISMO ITALIANO

§ 709. IDEALISMO ITALIANO: CARACTERISTICAS

E ORIGENS DO IDEALISMO ITALIANO

Na segunda metade do século XIX a doutrina de Hegel teve na Itália o seu centro de estudo
e de difusão na Universidade de Nápoles, onde a professaram Augusto Vera (1813-85), um
modesto mas típico hegeliano da direita com tendências teístas e catolicizantes, e Bertrand
Spaventa (1817-83). Spaventa iniciou a sua actividade cerca de 1850 com ensaios sobre
Hegel e a filosofia moderna italiana e europeia (recolhidos mais tarde por Giovanni Gentile
com os títulos de Escritos filosóficos, 1901; Princípios de Ética, 1904; De Sócrates a Hegel,
1905). Os seus escritos mais completos e significativos são: Prólogo e introdução às lições
de filoso-
85

fia na Universidade de Nápoles (1862), publicados de novo por Gentile em 1908 com o
título de A filosofia italiana e as suas relações com a filosofia europeia, e os Princípios de
filosofia (1867) publicados também de novo por Gentile com acrescentamento de partes
inéditas e com o título de Lógica e Metafísica (1911). Spaventa é também autor de uma
monografia intitulada A filosofia de Gioberti, de que apenas saiu o primeiro volume em
1963, e de um estudo com o título Experiência e metafísica publicada postumamente por
Jaia em 1888.

A importância de Spaventa consiste sobretudo na

sua tentativa de subtrair a cultura filosófica italiana ao provinciamismo em que a queria


confinar o espiritualismo tradicionalista dominante em meados do século XIX, vinculando-
a de novo à cultura europeia. O espiritualismo tradicionalista (§ 627) insistia numa tradição
filosófica italiana que iria dos pitagóricos a Vico e a Gioberti, à qual deviam manter-se fiéis
todas as manifestações filosóficas italianas. Spaventa faz seu o conceito da nacionalidade
da filosofia italiana, mas vê a marca de tal nacionalidade na universalidade, pela qual nela
deveriam reunir-se todos os opostos e encontrar uma unidade harmónica todas as
tendências do pensamento europeu. Spaventa explica as diferenças e

as afinidades entre as filosofias europeias mediante uma pretensa unidade da estirpe ariana,
indo-germânica, ou indo-europeia, que se teria dividido em seguida, progredindo umas
vezes mais outras vezes

menos, e mais na Alemanha do que nos países latinos (A fil. ital., 1909, p. 49). A filosofia
italiana

86

devia, pois, voltar a pôr-se ao nível da alemã. Com efeito, no Renascimento, a Itália foi a
iniciadora da filosofia moderna. Bruno equivale, sem mais, a Espinosa, só com a diferença
de que nele existe uma certa perplexidade quanto ao conceito de Deus, entendido umas
vezes como sobrenatural outras como a natureza mesma (Ib., p. 105). Vico, substituindo a
metafísica da mente pelo ser, desempenha na

Itália a função que na Alemanha desempenhou Kant. Gallupi é um "kantiano, mau grado
seu".

Rosmini, como Kant, descobre "a unidade do espírito", embora deixe na obscuridade e
incompreendido este conceito; e, finalmente, Gioberti completa Rosmini, como Fichte,
Schelling e Hegel completam Kant, e descobre a verdadeira Ideia que não é o ser, mas sim
o Espírito. Será talvez supérfluo chamar a

atenção dos leitores da presente obra, para o carácter arbitrário destas determinações
históricas. Espinosa não pode ser identificado com Bruno, porque supõe o racionalismo
geometrizante de Descartes e

Hobbes. Vico faz parte do movimento iluminista e é o Leibniz da história; a sua


metafísica da mente nada tem a ver com a doutrina de Kant, a não ser pela comum
exigência de delimitar e marcar as efectivas possibilidades humanas. Gallupi, Rosmini e
Gioberti vinculam-se não à filosofia alemã, mas sim à francesa do seu tempo, e fazem
parte do retorno romântico à tradição. A sua afinidade com o idealismo não assenta, pois,
em categorias lógicas,

mas num princípio mais profundo e menos aparente, que é a comum fé romântica na
tradição. Quanto à pretensa "nacionalidade" da filosofia italiana, tra-
87

de 1 uma fábula não menos pueril do que a "tradição itAlica" de que falavam os
giobertianos, com a agravante da não inócua mitologia da estirpe ariana, indo-germânica ou
indo-europeia.

Foi necessário determo-nos um instante nas valorizações históricas de Spaventa, pois


tiveram muito êxito entre os seguidores italianos do hegelianismo, que a repetiram
servilmente sem se darem conta da sua inconsistência crítica. Exerceram, no entanto, nas
mãos de Spaventa, uma certa função útil: contribuíram para despertar a filosofia italiana
daquele tempo do letargo autocontemplativo e narcisista em que caíra (e que amiúde a
ameaçara) e a interessá-la pela filosofia europeia, e especialmente alemã. Quanto à
especulação sistemática de Spaventa, carece de toda a originalidade. Os seus Princípios de
filosofia não fazem mais do que reassumir e comentar prudentemente alguns pontos
basilares da Fenomenologia do espírito e toda a Lógica de Hegel. Num único ponto,
Spaventa se permite uma certa originalidade: na interpretação da primeira tríade da lógica
hegeliana, a de ser, não ser e devir, Spaventa sublinha aqui a necessária presença do que ele
chama "mentalidade pura", isto é, do pensamento consciente, no movimento destas
categorias, de maneira que parece supor que de um extremo ao outro da dialéctica o
pensamento se move no âmbito da autoconsciência racional, o que não parece ter sido
negado pelo próprio Hegel, que definiu a lógica como "a exposição de Deus, tal como é na
sua eterna essência, antes da criação da natureza e de um espírito finito" (§ 572). E a
afirmação de

88

Spaventa de que "as primeiras categorias exprimem, da maneira mais simples e abstracta, a
natureza, o organismo e diria mesmo o ritmo da mente" (Scritti fil., II, p. 239) é também, de
um ponto de vista hegeliano, plenamente ortodoxa.

Ao hegelianismo aderiram na Itália, na segunda metade do século XIX, inúmeros literatos,


historiadores, juristas e médicos além de filósofos, mas nenhum deles acrescentou fosse o
que fosse ao pensamento do filósofo alemão. Originalidade e força só as adquire o
idealismo com Gentile e Croce. Estes dois pensadores distinguem-se radicalmente do
idealismo inglês e norte-americano, como também se distinguem entre si. Distinguem-se do
idealismo inglês e norte-americano, por crerem que a unidade entre finito e infinito é
demonstrável, não negativamente por causa do carácter aparente e contraditório da
experiência finita, mas positivamente e de um modo real, reportando ao espírito infinito os
traços fundamentais da experiência finita. Assim, a doutrina dos dois idealistas italianos
renova a tentativa de Hegel, mas distingue-se de Hegel por ser uma

reforma da dialéctica, que exclui a consideração do pensamento lógico e da natureza e se


apoia exclusivamente no espírito. As duas doutrinas distinguem-se, pois, entre si, porquanto
uma, a de Gentile, é um subjectivismo absoluto (actualismo), a outra, a de Croce, um
historicismo absoluto. O característico que as assemelha é a negação de toda a
transcendência e a redução de toda a realidade à pura actividade espiritual.

89

§ 710. GENTILE: VIDA E OBRA

Giovanní Gentile nasceu em Castelvetrano, na Sicília, a 30 de Maio de 1875. Professor


primeiramente em Palermo e em Pisa, em seguida em Roma, foi nomeado ministro da
instrução pública com o

advento do governo fascista (1922-24). Não existem afinidades particulares entre o


idealismo de Gentile e o fascismo; de início, o fascismo não possuía uma doutrina, a não
ser que se queira chamar tal a um genérico e intolerante nacionalismo. Todavia, Gentile
chegou a descobrir no novo regime a expressão mesma da racionalidade ou da
espiritualidade absoluta e converter-se no seu maior expoente intelectual. Foi o autor de
uma vasta e radical reforma da escola italiana que, no entanto, o próprio fascismo havia de
desmantelar em parte ou modificar nos anos seguintes. Devido aos numerosos cargos
culturais e

políticos que desempenhou, assim como o de presidente da "Enciclopédia Italiana", exerceu


um vasto poder sobre a cultura italiana e especialmente sobre o seu aspecto administrativo e
escolar. Caído o fascismo em Julho de 1943 e ocupada, em Outubro do mesmo ano, a Itália
central e sententrional pelas tropas alemãs, Gentile deu a sua adesão pública ao

governo fantoche que aquelas haviam instaurado. Isto foi talvez para ele um acto extremo
de fidelidade romântica ao regime que o honrara como o seu máximo representante
cultural; a muitos italianos pareceu, ao invés, uma traição. Foi morto no limiar da sua
habitação, em Florença, a 15 de Abril de
1944. A sua filosofia, no entanto, deve ser entendida

90

e julgada independentemente do fascismo, no qual não tem decerto raízes nem buscou
inspiração; e

a sua personalidade pode ser agora melhor recordada na generosidade dos seus traços
humanos do que nas suas atitudes políticas.

Gentile expôs pela primeira vez o princípio da sua filosofia no ensaio O acto do
pensamento como acto puro (1912); e logo depois definiu a sua atitude em relação a Hegel
em A reforma da dialécttica hegeliana (1913). A sua obra mais vigorosa é A teoria geral do
espírito como acto puro (1916); a mais vasta e complexa é o Sistema de lógica como teoria
do conhecer (2 vol., 1917-22). Em 1912 publicou o

Sistema de pedagogia como ciência filosófica; em

1916, Os fundamentos da filosofia do direito. Em A filosofia da arte (1931) está latente


uma polémica com a esté tica de Croce. O último escrito, Génese e estrutura da sociedade
foi publicado postumamente (1946). Foi também notável a actividade historiográfica de
Gentile, em particular a respeitante ao

Renascimento italiano (Rosmini e Gioberti, 1898; A filosofia de Marx, 1899; De Genovesi


a Gallupi,
1903; O modernismo e as relações entre religião e

filosofia, 1909, Os problemas da escolástica e o pensamento italiano, 1913-, Estudos sobre


Vico, 1904; As origens da filosofia contemporânea em Itália,
3 vol., 1917-23; O ocaso da cultura siciliana, 1918; Giordano Bruno e o pensamento do
Ressurgimento,
1925; Gino Capponi e a cultura toscana do século XIX, 1922; Estudos sobre o
Renascimento, 1923, Os profetas do Ressurgimento italiano: Mazzini e

Gioberti, 1923).

91

§ 711. GENTILE: O ACTO PURO

O erro de Hegel consistiu, segundo Gentile, em ter tentado uma dialéctica do pensado, ou
seja, do conceito ou da realidade pensável (como lógica e

como natureza), dado que só pode haver dialéctica, isto é, desenvolvimento e devir, do
pensante, ou

seja, do sujeito actual do pensamento. O sujeito actual do pensamento, ou pensamento em


acto, é a

única realidade. O sujeito é sempre, certamente, sujeito de um objecto, enquanto pensa,


pensa necessariamente algo, mas o objecto do pensamento, seja a natureza ou Deus, o
próprio eu ou o dos outros, não tem realidade fora do acto pensante que o constitui e o põe.
Este acto é, pois, criador e, enquanto criador, infinito, porque não tem nada fora de si que
possa limitá-lo.

Este princípio que leva decididamente até às suas últimas consequências a tese apresentada
por Fichte na primeira Doutrina da ciência, realiza a rigorosa e total imanência de toda a
realidade no sujeito pensante. Nem a natureza nem Deus, nem sequer o passado e o futuro,
o mal e o bem, o erro e a verdade, subsistem de qualquer forma fora do acto do
pensamento. Os desenvolvimentos que Gentile deu à sua doutrina consistem
essencialmente em mostrar a imanência de todos os aspectos da realidade no pensamento
que os põe, e em reduzi-los a este. O pensamento em acto é o Sujeito transcendental, o Eu
universal ou infinito. O sujeito empírico, o homem individual e particular, é um objecto do
Eu transcendental, um objecto que ele põe (isto é,

92

cria), pensando-o, e cuja individualidade-e, por consequência, supera no próprio acto em


que o põe.
O verdadeiro sujeito, o Sujeito infinito ou transcendental, não pode nunca tomar-se objecto
para si próprio. " A consciência-diz Gentile (Teoria gen.,
1, § 6)-, enquanto objecto de consciência, já não é consciência; enquanto objecto
apercebido, a apercepção originária já não é apercepção; já não é propriamente sujeito, mas
objecto; já não é Eu, mas sim não-eu... O ponto de vista transcendental é o que se obtém na
realidade do nosso pensamento, quando o pensamento se considera não como acto
consumado, mas, por assim dizer, como acto em acto: acto que não se pode absolutamente
transcender, pois que ele é a nossa própria subjectividade, isto é, nós mesmos; acto que não
se pode nunca nem de modo algum objectivam. Os outros eus são, por sua vez, objectos,
enquanto outros, mas no acto de os conhecer o eu transcendental unifica-os. Os
problemas morais surgem, em troca, no terreno da diversidade e da oposição recíproca
entre os eus

empíricos; mas não se resolvem nesse terreno. "Não se resolvem senão quando o homem
chega a sentir as necessidades dos outros como necessidades próprias, e a própria vida, por
conseguinte, não encerrada no apertado círculo da sua personalidade empírica, mas -
entendida sempre em expansão, na actividade de um espírito superior a todos os outros
interesses particulares, e ao mesmo tempo imanente no centro mesmo da sua personalidade
mais profunda" Qb., 2, § 5).
93

O pressuposto de tudo isto é o postulado segundo o qual "conhecer é identificar, superar a


alteridade como tal" Qb., 2, § 4). Em virtude deste pressuposto, Gentile pode afirmar que
ws outros fora de nós, não podem existir, falando com rigor, se nós os conhecermos e
falarmos deles"; e' que o outro (isto é, a outra pessoa) é, simplesmente, uma etapa através
da qual se passa, mas na qual não nos devemos deter. "0 outro não é tanto outro que não
seja nós mesmos" (ib., 4, § 5). Não se vê como se pode conciliar com afirmações tão
explícitas aqueloutra, feita com o propósito de distinguir o idealismo do misticismo, de que
"a realidade do eu transcendental implica também a realidade do eu empírico" e que o eu
absoluto unifica mas não destrói em si o eu particular e empírico Ub, 2, § 6). E, de facto, os
eus empíricos poderão distinguir-se entre si como objectos diversos do Eu transcendental,
do pensamento em acto, mas não já subsistir como eu, isto é, como sujeitos na unidade
simples e infinita daquele Eu. Isto é tão verdadeiro que o próprio acto da educação é
conhecido por Gentile como a unidade do mestre e do aluno no espírito absoluto, unidade
que chega a eliminar o problema da comunicação espiritual (Sumário de pedagogia, 1, 2.o
4, § 3). O próprio pressuposto do conhecimento como unificação e identificação entra em
jogo na polémica contra tudo o que está "fora" do espírito e da consciência. A consciência é
infinita e nada existe fora dela. O "fora" está sempre dentro porque designa uma relação
entre dois termos que, exteriores um ao outro, são no en-
94

tanto interiores à consciência mesma. Pelo mesmo motivo não pode haver verdadeira
dialéctica do ser

(no sentido platónico-aristotélico) ou da natureza.


O devir só é próprio do sujeito pensante; e as dificuldades em que se envolve a lógica de
Hegel para o deduzir da unidade de ser e não ser, são eliminadas se pelo ser se entende
precisamente o ser do

pensamento que o define e, em geral, pensa.

O sujeito pensante realiza a coincidência entre a particularidade e a universalidade e é, por


conseguinte, o verdadeiro indivíduo. Com efeito, o pensamento é ao mesmo tempo a
máxima universalidade possível e, portanto, a máxima afirmação do eu que pensa. Gentile
identifica a individualidade

com a positividade; e a positividade pertence propriamente ao pensamento, que é auto-


posição e auto-criação (autoctisis) e por isso se identifica com a

universalidade do próprio pensamento (Teoria gen.,


8, § 8). O universal do pensamento não é um dado

ou um objecto que o pensamento deva reconhecer ou respeitar, mas sim o fazer-se


universal, o universalizar-se, como o indivíduo é o individualizar-se: os dois actos
coincidem, portanto, no acto único e simples do eu que pensa. "Eu penso e pensando
realizo o indivíduo que é universal, e é, por isso, tudo o que deve ser absoluta-mente: além
dele, fora dele, não se pode procurar outro" (Ib., 8, § 16).

Deste ponto de vista, é evidente que a natureza, como uma realidade pressuposta ao
pensamento, é uma ficção; e como multiplicidade empírica de objectos espaciais e
temporais, se resolve na actividade espacializadora e temporalizadora do eu que a pensa

95

e, pensando-a, a unifica e a resolve em si mesmo. Isto exclui toda a acção condicionante da


natureza sobre o espírito. Só o pensamento em acto, é absolutamente incondicionado
porque é a condição de toda e qualquer outra realidade. O carácter condicionado da
realidade não exprime outra coisa senão a sua dependência do pensamento pensante. "0 ser

(Deus, natureza, ideia, facto contingente) é necessário, sem liberdade porque já está posto
pelo pensamento: é o resultado do processo, resultado que é, precisamente porque o
processo terminou, isto é, se concebe terminado, fixando-o e abstraindo-o um momento
como resultado" (1b., 12, § 19). O pensamento pensante é sempre livre, mas uma liberdade
que se identifica com a sua intrínseca necessidade racional e é, portanto, hegelianamente
entendida como coincidência de liberdade e necessidade.

§ 712. GENTILE: A DIALÉCTICA DO CONCRETO E DO ABSTRACTO

A elucidação desta necessidade intrínseca do acto pensante é o objectivo fundamental da


Lógica de Gentile. O acto do pensamento é, como tal, sempre verdade, positividade, valor,
bem, liberdade; mas

enquanto se objectiva e deve necessariamente objectivar-se, é erro necessidade,


negatividade, mal. O problema da lógica gentiliana consiste em mostrar a imanência destes
aspectos negativos na unidade e na simplicidade do acto espiritual infinito. Gentile

96

GENTILE

examina, pois, o que ele chama o logos abstracto, ou seja, a consideração abstracta pela
qual o objecto em

geral, que é a raiz de toda a negatividade ou desvalor e portanto, também do erro ou do mal,
é considerado uma realidade por si, independente do espírito que a pensa. Parte do princípio
de que o logos abstracto é necessário ao logos concreto. "Para que se actualize a concreção
do pensamento, que é negação da imediatez de toda a posição abstracta, é necessário que a
abstracção seja não so negada mas também afirmada; do mesmo modo que para manter
aceso o fogo que destrói o combustível é necessário que haja sempre combustível e que este
não seja subtraído às chamas devoradoras, mas seja efectivamente queimado" (Sist. di log.,
1, J.a , 7 ; § 9).
O lugar abstracto é considerado na expressão que assumiu na lógica tradicional, cujas
formas são por isso submetidas à análise crítica. Conceito, juízo e

silogismo são as formas do pensável, isto é, do objecto pensado enquanto tal: exprimem,
portanto, a objectividade, o ser, a natureza e não são susceptíveis de movimento, de
progresso, de dialéctica, tudo coisas que pertencem à actividade espiritual que só podem,
portanto, entender-se e justificar-se na subjectividade do sujeito pensante. O logos
abstracto, objecto da lógica grega e medieval é, pois, enquanto abstracto, um erro; mas é
um erro necessário, porque é devido à necessária objectivação do sujeito pensante e é
continuamente resolvido e superado na actividade deste sujeito: "A lógica do abstracto
nasceu historicamente e nasce eternamente, se assim nos podemos exprimir, naquele estado
de espírito

97

em que este não adquiriu consciência de si e não

vê por isso a abstracção do abstracto e o confunde com o concreto. Estado naturalista, em


que o real é pressuposto pelo espírito. Estado a que o espírito está destinado a subtrair-se e
a que se subtrai até ao infinito, porquanto já no próprio acto em que julga realizá-la, a
supera, afirmando não propriamente a

natureza, como ele crê, mas o próprio conhecimento da natureza, não o concreto, mas o seu
conceito do conceito" (Sist, li log., 11, 3a4, § 3).

Com este ponto se relaciona a teoria do erro, que é um dos aspectos mais característicos da
atitude filosófica de Gentile. O pensamento em acto é sempre, como tal, verdade, realidade,
bem, prazer, positividade. O erro, o mal, a dor, etc., subsistem nele apenas como os seus
momentos superados, como posições já ultrapassadas e desvalorizadas. "Toma-se qualquer
erro e demonstra-se bem que é tal; e

ver-se-á que não há ninguém que o queira perfilhar ou sustentar. O erro é, pois, erro
enquanto superado: por outras palavras, enquanto se apresenta ao

nosso conceito, como o seu não-ser. É, portanto, como a dor, não uma realidade que se
opõe à realidade do espírito (conceptus sui), mas a própria realidade enquanto alcança a sua
realização: num

seu momento ideal" (Teoria gen., 16, § 8). O erro é sempre imanente à verdade como o
não-ser é imanente ao ser que devém. O conhecimento do erro, é, com efeito, verdade: o
conhecimento como tal é sempre verdadeiro (Sist. di log., I, 1.a 5 §§ 9-10). Naturalmente,
esta teoria do erro não explica o

erro que não seja conhecido ou reconhecido como

98
tal; não explica, por exemplo, as doutrinas ou as opiniões filosóficas diversas das do
filósofo idealista. Mas Gentile declara que o filósofo idealista não tem a obrigação de
explicar este género de erros.

"0 idealista da imanência absoluta -afirma (1b.,


11, 3.a, 1, § 122)-não deve explicar pela dialéctica do acto espiritual qualquer verdade e
qualquer erro, mas a verdade e o erro do meu pensamento, que só para ele é
verdadeiramente tal: a verdade minha no acto que penso, e o meu erro no mesmo acto.
Pedir-lhe que com a mesma explicação explique o

que, vulgarmente e segundo outros sistemas filosóficos por ele criticados, é também
pensamento, e implica um correspondente modo de conceber verdade e

erro, é decerto uma pretensão absurda. O erro actualmente superado pelo seu contrário (que
é o único erro do qual o nosso idealismo pode falar) não é certamente o erro, por exemplo,
de quem está contra nós, e

resiste aos nossos argumentos e persiste na sua afirmação para nós evidentemente falsa;
nem o erro cometido, para dar um outro exemplo, por Platão na

sua teoria da transcendência das ideias". Na universalidade do espírito a oposição entre o


filósofo idealista e o seu antagonista é anulada de golpe, já que o

próprio antagonista é interior ao filósofo e só é real nele; e mesmo quando ressurge até ao
infinito na sua distinção, esta distinção volta sempre a ser anulada.
O traço característico desta teoria é a identificação entre o filósofo idealista e o espírito
universal: basta que a anulação "de golpe" dos erros adversários se realize na interioridade
do filósofo idealista para que se considere essa anulação realizada até ao infinito

99

na unida-de e na eternidade do sujeito pensante. É apenas necessário fazer notar que na


base desta teoria está o pressuposto que sustenta toda a teoria de Gentile: conhecer é
identificar e, portanto, conhecer os outros na sua alteridade e nos seus erros significa
resolver a alteridade e o erro na unidade e na verdade do sujeito pensante.

Como quer que seja, tal pressuposto domina todo o desenvolvimento do pensamento de
Gentile. O ignoto, por exemplo, enquanto é conhecido como

tal, já não é o ignoto; "é enquanto não é". E assim a morte, a qual "não existe". "A morte é
temível porque não existe, como não existe a natureza nem o passado, como não existem os
sonhos. Há o homem que sonha, mas não as coisas sonhadas. E assim a morte é negação do
pensamento mas não pode ser actual o que se realiza pela negação que o

pensamento faz de si mesmo. Com efeito, só se pode conceber o pensamento como imortal,
porque é infinito" (Sist. di log. II, 4.a 2 § 3). E assim a ignorância só existe no acto em que
é reconhecida como

tal e, por isso mesmo, superada como ignorância; e não existem problemas senão enquanto
resolvidos, embora toda a solução se transforme num novo problema que é, no entanto,
imediatamente uma nova solução (1b., 11, 4 a, 5, §§ 4-5). Por consequência, a filosofia é
perene, porque é sempre esta filosofia, ou seja, filosofia do acto pensante; idealismo. E
dado que não existe uma filosofia estritamente objectiva "a verdade da filosofia ou a
filosofia verdadeira a que o filósofo tende, não pode ser outra senão uma elaboração da sua
própria

100

filosofia, cujo desenvolvimento é também o desenvolvimento da verdade filosófica" (Ib, 5,


§ 5). O método da filosofia não pode ser, portanto, senão o

da imanência de toda a realidade ou verdade no pensamento pensante e, por conseguinte, a


filosofia identifica-se com a lógica (Ib., epílogo, 2, § 2).

É fácil dar-se conta da apreciação que se pode fazer da ciência deste ponto de vista. A
ciência é sempre particular porque tem a seu lado outras ciências e carece, portanto, da
universalidade que é própria da filosofia. Pressupõe primeiramente, e

diante de si, o seu objecto; é, portanto, dogmática e tende necessariamente para o


naturalismo e o materialismo. Dela não há história porque só há história do acto pensante,
ou seja, da filosofia que a

inclui em si (Teor. gen., 22, §§ 1-7). É este o único elemento que, de algum modo, a salva,
porque o

cientista, sendo como homem também filósofo, reincorpora a abstracção da ciência na


concreção do seu

acto pensante (Sist. di log., 11, epílogo, 3 § 6).

A conclusão inevitável da dialéctica do abstracto e o concreto, conclusão, aliás que Gentile


explicitamente aceita e mantém até às suas últimas consequências, é a de que o homem,
como sujeito pensante e na pontualidade do seu acto pensante, está sempre na verdade e no
bem, no infinito e no eterno, mais ainda, é, ele mesmo, todas estas coisas. Isto implica
também que a história do homem (que tem história só como acto pensante) é um
permanecer imóvel na eternidade; e a isto se reduz a doutrina da história de Gentile. De
facto, começa por negar a distinção entre história (res gestae) e historiografia

101

Ir-,
(histori" rerum gestarum) e por reduzir a história à historiografia, ou seja, à
contemporaneidade do acto pensante, de um "presente absoluto que não desaparece e não
se precipita no seu oposto" e que é "0 eterno, tal como reluz no acto do espírito que o
busca, no acto do pensamento que pensa" (Sist. di log., 11, 4a, 6 § 2). A pretensa
objectividade da verdade histórica não é outra senão a mediação ou sistematização do
pensamento que, mediando-se ou demonstrando-se, se põe como verdade imutável e é já,
em rigor, tal pela imanente mediação pela qual o eu se põe como não-eu (1b., § 8). A busca
da individualidade nos acontecimentos históricos não pode ser senão a busca daquele
verdadeiro eu que e o Eu universal e pensante. "0 Sócrates histórico, com a sua positiva
individualidade, então sim, torna-se apreensível; mas enquanto o construímos como
personalidade que revive na nossa e actualmente é a nossa (ib., § 4). Uma vez mais parte do
postulado do conhecer como identificação do sujeito consigo mesmo.

§ 713. GENTILE: A ARTE

Na Teoria Geral e no Sumário de pedagogia Gentile pusera o carácter peculiar da arte na


sua subjectividade, pela qual o mundo do artista se distingue do da vida prática e da religião
e representa uma libertação em relação a ele. O preciso significadO da subjectividade da
arte é examinado na Filosofia da arte (1931). O pressuposto capital da oVa é, contudo, o
que determina a especulação

102

gentiliana: conhecer algo significa para o sujeito assimilá-lo a si e identificá-lo consigo. "A
obra que se conhece-diz Gentile (Fil. dellarte, p. 100)-, não é a que está ali, no tempo,
dividida por nós, mas

a que, ao invés, vamos procurar longe de nós (e precisamente pela actual experiência por
nós vivida), mas que, uma vez encontrada, se nos manifesta e faz valer como próxima, ou
melhor, como nossa e constitutiva da nossa actual experiência". Posto isto, o significado da
arte, de toda a obra de arte, não poderá consistir senão no próprio objecto pensante; e,
precisamente, na "forma do eu como puro sujeito" (1b., p. 131). Mas como puro sujeito o
eu nunca é actual, porque a sua actualidade, o acto do seu pensar está no seu objectivar-se;
mas

neste objectivar-se a arte, como pura subjectividade, já foi transcendida. "A arte pura é
inactual e, por isso, não pode ser apreendida na sua pureza. Isto não significa, porém, que
ela não existe, mas somente que não se pode separar, tal como é e por aquilo que é
propriamente, do resto do acto espiritual, em que existe, e em que, ademais, demonstra toda
a sua energia existencial" (1b., p. 135). Por conseguinte, a arte não é, como se costuma
dizer, um produto de fantasia; não existe uma fantasia como faculdade, ou função especial
da actividade espiritual, distinta do pensamento. A actividade espiritual é sempre
pensamento, ainda quando, na interioridade do pensamento, se possam distinguir vários
momentos. A arte é o momento da subjectividade pura ou inactual que se torna actual no
pensamento, se converte em expressão. A expressão
103

estética é, pois, pensamento, e a arte não é a expressão de um sentimento, mas é o próprio


sentimento como pura, íntima e inefável subjectividade do sujeito pensante (Ib., p. 197).

O sentimento conserva em Gentile todos os seus característicos românticos: é indefinível,


inexprimível e ineliminável: é o infinito espiritual, isto é, livre de determinações
conceptuais necessárias e, por isso, é constitutivo da subjectividade pura do sujeito (Fil.
dell'arte, p. 176 segs.). Precisamente como tal, a infinidade do sentimento é a infinidade do
homem, na sua universalidade e, portanto, está acima e

para além da diversidade empírica dos homens individuais (ib., p. 205). Sentimento é o
corpo não na sua presumida imediatez física, mas na sua actualidade consciente-,
sentimento é também a linguagem, que é decerto pensamento na multiplicidade do seu

desenvolvimento, mas continua sendo sentimento na unidade subjectiva deste


desenvolvimento (1b., p.
226-30).

Por outro lado, a técnica artística é, em troca, pensamento; mas é um pensamento "que
retorna ao sentimento e com ele se encontra e é por isso dirigido e animado por ele" (Ib., p.
237). A pretensa exteriorização da obra de arte não é, na realidade, senão a sua interna
realização por obra do sujeito. No sujeito encontra também a sua beleza a natureza, "não já
dividida nas suas partes, mas reunida naquela unidade e infinidade que é própria do sujeito
e do mesmo sujeito" (1b., p. 262). Se como pura objectividade e, portanto, como puro
sentimento, a

arte não é moral, encontra a sua moralidade, ao

104

mesmo tempo que a sua actualidade, no pensamento, isto é, na filosofia. Possui, portanto,
uma eticidade imanente pela qual pode valer como educadora do género humano. Nas suas
produções históricas (embora não esteticamente válidas, porque só o são no pensamento e
para o pensamento) a arte tem também, segundo Gentile, um carácter nacional (Ib., p. 237).
Quanto à relação entre arte e religião, trata-se de uma correlação necessária que implica a
sua recíproca oposição e exclusão dialéctica. Com efeito, a arte é o momento da pura
subjectividade espiritual, a religião é o momento da pura objectividade, do objecto que é
absolutamente negador do sujeito (Deus), do infinito como objecto.

§ 714. GENTILE: A RELIGIÃO

Este conceito da religião foi formulado por Gentile na Teoria geral do espírito e no Sumário
de pedagogia e confirmado nos Discursos de religião (1920). A religião é "a exaltação do
objecto, subtraído aos vínculos do espírito, em que consiste a
idealidade, a cognoscibilidade e racionalidade do objecto mesmo" (Teoria, 14, § 7). Como
negação do sujeito no objecto, a religiosidade determina a

negação da liberdade espiritual. "Substitui o conceito da criação como autoctisis pelo da


criação como heteroctisis; e o conceito do conhecer como posição que o sujeito faz do
objecto, pelo da revelação que o objecto faz de si mesmo, o conceito da boa vontade, que é
a criação que a vontade faz do bem (isto é, de si mesma como bem)

105

pelo da graça que o bem (Deus) faz de si ao sujeito" (Somm. di ped., 1, 3 a, 4, § 4). A
essência da religião é, portanto, o misticismo que é a anulação do sujeito no objecto e pela
qual o ser de Deus é o não ser do sujeito (Disc. di rel., p. 78). A consequência da
religiosidade é o agnosticismo, que é o carácter negativo de todas as teologias místicas ou
estritamente religiosas Qb., p. 81). A religiosidade pertence, pois, propriamente ao lugar
abstracto, isto è, à posição abstracta e errónea de um objecto, que se supõe anterior ao
sujeito e considerado independente dele. Somente a filosofia a restitui à sua concreção,
mostrando no próprio objecto da religião uma posição ou criação do sujeito. E, neste
sentido, a filosofia imanentista é a "verificação do cristianismo" , que foi o primeiro a
afirmar o princípio da interioridade espiritual. Por sua vez, o acto espiritual, a única
realidade positiva e concreta já não pode ser divinizada e tornar-se objecto de adoração ou
de culto. "0 acto é a filosofia: e a filosofia da filosofia não é mais do que filosofia. Assim, o
acto, na sua imanente realidade, não se objectiva e não se põe diante de si mesmo" (Ib., p.
88). De maneira

que a religião só é imortal na filosofia; e se o homem tem necessidade de Deus, tem


também necessidade de reflectir sobre ele e de o reduzir ao acto do seu pensamento. "E este
Deus, como pode ser vontade que cumpre reconhecer, a que se tem de rezar e. invocar, e a
que é necessário submetermo-nos, se Deus está dentro do homem, do seu eu, e é
propriamente o seu eu ao realizar-se?" (Sist. di log., 11, 4.a 8, § 4).

Nalguns artigos e ensaios dos últimos anos da

106

sua vida, Gentile insistiu na religiosidade da sua

filosofia (Sobre uma nova demonstração da existência de Deus, 1932; A minha religião
1943). Falou também de uma religião sua e até mesmo de um catolicismo seu. Mas,
evidentemente, o adjectivo destrói aqui o substantivo. Para chegar a reconhecer a validade
da religião, Gentile deveria ter abandonado, como fez Fichte, o princípio da identidade do
finito e do infinito e chegar a admitir que o

infinito está para além do finito, isto é, do homem que filosofa, do sujeito pensante, o qual
em comparação com ele não é mais do que a imagem ou a
repetição temporal do seu eterno processo. Mas nada estaria mais longe da intenção de
Gentile, o

qual, nestes artigos, não fez senão reafirmar a sua

fé na infinidade do sujeito pensante e na impossibilidade da transcendência.

§ 715. GENTILE: O DIREITO E O ESTADO

Uma sociedade de homens, isto é, de seres finitos ligados entre si e ao mundo que os
alberga por necessidades e exigências de diversa natureza é, do ponto de vista de Gentile,
um verdadeiro absurdo. Por isso, nos Fundamentos da filosofia do direito (1916), assim
como no seu último escrito Génese e estrutura da sociedade (1946), e noutros escritos
menores circunstanciais e políticos, Gentile não faz outra coisa senão reduzir à
interioridade do acto espiritual a sociedade e o estado, a moral, o direito

e a política e, em geral, toda a gama das relações

107

entre os homens. Sociedade e estado, e, por conseguinte, direito e política não estão,
segundo ele, inter homines, mas in interiore homine. Na primeira obra, procurou esclarecer
a natureza do direito recorrendo à dialéctica de o que quer e o querido, que é perfeitamente
idêntica à de pensante e pensado, já que nenhuma distinção é possível entre pensamento e

vontade: o pensamento como actividade criadora e

infinita é vontade criadora e infinita. Em relação à moralidade, que é vontade do bem, isto
é, criação do bem no acto de o querer, o direito é o querido, ou seja, não já vontade em acto
mas vontade passada ou conteúdo do querer; portanto, também, "não já liberdade que é
força, mas força sem liberdade, não já objecto que é sujeito, mas objecto oposto ao

sujeito" (Fond., p. 58-59). A vontade que quer é já para si mesma o seu próprio mandato ou
a sua

própria lei; quando encontra diante de si uma ordem ou uma lei, trata-se de um momento
seu objectivado, e fixado abstractamente nessa sua objectividade. "0 poder soberano, o
querer tom-no já em si; e fora dele, onde empiricamente se vê armado de espada, não pode
vê-lo senão através do que já tem no seu

íntimo, onde está a raiz e a verdadeira substância da sociedade e do estado" (Ib., p. 61). Por
conseguinte, a coactividade do estado ou das normas jurídicas é, ela também, interior e
espiritual; e direito e moral, em última análise, identificam-se, como se identificam o estado
e o indivíduo, na actualidade do querer volitivo ou do sujeito pensante (1b., p. 69).

Esta é já uma justificação do estado absolutista e totalitário; e a justificação é explícita no


último
108

escrito de Gentile. Aqui rejeita-se a distinção entre o privado e o público e com ela a
possibilidade de pôr limites à acção do estado. E, com efeito, a distinção não pode manter-
se se se admite como único indivíduo o Eu universal e infinito: na realidade, tal distinção
pressupõe a singularidade e a irredutibilidade do indivíduo e, ao mesmo tempo, a sua

constitutiva relatividade social. Gentile, aceitando o carácter totalitário e autoritário do


estado, declara, com um movimento característico do seu pensamento, que se pode dizer
também o oposto, q saber "que neste estado, que é própria vontade do indivíduo enquanto
universal e absoluto, o indivíduo absorve o estado, e que a autoridade (a legítima
autoridade), não podendo ser expressa, aliás, senão pela actualidade do querer individual se
reduz integralmente à liberdade". Deste modo, a verdadeira democracia seria, não a que
quer limitar o estado, mas a "que não põe limites ao estado que se desenvolve na intimidade
do indivíduo e lhe confere a força e o direito na sua absoluta universalidade" (Génese, etc.,
p. 121). Também aqui, como na teoria do erro, Gentile identifica o indivíduo universal e
absoluto com o filósofo idealista que teoriza, sobre este indivíduo. De modo que o miolo da
sua demonstração é que o estado autoritário, identificando-se com o filósofo idealista,
realiza a liberdade deste filósofo; por isso, não é autoritário. É evidente que, neste círculo, o
pensamento de Gentile se

mostra constitucionalmente incapaz de um colóquio com outros homens e até mesmo de


polemizar com eles.

109

Neste ponto crucial, deparamos mais uma vez

com o pressuposto que sustenta toda a dialéctica de Gentile: conhecer é identificar, eliminar
a alteridade, assimilar ao sujeito pensante tudo o que não é o

sujeito pensante. A este pressuposto, que é a herança mais pesada do pensamento


romântico, contrapõe-se a filosofia contemporânea na sua parte militante: o realismo, a
fenomenologia, o positivismo lógico, o existencialismo, o instrumentalismo. A filosofia de
Gentile inscreve-se inteiramente no círculo cerrado do romantismo e é a mais audaz,
rigorosa e extrema expressão do mesmo.

É necessário somente notar que a actividade

historiográfica de Gentile, dominada como é pelo pressuposto citado e pelo conceito de que
a história

não é mais do que a eternidade no acto pensante, não tem valor -senão como aspecto da sua
especulação sistemática. Nos seus numerosos trabalhos históricos, Gentile procurou sempre
rastrear no passado apenas os elementos assimiláveis à filosofia -do actualismo. A sua
historiografia filosófica reduz-se, pois, a isolar certos elementos de pensamento dos
complexos individuais e históricos -de que fizeram parte e a assimilá-los aos conceitos
próprios do actualismo. Esta forma de historiografia filosófica foi com frequência seguida
por numerosos discípulos que Gentile teve na Itália nos anos que vão da primeira à segunda
guerra mundial com resultados quase nulos ou decepcionantes, seja do ponto de vista
historiográfico, seja do teorético.

110

§ 716. CROCE: VIDA E OBRA

Bene-detto Croce, nasci-do em Pescasseroli, nos Abruzos, a 25 de Fevereiro de 1866, e


falecido em Nápoles a 20 de Novembro de 1952, permaneceu sempre arredado do ensino
universitário. Salvaguardado das necessidades materiais por uma grande fortuna pessoal,
desenvolveu como escritor independente uma ininterrupta e intensa actividade nos mais
variados campos da filosofia, da história, da literatura e da erudição. Ligado por estreita
amizade a Govarmi Gentile (que foi durante muitos anos, e

até ao início de 1903, colaborador da sua revista "La Critica"), Croce rompeu com ele
quando se

declarou hostil ao governo fascista (já instaurado havia alguns anos) de que Gentile se
tornara o expoente filosófico oficial. A esta ruptura, seguiu-se, por ambas as partes, uma
polémica miúda, azeda e

pouco edificante, que durou muitos anos. O regime fascista, certamente para se salvar de
um alibi face aos meios culturais internacionais, permitiu tacitamente a Croce uma certa
liberdade de crítica política, de que ele usou efectivamente nos livros e nas notas que ia
publicando na "Critica" para fazer a

defesa dos ideais da liberdade, tanto mais eficaz quanto era alheia a toda a retórica e
impregnada de cultura e de pensamento. Nos anos do fascismo e

da segunda guerra mundial a figura de Croce assumiu por isso, aos olhos dos italianos, o
valor de um

símbolo pela sua aspiração à liberdade e a um

mundo em que o espírito prevaleça sobre a violência. E assim se mantém ainda hoje,
embora se verifique

111

o eclipso das ideias filosóficas de Croce até nos domínios em que exerceram a maior
influência, ou seja, na estética e na teoria da história.

Croce chega a formular o seu sistema filosófico partindo da consideração de problemas


literários e
históricos. A primeira forma da sua estética (Tese fundamental de uma estética como
ciência da expressão e linguística geral, 1900) foi-lhe sugerida pela necessidade de uma
orientação precisa na crítica literária; e nasceu como tentativa de dar uma sistematização
filosófica rigorosa aos princípios críticos que presidiram à obra de Francesco De Sanctis
(1818-83) que ele considerava como o seu verdadeiro mestre. A estética foi, pois,
incessantemente reelaborada por Croce; e da Estética como ciência da expressão e
linguística geral (1902) ao Breviário de estética (1912) e ao volume A poesia (1936), bem
COMO em numerosos ensaios e escritos menores, Croce foi dilucidando as suas teses
fundamentais que permaneceram no entanto as mesmas quanto ao essencial (Problemas de
estética, 1910-, Novos ensaios de estética, 1920; últimos ensaios, 1935). Em torno do
núcleo da estética, condensou-se pouco a pouco o resto do sistema crociano: Lógica como
ciência do conceito puro (1909)-, Filosofia da prática, económica e ética (1909); Teoria e
história da historiografia (1917). Juntamente com a doutrina estética, a que sofreu maior
reelaboração foi a doutrina da história (A história como pensamento e como acção,
1938; O carácter da filosofia moderna, 1941; Filosofia e historiografia, 1949; Historiografia
e idealidade moral, 1950). São fundamentais as monografias

112

dedica-das por Croce a Vico e a Hegel (A filosofia de Vico, 1911; Ensaio sobre Hegel,
1912) e os estudos reunidos na sua obra Materialismo histórico e economia marxista
(1900). Os Escritos de história literária e política, constituem, pois, um esclarecimento e
uma reforinulação dos princípios filosóficos de Croce perante um grande número de
problemas críticos.

§ 717. CROCE: A FILOSOFIA DO ESPIRITO

A filosofia de Croce qualificou-se ou autoqualificou-se como "historicismo absoluto".


Pouco importa que se rejeite ou admita esta qualificação; o

que importa, em todo o caso, é -dar-se conta de que nela o adjectivo modifica radicalmente
o substantivo e que, portanto, o historicismo crociano é radicalmente diverso -do resto do
historicismo contemporâneo. Este (como veremos, § 735), centra-se em

torno do problema crítico da historiografia, isto é, do problema relativo à possibilidade e ao


fundamento (no sentido kantiano) -do saber histórico. Este problema não existe para Croce,
que entende por historicismo "a afirmação de que a vida e a realidade é história e nada mais
do que história" (A história,
1938, p. 51). É evidente que, deste ponto de vista, o problema crítico da historiografia é
eliminado e

substituído pelo principio hegeliano da identidade entre racionalidade e realidade, entre ser
e dever ser. Croce, de facto, contrapõe o historicismo ao ilumi-
113

nismo que, como "racionalismo abstracto", considera "a realidade dividida em supra-
história e história, num mundo de ideias ou de valores e num mundo que os reflecte ou os
reflectiu até agora, de um modo fugaz e imperfeito, e ao qual convirá impô-los de uma vez,
fazendo suceder à história imperfeita, ou à história pura -e simplesmente, uma realidade
racional perfeita". O historicismo crociano não é, pois, senão o racionalismo absoluto
hegeliano. E, de facto, Croce vê (a justo título) e louva em Hegel, sobretudo, "o ódio contra
o abstracto e o imóvel, contra o dever ser que não é, contra o ideal que não é real" (Ensaio
sobre Hegel, 1927, p. 171). "Com Hegel-diz ainda Croce (0 carácter da filosofia moderna,
p. 41) -Deus -descera definitivamente do céu à terra, e já não havia que buscá-lo fora do
mundo, onde apenas se encontraria uma pobre abstracção, forjada pelo espírito do homem
em determinados momentos e para certos fins. Com Hegel adquirira-se a consciência de
que o homem é a sua história, a história a única realidade, a história que se faz como
liberdade e se pensa como necessidade, e já não é a sucessão caprichosa dos eventos contra
a coerência da razão, mas actuação da razão, a qual deve ser qualificada de irracional só
quando se despreza e se desconhece a si mesma na história. A este historicismo absoluto,
reduziu também a doutrina de Vico, pondo de parte na filosofia de Vico todos os elementos
contraditórios ou, que de qualquer forma, não eram compatíveis com tal ponto de vista.

Contudo, Croce reprovou a Hegel o ter admitido a possibilidade da natureza como "algo
diferente

114

do espírito", o ser tornado pesado e escolástico o seu sistema com o uso e o abuso da forma
triádica e, sobretudo, a confusão do nexo dos distintos com a dialéctica dos opostos. Isto é,
Hegel confundiu a distinção e a unidade que existe entre as formas e os

diversos graus do espírito com a oposição dialéctica que se encontra no âmbito de cada
grau (belo e feio na arte, verdadeiro e falso na filosofia, útil e inútil na economia, bem e
mal na ética). os opostos condicionam-se mutuamente (não existe belo sem feio, etc.), mas
os distintos, isto é, os graus do espírito, condicionam-se só na ordem da sua sucessão.
Croce admite quatro destes graus que se reagrupam nas

duas formas fundamentais do espírito: a teorética

e a prática. Arte e filosofia constituem a forma teorética; economia e ética a forma prática.
A arte é conhecimento intuitivo ou -do particular; a filosofia conhecimento lógico ou do
universal; o momento económico é a volição do particular; o momento ético é a volição do
universal. Cada momento condiciona o momento subsequente, mas não é, por sua vez,
condicionado por ele: a filosofia é condicionada pela arte, que lhe fornece com a linguagem
o

seu meio de expressão, a actividade prática é condicionada pelo conhecimento que a


ilumina; e na forma prática, o momento económico, isto é, a força e a

eficácia da acção, condiciona o momento ético que dirige a vontade eficaz e praticamente
activa para fins universais. A vida do espírito desenvolve-se circularmente no sentido de
que torna a percorrer incessantemente os seus momentos ou formas fundamentais; mas
torna-os a percorrer enriquecida de

115

cada vez pelo conteúdo das precedentes circulações e sem se repetir nunca. Nada existe
fora do espírito que devém e progride incessantemente: nada existe fora da história, que é
precisamente este progresso e

este devir.

§ 718. CROCE: A ARTE

A arte é o primeiro momento do espírito universal. Croce define-a como visão ou intuição,
mas considera-a como -teoria ou contemplação e atribui-a à forma teorética do espírito. "0
artista produz uma

imagem ou fantasma; e aquele que aprecia a arte dirige o olhar para o ponto que o artista
lhe indicou, olha pelo respiradouro que aquele lhe abriu e reproduz em si aquela imagem"
(Novos ensaios de estética, p. 9). Mas intuição significa "a imagem no seu valor de mera
imagem, a pura idealidade da imagem"-, exclui, pois, a distinção entre realidade e
irrealidade, que é própria do conhecimento conceptual e filosófico. Este é sempre realista
porque tende a

estabelecer a realidade contra a irrealidade, ou a rebaixar a irrealidade incluindo-a como


momento subordinado na realidade mesma. A arte, ao invés, desfaz-se e morre quando se
transforma em reflexão e juízo. Por isso nem sequer é religião ou mito, pois estes incluem
também aquela pretensão de realidade que é própria da filosofia. Como forma teorética, a

arte não é um acto utilitário e nada tem a ver com o útil, e com o prazer ou com a dor; nem
é um acto moral, e por isso exclui de si as valorizações pró-
116

prias da vida moral. A boa vontade nada tem a ver

com a arte. Uma imagem poderá mesmo copiar um

acto reprovável, mas enquanto imagem não é nem

louvável nem reprovável. O artista, como tal, é sempre moralmente inocente. A sua
verdadeira moralidade é intrínseca ao seu escopo ou à sua missão de artista, é o seu -dever
para com a arte.

A intuição artística não é, todavia, um fantasma desordenado: tem em si um princípio que


lhe dá unidade e significado e este princípio é o sentimento. "Não é a ideia, mas sim o
sentimento que confere à arte a aérea ligeireza do símbolo: uma aspiração fechada no
círculo de uma representação, eis o que é a arte" (Novos ensaios de estética, p. 28). Neste
sentido, a arte é sempre intuição lírica: é síntese a priori de sentimento ede imagem, síntese
da qual se pode dizer que o sentimento sem a imagem é cego, e a

imagem sem o sentimento é vazia. A arte distingue-se, pois, tanto do vão fantasiar como -
da passionalidade tumultuosa do sentimento imediato. Recebe do sentimento o seu
conteúdo, mas transfigura-o em pura forma, ou seja, em imagens que representam a
libertação da imediatez e a catarse do passional.

Como intuição, a arte identifica-se com a expressão. Uma intuição sem expressão não é
nada: uma fantasia musical só existe quando se concretize nos sons, uma imagem pictórica
só o é quando pintada. A expressão artística é intrínseca à intuição e identifica-se com ela.
Mas a expressão artística é diversa da expressão técnica que é devida à mera necessidade
prática de tomar possível a reprodução da imagem para si e para os outros. A técnica é
consti-
117

túída: por actos práticos, guiados, como todos os actos práticos, por conhecimentos. Como
tal, é diferente da intuição, que é pura teoria: e pode-se ser

grande artista e mau técnico. É pela técnica que "com a palavra e com a música se unem as
escrituras e os fonógrafos; com a pintura, as telas e os retábulos

e as paredes cheias de cores; com a escultura e a arquitectura, as pedras talhadas e


entalhadas, o ferro e o bronze e os outros metais fundidos, batidos e diversamente
forjados".

O corolário fundamental, que decorre da definição da arte corno intuição e expressão, é a


identificação entre linguagem e poesia. A expressão primeira e fundamental é, de facto, a
linguagem. O homem fala a todo o instante como o poeta, porque, como o poeta, exprime
as suas impressões e os seus sentimentos sob a forma da conversação familiar, a qual não
está separada por nenhum abismo das formas propriamente estéticas da poesia e da arte em
geral. A linguagem não é o sinal convencional das coisas, mas a imagem significante
espontaneamente produzida pela fantasia. O sinal mediante o qual o homem comunica com
o homem supõe já a imagem e, portanto, a linguagem, a qual é, pois, a criação originária do
espírito. A identidade entre poesia e

linguagem explica o poder que esta exerce sobre todos os homens: se a poesia fosse uma
língua à parte, uma "linguagem dos deuses", os homens nem sequer a entenderiam.

Nos últimos escritos, e sobretudo no volume Poesia (1936), Croce insiste cada vez mais no
carácter expressivo da arte. A expressão poética, enquanto

118

acalma e transfigura o sentimento, é uma "teorese, um conhecem que une o particular ao


universal e, por conseguinte, tem sempre uma marca de universalidade e totalidade. Dela se
distingue a expressão sentimental ou imediata, a da prosa, a expressão oratória e a literária.
A expressão sentimental ou
imediata é uma pseudo-expressão porque não tem carácter teorético e -se determina, não
numa verdadeira linguagem, mas em "sons. articulados", que fazem parte integrante do
sentimento. Mesmo quando esta expressão dá lugar a livros inteiros ou séries de livros, não
se distingue do sentimento e não o supera, mas mantém-se nele sem alcançar o nível da
poesia. De facto, na expressão poética o sentimento não preexiste como conteúdo já
formado e expresso, mas é criado juntamente com a forma; de modo que o puro sentimento
é para a poesia um nada, que é real só como outra forma de vida espiritual, ou seja, como
forma prática. A poesia é a morte do sentimento imediato, é "o ocaso do amor, quando toda
a

realidade se consome em paixão de amor". Reporta o indivíduo ao universal, o finito ao


infinito, eleva "sobre a angústia do finito a extensão do infinito" (A poesia, p. 9 segs.).
Assim como a expressão do sentimento imediato é "som articulado" mas não palavra, assim
também não é palavra a expressão em prosa, já que "só a expressão poética é a verdadeira
palavra". A expressão em prosa relaciona-se com a poética, como a filosofia se relaciona
com a poesia. Dá lugar a símbolos ou sinais de conceitos, que não são palavras porque não
são imagens ou intuições. Também se distingue da expressão poética

119

a expressão oratória, que por isso mesmo também

dá lugar, não a palavras, mas a sons articulados, dos quais a actividade prática se serve para
suscitar determinados estados de alma. A expressão literária, é "uma das partes da
civilização e da educação semelhante à cortesia ou ao galanteio", e consiste na harmonia
entre as expressões poéticas e as

não poéticas (passionais, em prosa, oratórias), de modo que estas últimas, no seu curso,
embora sem se renegarem a si mesmas, não ofendem a consciência poética e artística (1b.,
p. 33). O que há de fundamental na expressão poética é o ritmo, "a alma da expressão
poética, e, portanto, a expressão poética mesma, a intuição ou ritmo do universo, como o

pensamento é a sistematização dele". E o ritmo é próprio de toda a arte: em cada uma delas
toma caminhos próprios, que são infinitos e inclassificáveis. Sobre a sua natureza e sobre a
sua relação com a

expressão, Croce pouco diz, a não ser que o subentenda nas explicações que deu sobre o
ritmo e a harmonia na história -da estética desde a antiguidade até hoje. Através das
expressões não poéticas e, sobretudo, através da expressão oratória o espírito é reportado ao
sentimento, que é a própria vida prática, a partir da qual recomeça um novo ciclo, constante
no seu ritmo já assinalado, ritmo que cresce sobre si mesmo, num incessante
aperfeiçoamento e

enriquecimento (1b., p. 28).

Este último desenvolvimento da -estética crociana vai, indubitavelmente, ao encontro da


exigência própria da crítica literária de determinar e condicionar melhor a natureza da
expressão estética para a dis-
120

CROCE

tinguir facilmente das expressões que não são estéticas. Todavia, o próprio reconhecimento
da realidade de tais expressões assinala o acto de decadência e de morte da filosofia do
espírito. Se existem formas ou modos de expressão que não são poesia ou arte, a poesia ou
arte não são tais enquanto expressão condicionada de uma determinada maneira; e se as
condições que fazem da expressão uma expressão poética são a teorese, o conhecer, a
universalidade, a totalidade, a infinidade, etc., ou seja, caracteres ou determinações que
encontram a sua

realidade plena no conhecimento lógico, o carácter específico da expressão poética


dissolveu-se e o próprio fundamento da estética crociana foi abandonado. Se o sentimento
que se manifesta ou realiza na expressão poética não é o que pertence à forma prática do
espírito, mas é criado ou suscitado ad hoc, a passagem da forma prática à arte ou da arte à
forma prática torna-se impossível. Se a forma prática e o conhecer lógico possuem por sua
conta a sua expressão adequada, mesmo que seja em sons articulados ou símbolos, e não
em palavras e língua-,,em, a unidade e a conexão necessária entre estas formas toma-se
impossível e elas deixam de ser formas, ou seja, momentos de uma única história espiritual
para se tornarem faculdades, uma a par da outra, como na velha psicologia metafísica. A
teoria da linguagem como expressão poética suscita a crise de toda a filosofia do espírito de
Croce. Do ponto de vista do literato que a acha útil e conveniente para os seus fins, isto
pode parecer uma feliz incongruência do filósofo; mas do ponto de vista filosó-
121

fico, a coisa é, pelo menos, desconcertante. Acrescente-se que a redução (que aquela teoria
implica) das expressões não poéticas (filosóficas ou oratórias) a "sons articulados" vem a
ter o seu oposto simétrico na tese de alguns epistemologistas contemporâneos (por ex.,
Ayer) que reduzem a simples "emissões de voz" as expressões não científicas ou, pelo
menos, não verificáveis empiricamente, e este elucidativo confronto tomará inútil o juízo.
É, enfim, evidente que a identificação da linguagem com a

expressão poética toma impossível entender a unidade da poesia com as outras artes
(música, pintura, escultura, etc.); e de facto, para justificar esta unidade, Croce é obrigado a
recorrer ao antiquado e, segundo parecia, já inútil conceito de ritmo.

Contra a exigência, que se manifesta em muitas ocasiões, de compreender a personalidade


do artista (ou do filósofo, ou do político) para poder ajuizar da sua obra, Croce afirma a
pura e simples identidade entre a personalidade e a obra. "0 poeta nada mais é do que a sua
poesia: afirmação não paradoxal se se considerar que também o filósofo nada mais é do que
a sua filosofia e que o estadista nada mais é do que a sua acção e criação política" (La
poesia, p. 147). Mas a poesia do poeta ou a filosofia do filósofo, etc., não é, como Croce
crê, somente a forma numérica das suas poesias ou dos seus livros escritos. Não é possível
entender e determinar o valor de uma obra referindo-se incessantemente àquele objectivo e
àquela missão que o artista, ou em geral, o autor reconhece como sendo própria de si e cuja
realização procurou no seu tra-
122

balho. Este aspecto intencional, próprio de toda a

autêntica personalidade humana, e que se traduz igualmente nas obras e na vida (a qual, por
isso, não pode ser excluída ao julgar-se a obra), não é devidamente considerada nas
formulações teóricas e nas

críticas literárias de Croce.

§ 719. CROCE: A CIÊNCIA, O ERRO E A FORMA ECONóMICA

A tese fundamental da Lógica (1908) é a identidade entre filosofia e história. Croce defende
esta tese mostrando a identidade entre o conceito e o juízo definidor que o expressa, e entre
o juízo definidor e o juízo individual ou percepção, que é o juízo sobre a realidade concreta
ou fáctica. Mas o juízo sobre a realidade concreta ou fáctica é o juízo histórico: de modo
que o verdadeiro pensar, o pensar lógico, é sempre pensar histórico; mais ainda, identifica-
se com a história enquanto pensamento. Todavia, este conceito, que acaba por se revelar
idêntico ao saber histórico, é, sobretudo, o Conceito: isto é, o próprio Espírito na forma da
sua autoconsciência racional. Não tem, pois, nada que ver com os conceitos de que se fala
na linguagem comum e na ciência; e estes, segundo Croce, não são verdadeiramente
conceitos, mas pseudo-conceitos. ou ficções conceptuais. Para explicar a sua origem e a sua
função, Croce recorre à forma prática do espírito e reproduz a doutrina de Mach (§ 785)
sobre a função económica dos conceitos científicos. Os pseudo-conceitos

123

servem o interesse prático que provê à conservação do património dos conhecimentos


adquiridos. "Embora -diz Croce (Lógica, 1920, p. 23) -, em sentido absoluto tudo se
conserve na realidade e nada que tenha sido uma vez feito ou pensado desapareça do seio
do cosmos, a conservação de que agora se

fala tem a sua utilidade, porque facilita a recordação dos conhecimentos possuídos e-
permite extraí-los oportunamente do seio do cosmos ou do aparente, mente inconsciente e
esquecido. Para este fim se constroem os instrumentos das ficções conceptuais, que
tornaram possível, por meio de um nome, despertar e unificar a multidão das
representações, ou, pelo menos, indicar com suficiente exactidão qual a

forma -de operação a que convém recorrer para as

poder encontrar de novo e reproduzir". Na mesma

forma prática tem lugar o erro, que cai fora do conhecimento, que é sempre verdade
absoluta. "Aquele que comete um erro não tem nenhum poder para Iorcer, desvirtuar ou
corromper a verdade, que é o seu próprio pensamento, o pensamento que opera nele como
em todos; ainda mais, logo que toca o

pensamento, é tocado por ele: pensa e não erra. Tem apenas o poder prático de passar do
pensamento ao

facto; e um fazer e não já um pensar é abrir a boca ou emitir sons aos quais não
corresponda um pensamento ou, o que é o mesmo, não corresponda um

pensamento que tenha valor, precisão, coerência, verdade: sujar uma tela a que não
corresponda uma

imagem, rimar um soneto combinando frases de outros que simulem a genialidade ausente"
(1b., p. 254-55). As ciências, como pseudoconceitos, e os erros de

124

toda a espécie são, por conseguinte, rejeitados em

bloco por Croce na forma prática do espírito e considerados para todos os efeitos não como
conhecimentos, mas como acções.

A forma económica do espírito desempenha na

doutrina de Croce a mesma função que a natureza desempenhava na doutrina de Hegel:


acolhe em si o irracional, o contingente, o individual, e, portanto, as necessidades, as
paixões, etc., numa palavra, tudo o que não pode ser reduzido à expressão poética ou

ao saber histórico. O próprio Croce acabou por empregar a palavra "natureza" para indicar
o "processo prático dos desejos, dos apetites, da cupidez, das satisfações e insatisfações que
surgem, das -emoções que os acompanham, dos prazeres e das dores" (últimos ensaios,
1935, p. 55). Mas acrescenta que se deve conceber a natureza "dentro do espírito, como
uma forma particular ou categoria do próprio espírito, e como a mais elementar das formas
práticas, aquela em que também a forma prática superior, ou seja, a eticidade,
perpetuamente se traduz e se encarna e na qual o próprio pensamento e a

fantasia se incorporam, fazendo-se palavra e expressão e passando, neste fazer-se, pelas


alternativas de todas as comoções e pelas antíteses do prazer e da dor" (Ib., p. 55). Mas
como pode um espírito infinito, ou seja, por definição auto-suficiente, numa categoria sua
(por definição, universal) ser necessidade, paixão, individualidade, etc., que são
características constitutivas do finito como tal e elementos ou manifestações da sua
natureza, é um problema que Croce (como Hegel) nunca considerou.

125

§ 720. CROCE: DIREITO E ESTADO COMO ACÇõES ECONóMICAS

-Pertencem à forma económica do espírito além da ciência natural, o erro, o mal, etc., e até
o direito e o estado. Já em 1907, num ensaio intitulado Redução da filosofia do direito à
filosofia da economia, Croce sustentara esta tese, a qual mais tarde confirma e
sistematicamente, desenvolve no terceiro volume da Filosofia do espírito (Filosofia da
prática, económica e ética, 1909) e mantém e defende nos escritos posteriores (Ética e
política, 1931). Já na primeira destas obras, Croce identifica resolutamente a categoria do
direito com a da utilidade e da força. Reconhecia, portanto, a existência de direitos imorais
ou até direitos inerentes às associações delituosas. "0 direito de uma associação a delinquir
- dizia (Rid., et., ed., 1926, p. 40) - encontra a oposição do direito de uma sociedade mais
vasta; submeter-se-á a este segundo, como ao mais forte; submeter-se-á merecidamente,
como o não moral ao moral: mas vive como direito e está submetido como direito".
Todavia, o direito não é imoral mas amoral, isto é, precede a vida moral e é independente
dela. É força enquanto acção eficaz que atinge um determinado fim útil; e é condição da
própria moral, enquanto esta não pode deixar de traduzir-se em acção e, por conseguinte,
em utilidade e força. Estas teses fundamentais foram sempre mantidas firmemente por
Croce. Portanto, o estado é considerado por ele nada mais do que "um processo de acções
úteis de um

grupo de indivíduos ou entre componentes desse

126

grupo" (Ética e pol., p. 216). As leis, as instituições o os costumes em que se concretiza a


vida do estado não são mais do que "acções dos indivíduos, vontades que eles actuam e
mantêm firmemente, concernentes a certas directivas mais ou menos gerais, que se
considera útil promover". Neste sentido o estado realiza-se inteiramente no governo e não
se distingue dele (1b., p. 218). A vida do estado é unia relação dialéctica de força e
consenso, autoridade e liberdade. "Todo o consenso é forçado, mais ou menos

forçado, mas forçado, isto é tal que surge sob a "força" de certos factos e, por conseguinte,
"condicionado" : se a condição de facto muda, o consenso, como é natural, é retirado,
desencadeia-se o debate e a luta, e um novo consenso se estabelece sob nova condição. Não
há formação política que se subtraia a esta alternativa: no mais liberal dos estados, como na
mais opressiva das tiranias, existe sempre o consenso, e é sempre forçado, condicionado e
mutável. Se assim não fosse, não haveria nem o Estado nem a vida do Estado" (Ib., p. 221).
O erro da concepção ética do estado, tal como, por exemplo, se encontra em Hegel, consiste
em ter concebido a vida moral numa forma da vida política e do estado inadequada para
ela. A vida moral, ao invés, não se deixa reduzir à vida política mas transborda dela e
contribui para desfazer e refazer perpetuamente a vida do estado. É igualmente erróneo,
segundo Croce, o

democratismo que se baseia no pressuposto da igualdade dos indivíduos, igualdade que


juntamente com

a "liberdade" e a "fraternidade" são palavras vazias que merecem todos os vitupérios e cuja
verdadeira

127
origem reside "nos esquemas da matemática e da mecânica, inaptos a compreender o ser
vàvente" (1b., p. 226).

Croce vê o antecedente histórico da sua doutrina em Maquiavelli, que descobriu "a


necessidade e autonomia da moral, da política que está para além, ou, antes, aquém -do
bem e do mal ' que tem as suas leis, contra as quais é inútil revoltarmo-nos; que não admite
exorcismos nem ser expulsa do mundo com água benta" (1b., p. 251). E identifica a sua
doutrina política com o liberalismo, não por ser uma doutrina política especial, mas porque
é "uma concepção total do mundo e da realidade". O liberalismo encontra o seu centro na
ideia da dialéctica, ou seja, do desenvolvimento que "mercê da diversidade e da oposição
das forças espirituais aumenta e nobilita continuamente a vida e lhe confere o seu único e
total significado". Ao liberalismo, como concepção imanentista, contrapõem-se as
concepções fundadas no transcendente, e pouco importa que este seja entendido no sentido
religioso dos ultra-montanos ou

no sentido materialista dos socialistas e dos comunistas: num e noutro caso, o ideal
transcendente que se procura traduzir em factos não pode deixar de ser simplesmente
imposto à humanidade. Esta concepção pode lar lugar, não a revoluções, mas a reacções; a
ela se devem todas as crises e doenças nas

quais se verifica uma negação ou suspensão do princípio de liberdade. A superioridade da


concepção liberal resulta evidente pelo facto de que é capaz de justificar teoricamente e
historicamente a conceção oposta. Com efeito, só ela pode fazer justiça

128

aos adversários da liberdade e aos períodos históricos em que a liberdade é amarfanhada ou


suprimida. "Presta, pois, justiça também aos primeiros (a saber, "aos tempos de reacção e
aos homens das reacções"), não ao coração da humanidade, mas à mente liberal, não já
enquanto fundamento de vida e de luta prática, mas enquanto juízo histórico que considera
as suspensões de liberdade e os períodos reaccionários como doenças e crises de
crescimento, como incidentes e meios da mesma eterna vida da liberdade, e portanto
entende o papel que desempenharam e a obra útil que realizaram (1b., p. 290).
O liberalismo está, pois, ao mesmo tempo, fora da luta e dentro dela; fora da luta, como
juízo histórico o concepção dialéctica da realidade; dentro da luta como "fundamento de
vida e de luta prática". Pode-se perguntar o que é o liberalismo neste último aspecto, já que,
evidentemente, enquanto luta e

nega a legitimidade do seu contrário, não pode, ao

mesmo tempo, contê-lo em si e justificá-lo. É então precisamente, "vida e luta prática":


economia, utilidade, força que se contrapõe a outras forças. Que é que o justifica então
enquanto tal? Se, enquanto se justiça a si mesmo, justifica também os seus opostos e é
concepção dialéctico-histórica (conhecimento puro, não acção), enquanto luta e age, nada,
evidentemente, o pode justificar: é, como os seus opostos, uma manifestação contingente da
forma económica. O liberalismo, como Croce o entende, ou justifica tudo ou nada justifica.
O pensamento político de Croce permanece encerrado nesta antinomia que o paralisa e que
jaz, como se verá, no fundo da

129

sua concepção da história. Perante a democracia, que é um liberalismo armado que


pretende reforçar e garantir a liberdade, nos seus modos particulares e nas suas formas
concretas e históricas, o liberalismo de Croce continua a ser abstracto e indefeso, e, por
conseguinte, inoperante. A própria obra do homem Croce, o precioso testemunho que
prestou à liberdade, não se deixa inscrever na sua doutrina nem justificar por ela.

§ 721. CROCE: HISTóRIA E FILOSOFIA

A identificação entre história e filosofia exposta pela primeira vez na Lógica (1908), foi o
tema fundamental da filosofia crociana. "Se o juízo - diz Croce (A história como
pensamento e como acção,
1938, p. 19)-,é relação entre sujeito e predicado, o sujeito, ou seja o facto, qualquer que
seja, que se julga, é sempre um facto histórico, algo que devêm, um processo em curso,
porque factos imóveis não se encontram nem se concebem no mundo da realidade". É juízo
histórico a mais óbvia percepção judicativa, por exemplo a de uma pedra: "porque a

pedra é, na realidade, um processo em curso, que resiste às forças de desagregação ou cede


só pouco a pouco, e o meu juízo refere-se a um aspecto da sua história". Nenhuma distinção
é possível entre factos históricos e factos não históricos. Um dos mais óbvios e dificílimos
problemas da historiografia, o da distinção entre factos históricos (ou seja, signi-
130

ficativos) e factos não históricos (insignificantes ou banais) e do critério para os distinguir


ou seleccionar é totalmente abolido e eliminado por Croce. Toda a história é história
contemporânea, "porque, por remotos ou remotíssimos que pareçam cronologicamente os
factos que entram nela, ela é, na realidade, história sempre referida à necessidade e à
situação presente, na qual os factos propagam as

suas vibrações" (1b., p. 5). As fontes da história (documentos ou relíquias) não têm outro
fim senão o de estimular e formar no historiador estados de alma que já existem nele. "0
homem é um microcosmos, não em sentido naturalista, mas em sentido histórico, um
compêndio da história universal" (1b., p. 6). A necessidade e o estado de alma constituem,
no entanto, apenas a matéria necessária da história; o conhecimento histórico não pode ser a
sua reprodução passiva, mas deve superar a vida vivida para a representar em forma de
conhecimento. Devido a esta transfiguração, a história perde o seu

aspecto passional e torna-se uma visão necessária, logicamente necessária da realidade.


Nela, já não têm lugar as antíteses que se defrontam na vontade, e no sentimento já não
existem factos bons e factos maus, mas factos sempre bons, quando sejam entendidos no
seu carácter concreto, isto é, na sua íntima racionalidade. "A história nunca é justiceira, mas

justifica sempre; e só poderia tornar-se justiceira se fosse injusta, ou seja, se confundisse o


pensamento com a vida e escolhesse para juízo do pensamento as atracções e as repulsões
do pensamento" (Teoria e história da historiografia, 1917, p. 77). É devido

131

a esta sua natureza que a história pode libertar o

homem do peso opressivo do passado. Num certo sentido, o homem é o seu próprio
passado, que o

circunda e o comprime de todos os lados. O pensamento histórico converte a relação com o


passado em

conhecimento, redu-lo a problema mental e a verdade, que vale como premissa para a acção
futura. "Só o juízo histórico, que liberta o espírito da compreensão do passado e, puro como
é e alheio às partes em conflito, guardião contra os seus ímpetos e os seus engodos, mantém
a sua neutralidade e procura unicamente fornecer a luz que se lhe pede; só ele toma possível
a formação do propósito prático que abre a vida ao desenvolver-se da acção e, com o

processo -da acção, às oposições, entre as quais ela deve actuar, do bem e do mal, do útil e
do nocivo, do belo e do feio, do verdadeiro e do falso, e, em

suma, do valor e -do desvalor. (A história, p. 35).

Talvez pareça assim, que o sentimento e a acção cairiam fora da história, que é
conhecimento racional perfeito. Pelo contrário, caem, segundo Croce, somente fora do
conhecimento, no domínio da forma prática do espírito. As angústias, as esperanças, as
lutas, etc., todos os impulsos dos homens, pertencem à consciência moral, são "história. no
seu fazer-se". Mas seja como acção vivida, seja como conhecimento lógico, a história é
sempre racionalidade plena, progresso. O chamado elemento irracional da história é
constituído pelas manifestações da vitalidade: vitalidade que não é decerto a civilidade ou a
moralidade, mas condição e premissa necessária de uma e de outra; e como tal, plenamente
racional (A his-
132

tória, p. 160-61). Quanto à decadência, é um conceito aplicável só a determinadas obras ou


ideais; "mas em sentido absoluto e na história, nunca existe decadência que não seja ao
mesmo tempo formação ou

preparação de nova vida e, portanto, progresso" (1b., p. 38). Nem poderia ser de outro
modo porque o verdadeiro sujeito -da história é, sempre, em última análise, o espírito
infinito. A -história não é "a

obra impotente, e sempre ininterrupta do indivíduo empírico e irreal, mas a obra daquele
indivíduo verdadeiramente real, que é o espírito no seu eterno individualizar-se. Por isso ela
não tem de defrontar nenhum adversário, pois todo o adversário é também o seu súbdito,
isto é, um dos aspectos daquele dialectismo que constitui o seu ser íntimo" (Teoria e
história da historiografia, p. 87).

Todavia, nos últimos escritos, sob o impulso das vicissitudes históricas contemporâneas
que se prestam mal a confirmar a perfeita racionalidade da história e a sua total justificação,
Croce introduz uma

distinção que deveria evitar que aquela tese servisse para a cínica aceitação do facto
consumado ou do êxito. Quer dizer, distinguiu a racionalidade da história da racionalidade
do imperativo moral. Tudo na história é racional porque tudo nela "tem a sua

razão de sem. Mas racional é também o imperativo moral, ou seja, "aquilo que a cada um
de nós, nas condições determinadas em que é colocado, a consciência moral manda fazem -
(A história, p. 199). Ora, o imperativo moral neste sentido é próprio do dever ser que
pretende dar lições ao ser, contra o qual se encarniçou sempre o desprezo de Hegel e

133

do próprio Croce. E este reconhecimento de um "racional" diferente da racionalidade


necessária -da história, tem o mesmo efeito que, no domínio da estética, tinha o
reconhecimento de formas ou modos de expressão diferentes dos da expressão poética: a

saber, o de tomar impossível a unidade e a circularidade da vi-da espiritual e destruir o


próprio pressuposto da filosofia do espírito. De facto, a passagem da forma teorética à
forma prática (do pensamento à acção) justifica-se somente no sentido -de que a primeira
deve iluminar e dirigir a segunda, que seria cega e irracional sem ela. Mas se todo o
conhecimento é história, se toda a história é justificação do que aconteceu e acontece, a
única atitude legítima, a um tempo teorética e prática, é a de quem vê em

toda a decadência um progresso, em todo o mal um bem e na obra do diabo a própria obra
de Deus. Tal foi, de facto, sempre a atitude de Hegel e tal continua a ser a atitude de Croce
filósofo. Apelar então para o imperativo moral como para algo racional de outro género,
significa querer dar, como indivíduo, lições à história, como homem lições a

Deus. Por outras palavras, traduzir, não um racional mas um irracional, e restaurar a
desprestigiada e

ridicularizada situação do iluminismo.

A filosofia de Croce orienta-se, pois, para uma

contradição que não é de modo algum dialéctica porque carece, desesperadamente, de


solução. Por outro lado, Croce insiste no conceito da história como visão divina do mundo,
completa e total e

no seu conjunto imediata, à qual não se pode reportar o progresso, já que só se pode referir
este
134

ao nosso conceito das categorias e não às categorias mesmas (A história, p. 25). E por esta
visão é levado a considerar as dúvidas e as desconfianças que às vezes surgem, com
respeito ao progresso, como impulsos sentimentais e cegos que devem ser banidos pela
reflexão histórica (0 progresso como estado de alma e o progresso como conceito
filosófico, "Critica", Julho de 1948). Por outro lado, insiste na liberdade e na
responsabilidade do indivíduo frente às suas tarefas e, por conseguinte, na obrigatoriedade
moral de atitudes que não sejam a pura e simples aceitação do facto consumado. Num
ensaio de 1929 (últimos ensaios, 1935, p. 295 segs.) exprimiu este contraste equiparando-o
ao que existe entre a graça e o livre arbítrio; e viu a solução do mesmo no "alternado operar
do pensamento e da acção, da teoria a da práxis, de duas categorias do espírito e da
realidade, que só o são uma mediante a outra, e no seu distinguir-se ou pôr-se se resolvem
naquela ú nica unidade concebível que é o

eterno unificar-se". Mas é precisamente este eterno unificar-se que resulta impossível. Não
se trata, com efeito, de simples proposições ou posições lógicas, mas de atitudes humanas;
e a atitude de quem tudo justifica, exclui e condena a atitude de quem se sente responsável
pelos ideais e pelas acções que livremente escolheu.

A identidade entre filosofia e história conduz à negação de toda a filosofia que não se
reduza à consideração da história e dos seus problemas, e à definição da filosofia como
"metodologia da historiografia". O conceito de uma filosofia que se situe

135

para além e fora da história ou que se ocupe de problemas universais eternos é "a ideia da
filosofia". Ela só pode dar origem a discussões intermináveis, próprias dos filósofos de
profissão, mas completamente fora do círculo vital do pensamento. "Qualquer problema
filosófico resolve-se unicamente quando é posto e tratado com referência aos factos que o
fizeram nascer e que cumpre entender para o entendem (A história, p. 144). A unidade do
problema com a sua solução exclui que haja problemas insolúveis. A solução elimina o
problema e

novos problemas são postos ou impostos pela vida e pela acção. À filosofia não é dado
pensar os universais sem os individualizar e, portanto, sem os

tomar históricos, como não é possível à historiografia conhecer a individualidade dos factos
sem os

universalizar. Em nenhum sentido se pode distinguir historiografia e filosofia. A filosofia


como tal está morta, e ressurge na historiografia.

A filosofia de Croce constitui a última e decisiva crise do idealismo romântico. Este


idealismo que se

apresentava em Gentile (como em Hegel) pacificado e feliz na consciência da perfeita


entidade entre finito e infinito, apresenta-se em Croce, especialmente nas

suas últimas manifestações, como infelicidade e contraste de posições inconciliáveis. As


exigências e

os problemas que ele procurou fazer seus estilhaçam o quadro das categorias prévias e
revoltam-se contra elas. Mas precisamente por este aspecto a obra de Croce é extremamente
significativa para a filosofia contemporânea-

Esta obra exerceu uma grande influência sobre

136

a cultura italiana do período compreendido entre as duas guerras. Actuou no mesmo sentido
que a filosofia de Gentile, apesar da inimizade que se criou entre os dois filósofos e da
diversidade das suas doutrinas. Contudo, não deu lugar, no campo filosófico, a nenhum
desenvolvimento original ou enriquecimento das suas teses fundamentais; em troca,
determinou novos rumos no campo da crítica literária e artística, especialmente em Itália,
apesar de tal influência estar actualmente a desaparecer da cultura italiana.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 709. Sobre Vera: **R0SENK1LANZ, Hegels Naturphilosophie und die Bearbeitung


derselben durch den italienischen Philosoph A. V., Rerlim, 1868; R. MARIANO; A.V.,
Saggio biografi-co, Nápoles, 1887; G. GENTILE, Origini de" fil. contemp. in Italia, M,
Messina,
1921.

Sobre Spaventa: V. FAzIO-ALLMAYER, in "Giorn. critico della fil. italiana", 1920; G.


GENTILE, Origini, ete. (cit.); IOD., in "Annali della ScuoIa Normale Superiore di Pisa",
1934; VicoRiTA, B.S., Nápoles, 1938 (com bibliog.).

Estã em curso a edição dm obras completas de Gentile, ed. Sansoni de Florença. Bibliog. de
V. A. BELLEzzA, Bibliogr. degli scritti di G.G., vol. IIII de G.G., Ia vita e il p~ero, ao
cuidado da fundação "Gentile", Florença, 1950.

Sobre Gentile: E. CM0CCHETT1; La fil. di G.G., Milão, 1922; V. LA VIA, L'idealismo


attuale di G.G., Trani, 1925; R. W. HOLMES; The ideali~ of G.G., Nova Iorque, 1927; E.
Paci, Pensicro, exist"za, valore, Milão, 1940; p. 1-14; H. S. HARRIs, The Social
Philo&ophy of G.G., Urbana, 111, 1960.

137

os volumes publicados pela "Fundação G.G. para os estudos filosóficos" e inütulados: G.G.
La i>ita e il pensiero contêm numerosos escritos (interpretativos e

evocativos) sobre diversos aspectos da filosofia de G.G. O último destes volumes é o X,


saído em 1962.

§ 711. Um desenvolvimento do **aetuah@'smo gentiliano no sentido de um espiritualismo


religioso foi tentado por A. CARLINI nos esoritos: La vita dello spirito, Florença, 1921; La
relig"ità.

138

vi

O NEO-CRITICISMO

§ 722. CARACTERES DO NEO-CRITICISMO

A filosofia passou a ser entendida e aplicada, desde o neo-criticismo, como reflexão crítica
sobre a

ciência (ou sobre qualquer outra forma da experiência humana) tentando encontrar na
ciência (ou, em geral, nessa outra forma de experiência) as condições que a tornam válida.
O neo-criticismo admite assim a validade da ciência, do mesmo modo que aceita a validade
do mundo moral e estético. Mas o criticismo é contrário à afirmação do carácter absoluto
ou metafísico da verdade científica, defendido pelo positivismo; e é, por outro lado,
contrário a qualquer tipo de metafísica ou de integração metafísico-religiosa do saber
científico, segundo as vias do espiritualismo e do idealismo. A metafísica

139

da matéria e a metafísica do espírito estão igualmente afastadas dos interesses do neo-


criticismo e constituem, até os alvos das suas atitudes polémicas. Isto pressupõe a defesa da
distinção kantiana entre a validade da ciência (da moral ou da arte) o as condições de facto
empíricas, psicológicas ou

subjectivas que se encontram ligadas à ciência, à moralidade ou à arte. Assim acontece com
o neo-criticismo, se bem que esteja impregnado pela polémica contra o empirismo e o
psicologismo, que reduzem a validade do conhecer (ou da moralidade ou da arte) às
condições em que estas actividades se manifestam no homem. O "retorno a Kant" é
portanto o retorno ao ensinamento fundamental do filósofo de Kõnigsberg, isto é, à
exigência de não reduzir a filosofia à psicologia, à fisiologia, à metafísica ou à teologia,
mas sim de restituí-Ia à sua tarefa de análise das condições de validade do mundo do
homem.

§ 723. ORIGENS DO NEO-CRITICISMO NA ALEMANHA

O retorno a Kant verificou-se na Alemanha pouco depois dos meados do séc. XIX. O
primeiro impulso partiu dos escritos de **HeIraholtz, do aparecimento da monografia de
Kuno Fischer sobre Kant (1860) e da obra de Zeller Sobre a significação e o
fim da gnoseologia (1862). Em 1865, Otto Uebmann (1840-1912) publicou o livro Kant e
os seus epígonos, em que traçava a análise de cada uma das quatro orientações da filosofia
alemã post-kantiana

140

(idealismo de Fichte, de Schelling e de Hegel; realismo de Herbert, empirismo de Fries e


transcendentalismo de Schopenhauer) com o lema: "Deve, pois, voltar-se a Kant". O
próprio Liebmann contribuiu com sucessivos escritos (Análise da realidade, 1876;
Pensamentos e factos, 1882-1904) para este retorno a Kant, entendido por ele como criação
de uma metafísica crítica que tomasse como fundamento o

princípio kantiano da dependência do objecto relativamente ao sujeito e admitisse, em


consequência, apenas a consciência como facto originário.

A primeira manifestação do neo-criticismo na

Alemanha foi a de Hermann Helmholtz (1821-1894), que chegou a uma interpretação


fisiológica do kantismo partindo de exigências e de factos inerentes às duas ciências que
cultivava: a fisiologia e a física (Sobre a vista humana, 1855; Teoria das sensações sonoras,
1863; Manual de óptica fisiológica, 1856-66-, Os factos da percepção, 1879). Dado que os
efeitos da luz e do som sobre o homem dependem do modo de reacção do seu sistema
nervoso, Helnlholtz considera, as sensações como os sinais produzidos nos

nossos órgãos dos sentidos por acção das forças externas. Os sinais não são cópias nem
reproduzem os

caracteres dos objectos externos; mas, contudo, estão relacionados com eles. A relação
consiste em que o mesmo objecto, nas mesmas circunstâncias, provoca o aparecimento do
mesmo sinal na consciência. Esta relação permite-nos comprovar as leis dos processos
externos, isto é, a sucessão regular das causas e dos efeitos, o que basta para provar que as
leis do mundo real se reflectem no mundo dos sinais e,

141

por conseguinte, para fazer deste último um conhecimento verdadeiro. Helmholtz aceita a
doutrina kantiana do carácter transcendental do espaço e do tempo mas nega que tenham
carácter transcendental os axiomas da geometria. A existência das geometrias não-
euclideanas demonstra que os espaços matemáticos, mesmo sendo intuíveis, não se baseiam
em axiomas transcendentais porque são construções empíricas que têm como fundamento
comum a intuição pura do espaço. Segundo Helmholtz, idealismo e realismo são puras
hipóteses que é impossível refutar ou provar de modo decisivo. O único facto independente
de qualquer hipótese é a regularidade dos fenómenos e, por isso, o único carácter essencial
da realidade é a lei. O mérito imortal de Kant foi, precisamente, o ter demonstrado que o
princípio da causalidade, no qual toda a lei se funda, é uma noção a priori. 'Na mesma linha
se move Frederico Alberto Lange (1828-75), conhecido principalmente pela sua História do
materialismo (1866, enriquecida e aumentada na 2.a ed. de 1873), que constitui uma
tentativa para chegar ao criticismo através da crítica do materialismo. Com efeito,
reconhecida a tese fundamental do materialismo, isto é, a estreita conexão ida actividade
espiritual com o organismo fisiológico, é preciso ainda reconhecer, segundo Lange, que
este mesmo organismo, como todo o mundo corpóreo, do qual faz parte, só é conhecido por
nós através das imagens que produz. As conclusões. fundamentais da teoria do
conhecimento são, por conseguinte, três: "l.a -o mundo sensível é um pro-
142

duto da nossa organização. 2.1 -Os nossos órgãos visíveis (corpóreos) são, como as
restantes partes do mundo fenoménico, somente imagens de um objecto desconhecido. 3 a-
o fundamento transcendente da nossa organização é, pois, desconhecido para nós, do
mesmo modo que as coisas que actuam sobre ela. Só se nos depara o produto de dois
factores: o nosso organismo e o objecto transcendente (Gesch. des Mater., 11, 7 a ed.,
1902, p. 423). Uísto resulta que "o reduzir todo o elemento psíquico ao mecanismo do
cérebro e dos nervos (como faz o materialismo) é o caminho mais seguro para chegar a

admitir que aqui termina o horizonte do nosso saber sem alcançar o espírito em si" (Ib., p.
431). Nesse sentido é aceite a tese kantiana de que toda a realidade, apesar da sua rígida
concatenação causal, não é mais que fenómeno. A coisa em si não é mais que um conceito
limitativo, algo inteiramente problemático, que se admite corno causa dos fenómenos, mas
da qual nada se pode afirmar positivamente (Ib., p. 49). Lange crê que o verdadeiro Kant é
o da Crítica da Razão Pura e que a tentativa de Kant de sair, como fez nas outras obras, dos
limites do fenómeno para alcançar o mundo noménico é impossível, Os próprios valores
morais e estéticos têm a sua raiz no mundo dos fenómenos e carecem de significado fora
dele (1b., p. 60). Existe, certamente, um caminho para ir mais além dos fenómenos, mas
não e o do saber positivo: é o caminho da livre criação poética. O homem tem, certamente,
necessidade de completar a realidade fenoménica, com um mundo ideal criado por ele
próprio. Mas a livre criação

143

deste mundo não pode tomar a forma enganadora de uma ciência demonstrativa; e se a
toma, o materialismo ali está para destruir o valor de toda a especulação audaz e para
manter a razão dentro dos limites do que é real e demonstrável (1b., p. 45). Deste ponto de
vista, o valor da religião não consiste no seu conteúdo teórico, mas no processo espiritual
de elevação por sobre o real e na criação de ,uma pátria espiritual que ela determina.
"Acostumemo-nos - diz Lange (1b., p. 548) - a atribuir ao princípio da ideia criadora em si,
deixando de lado toda a sua conformidade com o conhecimento histórico e científico e
também toda a falsidade deste conhecimento, um valor superior àquele que se lhe tem
atribuído até agora: acostumemo-nos a ver no

mundo das ideias uma representação figurada da verdade na sua totalidade, tão
indispensável para o

progresso humano como os conhecimentos do intelecto, e procuremos medir a maior ou


menor importância de cada ideia com princípios éticos ou estéticos".
Uma redução análoga da metafísica à actividade prática ou fantástica, valiosa do ponto de
vista humano mas não do ponto de vista científico, é defendida por Luís RiehI (1844-1924),
autor, entre outras, de uma vasta obra intitulada O criticismo filosófico e a sua significação
para a ciência positiva (1876-87) e de um Guia para a filosofia contemporânea (1903).
Riehl acentua em sentido realista a interpretação fisiológica do kantismo, que recebe de
Helmholtz. A ;sensação é uma modificação da consciência, produzida pela acção da coisa
em si: como tal, não

144

revela nada sobre a natureza da coisa em si, mas permite afirmar a sua existência. o facto de
que a

uma sensação sucede outra (por ex., a passagem do azul ao roxo) implica uma alteração
produzida no objecto em si, ainda que não permita decidir em que consiste. A realidade do
objecto em si não é excluída pelo facto da consciência ter simplesmente uma relação com
ele. "Não contradiz nenhum conceito do nosso pensamento supor que o que se converte em
objecto, ao entrar na relação que constitui a ciência, exista também independentemente
desta relação. MaIs ainda, esta afirmação está necessariamente unida à ideia de relação: o
que não existe não pode entrar em nenhuma relação" (Des phil. Kritizismus, 11, 11, p. 142).
O objecto em

si só pode ser caracterizado dizendo-se que é aquele que fica da nossa representação total
dos fenómenos depois de ter eliminado dela todos os elementos subjectivos: este resíduo
objectivo não é mais do que a regularidade dos próprios fenómenos e, por isso, como
Helmholtz, reconhece Rielid na lei o único carácter da realidade em si (Ib., p. 173). Por
outro lado, a mesma função sintética do sujeito que unifica e ordena os dados sensíveis
deve ter a sua contrapartida objectiva na realidade. Com efeito, se não houvesse nada que
correspondesse à unidade lógica do pensamento, esta unidade seria inaplicável; por isso ela
é somente o reflexo da unidade na natureza e no pensamento (1b., 11, 1, págs. 219 e segs.;
11, R, págs. 61 e segs.). É evidente que, deste ponto de vista, a oposição entre sujeito e
obj=to perio o seu carácter originário: o eu e o não-eu só são

145

diferentes funcionalmente, enquanto que a consciência originária é indiferente (1b., 11, 1,


págs. 65 e segs.). Só mente a elaboração da experiência que o pensamento realiza mediante
as suas leis a priori estabelece tal oposição. E esta elaboração tem sempre carácter social:
"A experiência-diz Rielil (1b., 11, IL p. 64) -não é um conceito psicológico-individual, mas
um conceito social". A consciência universal consi** 'ituida pelas categorias que
condicionam a elaboração da experiência, não é mais do que w sistema das coordenadas
intelectuais, relativamente às quais eu penso todo o conhecimento".

A possibilidade de uma metafísica como conhecimento hipotético, fundada na experiência


da coisa em si, é defendida também em artigos e ensaios por Eduardo Zeller (1814-1908), o
grande historiador da filosofia grega que, como dissemos, foi um dos primeiros defensores
do retorno a Kant na Alemanha.

§ 724. RENOUVIER: A FILOSOFIA CRíTICA

Na mesma altura do ressurgimento do criticismo na Alemanha, o retorno a Kant era


defendido em França por Charles Renouvier (1815-1903), que publicou entre 1854 e 1864
os quatro volumes dos seus Ensaios de crítica geral (Análise geral do conhecimento, 1854;
Psicologia racional, 1859; Princípios da natureza, 1864; Introdução à filosofia
analítica da história, 1864). A esta, que é a sua obra principal, se,-u-ir-se-ão: A ciência
da moral, 1869; Ucronia, 1876; Ensaio de unia classificação sistemática

146

das doutrinas filosóficas, 1885-6; A nova monadologia (de colaboração com L. Prat), 1899;
Os dilemas da metafísica pura, 1903; História e solução dos problemas metafísicos, 1901;
O personalismo,
1901. Renouvier declara explicitamente que aspira a continuar e levar a termo a obra de
Kant, e que aceita do positivismo a redução do conhecimento às leis dos fenómenos porque
esta redução concorda com o método de Kant,(Essais, 1, 1854, págs. X-XI). Por
conseguinte, a filosofia tem por objecto estabelecer as -leis gerais e os limites do
conhecimento (Ib., p. 363); e Renouvier considera idolatria e fetichismo filosófico toda a
metafísica, descobrindo o seu princípio na distinção entre Tealidade e representação. Como
tantos outros kantianos e neo-kantianos, crê que o princípio fundamental do criticismo é a
redução de toda a realidade à representação (Ib., p. 42).

A primeira consequência deste princípio é a eliminação da coisa ' em si e de todo o


absoluto. Enquanto representação a realidade não é mais do que fenómeno. Mas o
fenómeno é essencialmente relatividade; só existe em relação com outros fenómenos, dos
quais é parte ou nos quais entra como parte de um todo. Tudo o que se pode representar e
definir é relativo e a afirmação de uma coisa em

si ou de um absoluto é intrinsecamente contraditória, porque pretende estabelecer ou definir


mediante relações o que está fora de toda a relação (1b., p. 50). Na relatividade dos
fenómenos baseia-se a lei, que Renouvier define como "um fenómeno composto, produzido
e reproduzido de modo constante, e re-
147

presentado como a relação comum das relações de outros fenómenos diferentes" (Ib., p.
54). Deste ponto de vista, todos os seres são "conjuntos de fenómenos unidos por funções
determinadas". Assim, a

consciência é uma função especial dos fenómenos que se manifestam nessa esfera
representada que é o indivíduo orgânico (Ib., p. 83). O saber e a ciência tendem a
estabelecer as relações entre os fenómenos e entre as leis, procurando uma síntese única
cujos limites corresponde à crítica estabelecer (1b., págs.
86 e segs.). Todo o saber se baseia, portanto, na
categoria de relação, da qual são determinações e

especificações as outras categorias do conhecimento: o número, a extensão, a duração, a


qualidade, o devir, a força, a finalidade, a personalidade. Esta última é a própria categoria
da relação na sua forma vivente e activa.

A introdução da personalidade (ou consciência) e da finalidade entre as categorias, constitui


o aspecto mais original da doutrina de Renouvier relativamente à de Kant. No que se refere
à finalidade, Renouvier observa que a lei do fim não é menos essencial para a constituição
do espírito humano do que a lei da causalidade, e que o homem que a impõe em todos os
seus actos e a aplica para dirigir todos os seus juízos é o mesmo e único homem que
considera causas e qualidades (Essais, 1, p. 407). Quanto à categoria da personalidade, Kant
excluiu-a das categorias; introduziu-a depois como eu pensante, abrindo assim caminho ao
idealismo; na realidade, da é uma forma dos nossos juízos, tal como as outras categorias.
"Deverá a consciência, pelo facto
148

de se identificar com o filósofo, impedir este de lhe dedicar uma parte na obra que ela
reivindica totalmente? O objecto da crítica é precisamente estudar o eu como algo distinto
do eu e como uma entre outras coisas representadas" (Ib., p. 398).

O conceito do saber como relação e sistema de relações leva Renouvier a considerar a


possibiEdade de um sistema total, de uma síntese completa das relações, a qual seria o
mundo. Renouvier elimina as antinomias enumeradas por Kant: a propósito desta ideia,
eliminando dela o carácter de infinidade, ou seja, aceitando sem restrições as teses das
antinomias kantianas e destruindo as antíteses. O infinito é sempre intrinsecamente
contraditório quando se considera real: pode ser admitido no campo do possível, não no da
realidade fenoménica. É contraditório admitir um todo infinito **d&o, já que 3

que é dado possui, necessariamente, as determinações que fazem dele algo finito. O mundo
real é um todo finito e as teses das antinomias kantianas são verdadeiras. É necessário, pois,
admitir que o mundo é limitado, no espaço e no tempo, que a sua divislibilidade tem um
termo e que depende ele uma ou

mais causas, que não são efeitos, mas causas primeiras. "0 mundo-diz Renouvier (Ib., 1,
pág-s.
282-3) depende de uma ou mais causas que não são efeitos, mas actos antecedentes: tende
para um ou mais fins, cujos meios adquiridos não se prolongam interminavelmente no
passado nem no futuro; e e~ fins e estas causas estão n&e, de algum modo, já que todo o
devir implica força e paixão; e como

todo o fenómeno supõe a representação e toda a

149

representação supõe a consciência, o mundo compreende uma ou mais consciências que se


aplicam ao seu conteúdo". Esta última alternativa refere-se ao problema de Deus e à relação
entre o inundo e Deus. Renouvier exclui a hipótese da criação, que reduz a consciência
primeira a um ídolo indefinível: "unia força que produza a força, um amor que ame o amor,
um pensamento que pense o pensamento". Fica a hipótese da emanação; mas, nesta
hipótese, ou o uno originário se

considera em sentido absoluto e, portanto, como

algo que exclui toda a pluralidade, sendo incapaz de a explicar, ou se considera como uma
verdadeira consciência, como uma força e uma paixão dirigida a outros actos e a outros
estados e, neste caso, a pluralidade, e precisamente a pluralidade das pessoas, é-lhe já
intrínseca. A hipótese da emanação coincide pois, substancialmente, com a da pluralidade
múltipla, o todo, pela única razão de que o

é, para Reinouvier, o dado originário. "Nós subsfituímos o Uno puro, ídolo dos metafísicos,
pela unidade múltipla, a todo, pela única razão de que o

mundo, actual e originariamente, é uma síntese determinada, não, uma tese **abstraci 'a"
(Essais, 1, p. 357). Renouvier sustenta que isto é tudo quanto se pode dizer sobre síntese
total do mundo e que to-aos os

outros problemas que a metafísica põe sobre as

suas ulteriores determinações não podem encontrar resposta, porque não têm um sentido
definível nos limites do conhecimento, humano.

Na Nova monadologia (1899) volta a propor, não obstante, tais problemas e, reafirmando
substancial-
150

mente -as teses dos Ensaios, chega a renovar a concepção cíclica do mundo tal como se
encontra nos Padres da Igreja grega, especialmente em Orígenes (§ 146). Renouvier aceita
explicitamente (Nova monad., p. 505) a tese de uma pluralidade de mundos sucessivos, nos
quais a passagem de um mundo para outro é determinada pelo uso que o homem faz da
liberdade em cada um deles; e pretende corrigir a

tese de Orígenes no sentido de que "o fim alcançado volta a unir-se com o princípio, não na
indistinção das almas mas na humanidade perfeita, que é a

sociedade humana perfeita". Este fazer reviver as

velhas concepções metafísicas, que estão em oposição com o delineamento crítico da


filosofia de Renouvier, é provocado pela necessidade de fazer depender o destino do mundo
da acção da liberdade humana.

§ 725. RENOUVIER: O CONCEITO DA HISTÓRIA

Esta necessidade domina o seu conceito da história. Podem reconhecer-se na história duas
espécies de leis: em primeiro lugar as leis empíricas, estabelecidas pela observação, e
contingentes na sua aplicação; em segundo lugar, as leis a priori, que deveriam depender de
uma única dei e originar o

desenvolvimento do destino humano em todos os aspectos do pensamento e da acção de


todos os

povos do mundo. "As leis empíricas pressupõem o livre arbítrio humano e a não
predeterminação dos grandes acontecimentos, pêlo menos do ponto de

151

vista da nossa ignorância, mesmo que fossem concatenados e determinados de um modo


desconhecido para nós. As Idis a priori implicam, pelo contrário, o determinismo absoluto e
o poder do espírito humano para definir e abarcar todo o seu desenvolvimento" (Intr. à Ia
phil. anal. de 1'hist., págs.
149-150). O reconhecimento de leis a priori na história conduz ao fatalismo: é esta a
conclusão da filosofia da história de Hegel, tal como do positivismo de Saint-Simon. Por
outro lado, o pessimismo de Schopenhauer é, também, determinista; e a todas as
concepções a priori, optimistas ou pessimistas, Renouvier opõe a sua filosofia analítica da
história, que tende "a determinar as origens e as concatenações reais das ideias, das crenças
e dos factos, sem outras hipóteses a não ser as que sejam inevitáveis devido às induções
psicológicas e morais e ao grau de incerteza dos documentos" (ib., p. 152). Através ,do
estudo analítico da religião e da moral das épocas primitivas, Renouvier chega a estabelecer
a função da liberdade humana na história. O ser e o dever ser não coincidem na história.
Segundo Renouvier, existe uma moral diferente da história, isto é, das suas próprias
realizações. Mas a história, de certo modo, é uma função da moral, no sentido de que *
pensamento julga, corrige, refaz os juízos, os actos * os acontecimentos históricos. E, por
outro lado, a

moral é uma função da história, no sentido de que a própria consciência moral se formou e
desenvolveu através da história, que é a própria experiência humana no seu
desenvolvimento (Ib., págs. 551-2).
O progresso não é, pois, uma lei fatal. Considerá-lo

152

como tal significa debilitar a consciência imoral e dispor-se a declarar como necessário e
justo tudo o

que sucedeu (1b., p. 555). A história é o cenário da liberdade em luta e só quando a


liberdade se afirma e se realiza a si mesma, é que a história progride e se molda à vida
moral. Este é, com efeito, o domínio da liberdade. Na Ciência da moral (1869), Renouvier
vê, no princípio de que "o homem está dotado de razão e se julga livre", o fundamento
necessário e suficiente de toda a moralidade humana. "A moralidade consiste na capacidade
e, praticamente, no acto de determinar-se pelo melhor, isto é, de reconhecer, entre as
diferentes ideias do agir, a ideia particular de uma acção obrigatória e
de conformar-se com ela" (Science de la morale, ed. 1908, p. 3). Renouvier adopta
totalmente o conceito Kantiano do imperativo categórico e baseia-o no conhecimento
originário que o homem possui sobre o que deve ser e deve fazer, conhecimento oposto
àquele que lhe é dado pelas suas próprias manifestações (Ib., p. 215).

A convicção da problematicidade da história conduz Renouvier, na Ucronia (a utopia da


história) à surpreendente tentativa de construir "a história apócrifa do desenvolvimento da
civilização europeia, como teria podido ser e não foi". Renouvier parte da consideração de
que "se numa época determinada os homens tivessem acreditado firme e dogmaticamente
na sua liberdade, em vez de tentarem crer nela de maneira lenta e imperceptível, mediante
um progresso que é talvez a própria essência do progresso, desde essa época a face do
mundo teria

153

mudado bruscamente" (Uchro-nie, 2.a ed., 1901, p. IX). Baseando-se nesta consideração,
imagina os

traços que caracterizariam a história da Europa se

se admitisse a possibilidade real de que a série de acontecimentos, desde o Imperador


Nerva até ao

Imperador Carlos Magno, tivesse sido radicalmente diferente do que de facto foi. Neste
caso, a Europa encontrar-se-ia agora numa condição de paz e de justiça social. As guerras
religiosas teriam acabado e teriam conduzido à tolerância universal. Também teriam
acabado as guerras comerciais, parecendo incapazes de criar o monopólio único para que
tende a avidez de cada nação, e as guerras nacionais ou

de proeminência teriam, por seu lado, cedido o seu lugar à implantação da liberdade e da
moralidade no Estado. **Mém disso, o trabalho seria tão honrado como o exercício mais
digno da actividade humana e a obra do governo considerada como um trabalho de
interesse público dirigido para o bem comum (1b., págs. 285-6).

A utopia histórica de Renouvier parece basear-se precisamente na tese que nega: uma
profecia, tanto no que se refere ao passado como ao futuro, somente é possível se se admite
a necessidade da história. O carácter problemático da história torna indeterminadas as
relações entre os acontecimentos, e por isso não se pode encontrar nenhuma relação nas
hipóteses fictícias que se podem formular, nos

se que podem ser introduzidos na consideração dos factos. Renouvier dá-se parcialmente
conta desta dificuldade e observa no fim da obra que, admitido um desvio possível num
certo momento do curso

154
histórico, outros desvios -se apresentam noutros pontos, tornando sumamente incerta e
arbitrária a construção hipotética. Mas afirma que a sua finalidade foi eliminar a ilusão do
facto consumado, "a ilusão da necessidade preliminar devido à qual o facto realizado seria
o único, entre todos os outros imagináveis, que teria podido realmente suceder" Ub., p.
411). Dado que se trata de uma fusão, deve poder-se dissipá-la reclamando o direito de
introduzir na série efectiva dos factos da história um certo número de determinações
diferentes das que se produziram, Esta tentativa terá, em todo o caso, "obrigado o espírito a
deter-se um momento no pensamento dos possíveis que não se verificaram e elevar-se
assim mais resolutamente ao pensamento dos possíveis que estão ainda em suspenso no
mundo" (ib., p. 412). A utopia histórica, por outras palavras, é sugerida a Renouvier pela
exigência de subtrair o homem à tirania do facto e da **Ausão da necessidade. E pode
duvidar-se da eficácia da utopia, mas não do valor da exigência.

§ 726. O CRITICISMO INGLÊS

A lógica (1874) de Lolze renovou e valorizou a distinção estabelecida por Kant entre o
aspecto psicológico e o aspecto lógico-objectivo do conhecimento. Esta distinção converte-
se em característica das diversas tendências do neo-criticismo. O neo-criticismo inglês
desenvolveu-se em estreita conexão

com o pensamento de Kant, e especialmente, com

155

a escola de Marburgo, dado que apresenta como aspecto característico uma certa tendência
para o empirismo.

Shadworth H. lIodgson (1832-1912) é o autor

de uma vasta obra intitulada A metafísica da experiência (4 vols., 1898), de outros livros e
ensaios menores (Tempo e espaço, 1865; A teoria da prática, 1870; A filosofia da reflexão,
1878; e de numerosos ensaios publicados nas actas da Aristotelian Society e no "Mind"). A
metafísica da experiência é unia análise subjectiva da experiência que tem por fim
reconhecer o significado e as condições da consciência, por um lado, e das realidades
diferentes da consciência, por outro. A análise da consciência neste sentido é, segundo
Hodgson (Met. of Exp.,
1, págs. IX-XI), a mesma que Kant tinha iniciado, mas liberta do pressuposto a que o
próprio Kant e os filósofos que dele receberam a sua inspiração o
tinham vinculado, isto é, da distinção entre sujeito e objecto, dado como verdade última
fora de discussão. A distinção entre sujeito e objecto é substituída em Hodgson pela
distinção entre o conteúdo objectivo da consciência e o facto ou o acto da sua percepção. A
análise do mais simples estado de consciência, por exemplo, de um ;som, revella
imediatamente estes dois aspectos distintos e, contudo, inseparáveis. "Designando o
conteúdo pelo qual (whatness) da percepção ou da experiência, podem chamar ao facto de
que seja percebido o seu que (thatness), isto é, a sua existência enquanto é conhecida no
presente. Nenhuma 'destas duas partes da experliência total existe separadamente da outra:
são
156

distinguíveis, inseparáveis e medidas uma pela outra" (Met. of Exp., 1, p. 60). Essência e
existência, qual o que, são os dois aspectos opostos e conexos da experiência: a existência
identifica-se com o ser percebido, conforme a fórmula de BerLdIcy esse est percipi; a
essência é o próprio conteúdo da percepção, é o qual do que existente.

Estas considerações de lIodgson, ainda que apresentadas em polémica com Kant e com os
kantianos, tendem para o mesmo objectivo das correntes do neo-criticismo contemporâneo:
o de distinguir o
conteúdo objectivo da experiência (na validade que lhe é própria) dos actos ou factos
psíquicos aos quais se apresenta unido. Hodgson distingue, com efeito, o aspecto
psicológica do conhecimento intelectual e

o seu aspecto lógico. Pode ser considerado como um processo ou facto existente e
denomina-se então pensamento, juízo ou raciocínio, e pode ser considerado como um modo
de conhecimento e é então uma forma conceptual, que utiliza conceitos tais como

condição, possibilidade, alternativa, etc. (Ib., p. 383). Do mesmo modo, a consciência (ou a
experiência na sua totalidade) pode ser considerada como uma realidade existente ou
como conhecimento; como realidade existente desenvolve-se para diante e move-se do
presente para o futuro; como conhecimento é reflexiva e do presente volta ao passado.
Por isso o problema da consciência pode ser duplo: ou é problema relativamente à essência
da consciência e corresponde à metafísica, ou é problema relativamente à existência da
consciência, isto é, relativamente às condições do seu ser de facto, e

157

respeito à psicologia. Hodgson revela assim, em todas as suas análises, a preocupação de


assinalar os limites precisos entre a investigação -psicológica

e a gnoseológica, que é própria do neo-criticismo e que encontra a sua mais decidida e


rigorosa expressão na escola de Marburgo.

Mesmo quando Hodgson parte do princípio esse est percipi, e afirma que o sentido geral da
realidade é o facto de que se dá a experiência (1b., p. 458), não se detém na tese idealista;
analisa assim a formação, no seio da experiência, de uma realidade objectiva e, também, de
unia realidade que existe independentemente de ser percebida. ou pensada (mesmo quando
não é independente do acto de pensamento que a reconhece como tal). Contudo, o "mundo
externo" de que nos fala é considerado externo unicamente em relação ao corpo, enquanto
ocupa um lugar no espaço juntamente com os outros objectos da experiência (Met. of Exp.,
1, p. 267).

De inspiração kantiana é, também, aquilo que Hodgson chama "a parte construtiva da
filosofia". A filosofia é uma análise da experiência e a experiência não pode ser
transcendida. Contudo, os seus limites e as suas lacunas fazem pensar num "mundo
invisível" do qual não temos conhecimento positivo, e de que só possuímos aquelas
características gerais que podem inferir-se das suas relações necessárias com o

mundo visível. Pretende neste ponto **combinuar a

Crítica da Razão Prática de Kant (1b., IV, p. 399). "Os sentimentos, cuja eleição prática é
um mandato da consciência e cujo triunfo é a convicção da fé, são conhecidos e
experimentados por nós justamente

158

como sentimentos pessoais, apenas enquanto são sentidos por certas pessoas relativamente
a outras. Mas quando pensamos que o seu triunfo se baseia providencialmente na natureza
do universo, não podemos pensar o próprio, universo senão como pessoal, apesar de esta
tentativa de realizar especulativamente o pensamento falhar necessariamente e

se converter em contraditória" (ib., IV, p. 400). A consciência moral é, pois, o fundamento


da fé no mundo invisível, isto é, numa "força divina que suporta todas as coisas -e que é
distinta, mas inseparável, tanto de nós próprios como do mundo visível e mesmo do mundo
invisível".

Encontram-se as -mesmas exigências na obra de Robert Adamson (1852-1902), autor de


duas monografias sobre Kant (1879) e sobre Fichte (1881) e de vários escritos publicados
depois da sua morte com o título de O desenvolvimento da filosofia moderna (2 vols.,
1903). Adamson coloca explicitamente toda a -sua filosofia na necessidade de um regresso
à doutrina kantiana e de um exame novo dos problemas tal como saíram das mãos de Kant
(Phil. of Katit, p. 186, Tre Developement, II, p. 13). A principal lição que tira de Kant é a
distinção entre o ponto de vista da psicollogia e o ponto de vista da gnoseologia, distinção
pela qual "a origem de certa modificação especial da nossa experiência não pode
determinar de modo algum a sua validade ou o seu valor para o conhecimento" (The
Developement, 1, p. 245). Assim como a psicologia se

ocupa dos fenómenos da consciência enquanto experiências imediatas e dos processos em


virtude'dos

159

quais se desenvolve, por tais experiências, a distinção entre sujeito e objecto, a gnoseologia,
contrariamente, ocupa-se do valor ou da validade dos conceitos baseados nesta distinção; e
os seus problemas surgem do reconhecimento da antítese, da qual a psicologia traça a
formação.

Nesta base, as análises de Adamson tendem a mostrar dois princípios fundamentais. O


primeiro é o da distinção entre o acto de apreender e o conteúdo apreendido, distinção que,
contudo, não implica o isolamento recíproco ou a independência dos dois factos. O segundo
princípio é que os actos ou estados de consciência não têm como objectos próprios o seu
modo de existência (a sua realidade como modificação de um sujeito). Por outras palavras,
uma ideia não pode ser considerada como um acto de conhecimento interno que tenha por
objecto a

própria ideia. O estado psíquico pelo qual o conteúdo é apreendido não participa dos
caracteres deste conteúdo: o acto de apreender o vermelho não é, ele próprio, vermelho,
bem como o acto de apreender um triângulo não é triangular. Nós temos consciência nos
nossos estados mentais e através deles; mas não temos consciência deles. Este segundo
princípio corta a passagem para o idealismo subjectivo, já que evita a redução do objecto
conhecido a um

estado do sujeito cognoscente (The Developement,


1, p. 234).

Adamson não considera que a unidade da percepção seja um princípio primitivo; será antes
um

produto refinado do desenvolvimento da experiência. Tudo o que se pode conceder à tese


de Kant é que,

160

quando representamos um universo de factos relativos e conexos, só os podemos


representar em referência a uma experiência consciente. Mas a experiência consciente tem
infinitos graus e só o último e mais completo deles pode ser caracterizado como
autoconsciência (Ib., págs. 255-6). Deste modo, Adamson conduz o criticismo às teses
empiristas.
O pensamento que organiza a experiência é, por sua vez, estimulado e dirigido pela
experiência; e as

categorias são unicamente os modos por que o espírito organiza e acomoda as suas
experiências, modos que foram também plasmados pela experiência que organizam.
Vislumbra-se na doutrina de Adamson a tendência para o real-ismo, que devia tomar como

ponto de partida, precisamente, os -pressupostos que Adamson pôs a descoberto.

Um traço notável da especulação de Adamson é a repulsa da ideia romântica do progresso


(tão grata aos idealistas e naturalistas do seu tempo),

como uma aproximação gradual e contínua para um fim supremo, do qual seriam
realizações parciais ,todos os desenvolvimentos da realidade cósmica e humana. A noção
de fim, segundo ele, é uma categoria prática que não encontra aplicação para além dos
limites da experiência individual. Por isso, o

decurso dos fenómenos não pode ser, de modo algum

e em qualquer domínio, concebido como uma sucessão de mudanças predeterminadas por


um objectivo final. Não obstante, Adamson admite que, dado que o pensamento é sempre
idealizante, pode conceber-se um espírito infinito que esteja com o processo total da
realidade na mesma relação que o nosso

161

conhecimento está com a limitada porção da realidade que lhe é dada. Mas crê que o
problema da existência deste espírito não pode ser definitivamente resolvido.

George Dawes Hicks (1862-1941) autor de um

estudo sobre Os conceitos de fenómeno e nómeno lia sua relação segundo Kant (escrito em
alemão e publicado na Alemanha, 1897) e de dois livros, As bases filosóficas do teísmo
(1937) e Realismo crítico 1(1938), pode considerar-se discípulo, de Adamson. Hicks toma
como ponto de partida a distinção feita já por Hodgson e Adamson, entre existência e
essência, o qual e o que; e serve-se dela para chegar à conclusão de que o objecto é apenas
uma

fase mais completa e melhor determinada do próprio conhecimento. Com efeito, a soma das
características apreendidas de um qualquer objecto (o conteúdo apreendido ou a aparência
do objecto) nunca iguala a soma das características que constituem a essência completa (ou
conteúdo) do próprio objecto. A primeira nunca pode ser considerada como realidade
existente porque é sempre uma selecção das características constitutivas do objecto. Ela é o
qual, e a

essência total do objecto é o que; ou ainda, se se preferir, a primeira é o fenómeno e a


segunda é a realidade. O contraste entre fenómeno e realidade é, pois, apenas um contraste
entre uma realidade parcial ou imperfeitamente conhecida nas suas características. A
função do juízo, ao qual se reduz a actividade fundamental do conhecer, é a de captar um
número cada vez maior de características do objecto e acercar-se, portanto, cada vez mais
(Ia

162

realidade como tal. Este conceito da realidade, considerado como termo final do processo
cognitivo (mais do que como seu ponto de partida), é o

**ii@z@smo que se encontra na escola de Marburgo.

§ 727. A FILOSOFIA DOS VALORES: WINDELBAND

As duas expressões máximas do criticismo germânico, são a Escola de Baden e a Escola de


Marburgo. Possuem em comum a exigência abertamente kantiana de considerar a validade
do conhecimento independente da condição subjectiva ou psicológica em que o
conhecimento se verifica. A escola de Baden responde a esta exigência com uma teoria dos
valores considerados independentes dos factos psíquicos que os testemunham. A escola de
Marburgo responde a esta exigência reduzindo o processo, subjectivo do conhecer ao
método objectivo que garante a validade do conhecimento.
O fundador da escola de Baden foi Guilherme Winddiband (1848-1915), professor em
Zurique, Estrasburgo e Heidelberga e um dos mais conhecidos historiadores da filosofia. O
seu Manual de história da filosofia é elaborado por problemas, sendo o desenvolvimento
histórico dos mesmos considerado como relativamente independente dos filósofos que os
abordam. As ideias sistemáticas de Windelband estão contidas na colecção de ensaios e
discursos intitulados Prelúdios (1884, muito aumentada em edições sucessivas). Outros dos
seus escritos notá-
163
eis são: A liberdade do querer (1904), Princípios de lógica (1912) e Introdução à filosofia
(1914).

Windelband considera a filosofia como "a ciência crítica dos valores udiversais". Os
valores universais constituem o seu objecto; o carácter crítico caracteriza o seu método. Por
esta via encaminhou Kant a filosofia. Kant foi o primeiro que distinguiu nitidamente o
processo psicológico, em conformidade com cujas leis os indivíduos, os povos e a espécie
humana alcança´m determinados conhecimentos, do valor de verdade de tais
conhecimentos. Todo o pensamento que pretende ser conhecimento contém uma ordenação
das representações, que não é só produto de associações psicológicas mas também a regra a
que deve ajustar-se o pensamento verdadeiro. Na multiplicidade de séries representativas
que se formam em cada indivíduo segundo a necessidade psicológica da associação, há
algumas que expressam esta regra, a qual lhes confere a objectividade e é, portanto, o único
objecto do conhecer. Kant destruiu definitivamente a concepção grega da alma como
espelho passivo do mundo e da verdade como cópia ou imagem de uma realidade externa.
Para Kant, o objecto do conhecimento, o que mede e determina a sua verdade, não é uma
realidade externa (que como tal seria inalcançável e inverificável), mas a regra intrínseca do
próprio conhecimento. Posto isto, a tarefa da filosofia crítica é a de interrogar-se sobre a
existência de uma ciência, um pensamento que tenha um valor absoluto e necessário de
verdade; a existência de urna moral, isto é, um querer e um agir que tenham valor absoluto
e necessário de bem;

164

e a existência de uma arte, ou seja, um intuir e um sentir que possuam valor absoluto e
necessário de beleza. Em nenhuma das suas três partes a filosofia tem como objecto próprio
os objectos particulares que constituem o material empírico do pensamento, do querer, do
sentir, mas somente as normas

às quais o pensamento, o querer e o sentir devem conformar-se para ser válidos e possuir o
valor a que aspiram.

Por outras palavras, a filosofia não, tem por objecto juízos de facto, mas juízos valorativos
(Beurteilungen), isto é, juízos do tipo "esta coisa é boa", que incluem uma referência
necessária à consciência que julga. Todo o juízo valorativo é, com efeito, a reacção de um
indivíduo dotado de vontade e sentimento ante um determinado conteúdo representativo. O
conteúdo representativo é produto da necessidade natural ou psicológica; mas a reacção
expressa no juízo que o valora pretende uma validade universal, não no sentido de que o
juízo seja reconhecido de facto por todos, mas unicamente rio sentido de que deve ser
reconhecido. Este deve possuir é uma obrigatoriedade que nada tem que ver com a
necessidade natural. "0 sol da necessidade natural afirma Windelband (Prãludien, 4.a ed.,
1911, 11, págs. 69 e segs.), resplandece por igual sobre o justo e sobre o injusto. Mas a
necessidade, que observamos, de validade das determinações lógicas, éticas e estéticas, é
uma necessidade ideal, uma necessidade que não é a do Müssen e do não-poder- ser-de-
outro-modo, mas a do Sollen e do poder-ser-de-outro-modo". Esta necessidade ideal consti-
165

tui uma consciência normativa que a consciência, empírica encontra em si e à qual deve
conformar-se. A consciência normativa não é uma realidade empírica ou de facto, mas um
ideal, e as suas leis não são leis naturais que devam necessariamente verificar-se em todos
os factos singulares, mas normas às quais devem conformar-se todas as valorações lógicas,
éticas e estéticas. A consciência normativa é um sist ema de normas que, assim como valem
objectivamente, também devem valer subjectivamente, ainda que na realidade empírica da
vida humana só em parLe. A filosofia pode também definir-se, por conseguinte, como "a
ciência da consciência normativa"; e como tal, ela própria é um conceito ideal que só se
realiza dentro de certos limites. A realização das normas na consciência empírica constitui a
liberdade, a qual se pode, por isso, definir como "a determinação da consciência empírica
por parte da consciência normativa". A religião considera a

consciência normativa como uma realidade transcendente e supramundana que Windelband


designa por santo. "0 santo é a consciência normativa do verdadeiro, do bem e do belo,
vivida como realidade transcendente". Tal realidade transcendente é concebida pela
religião com as categorias de substância e de causalidade c.. portanto, como uma
personalidade na qual é real tudo o que deve ser e não o é o que não deve ser: como a
realização de todo o

ideal. Nisto consiste a santidade de Deus, Nisto também consiste a antinomia insolúvel da
religião. "A representação transcendente deve identificar em

Deus a realidade e a norma, enquanto a necessidade

166

de libertação do sentimento religioso as divide. O santo deve ser a substância e a causa do


seu contrário. Disto depende a completa insalubilidade do problema da teodiceia, o
problema da origem do mal no mundo" (Prãludien, 4.11 ed., 1911, p. 433).

Num ensaio de 1894, História e ciência natural, retomando e criticando a ideia exposta por
Dilthey na Introdução às ciências do espírito (1883), Windelband delineou uma teoria da
historiografia, estabelecendo a distinção entre ciências naturais e ciências do espírito. As
ciências naturais procuram descobrir a lei a que obedecem os factos e SãO, por isso,
ciências noinotéticas; as ciências do espírito, por outro lado, têm como objecto o singular
na

sua forma historicamente determinada e são, por isso, ciências ideográficas. As primeiras
têm como objectivo final o reconhecimento do universal; as segundas tendem,
contrariamente, para o reconhecimento do singular, quer seja um facto ou uma série de
factos, a vida ou a natureza de um homem ou de um povo, a natureza e o desenvolvimento
de uma língua, de uma religião, de uma ordem jurídica ou

de qualquer produção literária, artística ou científica. As primeiras são ciências de leis; as


segundas, de factos. Windelband contrapõe esta distinção de natureza puramente
metodológica à distinção objectiva estabelecida por Dilthey; mas é forçado a admitir que
nem mesmo Dilthey tinha compreendido esta distinção num sentido puramente objectivo e
que para ele a distinção entre os métodos e a distinção entre os objectos são simultâneos (§
736). Segundo Windelband, um mesmo objecto pode ser estudado

167

por ambas as espécies de ciências e, por vezes, os

dois tipos de consideração entrecruzam-se numa mesma disciplina, como sucede na ciência
da natureza orgânica, a qual tem carácter nomotético enquanto descrição sistemática e
carácter ideográfico ao considerar o desenvolvimento dos organismos sobre a

terra. As ciências ideográficas são essencialmente históricas, sendo a finalidade da história


fazer reviver o passado nas suas características individuais, como se estivesse idealmente
presente. A história dirige-se para o que é intuível e a ciência da natureza tende para a
abstracção. O momento histórico e o momento naturalista do saber humano não, se deixam
reduzir, segundo Windelband, a uma única fonte. "A lei e o acontecimento ficam um ao
lado do outro como últimas grandezas incomensuráveis

na nossa representação do mundo. Este é um dos pontos limites em que o pensamento


científico tem apenas por missão levar o problema à luz da consciência, mas não está em
condições de o resolvem (Prãludien, 4aed., 1911, p. 379).

§ 728. RICKERT

Em estreita relação com Windelband está a filosofia de Heinrich Rickert (1863-1936), que
foi professor em Friburgo e Heidelberga. Os seus escritos principais são: O objecto do
conhecimento (1892); Os limites da formação dos conceitos científicos (1896-1902);
Ciências da cultura e ciências da natureza (1899); A filosofia da vida (1920), Sistema de

168

filosofia (1921); Problemas fundamentais da filosofia (1934); Imediatez e significado


(colecção póstuma de ensaios, 1939). A obra de Rickert representa a sistematização dos
temas filosóficos de Windolband; mas não se pode dizer que com tal sistematização tenham
adquirido maior evidência e profundidade.

Em O objecto do conhecimento, Rickert critica todas as doutrinas que interpretam o


conhecimento como relação entre o sujeito e um objecto transcendente, independente
daquele, e com o qual o próprio conhecimento deve conformar-se. A representação e a
coisa representada são ambas objectos e

conteúdos da consciência e, por isso, a sua relação não é a que existiria entre um sujeito e
uma realidade transcendente, mas a que existe entre dois objectos ;do pensamento. Por
conseguinte, o critério e a medida da verdade do conhecimento (o seu verdadeiro objecto)
não é a realidade externa. Conhecer significa julgar, aceitar ou refutar, aprovar ou reprovar:
significa, pois, reconhecer um valor. Mas enquanto valor, que é objecto de uma valoração
sensível (por exemplo, de um sentimento de prazer), vale somente por determinado eu
individual e num momento dado, o valor que é reconhecido no juízo deve valer para todos e
em todos os tempos. O juízo que eu formulo, ainda que se refira a representações que vão e
vêm, tem um valor duradouro enquanto não puder ser diferente do que é. No momento em
que se julga, pressupõe-se algo que vale eternamente, e

esta suposição é propriedade exclusiva dos juízos lógicos. Nestes, eu sinto-me ligado por
um senti-
169

monto de evidência, determinado por uma **patéacia à qual me submeto e que reconheço
como obrigatória. Este sentimento dá ao juízo o carácter de no-, cessidade incondicionada.
Mas tal necessidade não tem nada que ver com a necessidade causal das representações: é
uma necessidade ideal, um imperativo cuja legitimidade se reconhece e é aceite
conscientemente. Neste imperativo, neste dever ser, consiste a verdade do juízo. O objecto
do conhecimento, aquilo que dá ao conhecimento o seu valor de verdade, é o dever ser, a
norma. Negar a norma

é impossível, porque significa tornar impossível qualquer juízo, inclusive o que nega. O
dever ser precede o ser. Não se pode dizer que um juízo é verdadeiro por exprimir o que é;
mas só se pode dizer que algo é se o juízo que o expressa é verdadeiro pelo seu

dever ser. O dever ser é transcendente relativamente


* toda a consCiência empírica individual, porque é
* consciência em geral, uma consciência anónima, universal e ,impessoal, à qual toda a
consciência

individual se reduz ao expressar um juízo válido. Esta consciência universal não é só


lógica, mas também ética e estética. A oposiição entre o teórico e o prático desvanece-se
relativamente a ela, e todas as disciplinas filosóficas encontram nela a sua raiz, já que a
filosofia tem precisamente por objecto os
valores, as normas e as formas do seu reconhecimento. Este conceito de filosofia é
confirmado por Rickert num ensaio que trata precisamente deste tema (in "Logos", 1910).
A filosofia deve distinguir o mundo da realidade do reino dos valores. Estes últimos não
são realidades, mas valem e o seu reino
170

está 'para além do sujeito e do objecto. A filosofia deve também mostrar a relação recíproca
entre o mundo da realidade e o reino dos valores. Esta relação é o acto de valorar, que
expressa o sentido do valor e que. por isso, determina uma terceira esfera, que se situa junto
à da realidade e à dos valores: o reino do significado. O acto de valorar não tem uma
existência psíquica porque se encaminha, para além desta, para os valores; mas também não
é um valor; é um terceiro reino ao lado dos outros dois.

O Sistema de filosofia é a ampliação destes fundamentos e, ao mesmo tempo, uma tentativa


de classificação escolástica dos valores. Ás três esferas mencionadas Rickert faz
corresponder, no homem, três actividades que as expressam: o explicar, o entender e o
significar. E distingue seis campos ou domínios do valor: a lógica, que é o domínio do
valor-verdade; a estética, que é o domínio do valor-beleza, a mística que é o domínio da
santidade impessoal, a ética, que é o domínio da moralidade; a erótica, que é o domínio da
felicidade, e a filosofia religiosa, que é o domínio da santidade pessoal. A cada um destes
domínios faz corresponder um bem (ciência, arte, um todo, comunidade livre, comunidade
de amor, mundo divino), uma relação com o sujeito (juízo, intuição, adoração, acção
autónoma, unificação, devoção), assim como uma determinada intuição do mundo
(intelectualismo, esteticismo, misticismo, moralismo, eudemonismo, teísmo ou politeísmo).
Mas neste método classificativo e escolástico, em que os problemas ficam
171

suprimidos e ocultos, dilui-se a mais profunda exigência dessa filosofia dos valores que
Rickert quer defender. E os sarcasmos que num escrito polémico, A filosofia da vida, dirige
a Nietzsche, Dilthey, Bergson e outros, frente aos quais afirma que a filosofia não é vida,
mas reflexão sobre a vída, dissimula mal o seu ressentimento relativamente a umponto de
vista que acentua um aspecto do homem que não encontra reconhecimento nem
**caNmento algum na **fossillização escolástica a que ele próprio reduziu o mundo dos
valores. Estes são, com efeito e antes de mais, possibilidades da existência humana e,
precisamente por isso, são ignorados ou negados por Rickert.

A parte mais interessante da sua filosofia é a que se refere à distinção entre ciências da
natureza e ciências do espírito, distinção que Rickert toma substancialmente de Windelband
e que comenta largamente na sua obra Sobre os limites da formação do conceito científico
que tem como subtítulo "Introdução lógica às ciências históricas". A distinção entre
ciências naturais e ciências históricas não se baseia no objecto, mas no método. A mesma
realidade empírica pode ser considerada, segundo um e outro ponto de vista lógico, como
natureza ou como

história. "É natureza se a considerarmos relativamente ao universal e converte-se em


história se a considerarmos relativamente ao particular e ao individual" (Die Grenzen, 2.a
ed., 1913, p. 224). O que é individual e singular interessa às ciências naturais só quando
pode ser expresso por uma lei universal; mas constituí, em troca, o único objecto da investi-
172

gaÇão histórica. Nem todos os acontecimentos individuais suscitam, contudo, o interesse


histórico, mas apenas aqueles que têm uma particular importância e significado. O -
historiador efectua e deve efectuar uma selecção, e o critério desta selecção será constituído
pelos valores que integram a cultura. Deste modo, o conceito de uma determinada
individualidade histórica deverá ser constituído pelos valores apreendidos ou apropriados
pela civilização a que ela pertence. O procedimento histórico é uma contínua referência ao
valor: o que não tem valor é insignificante historicamente e põe-se de parte. Mas nem por
isso o historiador formula um juízo de valor sobre os acontecimentos de que trata. O
historiador, como tal, não pode formular nenhum juízo sobre o valor de um qualquer facto;
procura reconstituir o facto só porque tem um valor. Por outras palavras, o valor é
pressuposto pela própria história, que não o cria, mas que se limita a, reconhecê-lo onde se
encontra. Os valores em si não podem, segundo Rickert, ser historiados, embora
resplandeçam no seu firmamento imutável que constitui o guia e a orientação da história.
Rickert polemiza, por isso, contra todas as formas de historicismo, que equipara ao
relativismo e ao nülismo (Ib., p. 8.). Assim, a validade do conhecimento histórico depende
da validade absoluta dos valores a que é referido. "A validade da representação histórica,
afirma Rickert, não pode deixar de depender da validade dos valores a que é referida a
realidade histórica e, por isso, a pretensão de validade incondicional dos conceitos
históricos pressupõe o reconhe-
173

(Ib., p. 389). Ora, segundo Rickert, esta pretensão é antes um direito. A história não é o
fundamento possível de nenhuma "intuição do mundo" limitada ou parcial; e a filosofia tem
como única tarefa dirigir-se, seguindo os valores que a história encarna, para o intemporal e
o eterno.

§ 729. OUTRAS MANIFESTAÇÕES DA FILOSOFIA DOS VALORES

A filosofia dos valores teve, na Alemanha, nos primeiros decénios deste século, numerosos
partidários, que renovaram, desenvolvendo-os em diversas direcções, os temas propostos
por Windelband e Rickert e muitas vezes influenciando-os pelos de outras correntes
contemporâneas.

Bruno Bauch (1877-1942), numa monografia sobre Kant (1917), que é a sua obra principal,
interpreta a coisa em si no sentido da filosofia dos valores como regra lógica que vale,
independentemente do nosso entendimento, para o nosso entendimento; e segue,
contrariamente, a tendência da escola de Marburgo ao eliminar o **&afismo kantiano entre
intuição e categoria e ao considerar o conhecimento como um progresso infinito do
pensamento para a determinação da experiência.

Por outro lado, o germano-americano Hugo Münsterbera

g (1,863-1916), autor de uma Filosofia dos valores (1908) e de numerosas obras de


psicologia, procura fazer uma síntese da filosofia dos

174

valores com o idealismo de Fichte. Põe como fundamento de todos os valores uma
actividade livre, um super-eu ou eu universal do qual cada eu singular é uma parte. Esta
actividade, de cunho fichteano, encontra a sua expressão originária no valor religioso, isto
é, na santidade, à qual se reduzem, portanto, todos os outros valores. Estes são agrupados
em duas grandes classes: valores imediatos ou vitais e valores criados ou culturais. Cada
uma destas classes divide-se numa esfera tripla: o mundo externo dos objectos, o mundo
dos sujeitos e o

mundo interno. Em cada uma destas classes de valores, Münsierberg estabelece divisões e
subdivisões, até apresentar um quadro escolástico exaustivo de todos os valores possíveis.
Mas nesta sistematização de Münsterberg, assim como na de Rickert, a filosofia dos valores
revela claramente o seu carácter pesado e dogmático: os problemas são, não resolvidos,
mas simplesmente eliminados com a

posição arbitrária de um determinado valor. Muito mais benemérita é a obra de


MUnsterberg no campo da psicologia e principalmente da psicologia aplicada (psicoteonia)
à qual dedicou um importante trabalho (,Fundamentos de psicotecnia, 1914).

Em Itália, foi seguida uma direcção semelhante por Guido Della Vafle (1884-1962) que
utilizou a

filosofia dos valores como fundamento de uma teoria da educação (Teoria geral e formal do
valor como fundamento de uma pedagogia filosófica. As premissas da axiologia pura,
1916; A pedagogia realista como teoria da eficiência, 1924).

175

Teve, pelo contrário, um êxito decididamente teológico na filosofia dos valores. o trabalho
do americano Wilbur Marshall Urban (1873-1952) que se inspirou principalmente em
Rickert (caloração, a sua natureza e as suas leis, 1909; O fundo inteligível, 1929;
Humanidade e divindade, 1951).

§ 730. A ESCOLA DE MARBURGO: COHEN

Na escola de Marburgo, a direcção lógico-objectiva do criticismo encontra a sua mais


rigorosa e

completa expressão. A distinção kantiana entre conhecimentos objectivamente válidos e


percepções ou experiências que são meros factos psíquicos, é levada até às suas últimas
consequências. A ciência, o conhecimento, o pensamento e a própria consciência reduzem-
se ao seu conteúdo objectivo, à sua validade puramente ló gica, absolutamente
independente do aspecto subjectivo ou psicológico pelo qual se inserem na vida de um
sujeito psíquico.

Em certo sentido, a escola de Marburgo representa a antítese simétrica do idealismo pós-


kantiano; este considera a subjectividade pensante como única realidade, aquela considera
como única realidade a objectividade pensável. Mas a objectividade pensável não tem nada
que ver com a objectividade empírica (isto é, com as coisas naturais) a qual é só uma sua
determinação particular. Deste modo, os

filósofos da escola de Marburgo são levados a integrar Kant com Platão, que viu na ideia
pura o
176

significado e o valor objectivo de todo o conhecimento possível.

O fundador da escola de Marburgo é Hermann Colien, (1842-1918), que foi professor em


Marburgo e cuja actividade começou com trabalhos históricos sobre Kan-t (A teoria de
Kant sobre a experiência pura, 1871; O fundamento da ética kantiana, 1871; A influência
de Kant na cultura alemã, 1833; O fundamento da estética kantiana, 1889).
Concomitantemente com os estudos Kantianos, Cohen cultivou os estudos de história das
matemáticas, atendendo sobretudo ao cálculo infinitesimal (0 princípio do método
infinitesimal e a sua história, 1883); o seu estudo sobre Platão é também evidente em cada
página da sua obra fundamental, Sistema de filosofia, dividida em três partos: Lógica do
conhecimento puro, 1902; Ética do querer puro, 1904; Estética do sentimento puro, 1912.
Cohen dedicou também dois escritos ao problema religioso: Religião e eticidade, 1907, e O
conceito da religião no sistema de filosofia, 1915. Foi ainda defensor de um socialismo não
materialista e da superioridade espiritual do povo alemão (Sobre o carácter próprio do povo
alemão, 1914). À tendência sensualista e eudemonista da filosofia inglesa, Cohen contrapõe
a tendência espiritualista da filosofia alemã, que faria desta a legítima continuadora da
grega. E vê realizada em
Kant "a espiritualidade ética da Alemanha".

A primeira e fundamental preocupação de Cohen é a de eliminar do pensamento e do


conhecimento todo o elemento subjectivo. O ser e o pensamento coincidem; mas o
pensamento é o pensamento do
177

conhecimento, isto é, dos conteúdos objectivamente válidos do próprio conhecimento


(Logik, 2.a ed.@
1914, p. 15). Isso só se encontra e apenas é válido no conhecimento, quando se trata do
pensamento da ciência e da unidade dos seus métodos; deste modo a lógica, que o observa
e constitui a sua autoconsciência, é sempre únicamente lógica da matemática e das ciências
matemáticas da natureza (Logik, p. 20). Os termos que costumam expressar o aspecto
subjectivo do pensamento, tal como "actividade", "autoconsciência", "consciência", são
reduzidos por Cohen a um significado lógico-objectivo.

"A própria actividade é o conteúdo, a produção é o produto, a unificação é a unidade. Só


nestas condições a característica do pensamento se deixa elevar ao ponto de vista do
conhecimento puro" (Ib., p. 60). A unidade transcendental da consciência, de que fala Kant,
não é mais do que "a unidade da consciência científica" (Ib., p. 16). E a consciência, em
geral, não é mais do que a própria categoria da possibilidade, uma espé cie determinada dos
juízos que se referem ao método (Ib., p. 424). À consciência como categoria da
possibilidade se reduzem, pois, não só a lógica, que considera a possibilidade das ciências
matemáticas da natureza, como também a
estética e a ética, que consideram a possibilidade do sentimento e da acção moral. Lógica,
estética e ética são as três ciências que abarcam todo o
campo da filosofia.
Cohen rejeita a distinção kantiana entre intuição e pensamento, distinção pela qual o
pensamento teria o seu princípio em algo que lhe seria externo.
178

O pensamento não é síntese mas antes produção (Erzeugung), e o princípio do pensamento


não é um dado, independente dele de um ou outro modo, mas a origem (Urspring). A lógica
do conhecimento puro é uma lógica de origem Qb., p. 36). Mas a produção, como acto
puramente lógico, não é mais do que a produção de uma unidade ou de uma multiplicidade
lógica, isto é, unificação ou distinção: juízo. E distingue quatro espécies de juízos: leis do
pensamento, juízos da matemática, juízos das ciências matemáticas da natureza e juízos de
método.

As leis do pensamento são os juízos de origem, de identidade e de contradição; mas, entre


estes, o

mais universal e fundamental é o juízo de origem. * este juízo se deve que -alguma coisa
seja dada. * "dado" não é um material bruto oferecido ao pensamento mas, como se torna
nítido nas matemáticas, é o que o próprio pensamento pode encontrar. Um dado é, neste
sentido, o sinal x das matemáticas, que significa não a indeterminação mas a

determinabilidade (ib., p. 83). Entre os juízos da matemática (realidade, pluralidade,


totalidade), o da realidade é fundamental. O juízo de realidade é sempre um juízo de
unidade; e daqui deriva também o valor que o indivíduo ou pessoa tem no campo moral: o
indivíduo é, com efeito, a unidade última e indivisível, o absoluto (1b., p. 142).

Os juíZos das ciências matemáticas da natureza são os de substância, lei e conceito. A


substância resolve-se na relação e a relação não é mais do que a passagem de um juízo a
outro, isto é, o movimento em sentido lógico. O movimento implica a

179

resolução do espaço (conjunto de relações) no tempo (conjunto de conjuntos) (Log., p.


231). Lei e conceito unificam-se na categoria do sistema, que é a

fundamental. "Sem a unidade do objecto, afirma Cohen (1b., p. 339), não há unidade da
natureza. Mas o objecto tem a sua unidade não na causalidade, mas no sistema. Portanto, a
categoria do sistema, como a categoria do objecto, é a categoria da natureza. Por isso
determina o conceito do objecto como objecto da ciência matemática da natureza". O
conceito não é nunca uma totalidade absoluta, mas somente o princípio de uma série
infinita que avança de termo a termo.

Os juízos de método são os da possibilidade, da realidade e da necessidade. Como se viu, a


possibilidade identifica-se com a consciência, que é o

horizonte de todas as possibilidades objectivas. A realidade (Wirklichkeit) não consiste na


sensação, mas na categoria do singular, pela qual, na unidade do sistema do conhecimento,
se tende a procurar e a individualizar a unidade de cada um dos seus objectos (1b., p. 471).
Quanto à necessidade, é a

categoria que torna possível unir o caso individual e o universal na lei científica e é, por
isso. o fundamento da dedução e do procedimento silogístico (1b., págs. 256 e segs.). Ã
dedução reduz-se também a indução, a qual não é mais do que uma dedução d'isjunti-va.
No âmbito desta categoria encontram-se os fundamentos da ló gica do raciocínio, em que
termina e culmina a lógica do juízo.

A lógica de Cohen, nascida como investigação transcendental sobre o conhecimento


científico, desen-
180

volveu-se como uma duplicação da própria ciência, duplicação que pretende fundar as
bases da mesma, mas que não consegue mais do que torná-las rígidas, eliminando aquele
carácter funcional e operativo que as torna instrumentos prontos e eficazes da investigação
científica. Reduzindo o seu conhecimento ao seu conteúdo objectivo, a indagação sobre a
ciência converte-se em investigação sobre conteúdos objectivos da ciência; mas esta
indagação não pode ter a pretensão, que conserva em Cohen, de fundar a validade de tais
conteúdos de uma maneira diferente da que a ciência utiliza operatoriamente e, por assim
dizer, caminhando. Pode dizer-se, pois, que a lição confiada implicitamente no princípio de
Cohen foi mais efiicazmente realizada pelas correntes metodológicas, que evitam
hipostasiar os resultados

e os procedimentos do pensamento científico num sistema de categorias.

Juntamente com a lógica, Cohen admite, como ciências filosóficas, a ética e a estética,
entendidas respectivamente como "ciência do querer puro" e

"ciência do sentimento puro". Mas, neste terreno, a obra de Cohen é muito mais débil e
menos original que no da lógica.

O objecto da ética é o dever ser (Sollen) ou ideia: e a -Ideia não é mais do que "a regra do
uso prático da razão". "Sóra-ente no dever ser consiste o querer. Sem dever ser não há
querer, mas unicamente desejo. Através do dever ser a vontade realiza e conquista um
autêntico sem (Ethik, 2.a ed.,
1907, p. 27). A ética é uma ciência pura, precisa-
181

mente enquanto considera o dever ser como condição e possibilidade do querer.

O dever ser é, como a regra do pensamento, uma

lei de unidade. A acção a que ele obriga é a unidade de acção; e na unidade de acção
consiste a

unidade do homem (1b., p. 80). Mas o homem não é unidade, isto é, individualidade e
pessoa, no seu isolamento, mas apenas como membro de uma pluralidade de indivíduos, e
toda a pluralidade pressupõe, finalmente, uma totalidade. Por seu lado, toda a totalidade
tem graus diversos até à sua verdadeira unidade, que é a humanidade no seu conjunto, na

qual apenas o homem individual encontra a sua realização. Cohen insiste, por isso, na
fórmula do imperativo categórico de Kant, que prescreve a cada um tratar a humanidade,
tanto nas outras pessoas como em nós mesmos, sempre como um fim, nunca como um
meio. O sistema dos fins é o objectivo final do dever ser moral e, neste sistema dos fins,
Cohen vê a ideia do socialismo, a qual exige, precisamente, que o homem valha como fim
para si mesmo e seja reconhecido na liberdade e dignidade da sua pessoa. "Como se
concilia -pergunta Cohen (Ib., 2.a ed., 1907, p. 322)-a dignidade da pessoa com o facto de
que o valor do trabalho seja determinado no mercado como o de uma mercadoria? Este é o
grande problema da política moderna e, por isso, também da ética moderna". Contudo,
Cohen é contrário ao

socialismo materialista de Marx (1b., págs. 312 e

segs.), e concebe a marcha da humanidade para a

realização do reino dos fins como uma exigência

182

moral implícita -no aperfeiçoamento progressivo da humanidade como tal, perante o qual
devem inclinar-se as formas do direito e do estado.

O mesmo ideal da humanidade domina a estética de Cohen. O sentimento puro, que é o


órgão da estética, assim como o querer puro o é da ética, é o amor dos homens na totalidade
da sua natureza, que é também natureza animal. Se a obra de arte não se reduz à pura
materialidade do mármore e da tela, isso deve-se ao facto de ser a representação de um
ideal de perfeição humana, do qual tira o seu

valor eterno.

A religião não ;tem lugar no sistema de Cohen. Enquanto :aplica a Deus o conceito de
pessoa, a

relIgião pertence ao mito e fica encerrada no círculo do antropomorfismo. Filosoficamente


falando, Deus não é mais do que a ideia da Verdade como fundamento de uma totalidade
humana perfeita. O seu

conceito e a sua existência significam somente que não é uma ilusão crer, pensar e conhecer
a unidade dos homens. Deus proclamou-a, Deus garante-a; à parte isto, Deus não explica
nada nem significa nada. Os atributos, em que consiste a sua essência, não são propriedade
da sua natureza, mas antes as direcções nas quais se irradia toda a sua relação com os

homens e nos homens" (Ethik, p. 55). Deus é, pois, um simples conceito moral; e, na moral,
a religião encontra a sua única justificação possível, Quando, em troca, atribui a Deus
características (como as

de vida, espírito, pessoa, ete), que a moral não justifica, desemboca fatalmente no mito.

183

§ 731. ESCOLA DE MARBURGO: NATORP

O outro representante da escola de Marburgo é Paul Natorp (1854-1924), autor de


numerosos estudos históricos (sobre Pestalozzi, Herbart, Kant), o

mais importante dos quais versa sobre Platão: A doutrina platónica das ideias (1903).
Natorp recolhe e justifica historicamente nesta obra a interpretação de Platão exposta
esporádica e ocasionalmente nas obras de Cohen. Esta interpretação é a antítese da
tradicional, iniciada por Aristóteles, segundo a qual o mundo das ideias é um mundo de
objectos dados, de super-coisas, análogas e correspondentes às coisas sensíveis. Neste
sentido, as ideias não são objectos mas 1&s e métodos do conhecimento. Com efeito, são
concebidas por Platão como objectos do pensamento puro, e o pensamento puro não pode
impor uma realidade existente, ainda que absoluta, mas

unicamente funções cognitivas que valham como

fundamentos da ciência. "A ideia expressa o fim, o ponto infinitamente afastado, ao qual
conduzem os caminhos da experiência; são, por isso, as leis do procedimento científico"
(Matos Ideenlehre, págs.
215, 216). A "participação" dos fenómenos no mundo ideal significa que os fenómenos são
graus de desenvolvimento dos métodos ou procedimentos que são as ideias. E que as ideias
sejam arquétipos dessas imagens que são as coisas, significa somente que o

conceito puro é o originário e que o empírico é o derivado (1b., p. 73). A dialéctica


platónica é, portanto, a ciência do método. E a importância de Platão consiste em ter
descoberto a logicidade como

184

NATORP

legalidade do pensamento puro (Ib., p. 1). Natorp põe, por isso mesmo, como subtítulo da
sua monografia platónica o de "Guia para o idealismo", entendendo por idealismo (do
mesmo modo que Coheri) o seu neo-criticismo objectivista.

A principal obra de Natorp é a que versa sobre os Fundamentos lógicos das ciências exactas
(1910), cujos resultados são recapitulados na breve, mas completa, apresentação da sua
doutrina, intitulada Filosofia (1911). Dedicou, porém, uma grande parte da sua actividade à
psicologia e à pedagogia (Pedagogia social, 1899; Pedagogia geral, 1905; Filosofia e

pedagogia, 1909; Ensaios de pedagogia social, 1907; Psicologia geral, 1912). Natorp foi,
como Cohen, defensor de um socialismo não materialista (Idealismo social, 1920); e
também, como Cohen, da superioridade e primado espiritual do povo alemão (A hora dos
alemães, 1915; Guerra e paz, 1916; A missão mundial dos alemães, 1918).

Segundo Nalorp, "a ciência não é mais do que a consciência no ponto mais elevado da sua
clareza e determinação. O que não pudesse elevar-,se ao nível da ciência seria apenas uma
consciência obscura e, por conseguinte, não uma consciência no pleno sentido da palavra,
se é que consciência significa clareza e -não obscuridade" (Phil. und Pãd., 2.a ed
1923, p. 20). A filosofia é também conhecimento; mas conhecimento que não se dirige ao
objecto, mas sim a unidade do próprio conhecimento. O objecto do conhecimento é
inesgotável e o conhecimento pode aproximar-se mais ou menos dele, mas nunca o alcança.
Todo o conhecimento é um pro-
185

cesso infinito, mas é um processo que não está privado de lei nem de direcção. Se o objecto
do conhecimento é o ser, é preciso dizer que só no

eterno progresso, no método do conhecimento, o ser alcança a sua concretização e


determinação. O ser

é o eterno x (o que deve ser conhecido) que cada passo do conhecimento determinar
melhor; mas o

valor da determinação depende exclusivamente do método do conhecimento, do seu


proceder; neste sentido a filosofia é, essencialmente, método.

Também Natorp, divide a filosofia em lógica, ética e estética. A lógica considera o método
do conhecimento tal como está em acto nas ciências exactas, isto é, na matemática e nas
ciências matemáticas da natureza. Matemática e lógica são substancialmente** Uônticas.
"A matemática versa sobre o desenvolvimento da lógica; em particular, sobre a

sua última unidade central, aquela à qual toda a

ló-ica deve ser reconduzida" (Phil., 3 a ed., 1921, p. 41). Esta unidade central da lógica é o
pensamento, como criação ou processo vivente. A forma originária do juízo, na qual o
pensamento se expressa, não é A=A, mas XA, onde X representa um problema, uma
indeterminação, que o pensamento procura resolver numa certa direcção. Esta resolução é
um processo de separação e unificação, no qual as variantes não são dadas (como
acreditava Kant) mas, são consideradas pelo pensamento juntamente com a característica
que lhes é comum.

Deste processo de separação e unificação surge toda a matemática. Mas separação e


unificação não são mais do que relações; por isso, todos os conceitos da

186

matemática e, em geral, das ciências matemáticas da natureza, são relações e relações de


relações. A isto se reduzem também o espaço e o tempo, que não são formas dadas pela
intuição, mas unicamente produtos da conexão dinâmica em que consiste o pensamento.
Espaço e tempo condicionara a experiência no sentido de que as regras do pensamento
encontram neles a sua concretização; tais regras são aplicadas de modo a produzirem a
experiência imediata do objecto, isto é, o próprio objecto, numa determinação que não
(possui nas regras gerais do intelecto (Phil., p. 54). A intuição empírica não constitui,
portanto, um acréscimo ou um contributo externo para o pensamento, mas o realizar-se do
próprio pensamento na sua determinação final. "A singularidade do objecto, que implica
como condição própria a singularidade da ordem espaço-tempo, não pode significar mais
do que a determinação perfeita: a determinação na qual nada deve permanecer
indeterminado" (Ib., p. 55). O (lado situa-se nesta doutrina não já no começo do processo
do conhecimento, como um seu material em bruto (tal como na doutrina kantiana), mas no
fim do processo, como sua determinação final.

Mas com isto o dado torna-se o "dever ser" da experiência e situa-se no próprio coração da
lógica. "0 dever ser, afirma Natorp, mostra-se como o mais profundo fundamento de toda a
validade de ser que seja própria da experiência. A lei do dever ser deve ser considerada em
função do progresso infinito da experiência. Assim, encontramo-nos lançados na

eterna marcha da experiência; a única condição é que

187

não fiquemos parados num determinado estádio dela, que não nos detenhamos aí, mas que
avancemos sempre" (Ib., p. 71). A ética é precisamente a ciência deste dever ser, o qual,
enquanto lei -da vontade, prescreve o progresso para uma comunidade total e

harmoniosa, o estádio perfeito cujo ideal foi expresso por Platão.

Nas suas obras Pedagogia social e Religião nos

limites da humanidade, Natorp debruça-se sobre o

problema da arte e da religião. A arte tem como objecto o absolutamente individual, em


cuja determinação podem entrar, porém, elementos de carácter universal (pertencentes; à
ordem científica e moral), mas apenas sob a condição de perderem a sua universalidade e
de se fundirem na individualidade do objecto. Por isso a análise estética, quando analisa os
elementos da obra de arte, depara a certa altura com o irracional que não é redutível ao
conceito que por isso é chamado intuição, fantasia ou sentimento. Quanto à religião, ela
tom para Natorp, o

mesmo conteúdo objectivo das três ciências filosóficas (!lógica, ética e estética) mas vivido
sob a forma de subjectividade, isto é, da intimidade espiritual. Apesar disso, a religião faz
desta subjectividade um

objecto -Deus ou o -divino -que considera superior à realidade do mundo e da experiência,


como um supramundo ao qual se subordinam as próprias leis do mundo empírico. A
religião deveria, segundo Natorp, reduzir-se "aos limites da humanidade", isto é, eliminar a
transcendência do supramundo e constituir-se como "religião sem Deus", analogamente

188

psicologia, que se tornou uma ciência quando se

constituiu como <psicologia sem alma".

§ 732. CASSIRER

A escola de Marburgo influiu eficazmente sobre a filosofia alemã dos primeiros decénios
deste século; as ressonâncias do seu princípio fundamental (redução do conhecimento a
objectiVidade pensável) notam-se também em orientações filosóficas diversas: na filosofia
dos valores, na fenomenologia e em certas formas de realismo (como a teoria dos objectos).
A interpretação ética do socialismo, proposta por Cohen e Natorp, encontrou também
numerosos continuadores; entre outros, Karl Vorlânder, autor de um estudo comparativo de
Kant e-Marx, e Eduard Bernstein, discípulo de Marx, autor de uma obra intitulada Sobre a
história e a teoria do socialismo (1901).

A doutrina da escola de Marburgo teve uni

desenvolVimento notável na obra de Ernst Cassirer (1874-1945), que foi professor em


Berlim e Hamburgo e, nos últimos anos, na Universidade de Yale, na América. Cassirer é
autor de estudos históricos fundamentais sobre o Renascimento e o Iluminismo, volume de
monografias sobre Leibniz (1902), Kant (1918) e Descartes (1939), e de uma vasta obra
sobre o Problema do conhecimento na filosofia e

na ciência da época moderna (4 vols., 1906-1950).


O pensamento teórico de Cassirer é exposto nas

obras Conceito de substância e conceito de função (1910); A teoria da relatividade de


Einstein (1921);

189

A forma do conceito no pensamento mítico (1922); Filosofia das formas simbólicas (3


vols., 1923-29). As últimas obras de Cassirer são o Ensaio sobre o homem (1944), que
resume os resultados mais importantes da sua especulação, e O mito do Estado (1946).

A originalidade da posição de Cassirer em relação à escola de Marburgo está no facto de


acentuar a importância da expressão simbólica, isto é, da linguagem, na constituição de
todo o mundo do homem, desde o mundo da ciência até ao do mito, da reli-ião e da arte. A
sua doutrina enquadra-se portanto, mesmo utilizando um ponto de vista específico, naquele
vasto moVimento da filosofia contemporânea que considera precisamente a linguagem,
como objecto primeiro e privilegiado da indagação filosófica. Mas, por outro lado, a
investigação de Cassirer permanece ligada à orientação da escola de Marburgo na medida
em que tenta encontrar as

origens dos objectos da ciência ou das outras actividades humanas nas estruturas que
garantem a valida-de de tais objectos.

Em primeiro lugar essas estruturas são funções e não substâncias. Na sua obra intitulada
Conceito de substância e conceito de função, Cassirer estabelece uma posição entre os dois
conceitos e nota como a ciência tinha abandonado, a partir dos Princípios da mecânica
(1894) de Hertz, o conceito de substância e, simultaneamente, a noção da ciência como

imagem das substâncias naturais. O predomínio do conceito de função implica o


reconhecimento do valor do signo; e ao reconhecê-lo aparece-nos como

190

decisiva a finição constitutiva da linguagem em relação aos objectos de que se ocupa a


ciência. A obra seguinte de Cassirer, Filosofia das foi-mas simbólicas, estende estas
considerações do mundo da ciência à totalidade do mundo do homem. **Ndla, a "crítica, da
razão científica", isto é, a indagação sobre a validade do conhecimento científico, torna-se
uma "crítica da civilização", isto é, uma indagação sobre as formas específicas da
civilização: o mito, a arte, a religião, a própria ciência e, em primeiro lugar, o

instrumento que está na origem da validade de tais formas, ou seja, a linguagem. Deste
ponto de vista, a linguagem não é apenas, nem principalmente, um

instrumento de comunicação. É antes a actividade que organiza a experiência e a conduz do


mundo passivo das impressões puras para a autêntica objectividade racional. Para justificar
esta passagem Colien e Natorp recorriam, assim como Kant, às categorias, Cassirer recorre
à expressão simbólica. "0 símbolo, afirma, não é o revestimento meramente acidental do
pensamento mas o seu orgão necessário e essencial. Ele não serve apenas para comunicar
um conteúdo conceptual já construído mas

é, pelo contrário, o instrumento em virtude do qual esse conteúdo se constitui e adquire a


sua formulação acabada. O acto da determinação conceptual de um conteúdo ocorre
simultaneamente com o acto de fixação desse conteúdo num qualquer símbolo
característico."(Phil. der symbolischen Formen, 1, lntr., § 11). E ao participar na
constituição dos conceitos, o símbolo expressivo participa na constituição do próprio
objecto real, já que a distinção entre o
191

subjectivo e o objectivo, na qual se baseia todo o conhecimento válido, só se pode fazer a


partir dos conceitos e das suas expressões simbólicas.

Deste ponto de vista, a tarefa da filosofia já não é a de remontar ao imediato, ao primitivo,


ao dado originário, mas antes a de compreender a via pela qual este dado se transforma,
com a expressão simbólica, numa realidade espiritual. "A negação das formas simbólicas,
em vez de apreender o conteúdo da vida, destrói a forma espiritual à qual esse conteúdo se
encontra necessàriamente ligado" (Ib., Intr., § IV). E do mesmo modo o progresso da
linguagem não consiste em avizinhar-se da realidade sensível até quase integrá-la em si
mesma, mas antes em afastar-se dela de forma cada vez mais radical, até excluir toda a
identidade directa ou indirecta entre realidade e símbolo. "O valor e a natureza específica
da linguagem, assim como da actividade artística, residem não na vizinhança com o dado
imediato mas no seu progressivo afastamento, dele. Esta distância em relação à existência
imediata e à experiência imediatamente vivida é a condição essencial da perspicácia e do
conhecimento da linguagem. Esta começa sómente onde acaba a relação directa com a
impressão e a emoção sensíveis" (1b.,
1, 1, cap. 11 § 2). A diferença entre a linguagem humana e as "manifestações linguísticas
articuladas" dos animais superiores consiste na ausência, nestas manifestações, do
afastamento em relação à sensibilidade imediata, que é próprio da linguagem. O estudo no
mito, realizado por Cassirer no segundo volume da sua obra, obedece a estes conceitos. que
192

encontram ainda maior justificação no terceiro volume, o qual é dedicado à fenomenologia


do conhecimento. O conceito científico, por exemplo, é tanto mais rigoroso quanto menos
intuitivo. "Na sua forma mais restrita, no que respeita ao seu carácter especificamente
lógico, o conceito deve ser diferente dos **IM=EreToTW*M são apenas a
representação

viva da lei que governa uma sucessão concreta de imagens intuitivas. O significado de um
conceito já não adere a um substracto intuitivo, a um datum ou dabile, sendo pelo contrário
uma bem definida estrutura relacional adentro de um sistema de juízos e de verdades" (Ib.,
111, 111, cap. 11).

Quando Cassirer tenta resumir numa definição do homem os resultados das suas
investigações sobre o

mundo humano, afirma que o homem é um animal simbólico, isto é, falante. "A razão,
afirma, é um termo assaz inadequado para compreender todas as

formas da vida cultural do homem em toda a sua riqueza e variedade. Mas todas estas
formas são simbólicas. Por consequência, em vez de definir o homem como animal
rationale, podemos defini-lo como animal symbolicum. Fazendo assim. indicamos aquilo
que especificamente o distingue e podemos percorrer a nova estrada que se abre ao homem,
a estrada para a civilização" (Essay on Man, cap.
11). O campo específico da actividade humana, aquele campo onde o homem manifesta de
forma evidente a sua liberdade de iniciativa e a sua responsabilidade, ou seja, a história, é
ele mesmo, segundo Cassirer, condicionado pela expressão simbólica. De facto, não é
possível fazer história sem

193

interpretar os acontecimentos; e tudo aquilo que se

disse sobre a "compreensão" dos factos, das personalidades e das instituições históricas,
exprime precisamente a exigência de referir factos, personalidades ou instituições a uma
interpretação que lhes revela o seu verdadeiro significado. Com efeito, um facto não é
histórico se não tiver um significado. "0 suicídio de Catão não foi apenas um acto físico; foi
um acto simbólico. Foi a expressão de um

grande carácter; foi o último protesto do espírito republicano romano contra uma nova
ordem das coisas" (Ib., cap. X). Também a história é uma "forma simbólica".

§ 733. BRUNSCHVIEG

A historização da atitude crítica - o reconhecimento de que a actividade organizadora do


mundo do conhecimento e do mundo dos valores humanos está em contínuo devir - é
característica do neo-criticismo de Léon Brunschvieg (1869-1944), que foi professor da
Sorbonne. Aceita e mantém rigorosamente o princípio crítico: a filosofia não aumenta a
quantidade do saber humano; é uma reflexão sobre a qualidade deste saber (L'idéalisme
contemporain,
1905, p. 2). Por outro lado, o saber não é um sistema cerrado e completo, mas um
desenvolvimento histórico, cujas partes se podem distinguir e definir, mas que nunca
termina. A história do saber humano é o <laboratório do filósofo". Brunschvieg considera
todos os aspectos da civilização ocidental na sua história: as ciências matemáticas (As
etapas da filo-
194

sofia matemática, 1912); as ciências físicas (A experiência humana e a causalidade física,


1922); as

doutrinas metafísicas, morais e religiosas (0 progresso da consciência na filosofia ocidental,


1927); e a própria atitude espiritualista de auto-exame. (0 conhecimento de si, 1931).
Finalmente, o seu último escrito, Herança de palavras, herança de ideias (1945), é ainda
uma consideração histórica de algumas palavras fundamentais (razão, experiência,
liberdade, amor, Deus, alma), com o objectivo de investigar

o seu significado primordial. É também autor de estudos históricos sobre Espinosa (1894) e
Pascal (1932), e expressou pela primeira vez os seus pontos de vista fundamentais num
livro intitulado A modalidade do juízo (1897).

É missão da filosofia, segundo Brunschvieg, o

conhecimento do conhecimento: um objectivo especificamente crítico no sentido kantiano,


pelo qual a filosofia se apresenta como conhecimento integral. Com efeito, o único
conhecimento que se adequa ao seu objecto é o conhecimento do próprio conhecimento (La
modalité du jugement, 2.11 ed., 1934, p. 2). Assim como no conhecimento científico o
espírito que conhece e o objecto a conhecer se enfrentam na sua fixidez imutá vel, no
conhecimento integral da filosofia o espírito procura descobrir-se a si mesmo no seu
movimento, na sua actividade, na sua acção viva e criadora. "Uma actividade intelectual
que adquire consciência de si mesma: eis aqui o estudo integral do conhecimento integral,
eis aqui a filosofia" (Ib., p. 5). Este princípio conduz Brunschvicg a identificar o princípio
espiritual, que

195

produz o saber científico e as outras manifestações humanas (arte, moral, religião), com o
princípio crítico, que reflecte sobre estas produções espirituais. A redução total do espírito,
em todas as suas manifestações, à reflexão crítica, é o fim que Brunschvicg tenta atingir em
todos os campos, procurando demonstrar que é própria do desenvolvimento histórico do
saber do mundo humano em geral.

Assim, as etapas da filosofia matemática foram as etapas da libertação do espírito


relativamente ao horizonte cerrado das representações sensíveis e, por conseguinte, as
etapas da actividade livre do pensamento que subordina a experiência a si mesmo. Do
mesmo modo, a evolução da física (considerada na obra A experiência humana e a
causalidade física) consiste na formação de uma consciência intelectual, pela qual a vida
espiritual se eleva por sobre a inconsciência instintiva, na qual a ordem biológica está
naturalmente encerrada (L'expérience humaine, 1922, p. 614). Mas esta consciência
intelectual não anula a objectividade do mundo. O idealismo crítico (como Brunschvieg
preferentemente denomina a sua doutrina) não coloca o eu diante do não-eu ou o não-eu
perante o eu; eu e não-eu são, para ele, dois resultados solidários de um mesmo processo da
inteligência. O progresso da ciência torna mais humano o nosso conhecimento das coisas;
mas torna também mais objectivos os procedimentos do nosso conhecimento (1b., p. 613).

É evidente que este ponto de vista exclui todo o realismo, qualquer afirmação de unia
realidade em si que não se reduza ao objecto considerado ou

196

produzido pelo acto de entender. Exclui, pois, uma realidade empírica independente do
pensamento reflexivo. Mas não reconhece à razão a liberdade absoluta de mover-se e
produzir sem limites nem disciplina. Contrariamente à imaginação criadora do artista ou do
poeta, a razão está submetida à prova dos factos e à sua obscura oposição: encontra, a

cada passo, resistências imprevistas, que desfazem as generalizações prematuras, as


limitações temerárias, as extrapolações demasiado fáceis (1b., p. 605). A experiência actua
sobre a razão mediante choques (chocs), que a arrancam à sua preguiça dogmática e a
incitam a criar novos princípios de estratégia, novas técnicas para superar os obstáculos
(Ib., p.
399). Contudo, não se pode hipostasiar o que está para além destes choques, imaginando
uma realidade que os produza. Tudo o que se pode dizer é que a experiência oferece à
razão, através deles, pontos de referência, em relação aos quais a actividade da razão se
orienta, se cimenta, se constitui como verdade. Deste ponto de vista, interioridade e
exterioridade não são contraditórias, mas prolongam-se uma

na outra e constituem a totalidade do conhecer e do ser (1b., p. 610).

Como no saber científico, também no mundo moral e religioso o progresso consiste no


prevalecimento gradual do princípio critico sobre o princípio da espiritualidade imediata. A
história da humanidade traduz o choque de duas atitudes hostis: a do homo credulus, que se
entrega à inércia Jo instinto, e a do homo sapienv, fiel à autonomia da razão. O progresso
da reflexão, que dissipou no

197

produz o saber científico e as outras manifestações humanas (arte, moral, religião), com o
princípio crítico, que reflecte sobre estas produções espirituais. A redução total do espírito,
em todas as suas manifestações, à reflexão crítica, é o fim que Brunschvieg tenta atingir em
todos os campos, procurando demonstrar que é própria do desenvolvimento histórico do
saber do mundo humano em geral.

Assim, as etapas da filosofia matemática foram as etapas da libertação do espírito


relativamente ao

horizonte cerrado das representações sensíveis e, por conseguinte, as etapas da actividade


livre do pensamento que subordina a experiência a si mesmo. Do mesmo modo, a evolução
da física (considerada na obra A experiência humana e a causalidade física) consiste na
formação de uma consciência intelectual, pela qual a vida espiritual se eleva por sobre a
inconsciência instintiva, na qual a ordem biológica está naturalmente encerrada
(L'expérience humaine, 1922, p. 614). Mas esta consciência intelectual não anula a
objectividade do mundo. O idealismo crítico (como Brunschvieg preferentemente
denomina a sua doutrina) não coloca o eu diante do não-eu ou o não-eu perante o eu; eu e
não-eu são, para ele, dois resultados solidários de um mesmo

processo da inteligência. O progresso da ciência torna mais humano o nosso conhecimento


das coisas; mas torna também mais objectivos os procedimentos do nosso conhecimento
(1b., p. 613).

É evidente que este ponto de vista exclui todo o realismo, qualquer afirmação de uma
realidade em

si que não se reduza ao objecto considerado ou

196

produzido pelo acto de entender. Exclui, pois, uma realidade empírica independente do
pensamento reflexivo. Mas não reconhece à razão a liberdade absoluta de mover-se e
produzir sem limites nem disciplina. Contrariamente à imaginação criadora do artista ou do
poeta, a razão está submetida à prova dos factos e à sua obscura oposição: encontra, a

cada passo, resistências imprevistas, que desfazem as generalizações prematuras, as


limitações temerárias, as extrapolações demasiado fáceis (Ib., p. 605). A experiência actua
sobre a razão mediante choques (chocs), que a arrancam à sua preguiça dogmática e a
incitam a criar novos princípios de estratégia, novas técnicas para superar os obstáculos
(Ib., p.
399). Contudo, não se pode hipostasiar o que está para além destes choques, imaginando
uma realidade que os produza. Tudo o que se pode dizer é que a experiência oferece à
razão, através deles, pontos de referência, em relação aos quais a actividade da razão se
orienta, se cimenta, se constitui como verdade. Deste ponto de vista, interioridade e
exterioridade não são contraditórias, mas prolongam-se uma

na outra e constituem a totalidade do conhecer e do ser (1b., p. 610).

Como no saber científico, também no mundo moral e religioso o progresso consiste no


prevalecimento gradual do princípio crítico sobre o princípio da espiritualidade imediata. A
história da humanidade traduz o choque de duas atitudes hostis: a do homo credulus, que se
entrega à inércia Jo instinto, e a do homo sapiens, fiel à autonomia da razão. O progresso da
reflexão, que dissipou no

197

terreno especulativo a concepção realista do mundo e da verdade, deve conduzir, no


domínio moral, à destruição do peso da tradição, à constrição da autoridade externa, às
sugerências acanhadas do ambiente social (Le progrès de Ia conscience, p. XIX). E assim
como na ordem teórica é necessário renunciar a todo o sistema de categorias, do -mesmo
modo o

advento da razão prática exige o abandono de qualquer código de preceitos já construídos,


de toda a

escala de valores fixos, e cede ao homem a liberdade do seu futuro (1b., p. 726). O espírito
humano cria os valores morais, como cria os científicos e os estéticos. "Em todos os
domínios, os heróis da vida espiritual são aqueles que, sem referir-se a modelos superados,
a precedentes já anacrónicos, lançaram à sua frente as **"bas da inteligência e verdade
destinadas a criar o universo moral, do mesmo modo que criaram o universo material da
gravitação e da electricidade" (Ib., p. 744). Do mesmo modo que a

consciência intelectual, a consciência moral nasceu no dia em que o homem rompeu o


cerco do seu egoísmo. A reflexão fez-nos sair do centro puramente individual dos nossos
desejos e dos nossos interesses pessoais, para revelar-nos, na nossa condição de filhos, de
amigos, de cidadãos, uma relação da qual nós somos apenas um dos termos, e

para introduzir assim na raiz da nossa vontade unia condição de reciprocidade, que é a regra
da justiça e o fundamento do amor (Ib., págs. 11, 12).

No domínio religioso, só a reflexão subtrai a consciência a toda a crença antropomórfica ou


supersticiosa e faz ver em Deus somente o valor

198

supremo que é verdade e amor e não pode estar revestido de nenhum outro atributo (De Ia
connaissance de soi, p. 190). Brunschvicg, que chama também humanismo à sua doutrina,
afirma a total imanência de Deus no mundo e precisamente no esforço da reflexão humana.
"Um Deus está presente em

todo o esforço de coordenação racional, em virtude do qual o espírito une a mínima parte
do ser, o

mais pequeno acontecimento da vida, à totalidade do futuro universal" (Le progrès de la


conscience, p. 797), Fora desta unidade, que o espírito realiza consigo mesmo no acto da
reflexão crítica, nada se pode encontrar, porque nada se pode procurar.
O humanismo substitui a imaginação de um criador transcendente pela "realidade do
homem, artesão da sua própria filosofia" (Eexpérience humaine, p. 610). Só o homem é o
instrumento desse progressus ordinans que a reflexão pode produzir em todos os campos do
mundo humano. Deus realiza-se precisamente neste progresso. "0 Deus que nós
procuramos, o Deus adequado à sua prova, não é o objecto de uma verdade, mas aquele
para quem existe a

verdade. Não é alguém que façamos entrar no círculo dos nossos afectos, que converse
connosco no decurso de um diálogo, no qual, quaisquer que sejam a sua altura e a sua
beleza, é certo que só o

homem formula as perguntas e as respostas. Deus é aquele a quem dedicamos o nosso


amor, é a presença eficaz donde procede todo o prog ,resso que a pessoa humana alcançará
na ordem dos valores impessoais" (Héritage de mots, héritage Xidées, p. 65).

199

A filosofia de Brunschvieg é um enxerto do princípio criticista no tronco do espiritualismo


francês tradicional. A actividade crítica ou reflexiva que segundo Brunsohvieg, o único a
priori de todo o

mundo humano, é concebida por ele como actividade espontânea e em certa medida
criadora, de acordo com o modelo do impulso vital de Bergson.
O tom da filosofia de Brunschvicg é decididamente optimista: o progresso é a lei do
desenvolvimento da actividade crítico-racional; e todo o futuro da história humana é o
progressivo prevalecer desta actividade.

§ 734. BANFI

As teses fundamentais do criticismo foram incorporadas à filosofia italiana por António


Banfi (1886-1957), que se apropriou também de algumas ekigências da filosofia da vida
(especialmente de Simmel) e, nos últimos tempos, do maryásmo original A principal obra
de Banfi intitula-se Princípios de uma teoria da razão (1926), precedida por uma outra obra
importante, A filosofia e a vida espiritual (1922) e à qual se seguiu Vida da arte (1947) e
numerosos ensaios entre os quais o próprio Banfi recolheu os mais importantes no volume
intitulado O homem coperneano (1950). São ainda numerosos os escritos crítico-históricos
de Banfi dedicados especialmente à filosofia contemporânea (actualmente recolhidos sob o
título Filósofos contemporâneos, 1961).
Banfi partilha com todos os pensadores neo-criticistas a polémica contra o psicologismo, ou
seja,

200

BRUNSCI1VICG

contra a tendência de basear a validade do conhecimento nas condições orgânicas,


psíquicas ou subjectivas que a tornam possível de facto. Um tal psicologismo, nota Banfi,
torna inexplicável "o momento de objectividade universal que caracteriza o conhecimento e
que constitui o princípio da sua validade espiritual e da continuidade do seu processo"
(Princ. di una teoria della ragione, p. 39). Se, de acordo

com o psicologismo, o juízo é uma relação entre duas ideias, entre dois elementos de
consciência, para BanE ele é uma relação objectiva, uma "relação essencial" entre os seus
termos, relação e que pertence

a uma objectividade ideal, independente da origem e da determinação psicológica"; e é


também a afirmação da existência dessa relação (1b., p. 121). Mas o primeiro ponto em que
Banfi se afasta das teses do neo-criticismo alemão é o reconhecimento da problematicidade
do conhecer, que ele considera dependente da problematicidade da relação entre sujeito e
objecto. O neo-criticismo tinha retirado a estes dois termos todo o carácter substancial,
tendo-os considerado como os limites ideais do processo cognitivo; mas, para Banfi, o
sujeito e o objecto, mesmo permanecendo unidos no plano transcendental, apresentam-se,
em qualquer situação cognitiva, numa relação problemática que, apesar de ser esclarecida
por essa situação, é representada desde o princípio por uma situação diferente. Por outro
lado, a razão origina, através deste desenvolvimento problemático, a constituição de um
sistema; mas trata-se de um sistema que não é nem um ponto de partida nem um ponto de
chegada definitivo, mas sim uma "lei

201

do pensamento" em virtude da qual se constitui e transforma toda a ordenação sistemática


da experiência (1b., p. 232).

Apesar de estas teses estarem fundamentalmente de acordo com os princípios do neo-


criticismo, elas conduzem a doutrina de Banfi a resultados diferentes. Em primeiro lugar, a
razão de que ede fada não é somente o pensamento científico mas também e sobretudo o
pensamento filosófico, com a sua mais radical capacidade de crítica e de desenvolvimento;
e enquanto razão filosófica, representa uma actividade não simplesmente teórica, mas
simultaneamente teórica e prática, ou seja, vida. Banfi pode portanto utilizar algumas
exigências de Simmel e reconhecer na vida a determinação própria de uma razão que é ao
mesmo tempo ordem e mutação. "0 conceito de vida, afirma Banfi, exprime a ilimitada
dissolução do estável, do determinado, não numa multiplicidade incoerente mas no
dinamismo idas sínteses que no
seu processo transcendem infinitamente toda a sua determinação enquanto actividade
espontânea e criadora. Tal é pre m~ente o carácter das sínteses fenomenológicas em que se
acentua a estrutura transcendental da experiência" (1b., págs. 585-86). O privilégio da arte
baseia-se no carácter vital da razão; assim se explica, que Banfi tenha dedicado muita da
sua actividade ao conceito ide vida. "A arte, o

mundo diverso e vivo da arte, se não se quer prender à vida interior que se encontra, em
todos os seus aspectos, em profunda tensão... deve ser concebida em função das leis a priori
que constituem
O seu princípio de autonomia estética, e segundo as

202

quais ela organiza, desenvolve e significa, num ilimitado processo de constituição e de


resolução, os conteúdos, relações e valores pelos quais se interessa a sua realidade vivente"
(Vita delParte, pággs.
36-37). A arte tem assim todos os caracteres da vida enquanto razão e da razão enquanto
vida, Banfi atribuía por isso à arte a tarefa de conduzir o homem para uma "razão
enamorada da realidade", ou seja, uma razão que se inserisse na vida e na história como
princípio director e libertador. Neste aspecto, Banfi defende nos seus últimos escritos a

tese típica do marxismo segundo a qual a filosofia deve transformar o mundo em vez de se
limitar a interpretá-lo. O materialismo dialéctico aparece agora a Banfi como o instrumento
conceptual de uma razão concreta e histórica. Com efeito ele elimina do conhecer, em
primeiro lugar, o momento mítico, dogmático ou abstractamente valorativo e

tende por isso a garantir "o desenvolvimento infinito e a articulação aberta do saber". E em
segundo lugar elimina a sabedoria abstracta e reconhece à acção uma função construtiva e
criadora sendo, nesse sentido, um "humanismo histórico", isto é, a realização de uma nova
humanidade de acordo com a

concepção de Copérnico: o mesmo é dizer, de uma humanidade dona de si própria e do seu


mundo (,Uuomo copernicano, 1950, págs. 240 e segs.).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 723. Sobre Liebmann: "Kantstudien", 17, 1910, fascículo de estudos, de vários autores,
que lhe são dedicados.

203

De Helmholtz, adém dos escritos citados: Vortrãge und Reden, 5.a ed., Braunschweig,
1903; Schriften zur Erkenntnisstheorie, ed. por P. Hertz e M. Schlick, Berlim, 1921.

Sobre Helmholtz: L. KONIGSBERGER, H. v. H., 3 vols., Braunschweig, 1902-1903; A.


RIEHL, H. in seine VerhaZtniss zur Kant, Berlim, 1904; J. REINER, H. V. H., Leipzig,
1905; L. ERDMANN, Die philosophische GrundIagen von Ws Wahrnehmungstheorie, em
"Abhandlungen der Berliner Akad.", 1921, classe histór.-filos., n., 1.

De Lange, a História do materíalismo (trad. ital. de A. Treves, 2 vols., Milão, 1932).

Sobre Lange: H. VAMINGER, Hartmann, DOring und Lange, Iserlohn, 1876; E. von
HARTMANN, NeUkantianismus, jgchopenhauerianismus und Hegelianismus in ihrer
Stellung zu den philosophischen Aufgaben der Gegenwart, Berlim, 1877; H. COMN, em
"Preussische Jahrbücher", 1876; S. H. BRAUN, F. A. L. aIs Sozia10konom., Halle, 1881.

De Zeller: Ueber Bedeutung und Aufgabe der Erkenntnisstheorie, Heidelberga, 1862;


Ueber Metaph. aIs Erfahrungwissenschaft, em "Archiv für systematischie Philosophie", 1,
1895; Vortrãge und Abhandlungen, Lieipzig, 1865; Kleine Schriften, 3 vols., Berlim,
1910-11.

Sobre Renouvier: H. MIÉVILLE, La phil. de M. Ren. Setembro de 1908.

§ 724. De Renouvier, além dos ;escritos cit.: Correspondance de R. et Secrétan, Paris, 1910;
La recherche dlune première vérité (fragmentos póstumos), Paris, 1924.

Sobre RenGuvier: H. MIÉVILLE, La phil. de M. Ren. et le Vroblème de Ia connaissance


religicuse, Lausanne,
1902; JANSSENs, Le Néo-criticisme de C. R., Paris,
1904; G. SÉAILLES, La phil. de C. R., Introduction à Pétude du néo-criticisme, Paris,
1905; P11. BRIDEL, C. R. et sa phil., Laus=e, 1905; A. ARNAL, La phil.

204

religieuse de O. R., Paris, 1907; P. ARCHAMBAULT, R., Paris, 1910; E. CASSIRER,


Ueber R. s. Logik, em Die Geisteswissenchaften, 1913, págs. 634 e segs.; O. RAmLIN, Le
6yst~e de R., Paris, 1927.

§ 726. Sobre Hodgson: H. WILDON CARR, em "Mind", N. S., VIIII, 1899; ld., em
"Mind", 1912; J. S. MACKENZIE, em "International Journal of Ethics", 1899; DE
SARLO, em "Riv. Fil.", 1900; L. DAURIAC, em "L'Année Philosophique", 1901. ,Sobre
Adamson: H. JONES, em "Mind", N. S., XI,
1902; G. DAWES HICKS, em "Mind", N. S., XIII, 1904; Id., Critical Realism, em "Studies
in the Phil. of Mind and Nature", Londres, 1938.

De Dawes Hicks: Critical Realism, em "Studies in the Phil. of Mind and Nature", Londres,
1938.

§ 727. Sobre Windelband: H. RiCKERT, W. W., Tübingen, 1910; B. JA~ENKO, W. W.,


Praga, 1941; C. Rosso, Figure e dottrine della filosofia dei valor!, Turim, 1949,

728. Sobre Rickert: RuYsSEN, em "Revue de Mét. et de Mor.", 1893; ALIOTTA, em


"Cultura Fil.",
1909; SPRANGER, em "Logos", 1922; BAGDASAR, Der Begriff des theoretisches
Wertes bei R., Berlim, 1927; BOEHM, em "K@intstudien", 1933; FEDERICI, La fil. dei
valori di H. R., Florença, 1933, (como bibliografia); G. RAMMING, K. Jaspers und H. R.,
Berna, 1946; C. Rosso, Figure e dottrine della filosofia dei valori, Turim, 1949.

§ 730. Sobre Coben: E. CASSIRER, em "Kant-studien" 17, 1913; P. NATORP, H. C. aIs


Mensche, Lehrer und Forscher, Marburgo, 1918; Id., H. C.'s philosophísche Leistung,
Berlim, 1918; J. KLATZKIN, H. U., Berlim, 1919; W. KINKEL, H. CI.s Leben und Werk,
Stuttgart, 1924; T. W. RosMARIN, Religion of Reason. H. CI.s System of Religious
Philos., Nova Iorque, 1936.

205

§ 731. De Natorp, póstumo: Philosophische Systematik, Hamburgo, 1958 (com um estudo


de H. G. Gadamer).

Sobre Natorp: E. CASSIRER, em "Kantstudien", 1925, pãgs. 273 e segs.; H. SCHNEIDER,


Die Einheit aIs Grundprinzip der Philos. P. N.Is, Tübingen, 1936; L. LuGARINI, em
"Rivista di storia della filosofia", 1950, págs. 40 e segs.

§ 732. De Cassirer, além dos escritos citados no texto: Determinismus und Indeterminismus
in der modernen PhysiL-, Gõteborg, 1936; Zur Logik der Kulturwissenschaften, Gõteborg,
1942; The Philos. of E. C., dirigido por P. A. SchiIpp, Evam ton, 1949 (com bibliografia).

§ 733. De Brunschvieg, além dos já citados no texto: Introduction à Ia vie de l'esprit, Paris,
1900; Llidéalisme contemporain, 2.a ed., Paris 1921; Nature et liberté, Paris, 1921; e ainda
artigos no "Bulletin de Ia Soe. franç. de phil.", 1903, 1910, 1913, 1921,
19231 1930 e em "Revue de Métaph. et de Morale",
1908, 1920, 1923, 1924, 1925, 1927 e 1930.

Sobre Brunschvieg: C. CARBONARA, L. B., Nápoles,


1931; J. MESSAUT, La philos. de L. B., Paris, 1938; NI. DESCHoux, La philos. de L. B.,
Paris, 1949 (com bibliografia); E. CENTINEO, La fil. dello spirito di L. B., Palermo, 1950.

§ 734. De Banfi: existe uma edição completa das suas obras, em italiano, pela Ed. Parenti
de Florença.

Sobre Banfi: N. ABBAGNANO, in "Rendiconti della Classe di Seienze Morali, Storiche e


Filologiche" da Ace. Naz. dei Lince!, 1958, p. 385-396; FULVIO PAPI, Il pe-nsiero di A.
B., Florença, 1961 (com bibliografia); PAOLo Rossi, Hegelismo e socialismo nel giovane
B., in "Riv. Critica di storia della filoisofia", 1963, págs. 45-77.

206

VII

O HISTORICISMO
§ 735. A FILOSOFIA E O MUNDO HISTóRICO

Pode-se designar pelo nome de historicismo toda a filosofia que reconheça, como sua tarefa
exclusiva ou fundamental, a determinação da natureza e da validade dos instrumentos do
saber histórico. O historicismo não é, ou pelo menos não pretende ser exclusivamente uma
metafísica ou uma teologia da história, uma sua visão ou interpretação global que pode
obter-se mesmo prescindindo das limitações do saber histórico de que o homem dispõe e
dos meios através dos quais o conseguiu. Se o termo fosse compreendido deste modo, ele
seria inadequado para designar uma corrente específica da filosofia contemporânea porque
se prestaria igualmente a designar quaisquer concepções do mundo histórico, ou como tal
quali-
207

ficadas. O objecto próprio e específico do historicismo como filosofia são os instrumentos


do conhecimento histórico e, portanto, os objectos possíveis desses instrumentos. As
características do historicismo podem então exprimir-se assim:

1.---0 historicismo supõe que os objectos do conhecimento histórico têm um carácter


específico que os distingue dos objectos do conhecimento natural. A diferença entre
história e natureza é portanto óbvia, e desenvolveu-se paralelamente à fase positivista das
ciências naturais.

2.0-0 historicismo supõe que os instrumentos do conhecimento histórico são, pela sua
natureza ou, quanto mais não seja, pela sua modalidade, diferentes dos utilizados pelo
conhecimento natural. Surge aqui, a propósito do conhecimento histórico,

o mesmo problema que surgira ao criticismo kantiano e ao neo-criticismo a propósito do


conhecimento natural: remontar do conhecimento histórico às condições que o tornam
possível, ou seja, que estão na base da sua validade. Por este motivo, o historicismo une-se
às escolas contemporâneas do neo-criticismo, uma das quais (a escola de Baden)
considerava o problema da história nos mesmos termos (§§ 727-28).

Partindo destes dois pressupostos o historicismo preocupou-se, por um lado, em


caracterizar a natureza específica do objecto do conhecimento histórico (ou em geral das
ciências culturais) e, por outro lado, em esclarecer quais os seus instrumentos. A natureza
dos objectos do conhecimento histórico seria a própria individualidade, oposta ao carácter
gené-
208

rico, uniforme e reprodutível dos objectos do conhecimento natural. E o compreender


(Verstehen) foi considerado pelo historicismo como sendo a operação fundamental do
conhecimento histórico, sendo a sua natureza diferentemente explicada por cada
historicista, se bem que todos lhe reconheçam capacidade para constatar e descrever a
individualidade histórica. O historicismo preocupou-se igualmente com a determinação da
natureza e da tarefa de uma filosofia centrada no problema do conhecimento histórico. E,
no âmbito desta filosofia, deu grande importância ao chamado problema dos valores, ou
seja, o problema da relação entre o devir da história e os fins ou os ideais que os homens
procuram realizar, e que constituem as constantes de valoração e

de orientação na variabilidade dos eventos históricos. Introduz-se assim uma teoria dos
valores como parte integrante das filosofias historicistas.

O historicismo apresenta-se com estas características na corrente da filosofia alemã que vai
de Dilthey a Weber e que encontra neste último a sua

expressão mais conseguida; e ainda na rica literatura metodológica que enriquece ou


aperfeiçoa os

resultados por ela conseguidos. A definição que Croce deu da filosofia como "metodologia
da historiografia" presta-se bem a exprimir a natureza do historicismo. Mas a tese de Croce
de que toda a realidade é história e nada mais do que história elimina os

pressupostos fundamentais do historicismo: não se

pode portanto interpretar a filosofia de Croce, que é de facto uma manifestação


contemporânea do idealismo romântico (§ 716), como historicista.

209

§ 736. DILTHEY: A EXPERIÊNCIA VIVIDA E O COMPREENDER

O fundador do historicismo alemão foi Wilhelm Dilthey, nascido em Biebrich, no Reno, a


19 de Novembro de 1883 e que morreu em Siusi a 1 de Outubro de 1911. Professor em
Berlim. (onde foi sucessor de Lotze), contemporâneo dos maiores historiadores alemães
(Mommsen, Burckhardt, Zeller), foi ele mesmo, antes de tudo, um historiador que
trabalhou durante toda a sua vida numa história universal do espírito europeu, publicando
partes dela sob a forma de estudos. Tais estudos versam especialmente sobre a Vida de
Schleiermacher (1867-70); sobre o Renascimento e a Reforma (A intuição da vida no
Renascimento e na Reforma, 1891-1900); sobre os escritos juvenis de Hegel (1905); sobre
o

Romantismo (Experiência vivida e poesia, 1905), e, ainda, sobre estética moderna ( As três
etapas da estética moderna, 1892). Enquanto nestes e em outros

ensaios menores Dilthey continuava a investigação histórica, ia ao mesmo tempo


elaborando o problema do método e dos fundamentos de tal investigação: Introdução às
ciências do espírito (1883); Ideias para uma psicologia descritiva e analítica (1894);
Contribuição para o estudo da individualidade (1896); Estudos sobre os fundamentos das
ciências do espírito (1905); A essência da filosofia (1907); A construção do mundo
histórico nas ciências e no espírito (1910); Os tipos de intuição do mundo (1911). Novos
estudos sobre a construção do mundo histórico nas ciências

e no espírito (póstumo).
210

Os últimos escritos ou, melhor dizendo, os posteriores a 1905, são os mais importantes
visto conterem a expressão mais amadurecida do pensamento de Dflthey.

Já na Introdução às ciências do espírito Dilthey tinha insistido na diversidade do objecto


destas ciências relativamente às ciências naturais. O objecto de tais ciências é, em primeiro
lugar, o homem nas suas relações sociais, ou seja, na sua história. A historicidade essencial
ou constitutiva do homem e, em geral, do mundo humano, é a primeira tese fundamental de
Dilthey. Em segundo lugar, o mundo histórico é constituído por indivíduos que, enquanto
"unidades psicofísicas vivas", são os elementos fundamentais da sociedade: é por isso que o
objectivo das ciências do espírito é "o de reunir o singular e o individual na realidade
histórico-social, de observar como as concordâncias (sociais) agem na formação do
singular". Por isso, no domínio das ciências do espírito, a historiografia tem um carácter
individualizante e tende a ver o universal no particular

e a prescindir do "substracto que constitui em qualquer tempo o elemento comum da


natureza humana", enquanto a psicologia e a antropologia, e em geral todas as ciências
sociais, procuram descobrir a uniformidade do mundo humano. Como já vimos,
Windelband e Rickert (§§ 727-28) insistiram no carácter individualizante das ciências
historiográficas. Em terceiro lugar -e é esta, para Dilthey, a diferença fundamental-o
objecto das ciências do espírito não é externo ao homem mas interno: não é conhecido,
como o objecto natural, através da expe-
211

riência externa, mas sim através da experiência interna, a única pela qual o homem se
apreende a

si mesmo. Dilthey chama Erlebenis a esta experiência, e considera-a como a fonte donde o
mundo externo retira "a sua origem autónoma e o seu material" (Gesammelte Schriften, 1,
p. 9). Erlebenis significa "experiência vivente" ou "vivida" e distingue-se, por exemplo, da
"reflexão" -de Locke porque tem não só o carácter de uma representação mas, também, o
do sentimento e da vontade. Isto constitui a quarta distinção fundamental entre ciência da
natureza e

ciência do espírito: as primeiras têm um carácter exclusivamente teórico; as segundas,


devido ao órgão que lhes é próprio, têm simultaneamente carácter teórico, sentimental e
prático.

No entanto, esta diferença entre os objectos de cada um dos dois grupos de ciências não se
baseia, segundo Dilthey, numa diversidade metafísica ou de substância que lhes seja
inerente. Também não é redutível, como queria Windelband, a uma simples diferença de
método, terá antes a sua raiz numa diversidade de atitude, ou seja, na diversidade de
relações que o homem vem a estabelecer entre si e o objecto de cada um dos dois grupos de
investigação. Nas ciências naturais o homem tenta construir uma totalidade a partir de uma
pluralidade de elementos separados, enquanto que nas ciências do espírito parte da relação
imediata que existe com o objecto. É por isso que o ideal das ciências da natureza é a
conceitualidade e o das ciências do espírito é a

compreensão (Ges. Schr., V, p. 265).

212

O compreender é assim a operação cognitiva fundamental no campo das ciências do


espírito; e o

material ou o ponto de partida desta operação é a

experiência vivida. O objecto do compreender é a

individualidade; mas, como a individualidade não pode ser atingida a não ser através de um
conjunto complexo de actos generalizantes, ela apresenta-se, nas ciências do espírito, sob a
forma de tipo. No Contributo ao estudo da individualidade, Dilthey considera o tipo como
sendo o termo médio entre a uniformidade e o indivíduo, isto é, como um conjunto de
caracteres constantes que têm relações funcionais um com o outro, que variam
correlativamente e que se acompanham constantemente (1b., V, p. 270).
O tipo é, segundo Dilthey, o objecto específico da poesia e, em geral, da arte, que ele
considera, por isso, um "órgão da compreensão da vida" Qb., p.
274); e esta noção serve-lhe para definir a tarefa das ciências do espírito como sendo a "de
unir num sistema a constatação do elemento comum num

certo campo e a individualização que nele se realiza", isto é, compreender a individualidade


a partir da uniformidade em que ela se insere (Ib., p. 272).
O compreender, tendo por objecto os tipos e as suas relações internas funcionais, distingue-
se assim do explicar, que é a operação generalizante própria das ciências naturais e que
consiste em esclarecer as conexões causais entre os objectos externos da experiência
sensível.

Todas as análises de Dilthey, que nos seus escritos revia sistematicamente as suas posições,
a fim de aclarar e determinar (nem sempre com sucesso)

213

o seu pensamento, centram-se sobre a natureza do compreender e da experiência vivida que


é o seu

ponto de partida ou fundamento. Dado que a experiência vivida é, enquanto tal, subjectiva,
íntima e

incomunicável, não permite por si só fundar uma

ciência qualquer; por isso Dilthey dirigiu os seus

esforços no sentido de encontrar as relações entre ela e os elementos que possam tornar
possível e que justifiquem a objectivação e a comunicação dessa experiência vivida. Nos
Estudos sobre os fundamentos das ciências do espírito e na Construção do mundo histórico
Dilthey viu na expressão e no

compreender os elementos que, unidos à experiência vivida, dão a esta última


universalidade, comunicabilidade e objectividade, constituindo portanto, juntamente com
ela, a atitude fundamental das ciências do espírito. Esta atitude toma-se possível pelo facto
de essa experiência vivida estar sempre ligada à compreensão de outras experiências
vividas que nos são dadas sob a forma de expressão, ou seja, de um

"processo em que, de forma externa, reconhecemos algo interno" (Ges. Schrift., VII, p.
309). O homem deixa de estar isolado, a sua vida deixa de estar fechada na intimidade do
seu ou, pois encontra em si mesma uma existência autónoma e um desenvolvimento
próprio. As relações com a natureza externa e com os outros homens pertencem à sua vida
e encontram o seu órgão fundamental no compreender. O compreender é, deste ponto de
vista, o reviver e o reproduzir a experiência doutrem: é assim possível um sentir em
conjunto com os outros e um

214

participar das suas emoções (1b., VII, p. 205). No compreender realiza-se pois a unidade do
sujeito e

do objecto que é característica das ciências do espírito. "0 compreender, afirma Dilthey, é o
reencontro do eu no tu; mas o espírito atinge graus sempre superiores de conexão, e esta
identidade do espírito no eu, no tu, num qualquer sujeito de uma comunidade, em qualquer
sistema de cultura e, finalmente, na totalidade do espírito e na história universal, torna
possível a colaboração das diversas operações nas

ciências do espírito. O sujeito do saber é aqui idêntico ao seu objecto e este é o mesmo em
todos os graus da sua objectivação" (Ib., p. 191).

Ora, segundo Dilthey, o compreender realiza-se através de diversos instrumentos que


constituem as

categorias da razão histórica. Tais categorias não são formas a priori do intelecto;
constituem antes os modos de apreensão do mundo histórico e também as estruturas
fundamentais desse mundo. O seu significado objectivo é, porém, o mais relevante, já que
não pode ser esclarecido senão através de uma análise do mundo histórico.

§ 737. DILTHEY: AS ESTRUTURAS DO MUNDO HISTÓRICO

A primeira categoria do mundo histórico, sobre a qual se baseiam todas as outras, é a vida.
A vida não é, para Dilthey, nem uma noção biológica nem

um conceito metafísico, mas sim a existência do


215

indivíduo singular nas suas relações com os outros

indivíduos. Ela é pois a própria situação do homem no mundo, sempre determinada


espacial e temporalmente, pelo que compreende inclusive todos os produtos da actividade
humana associada e o modo como os indivíduos os executam ou os avaliam. Se a
experiência vivida é a própria vida imediata, o compreender a vida é a sua objectivação; e a
objectivação da vida é designada por Dilthey, em termos

hegelianos, espírito objectivo. Mas o espírito objectivo, que para Hegel era a própria razão
tornada instituição ou sistema social, é para Dilthey apenas o conjunto das manifestações
em que a vida se objectivou no decurso do sou desenvolvimento e que acompanham este
desenvolvimento. Afirma Dilthey: "Tudo sai da actividade espiritual e adquire portanto o
carácter de historicidade, inserindo-se, como produto da história, no próprio mundo
sensível. Desde a distribuição das árvores num parque ou das casas numa estrada, desde os
instrumentos do trabalhador manual até às sentenças de um tribunal, tudo está à nossa volta,
em qualquer altura, surgindo historicamente. O espírito, hoje, introduz-se nas próprias
manifestações da vida e, amanhã, faz a sua

história. Enquanto o tempo passa, nós continuamos rodeados pelas ruínas de Roma, pelas
catedrais, pelos castelos. A história não está separada da vida, não se distingue do presente
pela sua distância temporal" (Ges. Schrilt. VII, p. 148).

A segunda categoria fundamental da razão histórica é a da conexão dinâmica


(Wirkungszusamme-
216

DILTHEY

nhang). A conexão dinâmica distingue-se da conexão causal da natureza na medida em que


"produz valores e realiza fins". Dilthey fala por isso do carácter "teleológico-imanente" da
conexão dinâmica e considera como conexões dinâmicas (ou "estruturais", como também
afirma) os indivíduos, as instituições, a comunidade, a civilização, a época histórica e a

própria totalidade do mundo histórico que é constituída por um número infinito de


conexões estruturais. O traço característico da estrutura é a auto-centralidade: toda a
estrutura tem o seu centro em si própria. "Assim como o indivíduo, afirma Dilthey, também
qualquer sistema cultural, ou qualquer comunidade, tem o seu centro em si mesma. Nele se
ligam num todo único a interpretação da realidade, a valoração e a produção de bens" (1b.,
p. 154). Esta auto-centralidade estabelece entre as parte e o

todo de uma estrutura uma relação que constitui o

seu significado. O significado de uma estrutura qualquer pode por isso ser determinado a
partir dos valores e dos fins em que ela se centra.
Segundo Dilthey, a época histórica possui em alto grau esta característica de auto-
centralidade. "Toda a

época é determinada de uma forma intrínseca pelo sentido da vida, do mundo sentimental,
da elaboração dos valores e das respectivas representações ideais dos fins. É histórico todo
o agir que se insira neste sentido: ele constitui o horizonte da época e

determina o significado de qualquer parte do seu

sistema. É esta a auto-centralidade da época, na qual se resolve o problema do significado e


do sentido

217

que se possam encontrar na história" (Ib., p. 186). Não existe porém um determinismo
rigoroso no que respeita à natureza e ao comportamento dos indivíduos que pertencem a
determinada época histórica; em todas as épocas se podem encontrar forças contrárias às
que constituem a estrutura dominante. Cada época implica uma referência à época
precedente, da qual recebe os efeitos nas suas forças activas e implica, desse modo, o
esforço criador que prepara a época seguinte. "Assim como ela se originou pela
insuficiência da época precedente, do mesmo modo leva consigo os limites, os desacordos e
as dores que preparam a época futura". O florescimento de uma época é breve; e de uma
época a

outra vai-se transmitindo "a sede de uma satisfação total, que nunca pode ser saciada" (Ib.,
p. 187).

A esta sucessão das épocas não preside, segundo Dilthey, nenhum princípio infinito ou
providencial. Dilthey pensa que "toda a forma da vida histórica é finita" e que, portanto,
não é possível o recurso

ao absoluto. Os próprios valores nascem e morrem

na história e, mesmo quando se apresentam como incondicionados, são na realidade


relativos e transitórios (Ges. Schrif., VII, p. 290). O que dá continuidade, à história é
somente "a continuidade da força criadora", ou seja, da actividade humana que produz o
mundo histórico. Mas "a consciência histórica da finitude de todo o fenómeno histórico, de
toda a situação humana e social, a consciência da relatividade de todas as formas de fé, é o
último passo para a libertação do homem" (Ib., p. 290).

218

§ 738. DILTHEY: O CONCEITO DA FILOSOFIA

A historicidade e a relatividade dos fenómenos históricos chocam-se, segundo Dilthey, com


a própria filosofia. A filosofia é historicamente condicionada, do mesmo modo que
qualquer outro produto do homem, e as suas formas históricas são por isso diferentes e
irredutíveis entre si; mas, por outro lado, a sua consideração histórica mostra que existem
em

todas as filosofias "traços de natureza formal" que são essencialmente dois: toda a filosofia
se baseia, em primeiro lugar, na totalidade da consciência e

procura, partindo desta base, esclarecer o mistério do mundo e da vida: e, em segundo


lugar, toda a

filosofia tenta alcançar uma validade universal. Devido à primeira característica, a filosofia
é uma intuição do mundo e apresenta, portanto, uma forma fundamental comum com a
religião e a arte. De facto, em cada momento da nossa existência está implícita uma relação
da nossa vida singular com o

mundo que nos rodeia como uma totalidade intuída. A intuição filosófica do mundo
distingue-se da religiosa pela sua validade universal e da artística por

ser uma força que quer reformar a vida (Das Wesen der Phil., em Ges. Schrift., V, p. 400).
Quando a

intuição do mundo é compreendida conceptualmente, ficando assim definida e dotada de


validade universal, recebe o nome de metafísica. A metafísica pode ter infinitas formas que
diferem entre si por diferenças substanciais ou acidentais. Contudo, podem-se distinguir
alguns tipos fundamentais, que se radicam

219

nas diferenças decisivas das várias intuições do mundo. Estes tipos são três:

O primeiro é o do naturalismo materialista ou positivista (Demócrito, Lucrécio, Epicuro,


Hobbes, os Enciclopedistas, os materialistas modernos, Comte). Esta intuição do mundo
baseia-se no conceito de causa e, portanto, da natureza como conjunto de factos que
constituem uma ordem necessária. Na natureza assim entendida não há lugar para os
conceitos de valor e de fim, e a vida espiritual aparece forçosamente como "uma
interpolação na contextura do mundo físico".

O segundo tipo de intuição filosófica do mundo é o idealismo objectivo (Heraclito,


estóicos, Espinosa, Leibniz, Shaftesbury, Goethe, Schelling, Schleiermacher, Hegel). Esta
intuição do mundo baseia-se na

vida do sentimento e é dominada pelo sentido do valor e significação do mundo. Toda a


realidade aparece como expressão de um princípio interior, sendo por isso entendida como
uma conexão espiritual que actua consciente ou inconscientemente. Este ponto de vista
leva a ver nos fenómenos do mundo manifestações de uma divindade imanente
(Pariteísmo).

O terceiro tipo de intuição do mundo é o do idealismo da liberdade (Platão, filosofia


helenístico-romana, Cícero, especulação cristã, Kant, Fichte, Maine de Biran, etc.). Esta
doutrina interpreta o

mundo em termos de vontade e, portanto, afirma a independência do espírito relativamente


à natureza, isto é, a sua transcendência. Da projecção do espírito sobre o universo originam-
se os conceitos de perso-
220

nalida,de divina, de criação, de soberania da pessoa sobre o curso do mundo.

Cada um destes tipos dá às diferentes produções de uma qualquer personalidade singular


uma unidade intrínseca; e nisto reside a sua força. Cada tipo emprega um facto último de
consciência, uma categoria. O materialismo, a categoria de causa; o idealismo objectivo, a
categoria de valor; o idealismo subjectivo, a categoria de finalidade. Cada uma destas
categorias fundamentais é uma relação entre o

homem e o mundo; mas não é possível uma relação total que resulte do conjunto destas três
categorias. Isto significa que a metafísica é impossível: deverá, com efeito, tentar unir
ilusoriamente tais categorias ou mutilar a nossa relação vivida com o mundo, reduzindo-a a
uma só delas. A metafísica é impossível mesmo no âmbito de cada um dos três tipos
fundamentais, já que não é possível determinar a unidade última da ordem causal
(positivismo), nem o valor incondicionado (idealismo objectivo), nem o fim absoluto
(idealismo subjectivo). Contudo, a última palavra não é a relatividade das intuições do
mundo mas a soberania do espírito frente a todas elas e, ao mesmo tempo, a consciência
positiva de que na sua

diversidade se expressa a plurilateralidade do mundo e de que esta consciência constitui


precisamente a

única realidade do mundo (Ib., p. 406). O carácter mais universal da filosofia consiste na
natureza da compreensão objectiva e do pensamento conceptual, no qual se baseia. O
proceder do pensamento expressa a necessidade da natureza humana de estabelecer
solidamente a posição do homem frente ao

221

mundo, o esforço por romper os laços que prendem a vida às suas condições limitadoras.
Este esforço constitui a função universal da filosofia e a última unidade de todas as suas
manifestações históricas.

§ 739. SIMMEL

Na obra de Dilthey, a metodologia das ciências do espírito foi enriquecida por


determinações e esclarecimentos, os quais constituíam modificações ou

desenvolvimentos substanciais em relação à obra de Weber. Os outros historiadores


alemães, que desenvolveram as suas doutrinas em polémica com Dilthey ou continuando-o,
manifestam a tendência para acentuar aspectos subordinados ou parciais da filosofia de
Dilthey ou para corrigi-lo recorrendo ao absoluto e evidenciando um retorno parcial ao
hegelianismo. Entre os primeiros, Simmel e Spengler desenvolvem o relativismo de Dilthey
tentando fazer dele uma metafísica da vida. Entre os segundos, Troeltsch e Meinecke
procuram conciliar o historicismo com valores absolutos e efectuam um retorno parcial ao
conceito romântico da história. Vimos anteriormente (§§ 727-28) que Windelband e
Rickert, seguindo a mesma orientação, polemizaram contra o relativismo dos valores,
colocando-os a um nível em que não podem ser alternados pelas vicissitudes da história.

George Simmol (1858-1918) é autor de numerosas obras filosóficas e sociológicas: O


problema da filosofia da história (1892); Introdução à ciência moral

222

(1892); Filosofia da moeda (1900); Sociologia (1910); Problemas fundamentais. da


filosofia (1910); Problemas de Sociologia (1917); A intuição da vida (1918); e ainda de
trabalhos históricos sobre l(ant (1903), sobre Schopenhauer e Nietzsche (1916) e sobre a
situação espiritual da época da primeira guerra mundial (A guerra e a decisão espiritual,
1917; O conflito da cultura moderna, 1918).

Se bem que a filosofia de Siminel se oriente para o relativismo, ela começou por defender
algumas exigências da escola de Baden, em primeiro lugar a de reconhecer ao valor ou
dever ser uni status independente das situações históricas. Assim, na Introdução à ciência
moral, Simmel afirma que o

dever ser é uma "categoria natural do pensamento", do mesmo modo que o ser,
reconhecendo depois que ele age e vive somente na consciência empírica do homem e em
relação com o conteúdo psicológico dela. E nos Problemas fundamentais, da filosofia,
juntamente com o sujeito e o objecto, considerados nas suas relações funcionais, Simmel
reconhece a

existência de um terceiro reino de conteúdos ideais independentemente das suas realizações


no sujeito ou no objecto, o reino das ideias platónicas, e ainda um quarto reino que é o das
exigências ideais e do dever ser. No entanto, nada disto impediu Simmel de se orientar para
uma forma de relativismo radical baseada numa metafísica da vida. Simmel foi conduzido a
esta orientação pela exigência de criação das ciências do espírito, especialmente a
historiografia e a sociologia.

223

Por se preocupar com o problema da história, Simmel. é levado a pô-lo em termos análogos
aos utilizados por Kant ao considerar o problema da natureza: trata-se agora de determinar
a possibilidade da história, do mesmo modo que Kant determinou a possibilidade da
natureza. Mas a solução dada por Simmel é completamente diferente da de Kant. A
possibilidade da história não reside em condições a

priori, em formas intelectuais independentes da experiência: as categorias e princípios que


ordenam o

material historiográfico e o constituem numa imagem que não é de modo algum a cópia dos
dados em que se baseia, são eles próprios empíricos e pertencem à experiência psicológica,
pelo que "a psicologia é o a priori da ciência histórica" (Die Probleme der
Geschichtesphilosophie, p. 33). Como condições psicológicas, as categorias da investigação
histórica podem modificar-se, e modificam-se, com o desenvolvimento histórico; e, assim,
acontece que a realidade histórica pode ser interpretada segundo diversas categorias e dar
lugar a diversas representações historiográficas. Não são portanto, no sentido próprio, leis
da realidade histórica. O reagrupamento dos factos segundo um determinado conceito não
vale como lei determinante que supõe a acção de factores objectivos constantes (Ib., p. 91).
Deste ponto de vista, não se pode pôr o problema do significado total da história e toda a
sua solução é reenviada para o domínio da fé (Ib., págs. 72 e segs.). Analogamente, a
sociologia não pode ter a pretensão de esclarecer a natureza e o significado da sociedade
como um todo; ela tem simplesmente como objecto

-9 2 4

as formas de associação assumidas pelas relações entre os indivíduos. E distingue-se das


ciências sociais particulares porque enquanto nestas os fenómenos sociais são considerados
nos seus conteúdos, na sociologia são apenas considerados como modalidade das relações
entre os indivíduos (Soziologie, p. 12).

Num artigo de 1895, ao polemizar contra a noção de verdade absoluta, Simmel chega a
reconhecer o carácter pragmático da própria verdade. Se, de facto, negarmos o valor
absoluto da verdade, não poderemos aplicar-lhe outro critério senão o da sua utilidade, ou
seja, o da sua coerência com a prática, e nesse caso a verdade é o resultado da selecção
biológica e identifica-se com a própria finalidade da espécie humana. Estes conceitos
orientam a sua ulterior actividade para uma metafísica da vida. Deste ponto de vista, a
filosofia não é uma ciência objectiva mas "a reacção do homem à totalidade do sem.

É assim que ela aparece definida nos Problemas, fundamentais da filosofia. O que a impede
de reduzir-se

a uma opinião do sujeito individual é a sua tipologia, ou seja, o facto de ela não exprimir o
indivíduo mas antes a espiritualidade típica: a qual garante uma possibilidade de
comunicação entre os indivíduos que filosofam, mas não a concordância das suas filosofias.
As análises históricas de Simmel tendem precisamente a caracterizar algumas destas
espiritualidades típicas; é assim que ele vê em Schopenhauer e Nietzsche dois tipos opostos
e inconciliáveis de filosofia: a negação do valor da vida e a afirmação do seu valor para
além de qualquer pri-

225

vação ou dor. Mas deste ponto de vista a vida torna-se o verdadeiro e único sujeito da
história e -a
única substância das coisas: uma realidade metafísica. Mais do que para Dilthey, que
considerara a vida apenas enquanto situação do homem no

mundo, esta noção remete talvez para Bergson. Simmel entende a vida no sentido da
duração real de Bergson. (§ 693), ou seja, como continuidade em que o presente inclui o
passado e não como sucessão de estados diferentes ou diferenciáveis. Neste sentido a vida é
o próprio tempo concreto, enquanto que o

tempo é, em si, a forma abstracta da vida (Lebensanschauung, págs. 11-12). A vida


prossegue dentro de formas determinadas mas ultrapassando essas formas na continuidade
do seu processo. Devido a esta continuidade ela será mais-vida (Mehr-Leben), porque se
transcende a si mesma; enquanto que nas formas por ela criadas é mais-que-vida (Mehr-als-
Leben), por se conseguir impor ao seu processo temporal. Logo, este processo inclui a
morte, isto é, o destino inevitável de todas as formas de vida (Ib., págs. 22 e segs.). O
mundo histórico, aquele que é objecto do conhecimento histórico, é uma forma da vida no
sentido muito específico de ser uma emergência de uma estrutura ideal acima da
continuidade do processo vital: uma emergência que reivindica uma certa autonomia
relativamente a esse processo e que entra em relação ideal com outras formas da vida, por
permanecer, tal como essas outras formas, sobreposta à continuidade da vida. A relação e,
simultaneamente, a separação entre a vida e um qualquer elemento

226

ideal (valor, dever ser, forma, mundo histórico) parece ter sido o tema constante da filosofia
de Simmel.

§ 740. SPENGLER

O relativismo histórico, relevando de uma metafísica da história, de Oswald Spengler


(1880-1936), teve um êxito extraordinário. Spengler é autor de uma obra que teve grande
expansão e que suscitou inúmeras discussões: O ocaso do Ocidente. Esboço de uma
morfologia da história do mundo (2 vols.,
1918-22). Esta obra fora precedida de um ensaio sobre Heraclito (1904), no qual o Logos
heraclitiano era interpretado como a lei do destino que rege o

devir do mundo. Os escritos posteriores são principalmente políticos: Prussianismo e


socialismo (1919), Deveres políticos da juventude alemã (1924); Reconstrução do Estado
alemão (1924); O homem e a

técnica (1931); Anos de decisão (1933). Estes escritos defendiam, contra o liberalismo, a
democracia e o capitalismo, um ideal político semelhante ao do nazismo: um estado
autoritário baseado no poder militar e numa classe trabalhadora disciplinada e

privada de influência política. Este ideal era apresentado como sendo o conveniente para a
"Europa" e, em geral, para a "raça branca"; mas o instrumento da sua realização deveria ser
a Alemanha.
Spengler imobiliza numa dualidade metafísica a diferença objectiva que Dilthey tinha
reconhecido existir entre a natureza e a história. Para Dilthey, a natureza e a história eram
dois objectos diferentes

227

estudados por duas ordens de investigação diferentes, para Spengler são duas realidades
metafísicas incomensuráveis. A natureza é o mundo dos produtos do devir, daquilo que foi
produzido pela vida e que se destacou dela; a história é o mundo do devir, da vida que cria
incessantemente novas formas. Na natureza vale a necessidade causal que se manifesta na
uniformidade e na repetição e que pode ser

expressa por fórmulas matemáticas; na história vale a necessidade orgânica que é própria
do que é singular e não-repetitivo. A natureza pode ser apreendida por uma lógica
mecânica; a história só o pode ser por uma ló gica orgânica que encontra o seu

instrumento na experiência vivida (Erlebnis) compreendida como uma penetração intuitiva,


portanto imediata, das formas assumidas pelo devir histórico. A lógica orgânica permite
formular uma "morfologia da história universal", ou seja, uma descrição da "forma" ou
"fisionomia" da unidade que constitui o elemento da história. Esta unidade é a cultura
(Kultur). Toda a cultura é um organismo que, como todos os organismos, nasce, cresce e
morre segundo um ritmo imutável. "Toda a cultura, o seu aparecimento, o seu
desenvolvimento e o seu declínio, diz Spengler, cada um dos seus graus e dos seus
períodos internamente necessários, tem uma duração determinada, sempre igual, tomando
sempre a forma de um símbolo" (Untergang des Abendlandes, I, p. 147). Qualquer cultura
realiza progressivamente tudo aquilo que lhe é possível. Ao completar esta tarefa ela chega
ao seu termo. É por -isso que o culminar de uma cultura, a civilização

228

(Zivilisation), onde ela alcança "os estados extremos e mais refinados" de que já são apenas
capazes os

homens superiores, é a sua conclusão, o seu fim necessário e irrevogável.

Dilthey tinha falado da "auto-centralidade das estruturas históricas", no sentido de que cada
estrutura histórica admite um núcleo central de valores ou ideais que dá significado a todas
as suas manifestações: Spengler, considerando a cultura como um organismo e o organismo
como uma totalidade cujas partes têm necessariamente relações recíprocas, pensa que cada
aspecto da cultura é uma manifestação necessária da própria cultura e que não tem sentido
fora dela. Toda a cultura tem uma forma específica de considerar a natureza, ou melhor,
tem uma "natureza" própria, uma ciência, uma filosofia, uma moral, que lhe estão
indissoluvelmente ligadas do mesmo modo que os membros de um organismo se encontram
ligados ao seu todo. No âmbito da cultura, todas estas manifestações têm um valor
absoluto; fora dela não têm nenhum valor. No entanto, se bem que não exista nenhuma
ciência, filosofia ou moral universal que seja válida para todas as
culturas, toda a ciência, filosofia ou moral é absoluta e necessária no seio da cultura a que
pertence.
O relativismo dos valores, que era um dos resultados da filosofia de Dilthey, transforma-se
em Spengler num absolutismo relativo dos valores: relativo porque é limitado à duração da
cultura em que se integra. Devido à conexão de todos os aspectos de uma cultura e à
necessidade que preside ao seu surgir, ao seu florescer e à sua morte, nenhuma

229

cultura oferece aos homens qualquer possibilidade de escolha, quer no que respeita ao seu
desenvolvimento ou às suas articulações internas, quer no que respeita ao seu ciclo vital.
Uma necessidade inexorável preside a todo o seu desenvolvimento e a todas as suas
vicissitudes; esta necessidade é o destino (Untergang des Abendlandes, 1, págs. 152 e
segs.). Os homens podem certamente tentar opor-se ao destino da cultura a que pertencem;
mas o insucesso inevitável da sua acção em tal sentido equivale a

uma reprovação moral e histórica. A única acção justificada e justificável é a inspirada pelo
reconhecimento do destino e orientada na mesma direcção em

que ele se manifesta: é o próprio sucesso desta acção que a justifica. "Nós, diz Spengler,
não temos a liberdade de realizar isto ou aquilo, mas sim a liberdade de fazer aquilo que é
necessário ou de não fazer nada; e qualquer tarefa que tenha surgido por necessidade da
história irá avante com a ajuda de cada um dos indivíduos ou contra eles. Ducunt fata
volentem, nolentem trahunt" (Ib., 11, p, 630).

É a partir destas bases que Spengler prevê o inevitável ocaso da cultura ocidental. Esta já
atingiu a fase de "civilização", ou seja, da plena maturidade que inicia a decadência e
precede a morte. A crise da moral e da religião, e especialmente a desta última já que "a
essência de todas as civilizações é a religião"; o prevalecer da democracia e do socialismo
que subvertem as relações naturais do poder; a equivalência, própria da democracia, entre o
dinheiro e o poder político, e que significa o

triunfo do dinheiro sobre o espírito; e, numa pa-


230

lavra, o "desabar de todos os valores" de que Nietzsche foi o profeta mas que o Ocidente
mostra já em acto, são os precursores infalíveis da morte da civilização ocidental. O último
acto desta civilização será um retorno ao cesarismo, que constituirá o prelúdio de um
retorno ao estado primitivo (Ib.,
11, cap. V).

A obra de Spengler assinala o predomínio, no

historicismo alemão, das categorias românticas e, sobretudo, da categoria da necessidade.


Spengler substituiu a necessidade do progresso, que era o mito romântico, pela necessidade
do ciclo orgânico da cultura, o conceito da história como previsão infalível Post factum
pelo conceito da história como previsão infalível ante factum. Assim se ilude a exigência
mais radical do historicismo alemão que era

precisamente % de subtrair a história à necessidade e de restituir aos homens a


possibilidade de escolha histórica decisiva e responsável.

§ 741. TROETSCH

A relação entre o historicismo e a religião, ou


melhor, entre o devir histórico e os valores eternos que a religião encarna ou defende, é o
tema da investigação levada a cabo, no âmbito do historicismo, por Troeltsch e Meinecke.

Ernesto Troeltsch (1865-1923) foi sobretudo um historiador do cristianismo e um teólogo.


As suas

obras principais são: O absoluto do cristianismo e

a história da religião (1902); Psicologia e teoria do

231

conhecimento na ciência da religião (1905); O significado do protestantismo para a origem


do mundo moderno (1906); A importância da historicidade de Jesus para a fé (1911); A
doutrina social da Igreja e dos grupos cristãos (1908-12); e ainda numerosos escritos e
artigos importantes.

O ponto de partida de Troeltsch, que o coloca imediatamente no âmbito do historicismo, é o


reconhecimento do carácter histórico da religião e, por isso, do próprio cristianismo.
Troeltsch entrou em polémica com a concepção romântica da religião, principalmente na
sua forma hegeliana, como essência universal de que as religiões históricas seriam a
progressiva realização. As religiões são factos históricos individuais e irredutíveis e o
próprio cristianismo é um fenómeno histórico que sofre "o condicionamento de qualquer
fenómeno histórico individualizado" a par das outras religiões (Die Absolutheit des
Christentums und die Religionsgeschichte, p. 49). Mas um fenómeno histórico não está, por
esse facto, privado de validade; e Troeltsch coloca o problema da validade da religião em
termos de um problema critico no sentido kantiano: trata-se de encontrar, para a religião, o
elemento a priori que a torna possível.

Troeltsch admite assim, na obra Psicologia e teoria do conhecimento na ciência da religião,


um a

priori religioso que pertence à própria razão e cuja existência é demonstrada pelo
sentimento de obrigação que acompanha a religião, assim como pela posição orgânica que
ela ocupa na economia da consciência e pela causalidade autónoma que a re-
232

ligião mostra ter no mundo histórico. Apesar de estar em relação com as outras formas do
processo histórico (economia, política, ciência, arte, etc.) e
sendo em certos aspectos condicionada por essas

formas (Troeltsch não exclui sequer a influência, mostrada por Marx, do processo histórico
sobre a religião, se bem que pense que ela não se manifesta necessariamente), a religião
manifesta uma causalidade autónoma em virtude da qual certos acontecimentos religiosos
(como seja o aparecimento do Cristianismo e da Reforma) mostram ser produtos de
factores especificamente religiosos. Segundo Troeltsch, esta causalidade autónoma da
religião pode ser

interpretada como a manifestação ou a presença do infinito (ou seja, de Deus) no finito, isto
é, na consciência individual do homem (Gesammelte Schriften, II, p. 764). Com efeito,
pode-se considerar o mundo espiritual como sendo independente da causalidade natural e
submetido à acção imediata de Deus: uma

acção que pode ser mais forte ou mais débil, mais ou menos compreensível, mais ou menos
pessoal; mas que justifica a superioridade do Cristianismo o

qual, melhor do que as outras religiões, a reconheceu e afirmou no seu carácter sobrenatural
e transcendente.

A especulação de Troeltsch sobre a religião move-se assim entre dois polos: por um lado o
reconhecimento da historicidade radical ida religião e, por outro, o reconhecimento do seu
fundamento transcendente na base da causalidade autónoma da história religiosa. Esta
polaridade mantém-se nas análises que fez do historicismo, primeiro na obra O his-
233

toricismo e o seu problema (1922), onde se reúnem os ensaios sobre este assunto que
escrevera des&-,
1916, e depois em cinco lições que deveria ter proferido em Inglaterra, mas que não pôde
dar por ter sido surpreendido pela morte, e que foram publicadas postumamente com o
título O historicismo e _q sua superação (1924). O historicismo, para Troeltsch, é a
historização de toda a realidade e de todo o valor, o dissolver-se, no fluxo heraclitiano do
devir, de todas as criações humanas: estado, direito, moral, religião, arte, etc.. Do ponto de
vista historicista, a

categoria histórica fundamental é a da totalidade individual, no sentido da estrutura auto-


centralizada de Dilthey. Totalidades individuais serão, para além dos indivíduos, os povos,
os estados, as classes, as culturas, as correntes espirituais, as religiões, etc. Mas-e aqui
Troeltsch introduz no historicismo a exigência de transcendência dos valores deduzida por
Rickert (§ 728)-a compreensão de uma totalidade individual só é possível se a
relacionarmos com os valores, Com efeito, aquilo que é importante no histórico é a
determinação do que é essencial, o que é único e irrepetível, numa totalidade singular; o
essencial consiste no único valor ou no único significado que é próprio da consciência
dessa totalidade e que, como tal, não pode ser aplicado como medida ou critério de
qualquer outra totalidade. Ora aquilo que é próprio da relação entre o objecto histórico e o
valor que o individualiza é, segundo Troeltsch, a sua conexão com o absoluto (Gesammelte
Schriften, 111, p. 212). O absoluto dos valores manifesta-se na sua relatividade às
totalidades a que

234

pertencem. "A relatividade dos valores, diz Troeltsch, só tem sentido se neste relativo
existe um absoluto vivo e criador. Se assim não acontecesse, tratar-se-ia de uma mera
relatividade e não de uma relatividade dos valores. Esta última pressupõe um

processo vital do Absoluto, através do qual este surge em cada ponto da forma mais
apropriada a

esse ponto" (Ib., 111, p. 212). Por outras palavras, a relatividade, histórica e o absoluto dos
valores coincidem: por se encontrarem nas suas formas históricas relativas, os valores
constituem a presença, na

própria história, de um princípio absoluto que Troeltsch chama, assim como Leibniz,
"consciência universal" e que, ainda de acordo com Leibniz, se manifestaria nas
consciências individuais. Estas relevam, precisamente, de uma identidade ou encontro do
Infinito e do finito; e é por essa razão que podem comunicar entre si. Todo o mónada se
pode entender com os outros mónadas através da transmissão da consciência universal de
que todos eles constituem manifestações (1b., p. 685).

A identidade entre infinito e finito, entre o absoluto dos valores e a relatividade histórica,
não é apenas uma dimensão vertical da história, devendo também encontrar a sua realização
no próprio decorrer da história. Esta realização está confiada, segundo Troeltsch, ao esforço
criador dos homens e, em particular, a uma filosofia da história que se

proponha obter "um critério, um ideal, -uma ideia de uma nova unidade cultural a criar
partindo daquilo que existe no presente, presente este considerado como sendo uma
situação complexa resultante

235

de séculos de história" (Ib., 111, p. 112), Tal realização consiste, portanto, na elaboração de
um ideal de civilização que valha como indicação dos fins que o desenvolvimento histórico
deve atingir e

simultaneamente como critério de avaliação das fases anteriores de tal desenvolvimento.


Esta tarefa, consistindo na determinação de um sistema de valores que servem para avaliar
a história e orientá-la para o futuro, é uma tarefa ética,, em particular, ela diz respeito não
só aos valores culturais aplicáveis a uma cultura ou a um grupo social particular, mas

igualmente aos valores espirituais que condicionam a dignidade e a unidade da


personalidade humana (Der Historismus und seine Uberwindung, págs. 27 e segs.).

§ 742. MEINECICE
A obra de Friedrich Meinecke aproxima-se dia de Troeltsch, tendo-a, de resto, influenciado
na sua última fase, Meinecke (1862-1954) foi principalmente um historiador da Alemanha
moderna, tendo começado por ver na história do Estado Alemão uma

fusão feliz do poder material e dos valores espirituais ou, segundo a sua expressão, do
Kratos e do Ethos. Esta fusão era considerada por ele (sobretudo na obra Cosmopolitismo e
estado nacional, 1908) não apenas como a justificação histórica do estado nacional alemão
mas, também, como o critério da avaliação histórica e da orientação política; critério que
ele considerava ser a maior conquista do romantismo contra o iluminismo. Meinecko via no

236

romantismo, e com razão, o reconhecimento da conciliação e da identidade entre o dever


ser e o ser ou, mais especificamente, entre a moral ideal da dignidade e liberdade do
indivíduo e a realidade política que é uma força ou poder material. A **erÍ&@ que se
seguiu à primeira guerra mundial induziu Meinecke a reconhecer, em principio, a
possibilidade de um conflito entre os dois elementos em cuja unidade tinha acreditado; e na
obra A ideia da razão de estado na história moderna, este conflito é ilustrado por ele em
toda a sua extensão, como tratando-se da própria essência do mundo histórico-político.
"Entre Kratos e Ethos, afirma M-**eíne,cke, entre a conduta guiada pelo impulso da força e
a conduta guiada pela responsabilidade moral, existe, no cume da vida política, uma ponte,
a chamada razão de estado: a consideração daquilo que é conveniente, útil e benéfico,
daquilo que o estado deve fazer para atingir em todas as circunstâncias o mais alto ponto da
sua existência... E é precisamente neste ponto que se notam claramente as terríveis
dificuldades, anteriormente, ocultas, da coexistência do ser e do dever ser, da causalidade e
da idealidade. da natureza e do espírito na vida humana. A razão de estado é um princípio
de conduta que oferece a maior duplicidade: por um lado, releva de uma natureza física, por
outro lado, do espírito. E tem ainda, por assim dizer, um aspecto intermédio no qual aquilo
que pertence à natureza se mistura com aquilo que pertence ao espírito". (Die Ideen der
Staatsràson in der neuren Geschichte, p. 5). Deste ponto de vista, a tarefa do historiador

237

consistirá em considerar, não a identidade daqueles dois princípios, mas a sua polaridade:
isto é, a oposição que os relaciona e através da qual podem encontrar uni equilíbrio que, no
entanto, nunca é estável ou definitivo.

Já aqui se encontrava implícito, o problema da relação entre os -valores e a história;


Meinecke considerou essa questão na obra O nascimento do historicismo (1936), que se
destinava a mostrar a formação histórica do historicismo a partir da dissolução da filosofia
do direito natural. Esta filosofia constituía, segundo Meinecke, " uma firme estrela polar no
meio das tempestades de toda a história universal", visto que considerava a razão humana
como eterna e intemporal e se destinava precisamente a guiar o homem na enorme
variedade das vivências históricas. O reconhecimento da individualidade de todos os
fenómenos históricos, efectuado pelo historicismo, individualizou a própria razão, ou
melhor, transformou-a numa força histórica que assume diferentes fisionomias em
diferentes épocas e que por isso conduz a uma radical relatividade dos valores. Meinecke
julga subtrair-se a esta relatividade retomando Goethe "que concebeu a missão individual e,
do ponto de vista humano, relativo, da própria vida, como desejada por Deus e, portanto,
absoluta" e que aconselhou a não perder, quando se admitem os condicionalismos
históricos, "a obscura nascente de forças que é constituída pela fé nos valores últimos
absolutos e numa fonte última, igualmente absoluta, de toda a vida" (Die Entstehung des
Historismus, 11, p. 625). E, além de Goethe,

238

Meinecke recorre a Ranke sintetizando assim as suas posições: "um Deus superior ao
mundo que, além de ser criado por ele, é percorrido pelo seu espírito e por isso lhe é afim, e
também ao próprio tempo, igualmente imperfeito em tantos aspectos" (Ib., 11, p. 645). O
pressuposto romântico da identidade entre finito e infinito é assim acentuado por Meinecke,
mas limitado no que respeita ao infinito, no sentido de que este transcende o finito, isto é, a
história: um sentido que, no entanto, o romantismo tinha conhecido na sua segunda fase e
que constitui, como se viu, o fundamento do retorno romântico à tradição (§ 613).

§ 743. WEBER: INDIVIDUALIDADE, SIGNIFICADO, VALOR

Em 1936, como a publicação do Nascimento do historicismo de Meinecke, pode


considerar-se findo o ciclo histórico do historicismo alemão, entendido como corrente ou
manifestação da filosofia contemporânea. Mas a sua influência sobre a metodologia
historiográfica, sobre a sociologia, a ética e, em geral, todo o domínio das chamadas
ciências do espírito, continua ainda depois daquela data, sobretudo através da obra de
Weber; é por isso que esta é aqui examinada em último lugar apesar de ser
cronologicamente anterior à de alguns dos filósofos já referidos.

Max Weber (1864-1920) foi historiador, economista e político; e os problemas


metodológicos fo-
239

ram-lhe sugeridos precisamente por esta actividade. Os seus escritos fundamentais são os
seguintes: Sobre a história das sociedades mercantis na Idade Média (1889); O significado
da história agrária romana para o direito público e privado (1891); As relações entre os
trabalhadores agrários na Alemanha oriental (1892); A ética protestante e o espírito do
capitalismo (1904-1905); As seitas protestantes e o espírito do capitalismo (1906) As
relações agrárias na

Antiguidade (1909) e Economia e sociedade (póstuma, 1922). Para a metodologia das


ciências histórico-sociais são muito importantes os ensaios: Roscher e Knies e o problema
lógico da economia político-histórica (1903-06); A objectividade dos conhecimentos das
ciências sociais e da política social (1904); Estudos críticos sobre a lógica das ciências da
cultura (1906); Sobre algumas categorias do estudo sociológico (1913); O significado da
avaliação das ciências sociológicas e económicas (1917) e A ciência como vocação (1919).
No campo da economia e da historiografia, a

posição de Weber caracteriza-se: pela critica da escola histórica da economia que via em
todo o sr, tema económico a manifestação do "espírito de um povo"; pela crítica do
materialismo histórico que, segundo Weber, esquematiza de forma dogmática as relações
entre as formas de produção e de trabalho e as outras manifestações de vida em sociedade,
isto quando tais relações, em sua opinião, se iriam esclarecendo progressivamente, de
acordo com os aspectos particulares da sua evolução, e pelo reconhecimento da influência
que podem ter as for-
240

mas culturais, a religião por exemplo, sobre a estrutura económica. Este último ponto é
esclarecido na obra sobre A ética protestante e o espírito do capitalismo, na qual Weber
mostra como a ética calvinista foi favorável ao capitalismo, à procura do lucro como fim.
em si mesmo, independentemente da sua utilidade, e à consciência do dever profissional
como dever moral.

No campo -da investigação metodológica, Weber aceita álbuns dos resultados fundamentais
do historicismo alemão, principalmente o reconhecimento do carácter individual do objecto
das ciências histórico-sociais. "Um ponto de partida de grande interesse nas ciências
sociais, afirma, é sem dúvida a configuração real, portanto individual, dia vida social que
nos rodeia, se é verdade que, considerada como um

todo, ela é universal, não é menos verdade que ela só pode ser atingida individualmente e a
partir de outros níveis sociais de cultura, os quais, por sua

vez, também só podem ser atingidos individualmente" (Gesammelte Azifsãtze zur


Wissenschaftslehre, p. 177). Mas a individualidade do objecto histórico é, para Weber, o
resultado da opção individualizante que se encontra na origem da investigação histórico-
social. A individualidade não pertence nem à substância nem à estrutura do objecto em si;
ela é o resultado da escolha do objecto feita pela própria investigação, isolando-o num
conjunto de outros objectos, considerados relativamente "insignificantes". Ora aquilo que
dá significado a um objecto e que o individualiza ao propô-lo como tema de investigação, é
o valor que &e é atribuído. Weber

241

aceita aqui a tese de Wckert segundo a qual a

historicidade de um objecto é constituída pela sua relação com o valor (§ 728). Mas corrige
esta tese ao afirmar que a relação entre objecto e valor depende do investigador; não se
trata, como pretendia Rickert, de uma conexão necessária de uni certo objecto com
um certo valor transcendente. Isto implica a relatividade dos critérios de escolha do
conhecimento histórico e ainda a **imilateí-alidade da pesquisa histórica que, conforme se
orienta para um ou outro

valor, assim vai delimitando o seu campo. Deste ponto de vista, toda a disciplina constitui o
seu próprio objecto, orientando as escolhas que efectua para os

valores que correspondem aos seus interesses. É por isso que "são as ligações conceptuais
do problema que se encontram na base do campo de trabalho das ciências, e não as
conexões objectivas entre as coisas: quando se estuda um novo problema usando novos
métodos, e desse modo se descobrem verdades que dão lugar a novos pontos de vista
significantes, surge uma 'ciência'" (Ges. Aufsülre z. Wiss., p. 166). O conhecimento
histórico é portanto assistemático, no sentido de que não pode dar lugar a

um sistema total **def"tivo das ciências da cultura. E a própria cultura não constitui um
único campo de investigação mas sim um conjunto de campos autónomos cuja coordenação
depende do diferente desenvolvimento de cada um desses campos.

Tudo isto significa que o conhecimento da realidade cultural é sempre um conhecimento


desde um ponto de vista particular. "Seria ias ideias de valor do próprio investigador, diz
Weber, não haveria ne-
242

nhum princípio para a escolha da matéria e nenhum conhecimento significativo do real na


sua individualidade; e como sem a fé do investigador no significado de qualquer conteúdo
cultural perde imediatamente sentido toda a tentativa de conhecimento da realidade
individual, também a direcção em que se manifesta a sua fé pessoal, ou seja, a
refracção ,dos valores no espelho da sua alma, indicará a direcção do seu trabalho" (Ib., p.
181). É da escolha subjectiva dos valores que depende, portanto, a

decisão sobre os objectos que têm ou não -valor, quer dizer, daquilo que é ou não
significativo, daquilo que é " importante" ou não. A investigação não pode ser iniciada e
conduzida sem este factor decisivo que é a escolha do investigador, mas por outro lado,
segundo Weber, este factor não torna subjectiva ou arbitrária toda a investigação, não limita
a sua validade ao investigador que a efectuou. Com efeito, qualquer que seja o valor que
guiou o

trabalho do investigador, os resultados da sua pesquisa devem ter uma validade objectiva,
isto é, devem ser válidas "para todos quantos queiram a

verdade", e tal validade pode ser conseguida devido à dIsciplina própria da investigação,
disciplina que, segundo Weber, é de natureza causal.

§ 744. WEBER: A POSSIBILIDADE OBJECTIVA

O recurso à explicação causal, considerada própria não só das ciências naturais como
também das historico-sociais, é o ponto fundamental em que

243

Weber se distancia da tradição do historicismo alemão. Este último considerava que a


explicação causal era aplicável apenas às ciências da natureza; por esta razão, contrapunha-
lhe, como procedimento próPrio das ciências do espírito, a compreensão imediata, intuitiva
e sentimental do objecto individual. Weber abandona esta antítese e considera que o próprio
"compreender", longe de ser um procedimento intuitivo e emotivo, dá origem a unia
interpretação que é constituída essencialmente por uma explicação causal. "Para ia história,
em particular, ,afirma Weber, a forma da explicação causal deriva do seu postulado como
"interprete inteligente. A interpreta-ção do histórico não se !dirige, no entanto, à nossa
capacidade de subordinar os "factos", tidos como exemplares, a conceitos de espécie e a
fórmulas, mas sim à nossa confiança na tarefa, que se nos apresenta quotidianamente, de
'compreender' o agir humano individual nos seus motivos" (1b., p. 136). A explicação
causal apresenta-se portanto com um carácter próprio no domínio das ciências histórico-
sociais. Em primeiro lugar, trata-se de escolher. entre a infinidade de factores que
determinam um objecto histórico, uma série finita desses factores que constitua um campo
específico de investigação;

e a possibilidade de tal escolha baseia-se uma vez mais nos valores que orientam essa
mesma investigação. Em segundo lugar, trata-se de determinar, **In,

enti*c os elementos de uma série causal assim individualizada, um esquema de relações que
seja susceptível de verificação ou de controle. A esta segunda exigência corresponde o uso
da noção de pos-
244

sibilidade objectiva, que Weber considera fundamental na explicação histórica.

O recurso a esta noção faz-se isolando num processo histórico uma ou mais componentes
causais objectivas, supondo que essas componentes se modificam e verificando-se se, com
tal modificação, o

processo histórico se teria mantido igual àquele que nós conhecemos ou, se assim não
acontecesse, qual seria a nova forma que revestiria (1b., p. 273). Como ilustração deste
modo de proceder, Weber apresenta um exemplo tirado da Geschichte des Altertums de
Edward. Mayer, sobre o significado histórico da batalha de Maratona. Aqueda batalha foi a
decisão entre duas possibilidades: de um lado, o prevalecimento de -uma cultura
religioso-,teocrática, de outro a vitória do mundo espiritual helénico, de cujos valores
culturais sornos, ainda hoje, herdeiros. Em Maratona prevaleceu esta segunda
possibilidade; foi esta a condição preliminar de um curso de acontecimentos bastante
importantes na história universal. Ora o nosso interesse histórico por aquele acontecimento
baseia-se precisamente, segundo Weber, no

papel decisivo que ele desempenhou relativamente às duas possibilidades que se


defrontavam. "Sem a valoração de tais possibilidades, acrescenta, e dos

insubstituíveis valores culturais entre os quais se verificou aquela decisão, seria impossível
determinar o significado; e seria portanto impossível compreender porque razão não
consideramos esse acontecimento como sendo equivalente a uma escaramuça

245
entre duas tribos cafres ou indianas" (Ges. Aufsã!ze z. Wiss., p. 274). Por outros termos, a
explicação causal não consiste, segundo Weber, em reconhecer um acontecimento como
sendo necessariamente determinado pela série causal (que é, no entanto, necessária) dos
acontecimentos precedentes, mas sim em

isolar, numa situação histórica determinada, uni

campo de possibilidades,- em mostrar as condições que tornaram possível, naquela


situação, a decisão

a favor de uma determinada possibilidade; e, finalmente, em esclarecer o significado de tal


decisão mediante o confronto com as outras possibilidades que constituíam, do mesmo
modo, a situação histórica considerada. Todo este esquema se move, portanto, sobre a
noção de possibilidade ou, mais especificamente, de possibilidade objectiva. Webor adverte
que a categoria da possibilidade não deve ser entendida numa forma negativa, isto é,
enquanto expressão de uma ignorância ou de um saber imperfeito (corno ao afirmar "é
possível que o comboio já tenha passado", em que não se sabe se o comboio já passou ou
não), mas no seu sentido positivo, ou

seja, enquanto designa uma antecipação, previsão ou prospectiva com uma base real
controlável.

Mas para que a possibilidade possa ser reconhecida, neste sentido, como sendo objectiva,
ela deverá ser, por um lado, baseada em "factos" que possam ser averiguados e que
pertençam à situação histórica considerada, e.. por outro lado, deverá estar de acordo com
**"ro,,ras empíricas ,crais", ou

246

com um determinado saber nomológico. No caso

da batalha de Maratona, por exemplo, as duas possibilidades que se defrontam não só


deviam resultar de suficientes dados documentais como, também, deveriam estar-mesmo a
possibilidade que foi posta de parte-de acordo com as regras gerais da experiência e, em
primeiro lugar, com as que regem a motivação do comportamento humano. O saber
nomológico não é, portanto, excluído do conhecimento histórico, mas antes utilizado
instrumentalmente, como critério para a autenticação das possibilidades objectivas. E para
satisfazer a esta tarefa, ele deverá constituir conceitos de tipos ideais, ou seja, "quadros
conceptuais uniformes" que acentuem ou levem ao extremo a uniformidade que se pode
encontrar num grande número de fenómenos empíricos, podendo consequentemente servir
como termos de confronto a fim de atingir o significado dos próprios fenómenos (1b.,p.
194). São, segundo Weber, conceitos típico-ideais de objectos históricos particulares,
como, por exemplo, o cristianismo, o capitalismo, etc., ou de espécies de objectos tais como
o conceito de Estado, de Igreja ou os conceitos de

economia política que nunca são realizados na sua

"pureza ideal" na realidade empírica, mas que servem como meio para a entender e para
explicar os

seus condicionamentos. De qualquer modo, os conceitos típicos ideais constituem


uniformidades-limite que são indispensáveis à investigação histórica para a determinação
da individualidade dos seus objectos.

247

§ 745. WEBER. A SOCIOLOGIA INTERPRETATIVA

A investigação histórica, devido ao seu carácter ,individualizante, não pode deixar, segundo
Weber, de utilizar conceitos universais ou gerais que são próprios das ciências que têm
como fim a formulação de leis. Entre as ciências nomológicas consideradas como
instrumentos da indagação historiográfica, Weber considerou principalmente a sociologia,
podendo considerar-se como um dos resultados mais importantes da sua obra a
determinação da natureza e :da tarefa da sociologia.

Dilthey tinha feito notar que ia psicologia constituía a ferramenta principal da


historiografia: o

compreender histórico estava para ele, intrinsecamente ligado à experiência vivida, isto é, à
penetração puramente interior do espírito pelo próprio espírito. A posição de Weber é, neste
ponto, oposta à de Dilthey: o compreender histórico deve realizar-se sobre a dimensão
objectiva do mundo espiritual o

não sobre a sua dimensão subjectiva. Ora esta dimensão objectiva é o objecto específico da
sociologia,
* qual -se torna deste modo, e em lugar da psicologia,
* ciência auxiliar fundamental da historiografia. No entanto, a sociologia não é apenas isto:
ela é primordialmente uma ciência autónoma que encontra o seu objecto específico na
uniformidade existente nas acções humanas, isto é, na atitude (Verhalten). "A atitude
humana, afirma Weber, apresenta conexão e regularidade de desenvolvimento
relativamente a qualquer devir. Aquilo que é próprio, pelo menos

248

MAX WEBER

em sentido lato, da **qMMhumana são as conexões e regularidades cujo **iaMMe


ol@vimento pode ser interpretado pelo M- (1b., p. 429). A sociologia tem em
comum com historiografia a sua forma de proceder, ou seja, a "compreensão interpretativa;
mas tal processo, na -.**ioiti(sir*Igia, aplica-se às uniformidades que poderneizucm =se no
agir humano devido a este ser um agir social, "u seja, referindo-se constantemente ao agir
dos sintros. Portanto, enquanto objecto específico da <**oiõi(ologia, a atitude humana
caracteriza-se do seguinte modo: 1) é intencionalmente referida por parte iólaquele que age,
às atitudes dos outros; 2) é @.<;,wnére determinada por essa referência; 3) pode ser
w4%Ikada partindo apenas do sentido de tal referência W., p. 429). Considerando a
distinção estabelecida Or4 Tõnnies (Comunidade e sociedade, 1887) entre -4
"comunidade", na qual as irelações humanas estão kitrínseca e orgânicamente integradas, e
a na qual ias rolações são externas ou impessoais, MÉber distingue o ag,;r em
comunidade que é id~elo às atitudes dos outros homens segundo um *44reio que está nas
intenções daquele que age, e o agir >m sociedade no qtial os

actos são rereridos a iessi sentido próprio a unia

ordem já estabelecida. Em -imbos os casos essa referência aos actos alheios *welui uma
expectativa de uma determinada atitude iossível de outros inctivíduos e orienta-se pelo
@w.IMhlo das diversas possibilidades que é necessário ter em conta como possíveis
consequências do seu IUúe U@o agir. "Um fundamento significativo e "~ ~-Mite
importante do agir, afinna Weber, é a maior ou menor probabilidade,

Z196

expressa por um juizo de possibilidade objectiva, de que tal expectativa tenha razão de ser"
(Ges. Aufsãtze z. Wiss., p. 441). Por outras palavras, é possível compreender e explicar
uma atitude individual a partir da possibilidade objectiva de que a

expectativa de quem a assume !tenha um eco nas atitudes dos outros. Podemos
compreender, por exemplo, a atitude de um batoteiro partindo apenas da possibilidade
objectiva -de que os outros participantes no jogo observem, de acordo com a expectativa do
batoteiro, as regras do jogo. É deste modo que a noção de possibilidade objectiva que
Weber tinha considerado como fundamento do compreender historiográfico, acaba por
assumir uma função dominante na própria "sociologia interpretativa". Unia atitude que se
baseia no cálculo (mesmo subjectivo) das possibilidades oferecidas pelas atitudes de
outrem é, segundo Weber, uma atitude "racional", ou seja, que atinge os seus fins. Com
efeito, esta atitude "orienta-se exclusivamente a partir dos meios que se considera
(subjectivamente) adequados aos fins concebidos (subjectivamente) de forma precisa" (Ib.,
p. 428).

No primeiro capítulo de Economia e Sociedade, no qual Weber expôs sistematicamente os


conceitos fundamentais da sua sociologia, estão diferenciados quatro tipos do agir social: 1)
a atitude racional relativamente aos fins que é determinada pela expectativa. da posição dos
objectos do mundo externo e da atitude dos outros homens; expectativa essa que vale como
condição ou meio de alcance dos fins pretendidos; 2) a atitude racional relativamente

250

aos vetores que é condicionada pela crença no valor ilimitado le um comportamento.


independentemente das suas consequências; 3) a atitude afectiva, determinada pelas
emoções; e 4) a atitude tradicional que é determinada pelos hábitos adquiridos (Wirtschaft
und Gesellschaft, 1, 1, § 2). Estas atitudes, faz notar Weber, constituem no entanto "tipos
conceptualmente puros" que se encontram mais ou menos combinados na realidade social,
mas que são indispensáveis para a interpretar. Por outro lado, do ponto de vista da
racionalidade relativamente ao fim, a racionalidade relativa dos valores encontra-se num
outro plano: "e isto porque ela se preocupa tanto menos com as consequências do agir
quanto mais assumir como incondicionado o valor em si (a intenção pura, a beleza, o bem
absoluto, o respeito absoluto dos deveres)". Por outro lado, também a

absoluta racionalidade relativamente aos fins é apenas um caso limite, uma construção
ideal.

§ 746. WEBER: DESCRIÇÃO E VALORAÇÃO

A intenção fundamental das indagações metodológicas de Weber foi a de encontrar as


bases duma autonomia das ciências da cultura dum modo correspondente, a-pesar de não
ser análogo, ao modo como tal autonomia fora já atribuída às ciências da natureza. Como
vimos, Weber não aceitou a antítese radical que outros historiadores (a começar por
Dilthey) tinham estabelecido entre os dois grupos

251

de ciências: reconheceu a explicação causal como

própria de ambos os grupos. Por outro lado, esclareceu o carácter específico que a
explicação causal assume no domínio idas ciências da cultura; e serviu-se do conceito de
possibilidade objectiva como base para o esclarecimento ;deste problema. Mas apesar da
diversidade específica dos instrumentos de que dispõem, os dois grupos de ciências têm em

comum, segundo Weber, a sua tarefa fundamental: a descrição dos fenómenos. Se bem que
Weber entenda o termo "descrição" no sentido restrito de simples registo dos factos,
polemizando contra a validade de qualquer outro sentido desse termo e preferindo ater-se a
palavras como "constatação" e similares, é do ideal da descrição (no sentido mais geral que
serviu às ciências da natureza, do século XVII até aos primeiros decénios do nosso século,
para se distinguir da velha ciência aristotélica, libertar-se das suas sobrevivências e
esclarecer quais as suas efectivas possibilidades de investigação) que Weber se utiliza para
atingir os mesmos fins no campo das ciências da cultura. Mas se no campo das ciências da
natureza a "descrição" se opunha à "explicação" ou "hipótese" metafísica, no das ciências
da cultura a "descrição" opõe-se à "valoração".

Pode-se encontrar esta oposição em toda a obra de Weber, mas onde ela se encontra melhor
expressa é num ensaio de 1917 sobre a "avalorabilidade" (Wertfreiheit) da sociologia e da
economia. Estas ciências, na opinião de Weber, podem exclusivamente constatar ou
descrever a realidade empírica e for-
252

necer respostas a questões deste género: "como se


desenvolve um determinado facto concreto, qual a

razão de o seu conteúdo concreto surgir com uma

dada configuração; se é possível estabelecer uma

regra do devir dos conteúdos, de tal modo que a um

deles se sucede um outro; qual a probabilidade de aplicação dessa regra". Fora do campo -
dessas ciências, o juízo valorativo propor-se-á questões de um

outro género: "0 que se deve fazer numa dada situação concreta e de que ponto de vista é
que essa situação pode ser considerada ou não satisfatória" (Gesammelte Aufsãtze zur
Wissenschftslehre, p. 495). É óbvio que Weber não nega que a ciência possa e

deva ocupar-se dos valores e das valorações, que são factos. do mesmo modo que quaisquer
outros; mas observa que "quando, aquilo que vale normativamente se torna objecto duma
investigação empírica perde, como objecto, o carácter normativo: é considerado como
existente, não como válido" (1b., p. 517). O que, neste caso, a ciência assume
legitimamente como objecto de investigação não é a validade dos valores mas a sua
realização: ou melhor os meios para os realizar e os conflitos a que tal realização dá
origem. Por outros termos, e segundo uma fórmula que Weber já tinha ilustrado no ensaio
sobre a objectividade das ciências sociais, a consideração científica diz respeito à técnica
dos meios e não à valoração dos fins (1b., págs. 149 e segs.). A valoração é uma tomada de
posição prática, uma

decisão que respeita a cada homem e à qual nenhum homem se pode subtrair, mas que não
é satisfeita pela tarefa descritiva da ciência. Mesmo questões

253

relativamente simples como, por exemplo, a da medida em que um fim pode legitimar os
meios indispensáveis, a de ter-se ou não em conta as suas possíveis consequências
indesejáveis ou o poder-se diminuir os conflitos entre fins diferentes -todas elas são objecto
de opção ou -de compromisso, não de ciência. "A nossa ciência, diz Weber, que é
rigorosamente empírica, não pode pretender tirar ao

indivíduo esta possibilidade de opção e não pode sequer suscitar a aparência de ser capaz
de o fazer".

No entanto, faz parte do trabalho descritivo da

ciência a consideração dos conflitos a que pode conduzir a opção dos fins e que são
conflitos entre valores ou entre esferas de valores. Weber acentua a importância destes
conflitos. "Entre os valores Oxiste, em última análise (e em quaisquer condições), não uma
simples alternativa mas sim uma luta mortal, sem possibilidades de conciliação como, por
exemplo, entre "Deus" e o "Demónio". Entre eles não é possível nenhuma conciliação ou
compromisso; e não é possível, bem entendido, devido àquilo que cada um deles significa"
(Ib., p. 493). A relatividade dos valores, entendida como conexão orgânica entre os valores
e a sua época ou o seu ambiente cultural, é excluída, segundo Weber, pela presença
inevitável do conflito entre os valores: conflito que coloca o

homem, como afirmava Platão referindo-se à alma, na situação de dever escolher o seu
próprio destino, ou seja, "o sentido do seu agir e do seu sem.

Este conflito manifesta-se sobretudo no campo da ética: como conflito entre a ética da
intenção ou do "querer puro" e a ética da responsabilidade

254

que julga a acção partindo das consequências previstas como possíveis ou como prováveis.
As regras de conduta de ambas as éticas manifestam-se imediatamente em contradição,
contradição essa que não pode ser resolvida pela própria ética. Ã ética da responsabilidade
interessa essencialmente considerar a relação entre meios e fins e a situação, de facto em
que deve ser explicada. a acção humana-, mas

mesmo essa não nos oferece um meio de orientação na luta política, na qual existe uma
inesgotável contradição entre valores. Concluindo, do mesmo modo que as ciências
naturais nos dizem o que devemos fazer se quisermos dominar tecnicamente a vida, sem, no
entanto, nos dizerem se tal domínio tem algum sentido, também as ciências da cultura nos
permitem compreender os fenómenos políticos, artísticos, literários e sociais a partir das
condições em

que surgiram, sem nos -dizerem, no entanto, se tais fenómenos têm ou tiveram algum valor
ou mesmo

se valerá a pena tentarmos conhecê-lo. Neste sentido, a própria ciência é uma "vocação"
(Beruf): a vocação da clareza, isto é, do conhecimento que o homem pode ter dos fins das
suas próprias acções e dos meios para os realizar (Ib., p. 592).

§ 747. TOYNBEE

Está relacionado com Spengler, directa e polemicamente, o historiador inglês Arnold J.


Toynbee (nascido em Londres em 1889), autor de uma grande obra em 10 volumes
intitulada Um esiudo da his-
255

toria, a génese da civilização (1934-54), e de dois volumes, A civilização posta à prova


(1949) e O mundo e o ocidente (1953).

Toynbee concorda com Spengler ao assumir como unidade mínima da indagação histórica a
civilização (ou cultura), e ao considerar esta indagação como tendo por fim a formulação de
uma morfologia da civilização, isto é, uma ciência das "leis" que presidem ao seu
desenvolvimento; mas opõe-se polemicamente a Spengler quando efectua esta indagação,
como ele próprio declarara, recorrendo ao método empírico da tradição inglesa e não ao
método apriorístico da tradição alemã (Civilization ou Trial, p. 10). Por conseguinte, a
civilização não é para Toynbee um organismo sobreposto às necessidades do determinismo
biológico mas sim uma totalidade de relações não-necessárias entre indivíduos que
encontram nela uma forma de comunicarem, mas que conservam a sua capacidade de
iniciativa e um certo grau de liberdade. Deste ponto de vista, é possível uma comparação
entre as civilizações, as quais não são (como pensava Spengler) mundos absolutos fechados
sobre si mesmo. A ciência empírica da história consiste precisamente em comparar as
diferentes civilizações e em encontrar no desenvolvimento de cada uma delas os traços que
lhes sejam comuns

ou uniformes: que, por um lado, permitam a compreensão das conexões causais que se
verificam no âmbito de uma mesma civilização ou na relação entre diferentes civilizações e
que, por outro lado, consistam na formulação, a partir destas conexões, de urna previsão
provável sobre o desenvolvimento

256

de uma determinada civilização. Tudo isto, segundo Toynbee, não permite que se reduza o
desenvolvimento das diferentes civilizações a um único esquema, já que tais civilizações
conservam linhas de desenvolvimento independentes e processos evolutivos diversos (A
study of History, 1, págs. 149 e segs.).

Deste ponto de vista não se podem encontrar factores que determinem, necessariamente a
génese e o desenvolvimento das civilizações. Os dois factores a que mais frequentemente se
atribui este poder determinante, o ambiente físico-social e a raça, são ambos criticados por
Toynbee ao afirmar que se

tais factores fossem rigorosamente determinantes, a

sua acção deveria ser sempre uniforme e conduziria sempre aos mesmos efeitos; o que na
realidade não acontece. Por outro lado, isto não significa que a acção dos homens na
história seja independente de quaisquer condições que a limitem, ou seja, absolutamente
livre; Toynbee elabora sobre este assunto a sua mais famosa doutrina, a da provocação e

resposta. Uma civilização surge, diz Toynbee, quando um grupo de homens consegue
fornecer uma resposta eficaz a uma provocação do ambiente físico e

do ambiente social que o rodeia. Todo o ambiente físico-social, toda a situação em que os
homens se encontrem, coloca-os perante uma provocação; mas a natureza da resposta que
elos derem a tal provocação não pode ser previsível de forma rigorosa, dependendo por isso
dos próprios homens (A Study of History, 1, págs. 271 e segs.). O reconhecimento de um
certo grau de liberdade no agir humano é indispensável, segundo Toynbee, para
compreender

257
a diferente génese e o diferente desenvolvimento que tiveram as civilizações humanas
quando se encontraram perante condições objectivas uniformes e constantes-Mas, por outro
lado, este grau de liberdade não é infinito: a situação em que os homens se encontram actua
como limite condicionante. Podemos dizer, para exprimir o ponto de vista de Toynbee, que
a

provocação consiste sempre num problema ao qual os homens dão uma solução: o
problema condiciona a solução mas admite, em si mesmo, várias soluções, pertencendo aos
homens a opção entre estas diferentes soluções. Isto explica a diversidade recíproca das
civilizações e, ao mesmo tempo, a uniformidade que elas apresentam e que as torna
confrontáveis.

É sobre esta base que Toynbee nega a legitimidade da pretensão, defendida por Spengler,
de prever infalivelmente a morte da civilização ocidental. Esta civilização encontra-se
certamente em crise; mas a

sua sorte não pode ser determinada antecipadamente, visto depender do modo como os
homens que nela vivem possam responder a esta provocação. Toynbee pensa, no entanto,
que a sorte de uma civilização está necessariamente relacionada com um reforço do espírito
religioso. Neste ponto, a sua doutrina resulta estéril, acentuando-se tal situação nos últimos
livros que escreveu. Como resultado dever-se-ia concluir que a génese e o desenvolvimento
de todas as civilizações ocorrem segundo determinadas linhas que só podem ser
encontradas empiricamente, e que a comparação entre elas exige a determinação de tais
linhas mediante critérios metodológicos precisos; mas Toynbee dá

258

mais importância a este último aspecto, elaborando um conjunto de 21 civilizações sem que
tal número seja suficientemente justificado e escolhendo certas determinações constitutivas
dessas civilizações sem

obedecer a um critério justificado ou justificável. Por outro lado, atribui ao cristianismo


uma função extremamente importante na conservação e no progresso das civilizações,
fazendo dele o fim de tal progresso, já que " as civilizações têm a sua raison d'être na sua
contribuição para o progresso espiritual" e

que o desenvolvimento das várias religiões deve conduzir a "um mútuo reconhecimento ida
sua unidade essencial apesar da sua diversidade" (1b., VII, p. 448). Esta doutrina torna-se
assim uma espécie de teologia da história e um anúncio profético do êxito místico final da
história humana.

§ 748. HISTORICISMO: CORRENTES METODOLóGICAS

Resulta evidente do que foi dito neste capítulo que o historicismo (como, aliás, todas as
correntes filosóficas) não constitui no seu conjunto uma doutrina única e coerente que se
fosse diversificando, em cada pensador, por aspectos particulares. A unidade do
historicismo (como de todas as outras correntes) é a unidade do problema que ele enfrenta:
o do conhecimento histórico, do seu objecto e dos

N. dos T. - Em francês no texto original.

259

seus métodos. Pode-se sem dúvida estabelecer uni balanço dos resultados obtidos por esta
corrente pondo em evidência os pontos em que haja acordo unânime, ou quase unânime, de
todos os seus defensores: dela resulta, por exemplo, o reconhecimento do carácter
individual do objecto histórico e, por outro lado, o do carácter específico do instrumento de
que se serve o conhecimento histórico, isto é, o da compreensão ou da interpretação
historiográfica. Mas, para além da constatação da existência destes pontos, que foram, aliás,
atingidos e justificados diferentemente por cada um dos pensadores, e da unidade do
problema, não se pode falar do "historicismo" como tratando-se de uma doutrina única e
simples que possa ser examinada, discutida e refutada na sua totalidade. Mas até mesmo
esta tentativa, que foi realizada por muitos escritores contemporâneos, revela, na
disparidade dos alvos que cada um -deles pretendia atingir com a sua crítica, o erro de tal
atitude. Com efeito, estabelece-se por um lado a equação entre historicismo e relativismo e
objecta-se precisamente ao historicismo a sua incapacidade de garantir o carácter normativo
dos valores e a obra da razão, como fez Leo Strauss (Natural R!-*ght and History [Direito
natural e história], 1953); ou a sua incapacidade de dar um sentido total à história, como fez
Jaspers (Vom Ursprung und Ziel der Geschichte [A origem e o fim da história], 1949); ou a
tentativa de substituir uma fé fictícia à autêntica fé religiosa, como fez Karl Lõwith
(Meaning in His- tory [Significado da história], 1949). Ou então negu-se aquela
identificação e vê-se no historicismo a
')60

defesa dos valores humanos, como fez Theodor Litt (Die Wiedererweckung des
geschichtlichen Bewusstsein [0 despertar da consciência histórica], 1956)-, ou ainda urna
manifestação ido "essencialismo", isto é, da metafísica tradicional e, parcialmente, o
recurso a esquemas científicos superados por esse carácter metafísico, como fez Karl
Popper (The Poverty of Historicism [A pobreza do historicismol,
1944). Em todas estas interpretações e críticas descuram-se precisamente as manifestações
mais salientes do historieismo, isto é, os resultados obtidos por Dilthey e Weber.

A sequência do historicismo alemão contemporâneo deve, portanto, ser procurada, mais do


que nesta literatura polémica, na continuação do trabalho metodológico que o historicismo
iniciou no campo das ciências da cultura: ou seja, na discussão, na experimentação e na
rectificação dos resultados a que ele chegou. Deste ponto -de vista, o problema mais
importante continua a ser o da natureza e limites do instrumento cognoscitivo, de que
dispõem essas ciências, ou seja, o do esquema explicativo a que recorrem. Podem-se então
distinguir duas direcções fundamentais: a que tende a relacionar o esquema explicativo
próprio destas ciências com o das ciências naturais e a reconhecer na explicação causal a
única

explicação possível em todo o campo do saber, e a


que tende a esclarecer a natureza de uma explicação condicional, considerada específica
das ciências da cultura.

A primeira direcção foi a adoptada pelo Círculo de Viena (§ 808) e, especialmente, por
Otto Neurath

261

(Empirische Soziologie [Sociologia empirical, 1931), tendo surgido mais tarde na


Enciclopédia internacional da ciência unificada através de um ensaio do próprio Neurath
(Foundations of the Social Sciences [Fundamentos das ciências sociais], 1944); foi
defendida por Carl G. Hempel (The Functions of General Laws in History [A função das
leis gerais na

história], e por Patrick Gardiner (The Nature of Historical Explanation [A natureza da


explicação histórica], 1952). Deste ponto de vista, a explicação histórica é uma explicação
causal no sentido clássico: consiste em determinar a causa (C) de um acontecimento (A) e
esta determinação pode ser feita mostrando apenas como é que o acontecimento A pode ser
"logicamente deduzido" de certas leis gerais segundo as quais um conjunto de
acontecimentos da espécie C é acompanhado regularmente de um acontecimento da espécie
A (Hempel, in Readings in Philosophical Analysis, 1949, págs. 459 e segs.). A explicação
causal é aqui entendida no sentido mais rigoroso (substancialmente aristotélico), como
possibilidade de deduzir o efeito a partir da causa pela aplicação de uma lei geral que
exprima precisamente a

acção da causa. E a explicação histórica distinguir-se-ia da verdadeira e propriamente dita


explicação, quando muito, por ser um esboço de explicação, isto é, uma explicação
imperfeita ou aproximada.

A outra direcção metodológica é defendida sobretudo por historiadores de profissão, os


quais procuram esclarecer a natureza dos instrumentos com que operam, e releva
principalmente do conceito de Weber da possibilidade objectiva. Podemos encon-
262

trá-la na obra de Raymond Aron (Introduction à la Philosophie de Vhistoire [Introdução à


filosofia da história], 1938); La philosophie critique de l'histoire [A filosofia crítica da
história], 1938); em Mare Bloch (Apologie pour l'histoire [Apologia da história], 1954); em
Butterfield (History and Human Relations [A história e as relações humanas], 1951; em
Pietro Rossi (Lo storicismo tedesco contemporaneo [0 historicismo alemão
contemporâneo], 1956, em William Dray (Laws and Explanation in history [Leis e
explicação históricas], 1957); em H. Stuart Hughes (Consciousness and Society
[Consciência e sociedade], 1958); em John H. Randall (Nature and Historical Experience
[A natureza e a experiência histórica], 1958); tendo si-do ainda defendida por historiadores
e filósofos americanos em dois volumes colectivos (Theory and Practice in Historícal Study
[Teoria e prática nos estudos históricos], 1946; The Social Sciences in Historical Study [As
ciências sociais no estudo histórico], 1954). Deste ponto de vista, insiste-se no carácter
individualizante e selectivo do conhecimento histórico; nega-se, consequentemente, que
este conhecimento tenha por objecto uma totalidade absoluta, o chamado "mundo
histórico"; e recorre-se sobretudo à noção -de possibilidade rectrospectiva na explicação
histórica insistindo no carácter condicional de tal explicação, no

sentido de que esta consiste em individualizar, num campo de possibilidades, as relações


que unem a

possibilidade decisiva às outras.

Pode-se dizer, em apoio desta segunda corrente metodológica, que o esquema explicativo
de que se
263

servem as ciências naturais (e, em primeiro lugar, a


física) actualmente, já se afastou bastante da explicação causal clássica ou, pelo menos, já
se afastou tanto,dela quanto esta corrente metodológica, iniciada por Weber, se afastou do
esquema explicativo, proposto na primeira fase do historicismo, da compreensão intuitiva
(§ 736). A polémica metodológica entre ciências do espírito e ciências da natureza perdeu
muito da sua força com esta aproximação; e o

esquema explicativo condicional, que ela tende a

esclarecer, pode considerar-se igualmente afastado do necessitarismo a que recorria a


ciência clássica da natureza e do indeterminismo a que recorreu, nas suas polémicas
iniciais, o historicismo.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 735. Sobre o historicismo alernão, podem-se considerar fundamentais as seguintes obras:


PIETRo Rossi, Lo storicismo tedesco coni6mporaveo, Turim, 1936; RAYMOND ARON,
La philosophie critique de Ilhistoire, Pariis, 1950.

§ 736. U@ Dilthey, existe uma bibliografia completa das suas obras em "Archiv für
Geschichte, der Phil.", 1912, págs. 154-61. Os escritos destle autor foram recrlhidos em
Gc_,avi~Ite Schriften, 12 vols., Leipzig, 1923-36. Critica della ragione storica, antologia de
escritGs de Dilthey com introwdução e, bíbliografia do Pietro R(ssi, Turim, 1954.

Sobre Dilthey: L. LANDGREBE, W. Ws Theoric der Geiste~i,ssenschaften, Halle, 1928;


G. MiSCH, 1,ebensphilo,sophie und Phãnomenologie, Leipzi.-Berlim, 1931; D.
BISCHOFF, W. Ws geschichtliche Lebensphilosorhie,

264

Leipzig-Berlim, 1935; O. F. BOLLNOW, Dilthey, Le@,pzig-Berlim, 1936; H. A.


HODGES, W. D., an Introduction, Londres, 1944; The Phil. of W. D., Londres, 1952; P.
Rossi, in "Riv. crit. L,@toria filos.", 1952-53.
§ 739. De Simmel, além dos. iescritos citados: Zur Philosophie der Kunst, Potsdam, 1923;
Vorlesungen iiber Schulpãdagogíe, Osterwiedik, 1922; Fragmente und Aufsãtze, Munique,
1923. os problemas fundamentais da filosofia foram trauduzidos para italiano lyo;r A.
Banfi, Florença, 1922. O artigo a que se alude no

texto foi publicado em "A@rchiv für systemati,<@iche Philosophile", 1895, :e depois em


Zur Philosophie der Kunst, págs. 111 e @segs.

Sobre Simmel: A. MAMELET, Le relativisme philosophique chez G. S., Paris, 1914; M.


ADLER, G. S.'8 Bedeutung für die Geistesgeschichte, Vilena-lieipzig,
1919; N. J. S~MAN, The Social Theory of G. S., Chicago, 1925; H. WOLFF, The
Sociology of G. S., Glenco,e, 111, 1950; A BANFI, in. Filasofi contemporanei, Milão,
1961, pá.-s. 161-212.

§ 740. De Spengller, Der Untergang des AbendIandes vem citado na edição definitiva, 2
võls, Munique, 1918-22. Trad. italiana de J. EVolia, Milão, 1957.

Sobre Spengler: A. MESSER, O. S. als Philosoph, Stuttgart, 1924; A. FAUCONNET, O.


S., Paris, 1925; E. GAUliE, S. und die Romantik, Berlim, 1937; H. S. HUGHES, O, S.,
Nova Iorque, 1952; PIETRo Rossi, Storia e storicismo nella filosofia Milão,
1960, págs. 68-89. Bibliografia in M. SCHROETER, Metaphysik des Untergangs,
Munique, 1949.

§ 741. De Tro,eltsch, Gesammelte Schriften, 4vo,ls., Tübingen, 1922-25; Gesammelte


aufsãtze Geistesgeschichte und Religionsoziologie, Tübingen, 1925.

Sobre,, Troeltseb.: E. VERMEIL, La pensée religieuse de T., Paris, 1922; W. KOKLER, E.


T., Tübingen, 1941.

§ 742. De Meinecke, além das obras citadas lio texto, os ensaios recolhidos em Vop
geschiclitliehcn

265

Sinn und vom Sinn der Geschichte, Leipzig, 1939; trad. italiana, Nápoles, 1948.

Sobre Meinecke: CROCE, La storia come pensiero e come azione, Bari, 1938, págs. 51-73;
W. HOFER, Geschicht8chreibung und Weltan-schauung, Munique,
1950; CHABOD, in "Rivista Storica Italiana", 1955, págs.
272-88; W. STARK, Introdução à tradução inglesa da Ide'a da razão de Estado, publicada
sob o titulo MacMavellism, New Haven, 1957.

§ 743. De Weber, Gesammelte, Aufsãtze zur Reiigionsoziologie, 3 vols., Tübingen, 1920-


21; Gesammeite Aufsãtze zur Sozial-und Wirtschaftgsechichte, Tübingen, 1924;
Gesammelte Aufsãtze zur Wissenschaftslehre, Tübingen, 1925. Traduções italianas: Lletica
protestante e lo spirito del capital@smo, Roma, 1945; Il lavoro intellettuale come
professione, Turim, 1948;
11 metodo delle seienze storico-sociali, Turim, 1958 (contém os ensaios metodológicos
fundamentais); Econonzia e società, 2 vols., Milao, 1961.

Sobre Weber: MARIANNE WEBER, M. W., ein, Lebensbild, Tübingen, 1921; K.


JASPERS, M. W., Oldenburg, 1932.

§ 744. Sobre a metodologiade, Weber: B. PFISTER, -Die Entwicílung zum Idealtypus (Ei-
ue A1ethodolog@sche Untersuchung über das Verhã1tnis von Theorte und Geschichte bei
Menger, Schmoller und M. W.), Tübingen, 1928; W. BIENFAIT, M. W.Is Lehre vom

geschichtUchen Elkennen, Berlim, 1930; A. VON SCHELTING, M. W.18


Wissenschaftslehre, Tübingen, 1934; T. PARSONS, The Structure of Social Action, 1937;
2.1 edi~ ção, Glencoe, 111., 1949; PIETRO Rossi, Storia e storicismo nella filosofia
contemporanea, cit. págs. 93-132.

§ 745. Sobre a sociologia de Weber: T. PARSONS, Op- cit.,; R. ARON, La sociologie


allemande contemporaine, Paris, 1950.

§ 746. Sobre o conceito de aval,,>rabilidade: A. VON SCHELTING, Op. cit.; R. ARON,


La phil. critique

266

de Phistoire, Cit.; PIETRO ROSSI, 1,o storicismo tedesco contemporaneo, cit.

§ 747. De Toynbee: foram traduzidos para italiano os dois primeiros volumes da sua obra
principal sob o titulo Panorami della storia, Milão, 1954; Civiltà al paragone, trad. italiana
de G. Paganelli e A. Pandolfi, Milão, 1949; Il mondo e Poccidente, @trad. italiana de G.
Cambon, Milão, 1956.

Sobre Toynbee: P. GEYL, The Pattern of the Past, Boston, 1949; E. F. J. ZAHN, T. und
das Problem der Geschichte, Kõln und OppIaden, 1954; PIETRo Rossi, in "Filosofia",
1952, págis. 207-50; Storia e storicismo nella filosofia contemporanea, cit., págs. 333-60;
O. ANDERLE, Das universalhistorische System A. J. T., Frankfurt am. Main, 1955 (inclui
uma bíbliografia).

§ 748. Sobre os autores citados na última parte do capitulo, consultar PIETRo Rossi, Storia
e storicismo nella filosofia contemporanea, cit., e as indicações bibliográficas nele
incluídas.

267

íNDICE

III - BERGSON ... ... ... ... 7


§ 692- Vida e Obra ... ... ... ... ... 7 § 693. A duração real ... ... ... ... 9§
694. Espírito e corpo ... ... ... ... 13 § 695. O impulso vital ... ... ... ... 17 §
696. Instinto e inteligência ... ... ... 20 § 697. A intuição ... ... ... ... ... 24 §
698. Gênese ideal da matéria ... ... 27 § 699. Sociedade fechada e sociedade

aberta ... ... ... ... ... . 1. 30 § 700. Religião estática e religião dinâmica ... ...
... ... ... ... 32 § 701. O possível e o virtual - . ... ... 36

Nota bibliográfica ... ... ... ... 40

IV-0 IDEALIS1W0 INGLÊS E NORTE-AMERICANO ... ... ... ... ... ... ... ... 43

§ 702. Características do idealismo ... 43 § 703. As origens do idealismo inglês e

norte-americano ... ... ... ... 45

269

§ 704. Bradley ... ... ... ... ... ... 53 § 705. Desenvolvimento do idealismo
inglés ... ... ... ... ... ... ... 59 § 706. MeTaggart ... ... ... ... ... 61 § 707.
Royce ... ... ... ... ... ... 68 § 708. Outras manifestações do idealismo inglês e
norte-americano 77

Nota bibliográfica ... ... ... ... 81

V -0 IDEALISMO ITALIANO ... ... ... ... 85

§ 709. Características e origens do idealismo italiano ... ... ... ... ... 85 §710. Gentile:
Vida e Obra ... ... ... 90 §711. Gentile: o acto puro ... ... ... 92 §712.
Gentile: a dialéctica -do concreto e

do abstracto ... ... ... ... ... 96

§713. Gentile: a arte ... ... ... ... 102 §714. Gentile: a religião ... ... ... ... 105
§715. Gentile: o direito e o estado ... 107 §716. Croce: Vida e Obra ... ... ...
111

270

§ 717. Croce: a filosofia do espírito ... 113 § 718. Croce: a arte ... ... ... ... ...
116 § 719. Cr(>ce: a ciência, o erro e a forma

económica ... ... ... ... ... 123

§ 720. Croce: direito e estado como

acções económicas ... ... . --- ... 126


§ 721. Croce: história e filosofia ... ... 130

Nota bibliográfica ... ... ... ... 137

VI -0 NEO-CRITICISMO ... ... ... ... ... 139

§ 722. Caracteres do neo-criticismo ... 139 § 723. Origens do neo-criticismo na


Alemanha ... ... ... ... ... ... 140

§ 724. Renouvier: a filosofia critica ... 146 § 725. Renouvier: o conceito da história
151 § 726. O criticismo inglês ... ... ... 155 § 727. A flcxsofia dos valores
Windelband 163 § 728. Rickert ... ... ... ... ... ... 168 § 729. Outras
manifestações da filosofia

dos valores ... ... ... ... ... 174

271

§ 730. A escola de Marburgo: Cohen ... 176 § 731. Nato.rp ... ... ... ... ... ...
184 § 732. Cassirer ... ... ... ... ... ... 189 § 733. Brunschvieg ... ... ... ... ...
194 § 734. Banfi ... ... .1 . ... ... ... 200

Nota bibliográfica ... ... ... ... 203

VII -0 HISTORICISMO ... ... ... - ... 207

§ 735. A filosofia e o mundo histórico 207 § 736. Dilthey: a experiência vivida e


o

ecmpre,ender ... ... ... ... ... 210 § 737. Dil'hoy: as estrutura-- do mundo

histórico ... ... ... ... ... ... 215 § 738. Dilthey: o c,)nceito da filosofia 219 § 739.
Simmel - ... ... ... ... ... 222 § 740. Spengler ... ... ... ... ... ... 227 § 741.
Troeltsch ... ... ... ... ... ... 231 § 7-12. Meinecke ... ... ... ... ... ... 236 § 743.
Weber: 4ndividualidade, significado, valor ... ... ... ... ... 239

272

§ 744. Weber: a possibilidade objectiva 243 § 745. Weber: a sociologia


interpretativa 248 § 746. Weber: descrição e valoração ... 251 § 747. Toynbee
... ... ... ... ... - 255

§ 748. Correntes metodológicas ... - 259

Nota bibliográfica .. ... ... - 264


(fim)

You might also like