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_ José SARAMAGO een O CONTO DA ILHA DESCONHECIDA PREMIO € > Nowe Copantita Das LETRAS ‘Obras do autor publicadas pela Companhia das Letras O ano da morte de Ricardo Reis O ano de 1993 A bagagem do viajante Cadernos de Lanzarote Cadernos de Lanzarote It A caverna conto da itha desconhecida Don Giovanni ou O dissoluo absolvide Ensaio sobre a cegueira Ensaio sobre a tucides Beangelbo segundo Jesus Cristo Historia do cero de Lisboa O homem duplicado In Nomine Dei Asintermitincias da morte A jangada de pedra A maior flor do mundo Manual de pinturae caligrafia Objecto quase As pequenas memérias Que frei com este livro? Tados os nomes Viagem a Portugal A viagem do elefante Qa: José Saramago OCONTO DA ILHA DESCONHECIDA Aquarelas Arthur Luiz Piza 25érinpreio Un homem foi bater & porta do rei e disse-Ihe, Da-me um barco. A casa do rei ti- nha muitas mais portas, mas aquela era a das, petigées. Como 0 rei passava todo o tempo sentado & porta dos obséquios (entenda-se, os obséquiios que Ihe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém a chamar & porta das petigdes fingia-se desentendido, e sé quando © ressoar continuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que notério, escandaloso, tirando 0 sossego & vizinhanga (as pessoas co- megavam a murmurar, Que rei temos nés, que nio atende), € que dava ordem ao pri- meiro-secretario para ir saber 0 que queria 0 impetrante, que nao havia maneira de se ca- JOSE sakawaco, lar. Entao, 0 primeiro-secretério chamava 0 segundo-secretario, este chamava 0 terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava 0 segundo, e assim por af fora até chegar & mulher da limpeza, a qual, nao tendo ninguém em quem mandar, en- treabria a porta das petigdes ¢ perguntava pela frincha, Que é que tu queres. O suplicante dizia ao que vinha, isto é, pedia o que tinhaa pedir, depois instalava-se a um canto da por- ta, a espera de que o requerimento fizesse, de um em um, o caminho ao contrario, até che- gar ao rei. Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, ¢ ja nao era pequeno sinal de atengao ao bem-es- tar ¢ felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretério, 0 qual, escusado se- ria di er, passava a encomenda ao segundo: -secretario, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez 4 mulher da limpeza, que despachava sim ou nao conforme esti vesse de ma Contudo, no caso do homem que queri saram bem as- um barco, as coisas nao se pa m. Quando a mulher da limpeza lhe per- guntou pela nesga da porta, Que é que tu quetes, 0 homem, em lugar de pedir, como era o costume de todos, um titulo, uma con- decoracio, ou simplesmente dinheiro, res- pondeu, Quero falar ao rei, Ja sabes que o rei nao pode vir, esté na porta dos obséquios, respondeu a mulher, Pois entao vai la dizer- Ihe que nao saio daqui até que ele venha, pes homem, e deitou-se a0 comprido no limiar, soalmente, saber 0 que quero, rematou 0 tapando-se com a manta por causa do frio. Entrar e sait, s6 por cima dele. Ora, isto era um enorme problema, se tivermos em consi- deracao que, de acordo com a pragmatica das portas, ali s6 se podia atender um suplicante de cada vez, donde resultava que, enquanto houvesse alguém a espera de resposta, nenhu- ma outra pessoa se poderia aproximar a fim de expor as suas necessidades ou as suas am- bigdes. A primeira vista, quem ficava a ga- nhar com este artigo do regulamento era 0 rei, dado que, sendo menos numerosa a gen- te que o vinha incomodar com lamiirias, mais tempo ele passava a ter, e mais descanso, para receber, contemplar e guardar os obséquios. A segunda vista, porém, o rei perdia, e mui- to, porque os protestos ptiblicos, ao notar-se que a resposta estava a tardar mais do que 0 justo, faziam aumentar gravemente o descon- tentamento social, 0 que, por seu turno, ia ter imediatas e negativas consequéncias no afluxo de obséquios. No caso que estamos narrando, o resultado da ponderagao entre os beneficios ¢ os prejutzos foi ter ido o rei, ao cabo de trés dias, e em real pessoa, & porta das petigées, para saber o que queria o intro- metido que se havia negado a encaminhar 0 requerimento pelas competentes vias buro- crdticas. Abre a porta, disse o rei & mulher da limpeza, ¢ ela perguntou, Toda, ou sé um bocadinho. O rei duvidou por um instante, na verdade nao gostava muito de se expor aos ares da rua, mas depois reflexionou que pareceria mal, além de ser indigno da sua majestade, falar com um stidito através de uma nesga, como se tivesse medo dele, mor- JOSE SARAMAGO mente estando a assistir a0 coléquio a mu- Iher da limpeza, que logo iria dizer por af sabe Deus 0 qué, De par em par, ordenou. O homem que queria um barco levantou-se do degrau da porta quando comesou a ouvir correr os ferrolhos, enrolou a manta ¢ pés-se a espera. Estes sinais de que finalmente al- guém vinha atender, e que portanto a praca nao tardaria a ficar desocupada, fizeram apro- ximar-se da porta uns quantos aspirantes & liberalidade do trono que por ali andavam, prontos a assaltar o lugar mal ele vagasse. O inopinado aparecimento do rei (nunca uma tal coisa havia sucedido desde que ele andava de coroa na cabega) causou uma surpresa desmedida, nao s6 aos ditos candidatos mas também a vizinhanga que, atraida pelo re- pentino alvoroco, assomara As janelas das ca- 12 sas, no outro lado da rua. A tinica pessoa que nao se surpreendeu por af além foi o homem. que tinha vindo pedir um barco. Calculara ele, ¢ acertara na previsio, que o rei, mesmo que demorasse trés dias, haveria de sentir-se curioso de ver a cara de quem, sem mais nem menos, com notavel atrevimento, 0 manda- ra chamar. Repartido pois entre a curiosida- de que nao pudera reprimir e 0 desagrado de JOSE saramaco. (Gea pails mesma em que ea prs pria se sentava quando precisava de trabalhar de linha e agulha, pois, além da limpeza, ti- nha também & sua responsabilidade alguns trabalhos menores de costura no palécio, como passajar as petigas dos pajens. Mal sen tado, porque a cadeira de palhinha era mui- to mais baixa que 0 trono, o rei estava a pro- curar a melhor maneira de acomodar as pernas, ora encolhendo-as ora estendendo- -as para os lados, enquanto 0 homem que queria um barco esperava com paciéncia a pergunta que se seguiria, E tu para que que- res um barco, pode-se saber, foi o que o rei de facto perguntou quando finalmente se deu por instalado, com sofrivel comodidade, na cadeira da mulher da limpeza, Para ir pro- cura da ilha desconhecida, respondeu o ho- mem, Que ilha desconhecida, perguntou 0 rei disfarcando 0 riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que tém a ma- nia das navegagdes, a quem nao seria bom contrariar logo de entrada, A ilha desconhe- cida, repetiu o homem, Disparate, ja nao ha ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que j4 nao ha ilhas desconhecidas, Estao todas nos mapas, Nos mapas sé esto as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir procura, Se eu to pudesse dizer, entao nao seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Nesse caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmen- te porque é impossivel que nao exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pe- dires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te 0st sarawaco um barco, E tu quem és, para que eu to dé, E tu quem és, para que nao mo dés, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem- -me todos, Mais Ihes pertencerés tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei, inquicto, Que tu, sem eles, é nada, e que eles, sem ti, poderao sempre navegar, As minhas ordens, com os meus pilotos ¢ os meus marinheiros, Nao te peco marinheiros nem piloto, s6 te peco um barco, E essa ilha desconhecida, se a encontrares, serd para mim, A ti, rei, s6 te interessam as ilhas co- nhecidas, Também me interessam as desco- nhecidas quando deixam de o ser, Talvez esta no se deixe conhecer, Entao nao te dou o barco, Dards. Ao ouvirem esta palavra, pro- nunciada com tranquila firmeza, os aspiran- tes & porta das petigées, em quem, minuto apés minuto, desde o principio da conversa, a impaciéncia vinha crescendo, ¢ mais para se verem livres dele do que por simpatia soli- daria, resolveram intervir a favor do homem que queria o barco, comecando a gritar, Da- -lhe o barco, da-lhe 0 barco. O rei abriu a boca para dizer 4 mulher da limpeza que chamas sea guarda do palécio a vir restabelecer ime- diatamente a ordem ptiblica e impor a disci- plina, mas, nesse momento, as vizinhas que assistiam das janelas juntaram-se ao coro com entusiasmo, gritando como os outros, Dé- -lhe o barco, dé-lhe 0 barco. Perante uma tao iniludivel manifestagao da vontade popular ¢ preocupado com o que, neste meio tempo, ja haveria perdido na porta dos obséquios, 0 rei levantou a mao direita a impor siléncio ¢ disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulagao terds de arranjé-la tu, os meus marinheiros sdo-me precisos para as ilhas conhecidas. Os gritos de aplauso do puiblico nao deixaram que se percebesse o agradecimento do homem que viera pedir um barco, alias 0 movimento dos Libios tanto teria podido ser Obrigado, meu senhor, como Eu cé me arranjarei, mas © que distintamente se ouviu foi o dito se- guinte do rei, Vais & doca, perguntas Id pelo capitéo do porto, dizes-Lhe que te mandei eu, e ele que te dé o barco, levas 0 meu cartio. O homem que ia receber um barco leu o car- tdo de visita, onde dizia Rei por baixo do nome do rei, ¢ eram estas as palavras que ele havia escrito sobre 0 ombro da mulher da limpeza, Entrega ao portador um barco, nao precisa ser grande, mas que navegue bem ¢ seja seguro, nao quero ter remorsos na cons- ciéncia se as coisas Ihe correrem mal. Quan- doo homem levantou a cabega, supde-se que desta vez é que iria agradecer a dédiva, j4 0 rei se tinha retirado, s6 estava a mulher da limpeza a olhar para ele com cara de caso. O homem desceu do degrau da porta, sinal de que os outros candidatos podiam enfim avan- car, nem valeria a pena explicar que a confu- so foi indescritivel, todos a quererem che- gar ao sitio em primeiro lugar, mas com tao mA sorte que a porta jé estava fechada outra ra sim, agora pode-se compreender o porqué da cara de caso com que a mulher da limpe- 23 JOSE saranaco za havia estado a olhar, foi esse 0 preciso momento em que ela resolveu ir atrés do homem quando ele se dirigisse a0 porto a tomar conta do barco. Pensou ela que ja bas- tava de uma vida a limpar ea lavar paldcios, que tinha chegado a hora de mudar de ofi- cio, que lavar e limpar barcos é que era a sua vocagao verdadeira, no mar, ao menos, adgua nunca the faltaria. O homem nem sonha que, nao tendo ainda sequer comecado a recrutar os tripulantes, jé leva atras de si a futura en- cartegada das baldeacées e outros asseios, também é deste modo que 0 destino costu- ma comportar-se conosco, ja estd mesmo atrds de nés, jé estendeu a mao para tocar- -nos 0 ombro, ¢ nés ainda vamos a murmu- rar, Acabou-se, nao ha mais que ver, é tudo igual. ‘Andando, andando, 0 homem chegou ao porto, foi a doca, perguntou pelo capitio, enquanto ele nao chegava deitou-se a adivi- nhar qual seria, de quantos barcos ali esta- vam, 0 que iria ser 0 seu, grande ja se sabia que nao, 0 cartéo de visita do rei era muito claro neste ponto, por conseguinte ficavam de fora os paquetes, os cargueiros € os navios de guerra, tao-pouco poderia ser ele tao pe- queno que resistisse mal &s forgas do vento € aos rigores do mat, 0 rei também havia sido categérico neste ponto, Que navegue bem e seja seguro, foram estas as suas formais pala- vras, assim implicitamente excluindo os bo- tes, as faluas ¢ os escaleres, os quais, sendo bons navegantes, e seguros, conforme a con- digdo de cada qual, nao tinham nascido para sulcar os oceanos, que é onde se encontram Jose saRaMaco. as ilhas desconhecidas. Um pouco afastada dali, escondida por tras de uns bidées, a mulher da limpeza correu os olhos pelos bar cos atracados, Para o meu gosto, aquele, pen- sou, porém a sua opinido nao contava, nem sequer havia sido ainda contratada, vamos ouvir antes 0 que diré 0 capitao do porto. O capitéo veio, leu 0 cartéo, mirou o homem de alto a baixo, ¢ fez a pergunta que o rei se tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta de navegagio, ao que o homem respon- deu, Aprenderei no mar. O capitao disse, Nao to aconselharia, capitao sou eu, endo me atre- vo com qualquer barco, Dé-me entéo um com que possa atrever-me eu, nao, um des- ses no, dé-me antes um barco que eu res- peite e que possa respeitar-me a mim, Essa linguagem é de marinheiro, mas tu nao és 26 marinheiro, Se tenho a linguagem, é como io tornou a ler 0 cartao do seo fosse. O capi rei, depois perguntou, Poderas dizer-me para que queres 0 barco, Para ir & procura da ilha desconhecida, J4 nao ha ilhas desconhecidas, O mesmo me disse 0 rei, O que ele sabe de ilhas, aprendeu-o comigo, E estranho que tu, sendo homem do mar, me digas isso, que jé nao ha ilhas desconhecidas, homem da terra sou eu, € nao ignoro que todas as ilhas, mes- mo as conhecidas, s4o desconhecidas enquan- to nao desembarcarmos nelas, Mas tu, se bem entendi, vais 4 procura de uma onde nunca ninguém tenha desembarcado, Sabé-lo-ei quando li chegar, Se chegares, Sim, as vezes naufraga-se pelo caminho, mas, se tal me viesse a acontecer, deverias escrever nos anais do porto que 0 ponto a que cheguei foi esse, Queres dizer que chegar, sempre se chega, Nao serias quem és se nao 0 soubesses j4. O capitio do porto disse, Vou dar-te a embar- cagdo que te convém, Qual é ela, E um bar- co com muita experiéncia, ainda do tempo em que toda a gente andava a procura de ilhas desconhecidas, Qual ¢ ele, Julgo até que en- controu algumas, Qual, Aquele. Assim que a mulher da limpeza percebeu para onde 0 ca- pitdo apontava, saiu a correr de detrés dos bidées e gritou, Eo meu barco, é 0 meu bar- co, hé que perdoar-he a insdlita reivindica- sao de propriedade, a todos 0s titulos abusi va, o barco era aquele de que ela tinha gostado, simplesmente. Parece uma carave- la, disse o homem, Mais ou menos, concor- dou 0 capitao, no principio era uma carave- la, depois passou por arranjos adaptagbes que a modificaram um bocado, Mas conti- nua a ser uma caravela, Sim, no conjunto conserva o antigo at, E tem mastros e velas, Quando se vai procurar ilhas desconhecidas, 0 mais recomendavel. A mulher da limpe- za nao se conteve, Para mim nao quero ou- tro, Quem és tu, perguntou 0 homem, Nao te lembras de mim, Nao tenho ideia, Sou a mulher da limpeza, Qual limpeza, A do pa- Licio do rei, A que abria a porta das petigoes, Nao havia outra, E por que nao estds tu no paldcio do rei a limpar ¢ a abrir portas, Por- que as portas que cu realmente queria jé fo- ram abertas e porque de hoje em diante sé limparei barcos, Entao estés decidida a ir co- migo procurar a ilha desconhecida, Sai do palicio pela porta das decisoes, Sendo assim, vai para a caravela, vé como est aquilo, de- pois do tempo que passou deve precisar de uma boa lavagem, ¢ tem cuidado com as gai- votas, que nao sio de fiar, Nao queres vir comigo conhecer 0 teu barco por dentro, Ta disseste que era teu, Desculpa, foi sé porque gostei dele, Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar. O capitao do porto interrompeu a conversa, Tenho de entregar as chaves a0 dono do barco, a um ou a outro, resolvam- se, amim tanto se me dé, Os barcos tém cha- ve, perguntou o homem, Para entrar, nao, mas Id esto as arrecadagbes € os paidis, e a escriva- ninha do comandante com o diario de bordo, Ela que se encarregue de tudo, eu vou recru- tara tripulacdo, disse o homem, afastou-se. A mulher da limpeza foi ao escritério do capitao para recolher as chaves, depois en- trou no barco, duas coisas the valeram ai, a vassoura do paldcio e a prevengao contra as gaivotas, ainda nao tinha acabado de atra- vessar a prancha que ligava a amurada ao cais, ¢ j& as malvadas estavam a precipitar-se so- bre ela aos guinchos, furiosas, de goela aber- ta, como se ali mesmo a quisessem devorar. Nao sabiam com quem se metiam, A mu- Iher da limpeza pousou o balde, meteu as chaves no seio, firmou bem os pés na pran- cha, ¢, redemoinhando a vassoura como se fosse um espadao dos tempos antigos, fez debandar 0 bando assassino. Foi s6 quando entrou no barco que compreendeu a ira das gaivotas, havia ninhos por toda a parte, mui- tos deles abandonados, outros ainda com ovos, ¢ uns poucos com gaivotinhos de bico aberto, & espera da comida, Pois sim, mas 0 JOSE SARAMAGO melhor é mudarem-se daqui, um barco que vai procurar a ilha desconhecida nao pode ter este aspecto, como se fosse um galinhei ro, disse. Atirou para a 4gua os ninhos va- zios, quanto aos outros deixou-os ficar, até ver. Depois arregacou as mangas ¢ pés-se a lavar a coberta. Quando acabou a dura tarefa, foi abrir 0 paiol das velas e procedeu a um exa- me minucioso do estado das costuras, depois de tanto tempo sem irem ao mar e sem te- es saudaveis do ven- rem de suportar os esti to. As velas sao os misculos do barco, basta ver como incham quando se esforgam, mas, ¢ isso mesmo sucede aos muisculos, se ndo se Ihes da uso regularmente, abrandam, amole- cem, perdem nervo, E as costuras sio como ‘os nervos das velas, pensou a mulher da lim- peza, contente por estar a aprender tao de- 34 pressa a arte de marinharia. Achou esgarga- das algumas bainhas, mas contentou-se com assinalé-las, uma vez. que para este trabalho nao podiam servir a linha ¢ a agulha com que passajava as petigas dos pajens antiga mente, quer dizer, ainda ontem. Quanto aos outros paidis, viu logo que estavam vazios. Que o da pélvora estivesse desmunido, salvo uns pozinhos negros no fundo, que primeiro mais Ihe pareceram caganitas de rato, nao lhe importou nada, de facto nao esta escrito em nenhuma lei, pelo menos até onde a sabedo- a duma mulher da limpeza € capaz de al- cangar, que ir em busca duma ilha desconhe- cida tenha de ser forcosamente uma empresa de guerra. Jaa ralou, ¢ muito, a falta absolu- ta de munigées de boca no paiol respectivo, nao por si propria, que estava mais do que 37 acostumada ao mau passadio do pakicio, mas por causa do homem a quem deram este bar- co, nao tarda que o sol se ponha, ¢ ele a apa- recer-me ai a clamar que tem fome, que é 0 dito de todos os homens mal entram em casa, como se s6 eles é que tivessem estémago € sofressem da necessidade de o encher, E se ja traz marinheiros para a tripulagdo, que so uns ogres a comer, entao é que nao sei como nos iremos governar, disse a mulher da lim- peza. Nao valia a pena ter-se preocupado tan- to. O sol havia acabado de sumir-se no ocea- no quando o homem que tinha um barco surgi no extremo do cais. Trazia um em- brulho na mao, porém vinha sozinho ¢ ca- bisbaixo. A mulher da limpeza foi esperi-lo A prancha, mas antes que ela abrisse a boca para se inteirar de como Ihe tinha corrido 0 mar é sempre tenebroso, E nao lhes falaste da ilha desconhecida, Como poderia falar- -Ihes eu duma ilha desconhecida, se nao a conheco, Mas tens a certeza de que ela exis- te, Tanta como a de ser tenebroso 0 mar, Neste momento, visto daqui, com aquela Agua cor de jade € 0 céu como um incéndio, de tenebroso nao lhe encontro nada, E uma ilusdo tua, também as ilhas as vezes parece que flutuam sobre as éguas, ¢ nao é verdade, Que pensas fazer, se te falta a tripulacao, Ain- da nao sei, Podiamos ficar a viver aqui, eu oferecia-me para lavar os barcos que vém 2 doca, e tu, E eu, Tens com certeza um mes- ter, um oficio, uma profissao, como agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Nao 0 sa~ bes, Se nao sais de ti, nao chegas a saber qucm é, O filésofo do rei, quando nao tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as petigas dos pajens, as vezes dava- -Ihe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo nao era comigo, visto que sou mulher, nao Ihe dava impor- tancia, tu que achas, Que € necessério sair da ilha para ver a ilha, que nao nos vemos se nao nos saimos de nds, Se nao saimos de nés proprios, queres tu dizer, Nao é a mesma coisa. O incéndio do céu ia esmorecendo, a Agua artoxeou-se de repente, agora nem a mulher da limpeza duvidaria de que o mar é mesmo tenebroso, pelo menos a certas ho- ras. Disse 0 homem, Deixemos as filosofias para o filésofo do rei, que para isso é que Ihe pagam, agora vamos nés comer, mas a mu- Iher nao esteve de acordo, Primeiro, tens de ver 0 teu barco, s6 0 conheces por fora, Que tal o encontraste, Hé algumas bainhas das velas que estéo a precisar de reforgo, Desces- te ao porio, encontraste Agua aberta, No fun- do vé-se alguma, de mistura com o lastro, mas isso parece que € préprio, faz bem ao barco, Como foi que aprendeste essas coisas, Assim, Assim como, Como tu, quando dis- seste ao capitao do porto que aprenderias a navegar no mar, Ainda no estamos no mar, Mas jé estamos na 4gua, Sempre tive a ideia de que para a navegacio sé ha dois mestres verdadeiros, um que € 0 mar, 0 outro que é 0 barco, E 0 céu, estas a esquecer-te do céu, Sim, claro, 0 céu, Os ventos, As nuvens, O céu, Sim, 0 céu. Em menos de um quarto de hora tinham acabado a volta pelo barco, uma caravela, mesmo transformada, nao da para grandes passeios. E bonita, disse o homem, mas se eu nao conseguir arranjar tripulantes suficien- tes para a manobra, terei de ir dizer ao rei 42 paren que j& no a quero, Perdes 0 animo logo & primeira contrariedade, A primeira contraric- dade foi estar & espera do rei trés dias, ¢ ndo desisti, Se ndo encontrares marinheiros que queiram vir, c& nos arranjaremos os dois, Es- tds doida, duas pessoas sozinhas nao seriam capazes de governar um barco destes, eu te- ria de estar sempre ao leme, ¢ tu, nem vale a pena estar a explicar-te, é uma loucura, De- pois veremos, agora vamos mas é comer. Su- biram para o castelo de popa, o homem ain- daa protestar contra o que chamara loucura, ali, a mulher da limpeza abriu o farnel que cle tinha trazido, um pao, queijo duro, de cabra, azeitonas, uma garrafa de vinho. A lua jd estava meio palmo sobre 0 mar, as som- bras da verga e do mastro grande vieram dei- tar-se-Ihes aos pés. E realmente bonita a nos- 45 JOSE SARAMAGO sa caravela, disse a mulher, ¢ emendou logo, ‘A tua, a tua caravela, Desconfio que nao 0 sera por muito tempo, Navegues ou nao na- vegues com ela, é tua, deu-ta o rei, Pedi-Iha para ir procurar uma ilha desconhecida, Mas estas coisas nao se fazem do pé para a mio, levam o seu tempo, jd o meu avé dizia que quem vai ao mar avia-se em terra, e mais nao era cle marinheiro, Sem tripulantes nao po- deremos navegar, Jé o tinhas dito, E ha que abastecer 0 barco das mil coisas necessérias a uma viagem como esta, que nao se sabe aon- de nos levard, Evidentemente, e depois tere- mos de esperar que seja a boa estagio, ¢ sair com a boa maré, e vir gente ao cais a desejar- -nos boa viagem, Estis a rir-te de mim, Nun- ca me riria de quem me fez sair pela porta das decisdes, Desculpa-me, E nao tornarei a 46 passar por ela, suceda 0 que suceder. O luar iluminava em cheio a cara da mulher da lim- peza, E bonita, realmente bonita, pensou o homem, que desta vez ndo estava a teferir-se acaravela, A mulher, essa, néo pensou nada, devia ter pensado tudo durante aqueles trés dias, quando entreabria de vez em quando a porta para ver se aquele ainda continuava li fora, & espera. Nao sobrou migalha de pao ou de queijo, nem gota de vinho, os carogos das azeitonas foram atirados para a 4gua, 0 chao est4 tao limpo como ficara quando a mulher da limpeza the passou por cima o tiltimo esfregao. A sereia de um paquete que safa para o mar soltou um ronco potente, como deviam ter sido os do leviata, € a mu- Iher disse, Quando for a nossa vez faremos menos barulho. Apesar de estarem no inte- 47 Jost sARAMAGO rior da doca, a agua ondulou um pouco & passagem do paquete, ¢ 0 homem disse, Mas baloigaremos muito mais. Riram os dois, depois ficaram calados, passado um bocado um deles opinou que o melhor seria irem dormir, Nao é que cu tenha muito sono, € 0 outro concordou, Nem eu, depois calaram- -se outra vez, a lua subiu ¢ continuou a subir, em certa altura a mulher disse, Ha beliches lem baixo, o homem disse, Sim, ¢ foi entao que se levantaram, que desceram coberta, aia mulher disse, Até amanha, eu vou para este lado, ¢ o homem respondeu, E eu vou para este, até amanha, no disseram bom- bordo nem estibordo, decerto por estarem ainda a praticar na arte. A mulher voltou atrds, Tinha-me esquecido, tirou do bolso do avental dois cotos de vela, Encontrei-os quan- do andava a limpar, o que nao tenho é fésfo- ros, Eu tenho, disse 0 homem. Ela segurou as velas, uma em cada mao, ele acendeu um fésforo, depois, abrigando a chama sob a ctipula dos dedos curvados, levou-a com todo 0 cuidado aos velhos pavios, a luz pegou, cres- ceu lentamente como faz o luat, banhou a cara da mulher da limpeza, nem seria preci- so dizer o que ele pensou, E bonita, mas 0 que ela pensou, sim, Vé-se bem que s6 tem olhos para a ilha desconhecida, aqui esta como as pessoas se enganam nos sentidos do olhar, sobretudo ao principio. Ela entregou- -lhe uma vela, disse, Atéamanha, dorme bem, ele quis dizer o mesmo doutra maneira, Que tenhas sonhos felizes, foi a frase que lhe saiu, daqui a pouco, quando la estiver em baixo, deitado no seu beliche, vir-lhe-ao a ideia ou- JOSE SARAMAGO tras frases, mais espirituosas, sobretudo mais, insinuantes, como se espera que sejam as de um homem quando esta a s6s com uma mulher. Perguntava-se se jé dormiria, se teria tardado a entrar no sono, depois imaginou que andava & procura dela e nao a encontra- va em nenhum sitio, que estavam perdidos os dois num barco enorme, o sonho é um prestidigitador habil, muda as proporcées das coisas ¢ as suas distincias, separa as pes- soas, ¢ elas estao juntas, retine-as, ¢ quase nao se vem uma a outra, a mulher dorme a poucos metros ¢ ele nao soube como alcan- céla, quando € tao facil ir de bombordo a estibordo. Tinha-lhe desejado felizes sonhos, mas foi ele quem levou toda a noite a sonhar. So- nhou que a sua caravela ia no mar alto, com 50 as trés velas triangulares gloriosamente enfu- nadas, abrindo caminho sobre as ondas, en- quanto cle manejava a roda do leme ea tri- pulacao descansava & sombra. Nao percebia como podiam ali estar os marinheiros que no porto € na cidade se tinham recusado a embarcar com cle para ir & procura da ilha desconhecida, provavelmente arrependeram- -se da grosseita ironia com que o haviam tra- tado. Via animais espalhados pela coberta, patos, coelhos, galinhas, o habitual da c1 gio doméstica, debicando os graos de milho ou roendo as folhas de couve que um mari- nnheiro Ihes atirava, nao se lembrava de quan- do os tinha trazido para o barco, fosse como fosse era natural que ali estivessem, imagine- mos que a ilha desconhecida é, como tantas vezes 0 foi no passado, uma ilha deserta, o 53 melhor seré jogar pelo seguro, todos sabe- mos que abrir a porta da coclheira e agarrar um coelho pelas orelhas sempre foi mais f&- cil do que persegui-lo por montes evales. Do fundo do porao veio agora um coro de relin- chos de cavalos, de mugidos de bois, de zur- ros de asnos, as vozes dos nobres animais necessdrios para 0 trabalho pesado, ¢ como foi que vieram eles, como podem estar numa caravela onde a tripulagao humana mal cabe, de stibito 0 vento deu uma guinada, a vela maior bateu e ondulou, por trés dela estava 0 que antes nao se vira, um grupo de mulheres que mesmo sem as contar se adivinha serem tantas quantos os marinheiros, ocupam-se nas suas coisas de mulheres, ainda nao chegou 0 tempo de se ocuparem doutras, esté claro que isto s6 pode ser um sonho, na vida real nun- 54 ca se viajou assim. O homem do leme bus- cou com os olhos a mulher da limpeza e nao aviu, Talvez esteja no beliche de estibordo, a descansar da lavagem da coberta, pensou, mas foi um pensar fingido, porque ele bem sabe, embora também nao saiba como o sabe, que cla a tiltima hora nao quis vir, que saltou para o cais, dizendo de ld, Adeus, adeus, jé que s6 tens olhos para a ilha desconhecida, vou-me embora, ¢ nao era verdade, agora mesmo andam os olhos dele a procuré-la ¢ nao a en contram. Neste momento 0 céu cobriu-se ¢ comegou a chover, ¢, tendo chovido, princi- piaram a brotar intimeras plantas das fileiras de sacos de terra alinhadas ao longo da amu- rada, nao esto ali porque se suspeite que nao haja terra bastante na ilha desconhecida, mas porque assim se ganharé tempo, no dia em que i chegarmos sé teremos que transplan- tar as drvores de fruto, semear os graos das pequenas searas que véo amadurecer aqui, enfeitar os canteitos com as flores que desa- brocharao destes bot6es. O homem do leme pergunta aos marinheiros que descansam na coberta se avistam alguma ilha desabitada, ¢ eles respondem que nao véem nem de umas nem das outras, mas que esto a pensar em desembarcar na primeira terra povoada que Ihes aparega, desde que haja ld um porto onde fundear, uma taberna onde beber e uma cama onde folgar, que aqui nao se pode, com toda esta gente junta, E a ilha desconhecida, per- guntou o homem do leme, A ilha desconhe- cida é coisa que nao existe, no passa duma ideia da tua cabega, os gedgrafos do rei fo- ram ver nos mapas e declararam que ilhas por conhecer é coisa que se acabou desde ha muito tempo, Devieis ter ficado na cidade, em lugar de vir atrapalhar-me a navegagio, Andavamos & procura de um sitio melhor para viver ¢ resolyemos aproveitar a tua via- gem, Nao sois marinheiros, Nunca 0 fomos, Sozinho, nao serei capaz de governar o bar- co, Pensasses nisso antes de ir pedi-lo ao rei, © mar nao ensina a navegar. Entao o homem do leme viu uma terra ao longe e quis passat adiante, fazer de conta que cla era a miragem de uma outra terra, uma imagem que tivesse vindo do outro lado do mundo pelo espago, mas os homens que nunca haviam sido ma- rinheiros protestaram, disseram que ali mes- mo é que queriam desembarcar, Esta é uma itha do mapa, gritaram, matar-te-emos se nao nos levares li. Entao, por si mesma, a carave- Jost saRAMAGO la virou a proa em direcgao a terra, entrou no porto e foi encostar 4 muralha da doca, Podeis ir-vos, disse 0 homem do leme, acto continuo sairam em correnteza, primeiro as mulheres, depois os homens, mas nao foram sozinhos, levaram com eles os patos, os coe- Ihos ¢ as galinhas, levaram os bois, os burros € 0 cavalos, e até as gaivotas, uma apés ou- tra, levantaram voo ¢ se foram do barco trans- portando no bico os seus gaivotinhos, proe- za que nao tinha sido cometida antes, mas ha sempre uma vez. O homem do leme as- sistiu & debandada em siléncio, nao fez nada para reter os que o abandonavam, a0 menos tinham-no deixado com as érvores, os trigos € as flores, com as trepadeiras que se enrola- vam nos mastros e pendiam da amurada como festoes. Por causa do atropelo da saida haviam-se rompido ¢ derramado os sacos de terra, de modo que a coberta era toda ela como um campo lavrado ¢ semeado, sé falta que venha um pouco mais de chuva para que seja um bom ano agricola. Desde que a via- gem 2 ilha desconhecida comegou que nao se vé 0 homem do leme comer, deve set por- que esté a sonhar, apenas a sonhat, e se no sonho Ihe apetecesse um pedaco de pao ou uma maga, seria um puro invento, nada mais. As ratzes das arvores jé esto penetrando no cavername, nao tarda que estas velas igadas deixem de ser precisas, bastaré que o vento sopre nas copas e v4 encaminhando a carave- la ao seu destino. E uma floresta que navega ¢ se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, comegaram a can- tar passaros, deviam estar escondidos por af ede repente decidiram sair & luz, talve por- que a seara ja esteja madura e é preciso ceifi- -la, Entéo o homem trancou a roda do leme e desceu ao campo com a foice na mao, ¢ foi quando tinha cortado as primeiras espigas que viu uma sombra ao lado da sua sombra. Acordou abracado a mulher da limpeza, ¢ ela a cle, confundidos os corpos, confundidos os beliches, que nao se sabe se este é 0 de bombordo ou o de estibordo. Depois, mal 0 sol acabou de nascer, 0 homem e a mulher foram pintar na proa do barco, de um lado e do outro, em letras brancas, o nome que ain- da faltava dar & caravela. Pela hora do meio- -dia, com a maré, A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, & procura de si mesma. JOSE SARAMAGO nasceu em 1922, na provincia do Ribatejo, em Portugal, numa familia de origem humilde. Seu avd — 0 homem mais sibio que o escritor disse ter conhecido — era analfabeto e criava porcos. Em Lisboa, para onde sua familia se mudou antes de Saramago com- pletar trés anos, o autor iniciou os estudos secundarios, que, no entanto, foi obrigado a interromper por dificul- dades financeiras. Entre as diversas atividades profissionais que exerceu, estéo as de serralheiro mecanico, desenhista, funcionério piiblico na érea da satide e previdéncia social, editor ¢ jornalista. Langou seu primeiro livro, Terra do pe- ado, em 1947 e ficou sem publicar até 1966. Trabalhou durante doze anos numa editora, como diretor literario e de produgio. Em 1969, ingressou no Partido Comunista Portugués, ao qual permanece ligado. A partir de 1976 passou a viver exclusivamente da literatura, primeiro como tradutor, depois como autor. Tendo se sentido censurado pelo governo portugués quando, em 1991, publicou O Evangelho segundo Jesus Cristo, mudou-se para ailha espa- nhola de Lanzarote. Hoje vive entre Lisboa ¢ a aldeia de Lanzarote, nas Candrias. Romancista, teatréloge e poeta, em 1998 rornou-se o primeiro autor de lingua portuguesa a receber 0 Prémio Nobel de Literatura.

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