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A trajetória de Martin Luther King Jr.


Uma obra inacabada1

Paulo Ayres Mattos

Resumo

O artigo traça a carreira de Martin Luther King Jr.


na luta contra o racismo nos Estados Unidos,
mostrando como em sua carreira assumiu uma
percepção mais estrutural dos problemas da
sociedade norte-americana e em outros países e
regiões do mundo.

Palavras chaves

Racismo – direitos civis – religião – pobreza –


militarismo norte-americano.

Professor da Fateo e
Integrante do Centro de
Estudos Wesleyanos / UMESP;
Bispo Emérito da Igreja
Metodista, Doutorando em
Teologia Sistemática (Ph.D.),
Drew University, Madison, NJ,
EUA. E-mail:
paulo.mattos@metodista.br

1
Palestra proferida pelo Prof. Paulo Ayres Mattos, da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São
Paulo (UMESP), São Bernardo do Campo, SP, na abertura da III Semana Martin Luther Kinçg Jr., Memorial da
América Latina – 02 de a bril de 2006 – São Paulo, SP.

Revista Caminhando v. 11, n. 18, p. 69-80, jul–dez 2006 69


The trajectory of Martin Luther King, Jr.
An unfinished work

Paulo Ayres Mattos

Abstract

This article traces the career of Martin Luther King,


Jr. in the fight against racism in the United States,
and shows how in his career he assumed a struc-
tural perception of the problems of North American
society, as well as other countries and regions of
the world.

Key words

Racism – civil rights – religion – poverty – north


american militarism.

Professor at the Methodist


School of Theology in Brazil
and Member of the Center for
Wesleyan Studies / UMESP;
Emeritus Bishop of the Met-
hodist Church; doctoral candi-
date in Systematic Theology,
Drew University, Madison, NJ,
USA. Email: pau-
lo.mattos@metodista.br

Revista Caminhando v. 11, n. 18, p. 69-80, jul–dez 2006 70


La trayectoria de Martin Luther King Jr.
Una obra inacabada

Paulo Ayres Mattos

Resumen

El artículo traza la carrera de Martin Luther King Jr.


en la lucha contra el racismo en los Estados Unidos,
mostrando como en su carrera alcanzó una percep-
ción más estructural de los problemas de la socie-
dad norteamericana y en otros países y regiones
del mundo.

Palabras clave

Racismo – derechos – civiles – religión – pobreza, –


militarismo norteamericano.

Profesor de la FaTeo e Inte-


grante del Centro de Estudios
Wesleyanos / UMESP; Obispo
Emérito de la Iglesia Metodis-
ta, Doctorando en Teología
Sistemática (Ph.D.), Drew
University, Madison, NJ, EUA.
Email:
paulo.mattos@metodista.br

71 Paulo Ayres MATTOS. A trajetória de Martin Luther King...


qualquer desafio é exaltar e adorar a
Quem se importa hoje com Martin Lu- fonte concreta da qual se originou tal
ther King? Quem se interessa hoje por desafio.
Martin Luther King?”, essa foi a ques-
tão colocada há quase duas décadas Reunimo-nos hoje aqui neste espaço
atrás pelo Don L. Davis, Diretor do Ins-
do Memorial da América Latina, construí-
tituto de Pastoral Urbana ligado à Uni-
versidade da Virgínia, nos Estados Uni- do para celebrar e nos comprometer com
dos, num excelente ensaio sobre a re- o nosso comum destino latino-americano,
levância do pensamento e obra de
para mais uma vez honrar a memória e a
Martin Luther King, vinte anos após a
sua morte, por ocasião do estabeleci- luta de um dos maiores seres humanos
mento da terceira segunda-feira do que o século XX teve oportunidade de
mês de Janeiro como feriado nacional
oferecer a todas as gerações – Martin
norte-americano, em celebração do
seu aniversário no dia 15 do mesmo Luther King Jr. Mas o que será que nos
mês.1 trouxe aqui? Será que nos importamos
O argumento central do ensaio de realmente com sua vida e obra? Haverá
Davis tem a ver com a dura constatação realmente algum interesse de nossa
de que a melhor maneira de nos livrar- parte de nos comprometermos, pelo
mos do legado da vida do grande ativista menos de uma vaga maneira, com os
social norte-americano em favor dos mesmos valores e princípios que fizeram
direitos civis da população negra tem sido dele um ardoroso lutador pela erradica-
a crescente veneração dele por parte da ção das injustiças não só em seu país
elite norte-americana e, me atreveria a mas em outros cantos do mundo? O que
dizer, de todo o mundo, na mesma medi- será que nos motiva na realização dessa
da em que os princípios, valores e estra- III Semana Martin Luther King?
tégias que nortearam sua prática revolu- O que me proponho apresentar nesta
cionária são negados no cotidiano das sessão de abertura dessa importante
relações sociais. Dizia, então, o Dr. Davis, realização do PALAS ATHENA é uma
citando um dos biógrafos de King: reflexão sobre a trajetória de um homem
que sempre teve diante de si a certeza de
O mesmo congresso e presidente que
que sua obra era anterior a ele mesmo e
aprovou o dia do aniversário de Martin
King, como feriado nacional, se recusa- que não estaria terminada quando de sua
ram a assinar uma nova lei de direitos morte. No dia anterior à sua morte, na
civis nos anos 80. ... Não seria o caso
do Presidente Reagan ter se apercebi-
conclusão do discurso proferido aos gre-
do de que a melhor maneira de não se vistas dos serviços de água e esgoto da
confrontar com King é venerá-lo? Hon- cidade de Memphis, no Estado de Ten-
rá-lo com um feriado que, se ele esti-
vesse vivo, nunca teria aceitado? ... É nessee, King, alegorizando a passagem
muito mais fácil honrar um herói morto bíblica que diz ter Moisés visto de longe,
do que reconhecer e seguir um profeta do alto da montanha, a terra prometida
vivo! A melhor maneira de se furtar a
onde por sua morte não pôde entrar,
afirmou:

1
Davis, Don L. (Director of the Urban Ministry Institu- O que fariam a mim alguns de nossos
te. Word Impact, Inc.), Who Cares about King?, doentes irmãos brancos? Bem, eu não
www.livedtheology.org/pdfs/Davis.pdf, acessado sei o que me acontecerá agora. Temos
em 20/03/2006.

72 Paulo Ayres MATTOS. A trajetória de Martin Luther King...


diante de nós duros dias. Mas, isto não seu pai, King tornou-se pastor batista,
me importa agora. Porque eu tenho
sendo ordenado quanto tinha somente 19
estado no alto da montanha. E eu não
me importo. Como qualquer um, eu anos de idade, quando também se gra-
gostaria de viver uma vida longa. Lon- duou em sociologia na conceituada facul-
gevidade é coisa boa. Mas, eu não es-
dade negra Morehouse College. Foi nesta
tou preocupado com ela agora. A única
coisa que quero fazer é cumprir com a mesma época que King pela primeira vez
vontade de Deus. E Deus me tem tomou contato com a vida e obra de
permitido chegar ao alto da montanha.
Mahatma Ghandi, passando a partir daí a
E eu a tenho contemplado – a terra
prometida. Talvez eu não entre nela estudar com seriedade os seus ensinos
acompanhando vocês. Mas, nesta noite sobre a não-violência como estratégia
quero que vocês saibam que como um
povo vamos entrar na terra prometida.
para radicais mudanças sociais.
E por isto estou feliz esta noite. Eu não Sua carreira acadêmica foi desenvol-
temo nada. Nenhum homem me faz vida, primeiro no Seminário Teológico
ter medo. Meus olhos viram a glória do
Crozer, na Pennsylvania, onde se bacha-
Senhor.2
relou em teologia, e posteriormente na
Esta profunda convicção de que a o-
Faculdade de Teologia da Universidade de
bra na qual estava engajado, era muito
Boston, onde recebeu o título de doutor
maior do que ele mesmo fez de Martin
em filosofia na área de teologia sistemá-
Luther King um símbolo para todas as
tica. Foi em Boston, sob a orientação do
pessoas que em qualquer lugar lutam
teólogo metodista Harold DeWolf, intro-
pela superação de todas as formas de
duzido à filosofia do personalismo, uma
exclusão e descriminação. A obra de sua
escola filosófica norte-americana que
curta vida – morreu antes de completar
afirma o valor fundamental de cada ser
quarenta anos de idade – é e sempre
humano enquanto tal.
será uma referência maior onde quer que
A formação religiosa de King se deu
mulheres e homens estejam comprome-
dentro de um lar e de uma igreja forte-
tidos com a construção de uma sociedade
mente enraizada na vibrante tradição
mais justa e fraterna.
evangélica negra norte-americana. Ao
Mas, quem foi este Martin Luther
longo dos tempos, as igrejas negras,
King? Permitam-me apresentar alguns
principalmente as batistas e metodistas,
traços que considero importantes em sua
vieram a ser espaços de resistência e luta
trajetória desde Atlanta, onde nasceu,
contra o racismo e a segregação racial
até seu martírio em Memphis.3 King nas-
nos Estados Unidos. Foram elas nutridas
ceu no dia 15 de janeiro de 1929. Como
na aplicação do ensino bíblico à sofrida
vida cotidiana da população afro-
americana, tanto antes como depois de
2
King Jr., Martin Luther. Discurso “I've Been to the
sua emancipação, tão bem expressa nos
Mountaintop”, pronunciado em 3 de abril de 1968, cânticos dos Negro Spirituals. Essa for-
em Memphis, Tennessee, Estados Unidos,
www.americanrhetoric.com/speeches/ mação religiosa foi fundamental para o
mlkivebeentothemountaintop.html. Acessado em
20/03/2006. desenvolvimento não somente de sua
3
Dados sobre a vida de Martin Luther King Jr. são teologia, mas, acima de tudo para uma
encontrados no site Martin Luther King Jr. Chrono-
logy, http://www.lib.lsu.edu/hum/mlk/srs216.html. forte espiritualidade manifesta de modo

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particular em sua prática social. King se Social (Social Gospel)4. A forte piedade e
insere numa tradição religiosa afro- espiritualidade místicas de King, inserta-
americana extremamente ampla e rica das na cultura religiosa afro-americana,
em que resistência e luta pela liberdade foram, cada vez mais ao longo de sua
se conjugam através da interconexão no curta existência, determinadas por seu
imaginário religioso das lembranças da crescente e radical compromisso social na
mãe-África com a mensagem na Bíblia do luta em favor da justiça e da paz. Os
Deus do Êxodo, o libertador dos pobres estudiosos, que nas últimas duas décadas
escravos no Egito. Certamente, cânticos têm se dedicado ao resgate do pensa-
como Go down, Moses, tell the Pharoh e mento teológico e social de King, estão
War no more! inspiraram gerações e afirmando com mais veemência a impor-
gerações de afro-americanos em sua tância de sua formação teológica e filosó-
luta, primeiro contra a própria escravidão fica em sua prática política, de maneira
e depois contra a descriminação e a se- particular a influência da filosofia da não-
gregação raciais. violência como ensinada e praticada por
E isso não foi diferente com Martin Mahatma Ghandi.
Luther King. Neste sentido, a mística e a Entretanto, em que pese a importân-
espiritualidade de King foram sempre cia tanto de sua formação religiosa na
caracterizadas pela firme convicção de casa de seus pais e na igreja batista
que o Deus da Bíblia, em meio às lutas negra, como de sua formação acadêmica
de cada dia, sempre está do, no e ao no Seminário Crozer e na Universidade
lado dos pobres, dos marginalizados, dos de Boston, a verdade é que sua vida vai
discriminados e dos excluídos da socieda- ter uma mudança radical com a sua de-
de. Outro aspecto da religiosidade afro- signação para o pastorado da Igreja
americana que se introjetou profunda- Batista da Avenida Dexter em Montgo-
mente em King foi o estilo oratório pecu- mery, Alabama, no coração racista do
liar aos pregadores negros norte- chamado Deep South, a terra da mais
americanos. King, quer como pregador, abjeta descriminação e segregação raci-
quer como conferencista, quer como ais. Um ano depois de sua chegada a
ativista social, nunca abriu mão da retóri- Montgomery, King não teve como esca-
ca própria das igrejas negras norte- par ao desafio colocado pela inusitada e
americanas. radical decisão de Rosa Parks, uma mu-
Por outro lado, as pesquisas mais re- lher negra de 42 anos de idade, ao recu-
centes sobre o pensamento de King mos-
tram que sua formação teológica, tanto
no Crozer como em Boston, o levaram a
4
aprofundar sua resistência e crescente- Carson, Clayborne. Martin Luther King, Jr., and the
African-American Social Gospel. In African-
mente oposição a qualquer forma intimis- American Christianity, editado por Paul E. Johnson,
159-177. Berkeley: University of California Press,
ta ou individualista da fé religiosa. Neste 1994. Reimpresso African-American Religion: Inter-
pretive Essays in History and Culture, editado por
sentido, King assumiu crescentemente a
Timothy E. Fulop e Albert J. Raboteau. New York:
agenda teológica do liberalismo norte- Routledge, 1997;
http://www.stanford.edu/group/King/additional_res
americano, especialmente do Evangelho ources/articles/ gospel.htm, acessado em
20/03/2006.

74 Paulo Ayres MATTOS. A trajetória de Martin Luther King...


sar ceder seu lugar a um branco num dos quer fossem elas brancas ou negras. Daí
ônibus da cidade5. Rosa, recentemente em diante King e seus familiares estive-
falecida, por causa de seu aparente tres- ram sempre correndo risco de morte,
loucado gesto no dia 1o de dezembro de sendo alvo de uma série infindável de
1955, acendeu a chama de uma fogueira tentativas de assassinato, de atentados a
que logo estaria incendiando a vida de bomba contra sua casa, de acusações
milhares e milhares de mulheres e ho- infames contra sua integridade moral,
mens negros em todo sul dos Estados intelectual, política e espiritual, inclusive
Unidos, inclusive de Martin Luther King. de plágio de sua tese doutoral e de adul-
Quatro dias depois, simultaneamente, tério, sendo que muitas dessas acusações
ocorreu o boycott contra as companhias foram forjadas pelos próprios órgãos de
de ônibus, o julgamento de Rosa Parks, e segurança do governo norte-americano.
a eleição de King por unanimidade para É verdade que a luta em Montgomery
presidente da Associação para o Progres- contra a segregação nos ônibus acabou
so [de Pessoas de Cor] de Montgomery. por ser exitosa, sendo eliminada por ato
Neste mesmo dia aconteceu a virada na da Suprema Corte Americana qualquer
vida de King. Naquele dia, King estava discriminação; um ano depois do ato
virando a página de sua vida de forma corajoso de Rosa Parks o sistema de
irreversível. A tranqüilidade dos tempos transporte público no Estado de Alabama
escolares, acadêmicos e ministeriais, de foi integrado. Mas, a luta contra o racis-
êxito pessoal, daria lugar a uma vida mo norte-americano estava somente no
tempestuosa de grandes vitórias e terrí- início. Muito mais havia por fazer, primei-
veis derrotas. Ele e o mundo já não seri- ro no sul dos Estados Unidos, depois no
am os mesmos. Logo o doutor em teolo- norte do país, e tempos depois além das
gia teria de dar lugar ao audacioso pas- fronteiras do seu país.
tor-ativista. Em menos de dois meses As complicações no ano de 1958 não
King provou o gosto amargo e ao mesmo foram poucas e culminaram em setembro
tempo desafiador das cadeias de uma com o atentado que King sofreu no Har-
sociedade racista. Daí em diante até o lem, em Nova Iorque. Em plena recupe-
final de sua vida King nunca se envergo- ração, King resolve, no início do ano
nhou por um minuto passado em um seguinte, passar com sua esposa Coretta
recinto presidiário; antes pelo contrário, um mês na Índia se aprofundando nas
pois, em suas próprias palavras, se en- técnicas das marchas não-violentas de
vergonhava sim da sociedade que cons- Gandhi, a convite de Jawaharal Nehru,
truíra cadeias para encerrar aqueles e primeiro-ministro daquele país. No início
aquelas que lutavam em favor da justiça de 1960, outro fato importante vai cata-
e da igualdade entre todas as pessoas, pultar as atividades de King: sua transfe-
rência para Atlanta a fim de assumir com
seu pai o co-pastorado da histórica Igreja
Batista Ebenezer. Os anos seguintes vêm
5
Biografia de Rosa Parks, King cada vez mais articular politicamen-
http://www.achievement.org/autodoc/page/par0bio
-1, acessado em 20/03/2006. te a luta contra o racismo, tanto local

Revista Caminhando v. 11, n. 18, p. 69-80, jul–dez 2006 75


como nacionalmente. Demonstrações sit- sassinado por antigos companheiros
in, marchas, piquetes, vigílias de oração, muçulmanos. King, apesar de suas pro-
tudo isto é motivo para prisões, julga- fundas divergências ideológicas com
mentos, e atentados, não só contra King, Malcolm, devido a questão do uso estra-
mas contra outros ativistas dos direitos tégico da não-violência, expressa seu
civis, inclusive com o assassinato de profundo pesar pela morte do outro líder
Medgar Evers, líder do NAACP no Missis- negro norte-americano mais importante
sipi. Por outro lado, foram se criando as naquela década. Neste mesmo ano a
condições para maior mobilização e orga- cidade de Selma, no Alabama, vai se
nização em níveis local, regional e nacio- tornar o principal foco das ações do mo-
nal do movimento dos direitos civis de tal vimento dos direitos civis.
sorte que no verão de 1963 foi possível Mas, é no ano de 1966 que King to-
organizar-se a primeira grande demons- mar a decisão que terá graves conse-
tração em escala nacional que se realizou qüências para os três anos finais de sua
no dia 28 de agosto quando King proferiu vida: ele resolve deslocar sua ação no
seu célebre discurso “I have a Dream”.6 movimento dos direitos civis para as
Nessa ocasião King e outros líderes do cidades do norte dos Estados Unidos. Isto
movimento se encontram uma vez mais vai lhe custar problemas praticamente
com o presidente norte-americano John insuperáveis tanto com os brancos libe-
Kennedy. Os meses seguintes foram de rais que o apoiavam, enquanto sua luta
dramáticos acontecimentos: em setem- estava se dando na região sul do país,
bro, quatro meninas negras são mortas como com os setores negros do norte
num atentado à bomba a uma igreja que crescentemente se exasperavam
negra na cidade de Birmingham, Alaba- com o pouco progresso de sua situação
ma, e em novembro o Presidente Ken- sócio-econômica num contexto de certo
nedy é assassinado. O ano de 1964 vê não-segregacionismo, mas, ainda sim,
King envolvido em diversos protestos por profundamente racista. Os distúrbios
todo o sul dos Estados Unidos, a morte urbanos, particularmente no norte do
por assassinato de dois estudantes bran- país exemplificavam em grande parte o
cos e um negro que estavam fazendo desencanto com a estratégia não-violenta
campanha para inscrição eleitoral de ardorosamente defendida por King. A
negros no Mississipi, a assinatura da manifestação mais veemente dessa desi-
primeira parte da Lei dos Direitos Civis, e lusão é a proclamação do “Black Power”
a concessão do Prêmio Nobel da Paz a exatamente por dois dos principais líde-
King. res do Movimento Estudantil Não-
No início de 1965 Malcom X, ex-líder Violento7.
do movimento muçulmano negro, é as-

6
King Jr., Martin Luther. Discurso “I have a dream”,
7
pronunciado em 28 de agosto de 1963, em Wa- McCartney, John T. Black Power Ideologies: An
shington, DC, Estados Unidos. Essay in African American Political Thought. Phila-
http://www.usconstitution.net/dream.html, acessa- delphia: Temple University Press (Re-edição em
do em 20/03/2006. setembro de 1993).

76 Paulo Ayres MATTOS. A trajetória de Martin Luther King...


Ao alugar um apartamento no gueto to, a violência irrompe e deixa o saldo de
negro de Chicago, King passa a viver com um morto e cerca de cinqüenta feridos.
o cotidiano da vida dos negros numa No dia 3 de abril, King profere diante da
grande metrópole do norte do país e de assembléia dos grevistas o seu discurso
um grande centro do liberalismo norte- “Eu estive no alto da montanha”. No dia
americano. É neste mesmo ano que King seguinte King é assassinado.
vai começar a se envolver no movimento Permitam-me, depois desta exposição
contra a guerra no Vietnam. No ano da caminhada de Martin Luther King,
seguinte, em março de 1967, no Coliseu fazer algumas observações sobre o seu
de Chicago, durante uma grande de- legado.
monstração contra a guerra, King lança O legado de King não admite a cons-
um forte ataque à política militarista trução de nenhuma mitologia em torno
norte-americana não só no Vietnam, mas de sua pessoa e obra. Como já foi dito no
também em outras partes do mundo. início desta apresentação, a melhor ma-
Menos de um mês depois, King pronuncia neira de não se levar a sério a vida e a
outro discurso que veio a ser famoso: obra de King é transformá-lo em um mito
Além do Vietnam – Tempo de romper o que deve ser reverenciado. Certamente
silêncio,8 no qual explicita de maneira isso seria para ele mais do que repugnan-
clara sua percepção da íntima conexão te. A verdade é, contudo, que muitos
entre racismo, pobreza e militarismo. No círculos isto é o que acontece hoje com a
restante do ano a situação social se agra- figura de King, à semelhança do que
va e se torna cada vez mais tensa e con- ocorre com outras figuras tais como o
flituosa com distúrbios urbanos explodin- próprio Ghandi e, entre nós, Dom Helder
do em distantes partes do norte do país Câmara e Ernesto Che Guevara, ideologi-
com enorme número de feridos e mortos. camente tão distantes, humanamente tão
Diante de tal quadro, King cada vez mais próximos.
articula sua luta não-violenta contra o Uma das dimensões mais daninhas à
racismo com as lutas contra a guerra e a figura histórica de King é sua apresenta-
pobreza, explicitando cada vez mais com ção como o líder solitário na luta pelos
maior clareza a natureza estrutural- direitos civis. E a mídia tem sido em
econômica de suas causas. grande parte responsável por essa distor-
Em fevereiro de 1968 é deflagrada a ção histórica. Tal mito se afasta da reali-
greve dos trabalhadores dos serviços de dade histórica da qual emergiu a maiús-
água e esgoto de Memphis, no Estado do cula figura de King, colocando-se dema-
Tennessee. King resolve apoiar o movi- siada ênfase em suas extraordinárias
mento e durante uma marcha de protes- qualidades como líder e não considerando
devidamente os fatores conjunturais que
possibilitaram e contribuíram para sua
aparição e atuação em momento tão
8
King Jr., Martin Luther. Sermão “Beyond Viet-Nam”,
singular da luta contra o racismo nos
pronunciado em 4 de abril de 1967, na Riverside
Church, em Nova Iorque, Estados Unidos. Estados Unidos. Na verdade, a liderança
http://rriverstone.com/netart/mlk.html, acessado
em 20/03/2006. nacional de King emergiu como fruto de

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uma rede de extraordinários líderes locais cia o mais apropriado na atual conjuntu-
e regionais que junto às suas comunida- ra. Os estudos mais recentes mostram
des criavam as condições de mobilização que, ao contrário de manipulações caris-
e organização para que ações mais am- máticas e emocionais, os ativistas sociais
plas promovidas e apoiadas pelas lide- viam as ações lideradas por King como a
ranças nacionais pudessem ser bem expressão maior de muitos outros líderes,
sucedidas9. especialmente em nível local. Estudos
Outra dimensão dessa distorção míti- recentes estão mostrando que grande
ca da figura de King é a ênfase em sua parte das conquistas da luta pelos direi-
capacidade oratória. Claro que King, tos civis sob a liderança de King foi resul-
como já foi dito, era um extraordinário tado de um grande movimento de massa
pregador batista negro, que sabia usar com base nas comunidades locais.10
magistralmente a retórica peculiar dos É claro que King tinha clara consciên-
pregadores negros que, influenciados cia de seus carismas, homem profunda-
pela forma dialogal das narrativas africa- mente religioso que era. Mas, ele tam-
nas, fazem com que haja durante os bém reconhecia que, diante do racismo
serviços religiosos uma espécie de dança prevalecente na sociedade americana,
e contradança, entre quem prega e quem carisma não seria suficiente para emba-
ouve o sermão, que resulta num envol- sar e impulsionar a luta a que se propu-
vimento comunitário de alta densidade nha junto a muitos outros líderes. Tam-
emocional. Aliás, um parêntese, isto é o bém, King sempre demonstrou profunda
que faz a pregação pentecostal ter tanto consciência com respeito a suas próprias
sucesso em contextos africanos, quer na limitações, inclusive com dúvidas profun-
África, quer na diáspora africana em das sobre os caminhos a seguir em certos
outros países como o Brasil, Cuba e o momentos mais conflitivos. Uma das suas
próprio Estados Unidos. Tal ênfase em maiores angústias foi exatamente o fra-
sua retórica, muitas vezes parece insinu- casso em sua pregação da não-violência,
ar certa manipulação emocional e religio- mensagem que nunca conseguiu ganhar
sa – da parte de Luther King – de seus o apoio da grande massa de afro-
ouvintes, o que seria de fato uma grave americanos, especialmente entre os mais
distorção de sua mensagem, já que fre- jovens. Outra grande frustração de King
qüentemente King, em seus sermões e foi sua incapacidade em ajudar a muitos
discursos, ia contra a corrente conserva- de seus colegas pastores, negros como
dora teológica e política prevalecente ele, a superarem suas ideologias e teolo-
entre brancos e negros protestantes gias conservadoras que, segundo ele, se
norte-americanos. Ao lado da distorção constituíam em grande entrave para o
de seus poderes oratórios, há certa ênfa- avanço da causa dos direitos civis.
se em seu carisma como líder que carre- Outra grande angústia de King foi sua
gava as massas a realizar o que lhe pare- constatação que, ao mover sua atuação

9 10
Veja nota número 3. Idem.

78 Paulo Ayres MATTOS. A trajetória de Martin Luther King...


para o norte dos Estados Unidos, os cebeu finalmente de todas estas interco-
liberais brancos que estavam dispostos a nexões, o acadêmico pastor de Montgo-
apoiá-lo enquanto ele lutava somente no mery tornou-se perigoso para o sistema.
sul do país, pouco a pouco foram retiran- Na medida em que seu idealismo liberal
do o respaldo à luta pelos direitos civis, foi dando lugar a um não-violento realis-
especialmente quando passou a expres- mo radical, o liberal The New York Times,
sar com veemência suas opiniões contrá- após o discurso contra a ação do governo
rias à guerra no Vietnam e a vincular de seu país no Vietnam, o chamou de
racismo, pobreza e militarismo, pregan- demagogo populista. Na medida em que
do, mais do que reformas políticas, a re- King vai além de seu amor nacionalista,
estruturação do sistema econômico- por seu país, e firma, em nome de sua
militar que produzia tanto o racismo, fidelidade, à fé que abraça o seu com-
como a pobreza, no país e no mundo. O promisso internacional com os pobres,
que de fato ele passou a defender tinha marginalizados e excluídos de todo mun-
muito mais a ver com revolução do que do — seja no Peru, na África do Sul, ou
com reforma, ainda que fosse uma revo- no mundo dominado pelo comunismo
lução não-violenta! soviético — King se torna uma grande
Se for verdade que sua formação reli- ameaça, talvez mais perigosa que os
giosa e acadêmica foram importantes militantes do Black Power. Na medida em
para a formação de sua estratégia de que é capaz de, em seu caleidoscópio,
mudanças sociais, muito mais verdade, perceber que pobreza, racismo e milita-
entretanto, é o fato que foi a própria rismo estão intrinsecamente relacionados
realidade do racismo, da pobreza e do com o poder econômico, King ultrapassa
militarismo que se encarregou de mudar os limites liberais do permissível. Por
sua percepção da realidade socio-política- isso, seu assassinato é seu destino inevi-
econômica de seu país e do mundo, e, tável. Para isso ele estava preparado. Por
acima de tudo, de suas causas. Foi a isso, como já vimos, termina o seu dis-
decisão aparentemente estapafúrdia de curso aos grevistas de Memphis, na noite
Rosa Parks que jogou King no redemoi- anterior ao seu assassinato, dizendo:
nho dos direitos civis. Foi Chicago que fez
Como qualquer um, eu gostaria de vi-
com que King percebesse que as causas ver uma vida longa. Longevidade é
da pobreza eram muito mais intrincadas coisa boa. Mas, eu não estou preocu-
pado com ela agora. A única coisa que
do que a segregação nos ônibus e escolas
quero fazer é cumprir com a vontade
do sul dos Estados Unidos, e perceber de Deus. E Deus me tem permitido
que elas estavam profundamente inter- chegar ao alto da montanha. E eu a
tenho contemplado – a terra prometi-
relacionadas com a pobreza dos guetos
da. Talvez eu não entre nela acompa-
negros das grandes cidades do país. Foi o nhando vocês. Mas, nesta noite quero
envolvimento do seu país no conflito no que vocês saibam que como um povo
vamos entrar nessa terra prometida. E
Vietnam que o levou a perceber o caráter por isto estou feliz esta noite. Eu não
internacional da exploração econômica temo nada. Nenhum homem me faz
sustentado pelo aparato capitalista- ter medo. Meus olhos viram a glória do
Senhor.
militar norte-americano. Quando se aper-

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Diante dos desafios de um mundo
globalizado debaixo do pensamento único
e da ditadura do poderoso capitalismo
financeiro internacional, a percepção de
Martin Luther King Jr. da interconexão
entre pobreza, racismo e militarismo, e a
mesma luta que ele travou contra os
poderes que produzem tal mundo, conti-
nuam reclamando um compromisso ina-
balável para todas as pessoas que acredi-
tam que um mundo diferente é possível.

80 Paulo Ayres MATTOS. A trajetória de Martin Luther King...

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