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A Origem da Familia, da Propriedade Privada e do Estado I — Esrdcios Pxé-Hisréricos pe Currura Morgan foi o primeiro que, com conhecimento de causa, tratou de introduzir uma ordem precisa na pré-histéria da bu- manidade, e sua classificagéo permanecer4 certamente em vigor até que uma riqueza de dados muito mais considerdvel nos obrigue a modificd-la. Das trés épocas principais — estado selvagem, barbrie e civilizagéo — ele s6 se ocupa, naturalmente, das duas pri- meiras e da passagem 4 terceira. Subdivide cada uma das duas nas fases inferior, média e superior, de acordo com os progressos obtidos na produgio dos meios de existéncia: porque, diz, “a habilidade nessa go desempenha um papel decisivo no grau de superioridade e dominio do homem 21 sobre a natureza: o homem 6, de todos os seres, o tinico que logrou um dom{fnio quase absoluto da produgo de alimentos. Todas as grandes épocas de progresso da humanidade coin- cidem, de modo mais ou menos direto, com as épocas em que se ampliam as fontes de existéncia”. O desenvolvimento da familia realiza-se paralelamente, mas nfo oferece critérios tio conclusivos para a delimitag&o dos perfodos. 1 — Estado seluagem 1 FASE unFeRIon. Infancia do género humano. Os homens permaneciam, ainda, nos bosques tropicais ou subtropicais e viviam, pelo menos parcialmente, nas Arvores; sé isso explica que continuassem a existir, em meio as grandes feras selvagens. Qs frutos, as nozes e as raizes serviam de alimento; o prin- cipal progresso desse perfodo é a formacio da linguagem arti- culada. Nenhum dos povos conhecidos no periodo histérico estava nessa fase primitiva de evolugio. E, embora esse pe- riodo tenha durado, provavelmente, muitos milénios, nio po- demos demonstrar sua existéncia baseando-nos em testemunhos diretos; mas, se admitimos que o homem procede do reino animal, devemos aceitar, necessariamente, esse estado tran- sitério. 2 Fase mépra. Comeca com o emprego dos peixes (inclufmos aqui também os crusticeos, moluscos e outros animais aqua- ticos) na alimentagio e com o uso do fogo. Os dois fené- menos sio complementares, porque o peixe sé pode ser plena- mente empregado como alimento gracas ao fogo. Com esta nova alimentag&o, porém, os homens fizeram-se independentes do clima e da localidade; seguindo o curso dos rios e as costas dos mares, puderam, ainda no estado selvagem, espalhar-se sdbre a maior parte da superficie da Terra. Os toscos instru- mentos de pedra sem polimento da primitiva Idade da Pedra, 22 conhecidos com o nome de paleoliticos, pertencem todos, ou a maioria deles, a esse perfodo e se encontram espalhados por todos os continentes, constituindo uma prova dessas migragoes. O povoamento de novos lugares e o incessante afi de novos descobrimentos, ligados 4 posse do fogo, que se obtinha pelo atrito, levaram ao emprego de novos alimentos, como as raizes e os tubérculos farinéceos, cozidos em cinza quente ou em buracos no chio, e também a caga, que, com a invengdo das primeiras armas — a clava e a langa — chegou a ser um ali- mento suplementar ocasional. Povos exclusivamente cagadores, como se afirma nos livros, quer dizer, povos que tenham vivido apenas da caga, jamais existiram, pois os frutos da mesma eram demasiado problematicos. Como conseqiiéncia da incerteza quanto As fontes de alimentagio, parece ter nascido, nessa época, a antropofagia, para subsistir por muito tempo. Nessa fase média do estado selvagem, encontram-se, ainda em nossos dias, os australianos e diversos polinésios. 3 FAs SUPERIOR. Comeca com a invengio do arco e da flecha, @tagas aos quais os animais cagados vém a ser um alimento regular e a caga uma das ocupagdes normais e costumeiras. O arco, a corda e a seta j4 constituiam um instrumento bas- tante complexo, cuja invengio pressupde larga experiéncia acumulada e faculdades mentais desenvolvidas, bem como 0 conhecimento simultineo de diversas outras invengdes. Se comparamos os povos que conhecem o arco e a flecha, mas ignoram a arte da ceramica (com a qual, segundo Morgan, comega a passagem a barbarie), encontramos jé alguns. indi- cios de residéncia fixa em aldeias e certa habilidade na pro- dugaio de meios de subsisténcia, vasos e utensilios de madeira, o tecido a mao (sem tear) com fibras de cortica, cestos de cortiga ou junco trancados, imstrumentos de pedra polida (neoliticos). Na maioria dos casos, 0 fogo e o machado de pedra j& permitiam a construgao de pirogas feitas com um s6 tronco de drvore e, em certas regides, a feitura de pranchas e vigas necessérias 4 edificagao de casas. Todos esses progressos 23 ‘340 encontrados, por exemplo; entre os indios do noroeste da América, que conheciam o arco € a flecha, mas nao a cera- mica. O arco e a flecha foram, para a época selvagem, o que a espada de ferro foi para a barbdrie e a arma de fogo para a civilizagio: a arma decisiva. 2— A barbérle 1 FASE INFERIOR. Inicia-se com a introdugdo da ceramica. E possivel demonstrar que, em muitos casos, provavelmente em todos os lugares, nasceu do costume de cobrir com argila os cestos ou vasos de madeira, a fim de torné-los refratérios ao fogo; logo descobriu-se que a argila moldada dava o mesmo resultado, sem necessidade do vaso interior. Até aqui, temos podido considerar o curso do desenvol- vimento como um fenémeno absolutamente geral, valido em determinado periodo para todos os povos, sem distingio de lugar. Mas, com a barbdrie, chegamos a uma época em que se comega a fazer sentir a diferenga de condigées naturais entre os dois grandes continentes. O trago caracteristico do periodo da barbdrie ¢ a domesticagao e criagio de animais e 0 cultivo de plantas. Pois bem: o continente oriental, o chamado mundo antigo, tinha quase todos os animais domesti- cdveis e todos os cereais préprios para o cultivo, exceto um; © continente ocidental, a América, sé tinha um mamffero do- mesticAvel, a lhama, — e, mesmo assim, apenas numa parte do sul — e um 86 dos cereais cultivéveis, mas o melhor, 0 milho. Em virtude dessas condigdes naturais diferentes, a partir desse momento a populagio de cada hemisfério se desen- volve de maneira particular, e os sinais nas linhas de fronteira entre as varias fases so diferentes em cada um dos dois casos. 2 Fase MépiA. No Leste, comecga com a domesticagio de animais; no Oeste, com o cultivo de hortaligas por meio de 24 irrigagéo e com o emprego do tijolo cru (secado ao Sol) e da pedra nas construgées. Comecemos pelo Oeste, porque, nessa regifio, essa fase ndo tinha sido superada, em parte alguma, até a conquista da América pelos europeus. Entre os indios da fase inferior da-barbarie (figuram aqui todos os que vivem a leste do Mississipi) existia, j4 na época de seu descobrimento, algum cultivo do milho e, talvez, da abébora, do melao e de outras plantas de horta, que consti- tufam parte muito essencial de sua alimentagio; eles viviam em casas de madeira, em aldeias protegidas por paligadas. As tribos do Noroeste, principalmente as do vale do rio Co- lumbia, achavam-se, ainda, na fase superior do estado selva- gem e no conheciam a ceramica nem o mais simples cultivo de plantas. Ao contrério, os indios dos chamados “pueblos” no Novo México, os mexicanos, os centro-americanos e os peruanos da época da conquista, achavam-se na fase média da barbarie; viviam em casas de adobe ou pedra em forma de fortalezas; cultivavam em plantag@es artificialmente irrigadas o milho e outros vegetais comestiveis, diferentes de acordo com o lugar e o clima, que eram a sua principal fonte de ali- mentagiio; e tinham até domesticado alguns animais: os mexi- canos, © peru € outras aves; os peruanos, a Ihama. Sabiam, além disso, trabalhar os metais, exceto o ferro; — por isso ainda n&o podiam prescindir de suas armas e¢ instrumentos de pedra. A conquista espanhola cortou completamente todo desenvol- vimento auténomo ulterior. No Leste, a fase média da barb4rie comegou com-a do- mesticagio de animais para o fornecimento de leite e carne, enquanto que, segundo parece, o cultivo de plantas perma- neceu desconhecido ali até bem adiantada esta fase. A domes- ticagiio de animais, a criagio de gado e a formagao de grandes rebanhos parecem ter sido a causa de que os arianos e semitas se afastassem dos demais barbaros. Os nomes com que os arianos da Europa e os da Asia designam os animais ainda s&éo comuns, mas os nomes com que designam as plantas culti- vadas sio quase sempre diferentes. 25 A formagio de rebanhos levou, nos lugares adequados, & vida pastoril; os semitas, nas pradarias do Tibre e do Eufrates; os arianos, nos campos da India, de Oxus ¢ Jaxartes,1 do Don e do Dniepr. Foi, pelo visto, nessas terras ricas em pastos que, pela primeira vez, se conseguiu domesticar animais. Por isso, parece As geragdes posteriores que os povos pastores pro- cediam de Areas que, na realidade, longe de terem sido o bergo do género humano, eram quase inabitaveis para os seus sel- vagens avés e até para os homens da fase inferior da barbérie. E, ao contrério, desde que esses bérbaros da fase média se habituaram 4 vida pastoril, jamais Ihes ocorreria a idéia de abandonarem voluntariamente as pradarias onde viviam seus antepassados. Nem mesmo quando foram impelidos para o Norte e para o Oeste, puderam os semitas e os arianos se retirar para as regides florestais do oeste da Asia e da Europa antes que 0 cultivo de cereais, neste solo menos favordvel, Ihes~ permitisse alimentar seus rebanhos, sobretudo no invemo. & mais do que provavel que o cultivo de cereais nascesse aqui, primeiramente, da necessidade de proporcionar forragem aos animais, e que sé mais tarde tivesse importdncia para a ali-' mentagio do homem. Talvez a evolugdo superior dos arianos e dos semitas se deva 4 abundancia de came e leite em sua alimentagio e, particulurmente, pela benéfica influéncia desses alimentos no desenvolvimento das criangas. Com efeito, os indios “pueblos” do Novo México, que se véem reduzidos a uma alimentagao quase exclusivamente vegetal, tém o cérebro menor que o dos indios da fase inferior da barbdrie, que comemi mais carne e -mais peixe. Em todo caso, nessa fase desaparece, pouco a pouco, a antropofagia, que nfo sobrevive sen3o como um rito religioso, ou como um sortilégio, o que d& quase no mesmo. 3 FASE SUPERIOR. Inicia-se com a fundigio do minério de ferro, e passa 4 fase da civilizagio com a invengdo da escrita 1 Hoje, Amu-Darid ¢ Sir-Darié. (N. da R.) 26 alfabética e seu emprego para registros literdrios. Essa fase, que, como dissemos, sé existiu de maneira independente no hemisfério oriental, supera todas as anteriores juntas, quanto aos progressos da produgio. A ela pertencem os gregos da época herdica, as tribos {talas de pouco antes da fundagio de Roma, os germanos de Ticito, os normandos do tempo dos vikings. Antes de mais nada, encontramos aqui, pela primeira vez, o arado de ferro puxado por animais, o que torna possivel lavrar a terra em grande escala — a agricultura — e produz, dentro das condigées entio existentes, um aumento pratica- mente quase ilimitado dos meios de existéncia; em relaggo com isso, também observamos a derrubada dos bosques e sua trans- formagio em pastagens e terras cultivaveis, coisa impossivel em grande escala sem a pd e o machado de ferro. Tudo isso acarretou um rapido aumento da populagSo, que se instala, densamente, em pequenas areas. Antes do cultivo dos campos somente circunstancias excepcionais teriam podido reunir meio milhéo de homens sob uma diregdo central — e é de se crer que isso jamais tenha acontecido. Nos poemas homéricos, principalmente na Iliada, encon- tramos a época mais florescente da fase superior da barbérie. A principal heranga que os gregos levaram da barbarie para a civilizagio é constituida dos instrumentos de ferro aperfei- goados, dos foles de forja, do moinho a mio, da roda de olaria, da preparagio do azeite e o vinho, do trabalho de metais elevado 4 categoria de arte, de carretas e carros de guerra, da construgao de barcos com pranchas e vigas, dos princ{pios de arquitetura como arte, das cidades amuralhadas com torres e ameias, das epopéias homéricas e de toda a mitologia. Se compararmos com isso as descrigdes feitas por César, e até por T&cito, dos germanos, que se achavam nos umbrais da fase de cultura da qual os gregos de Homero se dispunham a passar para um est4gio mais elevado, veremos como foi espléndido o desenvolvimento da produgao na fase superior da barbarie. O quadro do desenvolvimento da humanidade através do estado selvagem e da barbarie, até os comegos da civilizagio 27 ’ \ — quadro que acabo de esbogar, seguindo Morgan — ja é bas- tante rico em tragos caracteristicos novos e, sobretudo, indis- cutiveis, porquanto diretamente tirados da produgio. No entanto, parecer4 obscuro e incompleto se 0 compararmos com aquele que se ha de descortinar diante de nés, ao fim de nossa viagem; sé entao sera possivel apresentar com toda a clareza a passagem da barbarie a civilizagdo e o forte contraste entre as duas. Por ora, podemos generalizar a classificagio de Morgan da forma seguinte: Estado Seluagem. ~ Periodo em que predomina a apropriagio de produtos da natureza, prontos para ser utilizados; as produgdes artificiais do homem sao, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriagio. Barbdrie. — Periodo em que aparecem a criagio de gado e a agricul- tura, e se aprende a incrementar a produgao da natureza por meio do trabalho humano. Civilizagéo — Periodo em que o homem continua aprendendo a elaborar os produtos naturais, perfodo da industria propriamente dita e da arte. Il — A Famina Morgan, que passou a maior parte de sua vida entre os izoqueses — ainda hoje estabelecidos no Estado de Nova York — e foi adotado por uma de suas tribos (a dos senekas) en- controu um sistema de consangiiinidade, vigente entre eles, que entrava em contradigio com seus reais vinculos de fa- milia. Reinava ali aquela espécie de matriménio facilmente dissohivel por ambas as partes, que Morgan chamava “familia sindiasmica”. A descendéncia de semelhante casal era patente e reconhecida por todos; nenhuma divida podia surgir quanto As pessoas a quem se aplicavam os nomes de pai, mie, filho, filha, irmao ou irma. Mas, o uso atual desses nomes constitufa uma contradigio. O iroqués nao somente chama filhos e filhas aos seus préprios, mas, ainda, aos de seus irmios, os quais, por sua vez, o chamam pai. Os filhos de suas irmiis, pelo con- trdrio, ele os trata como sobrinhos e sobrinhas, e é chamado 28 de tio por eles, Inversamente, a iroquesa chama filhos e filhas os de suas irmis, da mesma forma que os préprios, e aqueles, como estes, chamam-na mie. Mas chama sobrinhos e sobri- nhas os filhos de seus irmaos, os quais a chamam de tia. Do mesmo modo, os filhos de irmios tratam-se, entre si, de irmios e irms, ¢ 0 mesmo fazem os filhos de irmas. Os filhos de uma mulher e os de seu irm3o chamam-se reciprocamente primos e primas. E nao sao simples nomes, mas a expresséo das idéias que se tem do préximo e do distante, do igual ou do desigual no parentesco consangiifneo; idéias que servem de base a um sistema de parentesco inteiramente elaborado e capaz de expressar muitas centenas de diferentes relagdes de parentesco de um unico individuo, Mais ainda: esse sistema se acha em vigor ndo apenas entre todos os indios da América (até agora nao foram encontradas excegées), como também existe, quase sem nenhuma modificagio, entre os aborigines da India, as tribos dravidianas do Dekan e as tribos gauras do Indostao. As expressdes de parentesco dos tamilas do sul da India e dos senekas-iroqueses do Estado de Nova York ainda hoje coincidem em mais de duzentas relagdes de parentesco diferentes. E, nessas tribos da India, como entre os indios da América, as relagdes de parentesco resultantes da vigente forma de familia estio em contradigao com o sistema de parentesco. Como explicar esse fendmeno ? Se tomamos em conside- ragio 0 papel decisivo da consangiiinidade no regime’ social de todos os povos selvagens e barbaros, a importancia de tio difundido sistema nao pode ser explicada com mero pala- vreado. .Um sistema que prevalece em foda a América, que existe na Asia em povos de racas completamente diferentes, e do qual se eneontram formas mais on menos modificadas por toda parte na Africa e na Australia, precisa ser explicado his- toricamenté — e ndo com frases ocas, como quis fazer, por exemplo, Mac Lennan. As designagdes “pai”, “filho”, “irmao”, “jym&”, nfo sio simples titulos honorificos, mas, 20 contrario, implicam em sérios deveres reciprocos, perfeitamente defi- nidos, e cujo conjunto forma uma parte essencial do regime social desses povos. E a explicagao foi encontrada. Nas ilhas 29 Sandwich (Havaf), ainda havia, na primeira metade deste século, uma forma de famflia em que existiam os mesmos pais e mies, irmios e irmis, filhos e filhas, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas do sistema de parentesco dos indios americanos e dos aborigines da India. Mas — coisa estranha! ~ o sistema de parentesco em vigor no Hava{ também nfo correspondia & forma de familia ali existente, Nesse pais, todos os filhos de irmfos e irmas, sem excegao, sio irm&os e irmas entre si e sio considerados filhos comuns, nio sé de sua mie e das ims dela, ou de seu pai e dos irmfos dele, mas também de todos os irm&os e irmas de seus pais e de suas maes, sem distingZo. Portanto, se o sistema americano de parentesco pressupde uma forma de familia mais primitiva — que nfo existe mais na América, mas que ainda encontramos no Havai — 0 sistema havaiano, por seu lado, nos indica uma forma de familia ainda mais rudimentar, que, se bem que nio seja en- contrada hoje em parte alguma, deve ter existido, pois, do contrério, nio poderia ter nascido o sistema de parentesco que a ela corresponde. “A familia”, diz Morgan, “6 0 elemento ativo; nunca permanece estaciondria, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior, 4 medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado. Os sistemas de parentesco, pelo contrério, sitio passivos; s6 depois de Jongos intervalos, registram os progressos feitos pela familia, e nao sofrem uma modificagio radical sen’o quando a familia jé se modificou radicalmente.” Karl Marx acrescenta: “O mesmo acontece, em geral, com os sistemas politicos, juridicos, reli- giosos ¢ filoséficos.” Ao passo que a famflia prossegue vivendo, o sistema de parentesco se fossiliza; e, enquanto este continua de pé pela forga do costume, a familia o ultrapassa. Contudo, pelo sistema de parentesco que chegou historicamente até nossos dias, podemos concluir que existiu uma forma de’ fa- milia a ele correspondente e hoje extinta, ¢ podemos tirar essa conclusio com a mesma seguranga com que Cuvier, pelos ossos do esqueleto de um animal achados perto de Paris, péde concluir que pertenciam 2 um marsupial e que os marsupiais, agora extintos, ali viveram antigamente. 30 Os sistemas de parentesco e formas de familia, a que nos referimos, difere dos de hoje no seguinte: cada filhe tinha varios pais e mies. No sistema americano de parentesco, ao qual corresponde a familia havaiana, um irmfo e uma irmi no podem ser pai e mae de um mesmo filho; o sistema de parentesco havaiano, pelo contrério, pressupde uma familia em que essa é a regra. Encontramo-nos frente a uma série de formas de familia que esto em contradigio direta com as até agora admitidas como tnicas validas. A concepgio tradicional conhece apenas a monogamia, ao lado da poligamia de um homem e talvez da poliandria de uma mulher, silenciando — como convém ao filisteu moralizante — sobre 6 fato de que na pratica aquelas barreiras impostas pela sociedade oficial so ticita e inescrupulosamente transgredidas. O estudo da histéria primitiva revela-nos, ao invés disso, um estado de coisas em que os homens praticam a poligamia e suas mulheres a poliandria, e em que, por conseqiéncia, os filhos de uns ¢ outros tinham que ser considerados comuns. F esse estado de coisas, por seu lado, que, passando por uma série de trans- formagées, resulta na monogamia. Essas modificagées sfio de tal ordem que 0 circulo compreendido na unio conjugal comum, € que era muito amplo em sua origem, se estreita pouco a pouco até que, por fim, abrange exclusivamente o casal iso- Jado, que predomina hoje. -»em.Reconstituindo retrospectivamente a histéria da familia, Morgan chega, de acordo com a maioria de seus colegas, 4 con- clusdo de que existiu uma época primitiva em que imperava, no seio da tribo, o comércio sexual promiscuo, de modo que cada mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem a todas as mulheres. No século passado, j4 se havia feito mengio a esse estado primitivo, mas apenas de modo geral; Bachofen foi o primeiro — e este 6 um de seus maiores méritos — que o levou a sério e procurou seus vestigios nas tradigdes histéricas e religiosas. Sabemos hoje que os vestigios desco- bertos por ele nao conduzem a nenhum estado social de pro- miscuidade dos sexos e sim a uma forma muito posterior: o matriménio por grupos. Aquele estado social primitivo, admi- a tindo-se que tenha realmente existido, pertence a uma época tio remota que nao podemos esperar encontrar provas diretas de sua existéncia, nem mesmo entre os fésseis sociais, nos sel- vagens mais atrasados. & precisamente de Bachofen o mérito de ter posto no primeiro plano 0 estudo dessa questio. t Ultimamente, passou a ser moda negar esse perfodo inicial na vida sexual do homem.\Pretendem poupar A humanidade. essa “vergonha”. E, para isso, apoiam-se nao apenas na falta de provas diretas, mas, principalmente, no exemplo do resto do reino animal. Neste, Letourneau (A Evolugio do Matri- ménio e da Familia,® 1888) foi buscar numerosos fatos, de acordo com os quais a promiscuidade sexual completa sé é propria das espécies mais inferiores. Mas, de todos esses fatos 86 posso tirar uma conclusio: nfo provam coisa alguma quanto ao homem e suas primitivas condicdes de existéncia. A unido por longo tempo entre os vertebrados pode ser explicada, de modo cabal, por -motivos fisiol6gicos; nas aves, por exemplo, deve-se 4 necessidade de protegio A fémea enquanto esta choca os ovos; os exemplos de ficl monogamia que se encon- tram entre as aves nada provam quanto ao homem, pois o homem néo descende da ave. E, se a estrita monogamia é 0 pice da virtude, entéo a palma deve ser dada a ténia soli- 1 Bachofen prova quéo pouco compreendeu o que descobrire, ou antes adivinhara, ao designar tal estado primitivo com o nome de “heterismo”. Quando os gregos introduziram’ esta palavra em seu idioma, o heterismo significava para eles’ contato camal de homens solteiros ou monégamos com mulheres nfo casadas; o heterismo supunha sempre, portanto, uma forma definida de matriménio, fora da qual esse comércio sexual se realiza, ¢ admite a prostituicéo, pelo menos como possibilidade. Jamais a palavra foi empregada com sentido diverso: assim a emprego eu, assim a uso Morgan. Bachofen leva todos os seus important descobrimentos a um plano de insereditével misticismo, pois imagina que as relagGes entre homens e mulheres, a se transformarem com a evolucdo histérica, se originam das idéias religiosas da humanidade em cada época, © nko de suas condigées reais de existéncia, (Nota da Engels) 2 Charles Letourneau, L’Evolution du Mariage et de la Famille, Paris, 1888. (N. da R.) 32 taria que, em cada um dos seus cingiienta a duzentos anéis, possui um aparelho sexual masculino e feminino completo, e passa a vida inteira coabitando consigo mesma em cada um desses anéis reprodutores. Mas, se nos limitarmos aos mamiferos, neles encontramos todas as formas de vida sexual: a promiscuidade, a unio por grupos, a poligamia, a monogamia; sé falta a poliandria, & qual apenas os seres humanos podiam chegar. Mesmo nossos parentes mais préximos, os quadrimanos, apresentam todas as variedades possiveis de ligagdo entre machos e fémeas; e se nos restringirmos a limites ainda mais estreitos, considerando exclusivamente as quatro espécies de macacos antropomorfos, deles Letourneau s6 nos pode dizer que vivem ora na mono- gamia ora na poligamia; ao passo que Saussure, segundo Gi- raud-Teulon, declara que sio monégamos. Ficam longe de qualquer prova, também, as recentes assertivas de Westermarck (A Histéria do Matriménio Humano,* 1891) sobre a mono- gamia do macaco antropomorfo. Em resumo, os dados sio de tal ordem que o honrado Letourneau esté de acordo em que “nfo h4 nos mamiferos relagéo alguma entre o grau de desenvolvimento intelectual e a forma de unifo sexual’. E Espinas (As Sociedades Animais,? 1877) diz, com franqueza: “A horda é o mais elevado dos grupos sociais que pudemos observar nos animais. Parece composta de familias, mas, j4 em sua origem, @ familia e a horda séo antagénicas, desenvol- vem-se em razdo inversa uma da outra.” Pelo que acabamos de ver, nada de positivo sabemos sobre a famflia e outros agrupamentos sociais dos macacos antropo- morfos; os dados que possuimos contradizem-se frontalmente e nfo h4 por que estranhd-los. Como sao contraditérias, e ne- cessitadas de serem examinadas e comprovadas criticamente, 1 E.A. Westermarck, The History of Human Marriage, Londres, 1891. (N. da R) 2 A. Espinas, Des Sociétés Animales. Etude de Peychologie Comparée, Paris, 1877. (N. da R.), 33 as noticias que temos das tribos humanas no estado selvagem! Pois bem, as sociedades dos macacos séo muito mais dificeis de observar que as dos homens. Por isso, enquanto nfo dis- pusermos de uma informagdo ampla, devemos recusar qualquer conclusio provinda de dados que njo inspirem crédito. Entretanto, o trecho de Espinas que citamos nos d4 melhor ponto de apoio para investigagao. A horda e a familia, nos animais superiores, nio sio complementos reciprocos e sim fendmenos antagénicos. Espinas descreve bem de que modo 0 citime dos machos no periodo do cio relaxa ou suprime momentaneamente os lagos sociais da horda. “Onde a familia est4 intimamente unida, ndo vemos formarem-se hordas, salvo raras excegdes. Pelo contrario, as hordas constituem-se quase que naturalmente onde reinam a promiscuidade ou a poliga- mia... Para que surja a horda, é necess4rio que os lagos fami- liares se tenham relaxado e 0 individuo tenha recobrado sua liberdade. & por isso que sé raramente encontramos bandos organizados entre os pdssaros... Por outro lado, é nos mam{- feros que vamos encontrar sociedades mais ou menos orga- nizadas, justamente porque o individuo neste caso nao é absor- vido pela familia... Assim, pois, a consciéncia coletiva da horda nao pode ter em sua origem um inimigo maior do que a consciéncia coletiva da famflia. Nao hesitamos em dizé-lo: se se desenvolveu uma sociedade superior A familia, isso foi devido somente ao fato de que a ela se incorporaram familias profundamente alteradas, conquanto isso nao exelua a possibi- lidade de que, precisamente por este motivo, aquelas familias pudessem mais adiante reconstituir-se sob condigées infinita- mente mais favordveis.” (Espinas, cap. 1, citado por Giraud- Teulon em Origens do Matriménio e da Familia, 1884,+ pags. 518/520). Como vemos, as sociedades animais tém certo valor para tirarmos conclusées concementes 4s sociedades humanas, mas 1 A.Giraud-Teulon, Les Origines du Marlage et de la Famille, Genebra, 1884. (N. da R.) 34 somente num sentido negative. Pelo que é de nosso conhe- cimento, 0 vertebrado superior apenas conhece duas formas de familia: a poligamica e a monogdmica. Em ambos os casos sé se admite um macho adulto, um marido. Os citmes do macho, a um sé tempo lago ¢ limite da famflia, opdem-na a horda; a horda, forma social mais elevada, torna-se impossivel em certas ocasiées, e em outras, relaxa-se ou se dissolve durante © periodo do cio; na melhor das hipéteses, seu desenvolvi- mento vé-se contido pelos citimes dos machos. Isso é sufi- ciente para provar que a familia animal e a sociedade humana primitiva sdo coisas incompativeis; que os homens primitivos, na época em que lutavam por sair da animalidade, ou nao tinham nenhuma nogio de familia ou, quando muito, conhe- ciam uma forma nfo encontrada entre animais. Um animal t&o sem meios de defesa como aquele que se estava tomando homem péde sobreviver em pequeno numero, inclusive numa situagio de isolamento, em que a forma de sociabilidade mais evoluida era o casal, forma que Westermarck, baseando-se em informagées de cagadores, atribui ao gorila e ao chipanzé, Mas, para sair da animalidade, para realizar o maior progresso que a natureza conhece, era preciso mais um elemento: subs- tituir a falta de poder defensivo do homem isolado pela unido de forgas e pela agio comum da horda. Partindo das con- digdes conhecidas em que vivem hoje os macacos antropo- morfos, seria simplesmente inexplicAvel a passagem & huma- nidade; esses macacos d&o-nos mais a impresséo de linhas colaterais desviadas e em vias de extinguir-se, e que, no mi- nimo, se encontram em processo de decadéncia. Isso basta para se rechagar todo paralelo entre suas formas de familia e as do homem primitivo. A tolerdncia reciproca entre os machos adultos e a auséncia de citimes constituiram a primeira condigio para que se pu- dessem formar esses grupos numerosos e estAveis, em cujo seio, unicamente, podia operar-se a transformagio do animal em homem, E, com efeito, que encontramos como forma mais antiga e primitiva da familia, cuja existéncia indubitdvel nos demonstra a Histéria, e que ainda hoje podemos estudar em 35 certos lugares P O matriménio por grupos, a forma de casa- mento em que grupos inteiros de homens e grupos inteiros de mulheres pertencem-se mutuamente, deixando bem pouca mar- gem para os ciiimes. Além disso, numa fase posterior de desen- volvimento, vamos nos deparar com a poliandria, forma excep- cional, que exclui, em medida ainda maior, os chimes, e que, por isso, 6 desconhecida entre os animais. Todavia, como as formas de matriménio por grupos que conhecemos siio acom- panhadas de condigées tio peculiarmente complicadas que nos indicam, necessariamente, a existéncia de formas anteriores mais simples de relagdes sexuais e assim, em tltima anélise, um periodo de promiscuidade correspondente & passagem da animalidade & humanidade, — as referéncias aos matriménios animais conduzem-nos, de novo, ao mesmo ponto de onde deviamos ter partido de uma vez para sempre. Que significam relagdes sexuais sem entraves ? Significa que nao existiam os limites proibitivos vigentes hoje ou numa época anterior para essas relagdes. J4 vimos cairem as bar- reiras dos citmes. Se algo péde ser estabelecido irrefutavel- mente, foi que o citime é um sentimento que se desenvolveu relativamente tarde. O mesmo acontece com a idéia de incesto. Nao sé na ‘época primitiva irmio e irmA eram marido e mu- Ther, como também, ainda hoje, em muitos povos ¢ licito o comércio sexual entre pais e filhos. Bancroft (As Racas Na- fivas dos Estados da Costa do Pacifico na América do Norte,* 1875, tomo I) testemunha a existéncia dessas relagdes entre kadiakos do Estreito de Behring, os kadiakos das cercanias do Alasca e os tinnehs do interior da América do Norte inglesa; Letourneau reuniu numerosos fatos idénticos entre os indios chipevas, os kukus do Chile, os caribes, os karens da Indo- china; e isso deixando de lado o que contam os antigos gregos e romanos a respeito dos partos, dos persas, dos citas e dos hunos, ete. Antes da invengio do incesto (porque é uma 1 H. H. Banoroft, The Native Races of the Pacific States of North ‘America, vols, W/V, Nova York, 1875/1876. (N. da R.) 36 invengio e das mais valiosas), 0 comércio sexual entre pais € filhos nfo podia ser mais repugnante que entre outras pessoas de geragSes diferentes, coisa que ocorre em nossos dias até nos paises mais beatos, sem produzir grande horror. Velhas “don- zelas” de mais de setenta anos casam-se, se so bastante ricas, com jovens de uns trinta anos. Mas, se despojarmos as formas de familia mais primitivas que conhecemos das concepgées de incesto que lhes correspondem (concepgdes completamente diferentes das nossas e muitas vezes em contradigio direta com elas), chegaremos a uma forma de relagdes carnais que sé pode ser chamada de promiscuidade sexual, no sentido de que ainda nio existiam as restrigdes impostas mais tarde pelo costume. Mas disso néo se deduz, de modo algum, que na pratica cotidiana imperasse inevitavelmente a promiscuidade. As unides tempordrias por pares no ficam excluidas, em abso- luto, e ocorrem, na maioria dos casos, mesmo no matriménio por grupos. E se Westermarck, o ultimo a negar esse estado Primitivo, d4 o nome de matriménio a todo caso em que os dois sexos convivem até o nascimento de um pimpolho, pode-se dizer que tal matriménio podia muito bem verificar-se nas condig6es da promiscuidade sexual sem contradizé-la em nada, isto é, sem contradizer a inexisténcia de barreiras impostas pelo costume as relagSes sexuais. & verdade que Westermarck parte do ponto-de-vista de que “a promiscuidade supée a su- pressio das inclinagdes individuais”, de tal sorte que “sua forma por exceléncia é a prostituigio”, Parece-me, ao contrdrio, que ser impossivel formar a menor idéia das condicées primitivas enquanto elas forem observadas através da janela de um lu- panar. Voltaremos a falar desse assunto quando tratarmos do matriménio por grupos, Segundo Morgan, desse estado primitivo de promiscuidade, provavelmente bem cedo, formaram-se: 1 a Famfiia consanciinea, a primeira etapa da familia. Nela, 0s grupos conjugais classificam-se por geragdes: todos os avés 37 e avés, nos limites da famflia, sio maridos e mulheres entre si; © mesmo sucede com seus filhos, quer dizer, com os pais e miies; os filhos destes, por sua vez, constituem o terceiro cfr- culo de cénjuges comuns; e seus filhos, isto é, os bisnetos dos primeiros, o quarto circulo. Nessa forma de familia, os ascen- dentes e descendentes, os pais ¢ filhos, so os tinicos que, reci- procamente, esto exclufdos dos direitos e deveres (poderiamos dizer) do matriménio. Irmios e irmas, primos e primas, em primeiro, segundo e restantes graus, sio todos, entre si, irmios e irmas, e por isso mesmo maridos e mulheres uns dos outros. O vinculo de irmio e irmi pressupée, por si, nesse periodo, a relag’o camal mitua. * 1 Em uma carta escrita na primavera de 1882, Marx condena, nos mais Asperos termos, o falseamento dos tempos primitivos nos Nibelungos de Wagner. “Onde jd se viu que o irmdo abrace a inmd, como uma noiva?” A estes “deuses da loxiria” wagnerfanos, que, no estilo mo- derno, tornam mais picantes surs aventuras amorosas com certa dose de incesto, responde Marx: “Nos tempos primitivos, a irmd era esposa e isso era moral”. (Nota de Engels) A quarta edicso do presente livro, Engels acrescentou,. nesse ponto, outra nota sobre o assunto. A seguir reproduzimo-la: — Um amigo meu, francés, grande adorador de Wagner, nfo est4 de acordo com a nota precedente, e adverte que ja no Ogisdrecka um dos antigos Eddas que serviu de base a Wagner, Loki, dirige a Freya esta recriminagéo: “Abragaste teu préprio irmao diante dos deuses.” Do qpe parece ser possivel inferir-se que, j4 naquela época, estava protbido © casamento entre inmio e irml. O Ogisdrecka, no entanto, é expressio de uma época em que j4 estava completamente destruida a fé nos an- tigos mitos; constitui uma simples satira, no estilo da de Luciano, contra os deuses. Se Loki, representando o papel de Mefist6feles, dirige ali semelhante recriminagio a Freya, isso constitui antes um argumento contra Wagner. Alguns versos mais adiante, Loki diz, também, a Niordhr: “Tal 6 o filho que procriaste com tua irm& (“Vodh systur thinni gaztu slikan mong.”) Pois bem, Niordhr nao é um Ase, e sim um Vane, e na saga dos Inglinga ‘estA dito que os casamentos entre irmao e irm& eram praticades no pais dos Vanes, 0 que nao ocorria entre os ‘Ases. Isso tenderia a provar que os Vanes eram deuses mais antigos do que os Ases. Em todo caso, Niordhr vive entre os Ases em pé de igualdade, e a Ogisdrecka & assim, uma prova de que, no tempo da 88 Exemplo tipico de tal famflia seriam descendentes de um casal, em cada uma de cujas geragdes sucessivas todos fossem entre si irmfos e irmas e, por isso mesmo, maridos e mulheres uns dos outros. A familia consangiiinea desapareceu. Nem mesmo os povos mais atrasados de que fala a histéria apresentam qualquer exemplo seguro dela. Mas o que nos obriga a reconhecer que ela deve ter existido é 0 sistema de parentesco havaiano, ainda vigente em toda a Polinésia, e que expressa graus de paren- tesco consangiiineo que sé puderam surgir com essa forma de familia; e somos levados 4 mesma conclusio‘por todo o desen- volvimento ulterior da familia, que pressupde essa forma como estigio preliminar necessério. 2 4 raMftA PUNALUANA. Se 0 primeiro Progresso na organi- zagio da familia consistiu em excluir os pais e filhos das re- lagdes sexuais recfprocas, 0 segundo foi a exclusdo dos irmios. Esse progresso’ foi infinitamente mais importante que o pri- meiro e, também, mais dificil, dada a maior igualdade nas idades dos participantes. Foi ocorrendo pouco a pouco, prova- velmente comegando pela exclusio dos irmios uterinos {isto 6, irmios por parte de mie), a principio em. casos isolados e depois, gradativamente, como regra geral (no Havai ainda havia excegdes no presente século) e acabando pela proibigo do matriménio até entre irmios colaterais (quer dizer, segundo nossos atuais nomes de parentesco, entre primos carnais, primos em segundo e terceiro graus). Segundo Morgan, esse progresso constitui “uma magnifica ilustragao de como atua o principio formacéo das sagas norueguesas, o matriménio entre irmio 6 irm& nfo produzia horror algum, pelo menos entre os deuses. Se se quer des- culpar Wagner, em lugar de recorrer ao Edda talvez fosse melhor invocar Goethe, que na balada O Deus ¢ a balladeira comete falta andlogn, relativamente ao dever religion da mulher de entregar-se nos templos, rito que Gocthe faz assemelhar-se muito A prostituiggo moderna. (Nota de Engels 2 quarta edicao) 39 da selegio natural”. Sem duvida, nas tribos onde esse pro- gresso limitou a reprodugio consangiiinea, deve ter havido um progresso mais rapido e mais completo que naquelas onde o matriménio entre irmaos e irmfs continuou sendo uma regra e uma obrigagao, Até que ponto se fez sentir a acio desse progresso o demonstra a instituigio da gens, nascida direta- mente dele e que ultrapassou de muito seus fins iniciais. A gens formou a base da ordem social da maioria, senio da tota- Yidade, dos povos barbaros do mundo, e dela passamos, na Grécia e em Roma, sem transigdes, civilizagio. : Cada familia primitiva teve que cindir-se, 0 mais tardar depois de algumas geragdes. A economia doméstica do comu- nismo primitivo, que domina com exclusividade até bem avan- gada a fase média da barbérie, prescrevia uma extensio maxima da comunidade familiar, varidvel segundo as circuns- tancias, porém mais ou menos determinada em cada locali- dade. Mas, apenas surgida, a idéia da impropriedade da uniéo sexual entre filhos da mesma mie deve ter exercido sua in- fluéncia na cisio das velhas comunidades domésticas (Haus- gemeinden) e na formagio de outras novas comunidades, que no coincidiam necessariamente com o grupo de familias. Um ou mais grupos de irmas convertiam-se no micleo de uma comunidade, e seus irmos carnais, no nucleo de outra. Da familia consangiiinea saiu, dessa ou de outra maneira andloga, a forma de familia 4 qual Morgan dé o nome de famflia puna- juana. De acordo com o costume havaiano, certo nimero de irmis carnais ou mais afastadas (isto é, primas em primeiro, segundo e outros graus) eram mulheres comuns de seus ma- ridos comuns, dos quais ficavam exclufdos, entretanto, seus priprios irmaos. Esses maridos, por sua parte, nio se cha- mavam entre si irmios, pois j4 nao tinham necessidade de sé-lo, mas “punalua”, quer dizer, companheiro intimo, como quem diz, “associé”. De igual modo, uma série de irmios uterinas ou mais afastados tinham em casamento comum certo ntimero. de mulheres, com exclus@o de suas préprias irmis, e essas mu- Theres chamavam-se entre si “punalua”. Este é 0 tipo clAssico de uma formagio de familia (Familien-formation) que sofreu, 40 mais tarde, uma série de variagdes, e cujo trago caracteristico essencial era a comunidade recfproca de maridos e mulheres no seio de um determinado circulo familiar, do qual foram exclufdos, todavia, no principio, os irmios camais e, mais tarde, também os irmios mais afastados das mulheres, ocorrendo o mesmo com as irmis dos maridos. Esta forma de familia agora nos indica, com a mais per- | feita exatidao, os graus de parentesco, da maneira como os expressa 0 sistema americano. Os filhos das irmas de minha mie sio também filhos desta, assim como os filhos dos irmios de meu pai o sio também deste; e todos eles sio irmas e immios meus. Mas os filhos dos irmaos de minha mie séo sobrinhos e sobrinhas desta, assim como os filhos das irmas de meu pai sio sobrinhos e sobrinhas deste; e todos sio meus. primos e primas. Com efeito, enquanto os maridos das irmas -de minha mie sio também maridos desta e, igualmente, as mulheres dos irmios de meu pai sio também mulheres deste -— de direito, se nem sempre de fato —, a proibicio das relagdes sexuais entre irm&os e irmis pela sociedade levou a divisio dos filhos de irmios e irmis, até ent&o indistintamente consi- derados irmios e irmas, em duas classes: uns continuam sendo, como antes, irm&os e irmas (colaterais); outros — de um lado 0s filhos dos irmios, de outro os filhos das irmis — niio podem continuar mais como irmiios e irmfs, j4 nao podem ter proge- nitores comuns, nem o pai, nem a mie, nem os dois juntos; © por isso se torna necessdria, pela primeira vez, a categoria dos sobrinhos e sobrinhas, dos primos e primas, categoria que no teria sentido algum no sistema familiar anterior. O sistema de parentesco americano, que parece inteiramente absurdo em qualquer forma de famflia que, de um ou de outro modo, se baseia na monogamia, explica-se de maneira racional e justi- fica-se, naturalmente, até em seus menores detalhes, pela fa- milia punaluana. A familia punaluana, ou qualquer forma andloga, deve ter existido pelo menos na mesma medida em que prevaleceu este sistema de parentesco. Essa forma de familia, cuja existéncia no Havai esté de- monstrada, teria sido também demonstrada provavelmente em 41 toda a Polinésia se os piedosos missiondrios, tal como no pas- sado os frades espanhéis na América, tivessem podido ver nessas relagéés anticristfis algo mais que uma simples “abomi- nagao.”1 Quando César nos diz dos bretées — os quais, naquele tempo, estavam na fase média da barbérie — que “cada dez ou doze homens tém mulheres comuns, com a particularidade de, na maioria dos casos, serem irmios e irmis, e pais e filhos”, a melhor explicagio que se pode dar para isso é o matriménio por grupos. As mies barbaras nao tém dez ou doze filhos em idade de manter mulheres comuns; mas 0 sistema americano de parentesco, que corresponde 4 familia punaluana, d4 ensejo a um grande nimero de irmios, posto que todos os pri carnais ou remotos de um homem sao seus irmios. E possivel que a expressio “pais com seus filhos” seja um equivoco de César; esse sistema, entretanto, nao exclui absolutamente que se encontrem em um mesmo grupo conjugal pai e filho, mie e filha, mas apenas que nele se encontrem pai e filha, mae e| filho, Essa forma de famflia nos fornece, também, a expli- cago mais simples para as narragdes de Herdédoto e de outros escritores antigos sobre a comunidade de mulheres entre o povos selvagens e barbaros. O mesmo se pode dizer do que Watson e Kaye contam acerca dos tikurs do Audh, ao norte do Ganges, em seu livro A Populagéo da India? (1868/1872): “Coabitam (quer dizer, fazem vida sexual) quase sem dis- tingZo, em grandes comunidades; e quando dois individuos se consideram marido e mulher, o vinculo que os une é pura- mente nominal.” 1 Os vestigios das relaces sexuais sem restrighes, que Bachofen acredita ter descoberto, seu “Sumpfzeugang”, referem-se ao matriménio por grupos, do qual, hoje, & impossivel duvidar. “Se Bachofen acha Ticenciosos os matriménios punaluanos, um homem daquela época consi- deraria a maior parte dos casamentos atuais entre primos préximos ou. ‘distantes, por linha paterna ou linha materna, téo incestuosos como os. casamentos entre inmfos eonsangiifneos” [Marx]. (Nota de Engels) 2 J. F. Watson e J. W. Kaye, The People of India, vols. 1/VI, Londres, 1868/1872, (N. da R.) 42 Na imensa maioria dos casos, a instituigao da gens parece ter saido diretamente da familia punaluana. & certo que o sis- tema de classes * australiano também representa um ponto de partida para a gens; os australianos tém a gens, mas ainda nao tém a familia punaluana, e sim uma forma mais primitiva de grupo conjugal. Em todas as formas de famflia por grupos, nao se pode saber com certeza quem é 0 pai de uma crianga, mas sabe-se quem é a mae. Ainda que ele chame filhos seus a todos os da familia comum, e tenha deveres maternais para com eles, nem por isso deixa de distinguir seus préprios filhos entre os demais. E claro, portanto, que em toda parte onde existe 0 matriménio por grupos a descendéncia s6 pode ser estabelecida do lado materno, e, por conseguinte, apenas se reconhece a linhagem feminina. Encontram-se nesse caso, de fato, todos os povos sel- vagens e todos os povos que se acham na fase inferior da bar- barie; ter sido o primeiro a fazer essa descoberta foi a segunda grande faganha de Bachofen. Ele designa o reconhecimento exclusivo da filiagio matema e as relagdes de heranga dele deduzidas com o nome de direito materno. Conservo essa ex- pressio por motivo de brevidade, mas ela é inexata, porque naquela fase da sociedade ainda néo existia direito, no sentido juridico da palavra, Tomemos agora, na familia punaluana, um dos dois grupos tipicos — concretamente, o de uma série de irmis carnais e colaterais (isto é, descendentes de irmas carnais em primeiro, segundo e outros graus), com seus filhos e seus irmios carnais ou colaterais por linha materna (os quais, de acordo com nossa premissa, nao sio seus maridos), e teremos exatamente 0 ofr- culo dos individuos que, mais adiante, aparecerao membros de uma gens, na forma primitiva desta instituiggo. Todos tém por tronco comum uma mie e, em virtude dessa origem, os descen- dentes femininos formam geragées de irmas. Porém, os ma- 1 Aqui, como adiante, a palavra classes se refere aos grandes grupos conjugais dos aborigines da Austrilia. (N. da R.) 43 ridos de tais irmis j& nfo podem ser seus irmios; logo, nio podem descender daquele tronco matemo e néo pertencem a este grupo consangitineo, que mais tarde chega a constituir a gens, embora seus filhos pertengam a tal grupo, pois a des- cendéncia por linha matema é a tmica decisiva, por ser a unica certa. Uma vez proibidas as relagdes sexuais entre todos os irmios e irmas — inclusive os colaterais mais distantes — por linha materna, o grupo de que falamos se transforma numa ens, isto é, constitui-se num cfrculo fechado de parentes con- sangiiineos por linha feminina, que ndo se podem casar uns com os outros; e, a partir de entao, este circulo se consolida * cada vez mais por meio de instituigdes comuns, de ordem social e religiosa, que o distingue das outras gens da mesma tribo. Adiante voltaremos, com maiores detalhes, a essa questio. Se considerarmos, contudo, que a gens surge da familia puna- luana, nao sé necessdria mas naturalmente, teremos funda- mento para considerar quase indubitavel a existéncia anterior dessa forma de familia em todos os povos em que podem ser comprovadas instituigdes gentilicas, isto é, em quase todos os povos brbaros e civilizados, Quando Morgan escreveu seu livro, nossos conhecimentos sobre o matriménio por grupos eram muito limitados. Sabia-se de alguma coisa do matriménio por grupos entre os australianos organizados em classes e, além disso, Morgan j& havia publi- cado em 1871 todos os dados que possufa a respeito da familia punaluana no Havai. A famflia punaluana propiciava, por um lado, a explicagaéo completa do sistema de parentesco vigente entre os indios americanos e que tinha sido o ponto de partida de todas as investigacdes de Morgan; por outro lado, era a base para a dedugao da gens do direito materno; e, finalmente, era um grau de desenvolvimento muito mais alto que o das classes australianas, Compreende-se, pois, que Morgan a con- cebesse como estigio de desenvolvimento imediatamente an- terior ao matriménio sindidsmico e lhe atribufsse uma difusao geral nos tempos primitivos. Desde entio, chegamos a co- nhecer outra série de formas de matriménio por grupos, e agora sabemos que Morgan foi longe demais nesse ponto. No 44 entanto, em sua familia punaluana, ele teve a felicidade de encontrar a mais elevada, a classica forma do matriménio por Stupos, a forma que explica de maneira mais simples a passa- gem a uma forma superior, Se houve um considerdvel enriquecimento nas nogdes que temos do matriménio por grupos, devemo-lo, sobretudo, ao missiondrio inglés Lorimer Fison, que, durante anos, estudou essa forma de familia em sua terra clAssica, a Australia. Entre os negros australianos do monte Gambier, no sul da Australia, foi onde encontrou o mais baixo grau de desenvolvimento. A tribo inteira divide-se, ali, em duas grandes classes: os krokis e os kumites. Sao terminantemente proibidas as relagdes se- xuais no seio de cada uma dessas classes; em compensagio, todo homem de uma dessas classes é marido nato de toda mulher da outra, e reciprocamente. Nao sao os individuos, mas os grupos inteiros, que estéo casados uns com os outros, classe com classe. E note-se que ali nfo h4, em parte alguma, res- trigdes por diferengas de idade ou de consangitinidade especial, salvo a determinada pela divisio em duas classes ex6gamas. Um kroki tem, de direito, por esposa, toda mulher komite; e, como sua propria filha, como filha de uma komite, é também komite, em virtude do direito materno, é, por causa disso, esposa nata de todo kroki, inclusive de seu pai. Em qualquer caso, a organizagSo por classes, tal como se nos apresenta, nfo opée a isto nenhum obstéculo. Assim, pois, ou essa organizagio apareceu ein uma época em que, apesar da tendéncia instin- tiva de se limitar o incesto, nfo se via ainda qualquer mal nas relagSes sexuais entre filhos e pais — ¢, ent&o, o sistema de classes deve ter nascido diretamente das condigdes do inter- curso sexual sem restrigdes — ou, ao contrdrio, quando se criaram as classes, estavam {4 proibidas, pelo costume, as re- lagdes sexuais entre pais e filhos, e, ento, a situagdo atual assinala a existéncia anterior da familia consangiiinea e cons- titui o primeiro passo dado para dela sair. Esta ultima hipé- tese é a mais verossimil. Que eu saiba, nao se encontram exemplos de unido conjugal entre pais e filhos’na Austrélia; e, além disso, a forma posterior da exogamia, a gens baseada 4 no direito materno, pressupée tacitamente a proibigio desse comércio como coisa que havia sido jA estabelecida antes do seu aparecimento. ‘O sistema das duas classes encontra-se nao sé na regiio do monte Gambier, ao sul da Australia, mas, ainda, nas mar- gens do rio Darling, mais a leste, e em Queensland, no nor- deste, de modo que esté bastante difundido. Este sistema apenas exclui os matriménios entre irmios e irmis, entre filhos de irmios e entre filhos de irmas por linha materna, porque estes pertencem 4 mesma classe; os filhos de irmio e irm4, ao contrario, podem casar-se uns com os outros. Um novo passo no sentido da proibigéo do casamento entre consangiifneos ebservamos entre os kamilarois, 4s margens do Darling, na Nova Gales do Sul, onde duas classes origindrias se cindiram em quatro, e onde cada uma dessas quatro classes casa-se, inteira, com outra determinada. As duas primeiras classes sio esposos natos, uma da outra; mas, segundo a mie pertenga 4 primeira ou & segunda, passam os filhos 4 terceira ou 4 quarta. Os “filhos destas duas ultimas classes, igualmente casadas uma com a outra, pertencem, de novo, 4 primeira e 4 segunda. De sorte que sempre uma geragio pertence a primeira e A segunda classe, a geracéo seguinte, A terceira e 4 quarta, e a que vem imediatamente depois, de novo 4 primeira e A segunda classe. Do que se deduz que filhos de irmfo e irma (por linha ma- tera) nfo podem ser marido e mulher, porém podem sé-lo os netos de irmfo e irm&. Este tio complicado sistema en- reda-se ainda mais, pois enxerta-se nele, mais tarde, a gens baseada no direito materno; nesse ponto, contudo, nio podemos, aqui, entrar em mintcias. Observamos, pois, que a tendéncia pata impedir o matriménio entre consangiifneos manifesta-se aqui e ali, mas de maneira espontdnea, em tentativas, sem uma consciéncia clara dos fins objetivados, O matriménio por grupos, que, na Australia, é também um matriménio por. classes, a unifo conjugal em massa de toda uma classe de homens, freqiientemente disversa pelo conti- nente inteiro, com toda uma classe de mulheres ndo menos 46 dispersa, esse matriménio por grupos, visto de perto, nfo é tio monstruoso como o figura a fantasia dos filisteus, acostumados & sociedade da prostituigao. Ao contrério, transcorreram muitos anos antes de que se viesse a suspeitar de sua existéncia, a _ qual, na verdade, foi posta de novo em diivida s6 muito recen- temente. Aos olhos do observador superficial, parece uma monogamia de vinculos bastante frouxos e, em alguns lugares, uma poligamia acompanhada de infidelidade ocasional. £ necessério consagrar-Ihe anos de estudo, como fizeram Fison e Howitt, para descobrir nessas relagdes conjugais (que, na prdtica, recordam muito bem A generalidade dos europeus os costumes de suas patrias) a lei em virtude da qual o negro australiano, a milhares de quilémetros de seu lar, nem por isso deixa de encontrar, entre gente cuja linguagem nao com- preende — e amiide em cada acampamento, em cada tribo — mulheres que se lhe entregam voluntariamente, sem resisténcia; lei por forga da qual quem tem varias mulheres cede uma a: seu héspede para ele passar a noite. Ali, onde o europeu vé imoralidade e auséncia de qualquer lei, reina, de fato, uma lei rigorosa, As mulheres pertencem a classe conjugal do forasteiro e so, por conseguinte, suas esposas natas; a mesma lei moral que destina um a outro, profbe, sob pena de infamia, todo intercurso sexual fora das classes conjugais que se pertencem reciprocamente, Mesmo nos lugares onde se pratica 0 rapto das mulheres, que ocorre amitde e em varias regides 6 regra a lei das classes é mantida escrupulosamente. No rapto das mulheres, encontram-se, j4, indicios da pas- sagem & monogamia, pelo menos na forma de casamento sins diésmico; quando um jovem, com ajuda de seus amigos, rapta, & forca ou pela sedugdo, uma jovem, ela é possuida por todos, um em seguida ao outro, mas depois passa a ser esposa do pro- motor do rapto. E, inversamente, se a mulher roubada foge da casa de seu marido e é recolhida por outro, torna-se esposa deste ultimo, perdendo o primeiro suas prerrogativas. Ao lado e no seio do matriménio por grupos, que, em geral, continua existindo, encontram-se, pois, relagdes exclusivistas, uniées por casais, a prazo mais ou menos longo, e também a poligamia; a de maneira que também aqui o matriménio por grupos vai se extinguindo, ficando o problema reduzido a sabet-se quem, sob a influéncia européia, desaparecer4 primeiro da cena: o matriménio por grupos ou os negros australianos que ainda o praticam. © matriménio por classes inteiras, tal como existe na Aus- tralia, é, em todo caso, uma forma muito atrasada e muito primitiva do matriménio por grupos, ao passo que a familie punaluana constitui, pelo que nos é dado conhecer, 0 seu grau. superior de desenvolvimento. O primeiro parece ser a forma correspondente ao estado social dos selvagens errantes; a se- gunda ja pressupde o estabelecimento fixo de comunidades comunistas e conduz diretamente ao grau imediatamente supe- rior de desenvolvimento. Entre essas duas formas de matri- ménio, encontraremos ainda, sem diivida, graus intermedirios; este é um terreno para pesquisas que apenas foi descoberto, no qual somente se deram os primeiros passos, - 3 A ramitia sinpiisMica. No regime de matriménio por grupos, ou talvez antes, j4 se formavam unides por pares, de duragio mais ou menos longa; o homem tinha uma mulher principal (ainda nfo se pode dizer que fosse uma favorita) entre suas numerosas esposas, e era para ela o esposo principal entre todos os outros. Esta circunstancia contribuiu bastante para a confusio produzida na mente dos missionérios, que véem no matriménio por grupos ora uma comunidade pro- miscua das mulheres, ora um adultério arbitrdrio. A medida, porém, que evolufam as gens e iam-se fazendo mais numerosas as classes de “irmios” e “irmis”, entre os quais agora era im- possivel o casamento, a unifio conjugal por pares, baseada no costume, foi-se consolidando. O impulso dado pela gens & proibiggo do‘ matriménio entre parentes consangiiineos levou as coisas ainda mais longe. Assim, vemos qué entre os iro- queses e entre a maior parte dos indios da fase inferior da barbérie, est4 proibido o matriménio entre todos os parentes 8 reconhecidos pelo seu sistema, no qual hd algumas centenas de parentescos diferentes. Com esta crescente complicagao das proibigdes de casamento, tornaram-se cada_vez mais impossiveis -as_unides por grupos, que foram substituidas pela familia sin- didsmica. Neste estgio, um homem vive com uma mulher, mas de maneira tal que a poligamia e a infidelidade ocasional continuam a ser um direito dos homens, embora a poligamia seja raramente observada, por causas econdmicas; ao mesmo tempo, exige-se a mais rigorosa fidelidade das mulheres, en- quanto dure a vida em comum, sendo o adultério destas cruel- mente castigado. O vinculo conjugal, todavia, dissolve-se com facilidade por uma ou por outra parte, e depois, como antes, os filhos pertencem exclusivamente a mie. Nessa exclusao, cada vez maior, que afeta os parentes con- sangiiineos do lago conjugal, a selegio natural continua a produ- zir seus efeitos. Segundo Morgan, o “matriménio entre gens nao consangiiineas engendra uma raca mais forte, tanto fisica como mentalmente; mesclavam-se duas tribos adiantadas, e os novos cranios e cérebros cresciam naturalmente até que compreen- diam as capacidades de ambas as tribos”. As tribos que haviam adotado 0 regime das gens estavam chamadas, pois, a predo- minar sobre as mais atrasadas, ou a arrast4-las com seu exemplo. A evolugio da familia nos tempos pré-histéricos, portanto, consiste numa redugio constante do cfrculo em cujo seio pre- yalece a comunidade conjugal entre os sexos, circulo que origi- nariamente abarcava a tribo inteira. A exclusdo progressiva, primeiro dos parentes préximos, depois dos parentes distantes e, por fim, até das pessoas vinculadas apenas por alianga, toma impossivel na pratica qualquer matriménio por grupos; como tiltimo capitulo, nao fica senfo o casal, unido por vinculos ainda frageis — essa molécula com cuja dissociagio acaba o matri- ménio em geral. Isso prova quio pouco tem a ver @ origem da monogamia com o amor sexual individual, na atual acepgao da palavra. Prova-o ainda melhor a pratica de todos os povos que se acham nesta fase de seu desenvolvimento. Enquanto nas anteriores formas de familia os homens nunca passavam 49 por dificuldades para encontrar mulheres, e tinham até mais do que precisavam, agora as mulheres escasseavam e era ne- cess4rio procur4-las. Por isso comegam, com o matriménio sin- diésmico, o rapto e a compra de mulheres, sintomas bastante difundidos, mas nada além de sintomas de uma transformagio muito mais profunda que se havia efetuado. Mac Lennan, esse escocés pedante, transformou, por arte de sua fantasia, tais sintomas, que nic passam de simples métodos de adquirir mulheres, em diferentes classes de familias, sob a forma de‘ “matriménio por rapto”, e “matriménio por compra”. Além do mais, entre os indios da América e em outras tribos (no mesmo est4gio), 0 arranjo de um matriménio no concerne aos inte- ressados, aos quais muitas vezes nem se consulta, ¢ sim a suas mies. Comumente, desse modo, ficam comprometidos dois seres que nem sequer se conhecem e de cujo casamento sé ficam sabendo quando chega o momento do enlace. Antes do casamento, o noivo d4 _presentes aos parentes_genttlicos_da_ noiva (quer dizer: aos parentes desta por parte de mie, ex- cluidos os parentes por parte de pai.e o préprio pai) e esses presentes sio considerados como o prego pelo qual o homem compra a jovem nébil que lhe cedem. O matriménio.¢ disso- Tével a vontade um dos, eénjuges. Em numerosas tribos, contudo, como, por exemplo, entre os iroqueses, for- mou-se, pouco a pouco, uma opinido piblica hostil a essas separagées; em caso de disputas entre os cinjuges, intervinham os parentes gentilicos.de cada parte e sé se esta mediagio nfio surtisse efeito 6 que se levava a cabo o rompimento, perma- necendo o filho com a mulher e ficando cada uma das partes livre para casar novamente. A famflia sindidsmica, demasiado débil e instével por si mesma para fazer sentir a necessidade ou simplesmente o de- sejo de um lar particular, néo suprime, em absoluto, o lar comunista que nos apresenta a época precedente. Mas lar comunista significa predominio da mulher na casa; tal como © reconhecimento exclusivo de uma mée prépria, na impossi- bilidade de conhecer com certeza o verdadeiro pai; significa alto apreco pelas mulheres, isto 6, pelas maes. Uma das iddias 50 mais absurdas que nos transmitiu a filosofia do século XVIN é a de que na origem da sociedade a mulher foi escrava do homem. Entre todos os selvagens e em todas as tribos que se encontram nas fases inferior, média e até (em parte) su- perior da barb4rie, a mulher no sé é livre como, também, muito considerada. Artur Wright, que foi durante muitos anos missionario entre os iroqueses-senekas, pode atestar qual é a situagio da mulher, ainda no matriménio sindidsmico: “A respeito de suas familias, na época em que ainda viviam nas antigas casas-grandes (domicflios comunistas de muitas fa- milias)... predominava sempre l4 um cla (uma gens) e as mulheres arranjavam maridos em outros clas (gens)... Habi- tualmente as mulheres mandavam na casa; as provisées eram comuns, mas — ai do pobre marido ou amante que fosse pre- guigoso ou desajeitado demais para trazer sua parte ao fundo de provisées da comunidade! Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa, podia, a qualquer momento, ver-se obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora. E era intitil tentar opor resisténcia, porque a casa se convertia para ele num infemo; no havia remédio senio o de voltar ao seu préprio cli (gens) ou, 0 que costumava acontecer com fre- qiiéncia, contrair novos matriménio em outro. As mulheres constitufam a grande forga dentro dos clis (gens) e, mesmo, em todos os lugares. Elas nfo vacilavam, quando a ocasiéo exigia, em destituir um chefe e rebaix4-lo 4 condigio de mero guerrero.” A economia doméstica comunista, em que a maioria das mulheres, se nfo a totalidade, 6 de uma mesma gens, 20 passo que os homens pertencem a outras gens. diferentes, é a base efetiva daquela preponderfncia das mulheres que, nos tempos primitivos, esteve difundida por toda parte — fend- meno cujo descobrimento constitui o terceiro mérito de Ba- chofen. Posso acrescentar que os relatos dos viajantes e dos missiondrios acerca do trabalho excessivo com que se sobre- carregam as mulheres entre os selvagens e os barbaros nio esto, de modo. algum, em contradic&io com o que acabo de dizer, A divistio do trabalho entre os dois sexos depende de outras causas que nada tém a ver com a posigao da mulher 61 na sociedade. Povus nos quais as mulheres se véem obrigadas a trabalhar muito mais do que lhes caberia, segundo nossa maneira de ver, tém freqiientemente muito mais consideragio teal por elas que os nossos europeus. A senhora civilizada, cercada de aparentes homenagens, estranha a todo trabalho efetivo, tem uma posigéo social bem inferior A mulher bar- bara, que trabalha duramente, e, no seio do seu Povo, vé-se respeitada como uma verdadeira dama (lady, frowa, frau = senhora) e 0 é de fato por sua propria posigao. Novas investigagdes acerca dos povos do noroeste € so- bretudo no sul da América, que ainda se acham na fase supe- tior do estado selvagem, deverao dizer-nos se o matriménio sindidsmico substituiu ou no por completo hoje, na América, © matriménio por grupos. Quanto aos sul-americanos, sio teferidos tio variados exemplos de licenga sexual que se toma dificil admitir 0 desaparecimento completo do antigo matri- ménio por grupos. Em todo caso, ainda néo desapareceram todos os seus vestigios. Pelo menos, em quarenta tribos da América do Norte, o homem que se casa com a moga mais idosa tem direito a tomar igualmente como mulheres a todas as irmas da mesma, logo que cheguem A idade propria. Isto é um vestigio da comunidade de maridos para todo um grupo de irmfs. Dos habitantes da peninsula da Califérnia (fase superior do estado selvagem), conta Bancroft que tém certas festividades em que se retmem varias “tribos” para praticar o intercurso sexual mais promfscuo. Com toda a evidéncia sfio ens, que, nesses festas, conservam uma ?aga reminiscéncia do tempo em que as mulheres de uma gens tinham por maridos comuns todos os homens de outra, e reciprocamente. O mesmo costume impera ainda na Australia. Em alguns povos, acon- tece que os ancifos, os chefes e os feiticeiros sacerdotes pra- ticam, em proveito préprio, a comunidade de mulheres e mo- nopolizam a maior parte delas; em compensacio, porém, durante certas festas e grandes assembléias populares, sfio obrigados a admitir a antiga posse comum e a permitir que suas mulheres se divirtam com os homens jovens. Westermarck 52 (pags. 32 e 33) dd uma série de exemplos de saturnais* desse género, nas quais ressurge, por pouco tempo, a antiga liber- dade de intercurso sexual: entre os hos, os santalas, os pan- dchas e os cotaros, na India, em alguns povos africanos, ete. Westermarck deduz, de maneira assaz estranha, que estes fatos’ no constituem restos do matriménio por grupos — cuja exis- téncia ele nega — e sim restos do perfodo do cio, que os ho- mens primitivos tiveram em comum com os animais. ‘Chegamos ao quarto grande descobrimento de Bachofen: o da grande difuséo da forma de transigo do matriménio por grupos ao matriménio sindidsmico. Aquilo que Bachofen re- presenta como uma peniténcia pela transgressio de antigos mandamentos dos deuses, uma peniténcia imposta & mulher para ela comprar seu’ direito & castidade, nfo passa, em re- sumo, de uma expresso mistica do resgate mediante o qual a mulher se liberta da antiga comunidade de maridos e ad- quire para si o direito de nfo se entregar a mais de um homem. Esse resgate consiste em deixar-se possuir, durante um determinado perfodo: as mulheres babilénicas estavam obrigadas a entregar-se uma vez por ano, no templo de Mi- lita, outros povos da Asia Menor enviavam suas filhas ao templo de Anaitis, * onde, durante anos inteiros, elas deveriam praticar o amor livre com os favoritos que escolhessem, antes de Thes ser concedida permissio para casarem-se; em quase todos os povos asidticos de entre o Mediterraneo e o Ganges h prdticas andlogas, disfargadas em costumes religiosos. ‘© sacrificio de expiagio, que desempenha o papel do resgate, torna-se, com 0 tempo, cada vez mais ligeiro — como nota Bachofen: “A oferenda, repetida a cada ano, cede lugar a um sacrificio feito uma wnica vez; ao heterismo das ma- 1 Saturnais: Festas de massa designadas segundo o deus romano Sa turno, que se celebravam na antiga Roma em comemoragio ao término da semeadura. Designagio geral pare farras desbragadas © comércio sexual prom{scuo, (N. da R.) 2 Milita: Deusa babilénica do amor, (N. da R.) 3 Anaitis: Deusa do amor da Antiga Tirana. (N. da R.) tronas, segue-se o das fovens solteiras; verifica-se a pratica antes do matriménio, ao invés de durante o mesmo; e em lugar de abandonar-se a todos, sém ter o direito de escolher, a mulher jé ndo se entrega senio a certas pessoas.” (Direito Ma- terno,! pAg. xix.) Em outros povos nao existe esse disfarce religioso; entre alguns deles — os trAcios, os celtas, etc., na antiguidade, em grande numero de aborigines da tndia, nos povos malaios, nos _ilhéus da Oceania e entre muitos indios americanos, hoje — as jovens gozam de maior liberdade sexual até contrairem ma- triménio, Assim acontece, sobretudo, na América do Sul, con- forme podem atesté-lo quantos hajam penetrado um pouco em seu interior. De uma rica familia de origem india, refere Agassiz (Viagem pelo Brasil,? Boston, 1886, pg. 226) que, tendo conhecido a filha da casa, perguntou-lhe por seu pai,” supondo que seria o marido de sua mie, oficial do exército em campanha contra o Paraguai; mas a mie lhe respondeu, com um sorriso: “Néo tem pai, é filha da fortuna”®. “As mulheres indias ou mestigas falem sempre neste tom, sem con- siderar vergonhoso ou censur4vel, de seus filhos ilegitimos; e essa é a regra, ao passo que 0 contrério parece ser a excegio. Os filhos[ . . .], amiéde conhecem apenas sua me, porque todos os cuidados e todas as responsabilidades recaem sobre ela; nada sabem a respeito do pai, nem parece possa ocorrer A mulher a idéia de que ela ou seus filhos tenham o direito de reclamar dele alguma coisa.” O que aqui parece assombroso ao homem civilizado é simplesmente a regra no matriarcado e no matri- ménio por grupos, Em outros povos, os amigos e parentes do noivo, ou os convidados 4 celebragio das bodas, exercem, durante o casa- mento mesmo, 0, direito A noiva, por costume imemorial, e ao 1 J. J. Bachofen, Das Mutterrocht, Stuttgart, 1861. (N. da R.) 2 L. Agassiz, A Journey in Brazil, Boston, 1886. (N. da-R.) 3 Em portugués, no original alemfo. Engels traduz a seguir. (Nota dy Tradutor) 54 noivo sé chega a vez por tiltimo, depois de todos; isso se dava nas ilhas Baleares e entre os augilas africanos, na antiguidade, e ocorre ainda hoje entre os bareas, na Abissinia. H4 povos, ainda, em que um personagem oficial, chefe da tribo ou da gens, cacique, xama, sacerdote ou principe, aquele que repre- senta a coletividade, é quem exerce com a mulher que se casa o direito da primeira noite (jus primae noctis.)+ Apesar de todos os esforgos neo-romanticos para coonesté-lo, esse jus primae noctis continua existindo, em nossos dias, como uma reliquia do matriménio por grupos, entre a maioria dos habi- tantes do territério do Alasca (Bancroft: Tribos Nativas, I, pag. 81), entre os tanus do norte do México (op. cit., pag. 584) e entre outros povos; e existiu durante toda a Idade Média, pelo menos nos paises de origem céltica, onde nasceu dire- tamente do matriménio por grupos; em Aragiio, por exemplo, Enquanto em Castela o camponés nunca foi servo, em Aragio - reinou 2 servidio mais abjeta até a sentenga ou édito arbitral de Femando, 0 Catdlico, em 1486, documento onde se diz: “Julgamos e determinamos que os senhores (senyors, bardes) supraditos tampouco poderdo passar a primeira noite com a mulher que haja tomado de um camponés, nem poderio, igual- mente, durante a noite das nupeias, depois que a mulher se tenha deitado na cama, passar a perna por cima da cama ou da mulher, em sinal de sua soberania. Nem poderfio os supra- ditos senhores servir-se das filhas ou filhos dos camponeses contra a vontade deles, com ou sem pagamento.” (Citado, segundo o texto original em cataldo, pot Sugenheim. A Ser- vidio,® Sio Petersburgo, 1861, pg. 35). Afora isso, Bachofen tem evidente razio quando afirma que a passagem do que ele chama de “heterismo” ou “Sum- 1 Direito & primeira noite. Na época do feudalismo, 0 direito que tem © senor feudal 4 primeira noite com 2 noiva, no casamenta de qualquer de seus servos. (N. da BR.) 2 S, Sugenheim, Geschichte der Aufrebung der Leibelgenschaft und Horigkeit in Europa bis an die Mitte des neunzehnten Jahrhunderts. Sko Petersburgo, 1861. (N. da R.) 55 pfzeugung” & monogamia realizou-se essencialmente gragas as mulheres. Quanto mais as antigas relagdes sexuais perdiam seu cardter inocente primitivo e selyatico, por forga do desenvol- vimento das condigbes econdmicas e, paralelamente, por fora da decomposigio do antigo comunismo, e da densidade cada vez maior da populagio, tanto mais envilecedoras e opressivas devem ter parecido essas relagdes para as mulheres, que com maior forga deviam ansiar pelo direito A castidade, como liber- tagao, pelo direito ao matriménio, tempordrio ou definitivo, com um sé homem. Esse progresso nao podia ser devido 20 homem, pela simples razio, que dispensa outras, de que jamais, ainda em nossa época, Ihe passou pela cabega a idéia de renunciar aos prazeres de um verdadeiro matriménio por grupos. Sé depois de efetuada pela mulher a passagem ao casamento sindidsmico, é que foi poss{vel aos homens intro- duzirem a estrita monogamia — na verdade, somente para as mulheres, A famflia sindidsmica aparece no limite entre o estado selvagem e a barbérie, no mais das vezes durante a fase su- perior do primeiro, apenas em certos lugares durante a fase inferior da segunda. & a forma de familia caracterfstica da barbarie, como o matriménio por grupos é a do estado sel- vagem e a monogamia é a da civilizagio. Para que a familia sindiésmica evolufsse até chegar a uma monogamia estavel, foram necessérias causas diversas daquelas cuja acéo temos estudado até agora. Na familia sindidsmica {4 0 grupo havia ficado reduzido & sua ultima unidade, 4 sua molécula biaté- mica: um homem e uma mulher. A selecdo natural realizara sua Obra, reduzindo cada vez mais a comunidade dos matri- ménios; nada mais havia a fazer nesse sentido. Portanto, se nfo tivessem entrada em jogo novas forcas impulsionadoras de ordem soctal, nfo teria havido qualquer razAo para que da famflia_sindiésmica surgisse outra forma de familia. Mas tais forcas impulsionadoras entraram em jogo. . Deixemos agora a América, terra classica da familia sin- didsmica. Nao hé ind{cios que nos permitam afirmar que nela se tenha desenvolvido alguma forma superior de famflia, que 56 nela tenha existido a monogamia estdvel, em qualquer tempo ou lugar, antes do descobrimento e da conquista. O contrario aconteceu no Velho Mundo. Aqui, a domesticagao de animais e a criagio do gado haviam aberto mananciais de riqueza até entio desconhe- cidos, criando relagdes sociais inteiramente novas. Até a fase inferior da barbdrie, a riqueza duradoura limitava-se pouco mais ou menos 4 habitagSo, As vestes, aos adornos primitivos e aos utensilios necesshrios para a obteng&o e preparagio dos alimentos: 0 barco, as armas, os objetos caseiros mais simples. O alimento devia ser conseguido todo dia, novamente. Agora, com suas manadas de cavalos, camelos, asnos, bois, carneiros, cabras e porcos, os povos pastores, que iam ganhando terreno (0s 4rios, no indiano Pais dos Cinco Rios e no vale do Ganges, assim como nas estepes de Oxus e Jaxartes, na ocasio esplen- didamente irrigadas, e os semitas no Tigre e no Eufrates), haviam adquirido riquezas que precisavam apenas de vigi- lancia e dos cuidados mais primitivos para reproduzir-se em Proporgao cada vez maior e fornecer abundantissima alimen- tag&o de carne e leite. Desde entiio, foram relegados a segundo plano todos os meios anteriormente utilizados; a caga, que em outros tempos era uma necessidade, transformou-se em passa- tempo. A quem, no entanto, pertenceria_essa_riqueza nova ? N&o ha divida de que, na sua origem, pertenceu a gens. Mas bem ‘cedo deve ter-se desenvolvido a propriedade privada. dos_ re- livro de Moisés considerava .0 patriarca Abraio proprietério de seus rebanhos por direito préprio, por ser 0 chefe de uma comunidade familiar, ou em virtude de seu cardter de chefe hereditério de uma gens. Seja como for, 0 certo é que niio devemos imaginé-lo como proprietdrio, no sentido moderno da palavra. E indubit4vel, também, que, nos umbrais da his- téria autenticada, j& encontramos em toda parte os rebanhos como propriedade particular dos chefes de familia, com o mesmo titulo que os produtos artisticos da barbarie, os uten- 57

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