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A traigao das imagens: espelhos, cameras e imagens especulares em reality shows SUZANA KILPP Dados Internacionais de Catalogagio na Publicapio (CIP) 7a ingen ciomspcin | Tluska Ceuttinite- em reality shows. / por Suzana Kilpp. ~ Porto Alegre: Entremeios, “mean CpRounte- (Vt), set/aot | ssa — Televisio. 2. Televisio ~ Reality show ~ Audiovisualidades. 3. Reality show Imagens especulate, 4, Audiovisualidades ~ Televisio~ Reality show. I. Titulo. cpu 6593 Catalogagio na Publicacao: | tc ars nt Cos ds Sas CRB 10/97 ENTRE Ciera Isso nado é um espelho Isso € uma ethicidade, cujo sentido é autenticado por uma metodologia: a das molduras. a esteira de Magritte, iniciamos a pesquisa dizendo que um \ } espetho em reality shons nao é um espelho, Ele até pode ter, 4s vezes, as mesmas funges do espelho que temos em nos- sa propria casa e parecer-se com ele; muitas vezes, porém, ele se pa- rece mais com os das salas de interrogatério, com os de ambientes vigiados, ou até com as paredes envidracadas e transparentes do panéptico. Entdo, ¢ na esteira de Flusser, propusemos que “isso” & uma imagem técnica, um conceito de espelho. Nessa Siero, positivando 0 conceito - em vez de dizer 0 uma. ahicdade. Seria por isso falso? Uma enganacdo? Na verdade, nao, pois essa € uma condigio inexordvel de todas e quaisquer imagens de TV, ¢56 se deve esperar delas o que elas podem ser: isso. Essa é sua realidade. Sem desconsiderar essa inexorabilidade, ha, no entanto, mo- dos histéricos de agir da TV que nos fazem pensar que os conceitos televisivos de espelho sao contingentes e historicamente contextua- lizados. E muito provavel, portanto, que o que discutiremos sobre espelhos em reality shows ~ programas tidos como tais apenas na tl- tima década -, talvez precisasse de uma inscri¢’o memorial do con- ito em contingéncias anteriores, o que ja seria, entretanto, outra isa, ‘Mas tal circunstancia se presta, no escopo da pesquisa em pa- que se justifique a importancia de pensar os construtos televi- m_geral) como circunstanciados a natureza técnica das_ ovisualidades de tevé, razio pela qual fazemos a seguir um retrospecto do que temos afitmado sobre a televisao—sobre a em particular. 16 _twondsdumepatto ‘No Brasil, apés todos esses anos, ainda perdura uma ideolo- gizagio do debate académico sobre a TV, decorrente no situagdo politica que vivemnos hoje, e nem tanto das questées de ‘gosto, nem porque seria, talvez, politicamente correto. Em grande uma resisténcia do objeto em parte isso ainda ocorre por conta .dar-se a ver, ¢ por uma dificuldade qu de chegar ao que é propriamente televisivo e aos modos como ele se constitui. A tevé sempre esteve (¢ continuara) implicada numa ex- periéncia de mundo que também ainda nao percebemos bem como funciona, e,talvez, se a entendéssemos melhor, perceberiamos me- hor como esse mundo funciona. Para pensar a questo, gostariamos de elencar algumas alter- nativas, relacionadas as moldura5es praticadas pela televisAo para cconferir sentidos identitérios (éticos e estéticos) as coisas que dé a ere ouvir: duragbes, personas, objetos, fatos e acontecimentos. Tais oisassio. a principio, cansmtas.a que chamamos de thicidades, ‘mente televisivos. ‘Para dizer que tal coisa ¢ tipicamente um construto da televi- so, ou uma enunciacao tipica da tevé, a questo passa a ter de ser tratada com vistas aos sentidos identitérios das ethicidades, sendo que, para que eles possam ser comunicados, os mundos em que elas tém existéncia e agem resultam de imagindrios que so minima mente compartilhados com os que criam realidades de outros mundos imaginados. Esses sentidos identitarios estéo context trajet6ria. Ao situar a TV no Brasilina hist6ri instaurapdo de um discurso sobre a brasil que é televisiy Ora, essa brasilidade foi conti gente no momento histérico em que, paralelamente a glob: tratava-se de inventar uma unidade nacional — ou, dito co! as letras, de um tinico mercado (nacional), conectado € acessiy pidamente (tanto fisicamente, por estradas, quanto simbolicam te, por telecomunicagdes) para as corpora¢Ges politico-econ6mi interessadas em atuar mais rapidamente e com menos custos no Suzana Kipp 17 imenso territério brasileiro, que era até ent&o profundamente de- cias e idiossincrasias regionais, ios da e na televisdo, em sua nature- za intrinseca, transcendem os contextos, e as enunciagGes de tais ou quais sentidos devem antes de tudo ser associadas a circunstancia ‘mais geral de a tevé fundar um discurso televisivo na esfera da co- municagio globalizada, no qual as ethicidades tém lugar privilegia- do ~ inclusive as ethicidades nacionais, mas de longe apenas elas. Emse tratando de identidades, precisamos pensar, por exem- plo, nos modos de cada individuo, grupo ou sociedade lidar consigo ‘mesmo e com os outros, modos esses que agem sobre a construcdo dos sentidos identitérios finais, por semelhanga e diferenciagao. Assim, movimentando-se preferencialmente em relagao a sentidos identitérios, osmodos dea tevé lidar com os outros (os mesmos eos diferentes) sto fundamentais para a compreensao da questo que ‘nos colocamos. Nos termos de Lévi-Strauss!, admitamos coexistirem duas i com a alteridade dos outros —a figica e itando, porém, que essas duas formas, opostas, de idade coofigaramse no absolutamente, mas co- atualiza, que esté em vias de atualizar-se, que é imento de sua atualizagao, pois um serndo é 0 18__tuontodumepdio sujeito, mas a expressio da tendéncia, que é contrariada por outra tendéncia, outro ser. ‘As cthicidades atualizam-se em diferentes molduras e mol- ‘tomam os sentidos comunicaveis. Iduras, molduracdes ¢ As molduras so entendidas coy duramentos so agenciamentos-dos-sentidos,-que-sio-pessoal.e sulturalmente referenci: molduras ¢ as molduragbes procede-se a uma oferta de sentidos. Porque cada termo remete aos demais, propomos que a per- ‘cepeao de uma ethicidade deve levar a sitiagdo e compreensdo das molduras e das molduragdes em que ela foi enunciada, para que se percebam nao sé os sentidos, mas também os procedimentos tedri- co-metodol6gicos (no caso do pesquisador e dos discursos sobre 0 objeto) ¢ 0s criativos (no caso das imagens televisivas) usados para a enunciacao. 3.0 eixo dos it , que permitem a comunicacdo dos sentidos, entendendo-se imaginario como 0 conjunto de marcas de junciacdo das culturas (identidades coletivas), manifestas e visi- les medi os imagindrios televisiveis. como sendo.os imagi- nrios televisivos atravessados pela moldura corpo do.espectador (um corpo singularmente inserido na sociedade e na cultura, com ‘um repert6rio singular de imagens e molduras).. Para Castoriadis‘, o imagindrio é criagio incessante e es cialmente indeterminada de figuras/formas/imagens, sendo que aquilo que chamamos realidade e racionalidade sio seus produtos. Todo pensamento da sociedade e da historia pertence em si mesmo Suzana Kipp _19 a sociedade ¢ a histéria, A instituicdo (aquilo que ¢ instituido) & uma rede simbélica, socialmente sancionada, em que se combi- nam, em proporgdes e em relagdes variaveis, um componente fun- cional e um componente imagindrio. Quando afirmamos que 0 imaginério s6 representa um papel porque ha problemas “reais” que os homens nao conseguem resolver, estariamos esquecendo que os homens s6 chegam a resolver esses problemas reais 4 medi- da que eles se apresentam, porque sio capazes do imaginario; e que os problemas s6 se constituem como estes problemas em fungio de ‘um imagindtio central da época ou da sociedade considerada, Para O.autor, 0 imaginario social é mais real do que o “real”, cada so- ciedade constitui seu proprio real: ele seria condigao de cxisténcia da sociedade como sociedade humana. ‘A partir desses trés eixos, autenticamos em nossa pesquisa al- gumas ethicidades, mais sblidas e recorrentes do que outras (tio importantes quanto as mais sélidas, porém), que deveriam sempre ‘Ser consideradas em qualquer andlise de enunciag6es televisivas s6-, bre o que quer que séja, até porque molduram as demais: as emisso- le televisio, os géneros, os programas, as ivas aut6nomas (os promose os comerciais), panoramas televisivos com suas molduragdes intrinsecas, a pro- (0 ¢ a propria televisdio, sendo que a tevé produz molduras.e \GGes em Que S40 Enunciados os sentidos identitarios das to é, a tevé diz o que entende que elas sejam, a sas ethicidades sao também molduras de outras ethici- endo que umas est4o sempre remetendo a outras, numa io as vezes vertiginosa de quadros de experiéncia e sig- 'e, de um lado, tal sobreposigao de molduras multiplica le outro lado produz sucessivos deslocamentos dos ‘iados, desmanchando-os ao final e dando motivos a jue nao ha sentido na tevé, mos em falsos problemas como o de dizer o que jue deveria ser, é necessério ir adiante de nossas pri- jes, movermo-nos entre as molduras, perscrutar deslocamentos dos sentidos habituados os que estio efetivamente sendo enunciados, 20__beoniodum epato Aquilo que tem a natureza de uma quase-gramitica televisiva ~ ¢ que tem muito menos a ver com os contetidos do que com as técni- cas e as estéticas praticadas. Aproximemo-nos, por isso, das mais territorios virtuais, a4 seh ‘ocupados por certas emissoras que representam parcerias historicamente contingentes, territ6rios que se atualizam na comunicagéo das ethicidades dos brasileiros auto: | tizados a falar sobre a brasilidade em determinados canais e nos stermos dessa. molduracao, A ethicidade das emissoras que ocu- pam o canal, no entanto, é enunciada pelas proprias emissoras ~ pelos modos como produzem e veiculam os promos ~ como sen- do, ao contrério, um cardter autdnomo, independente da condi- 40 de cessionétias. “A tevé moldura os géneres de tal forma que, 20 final, dé or- is do que relativizar as nogbes de certos mundos ¢ da ‘seioasioae ‘outros. Nesses termos, a moldu- ra género, em sua relag4o com as demais ethicidades, torna-se bas- tante produtiva se pensada ou como 0 género televisivo, que pode ser mais ou menos autoral; ou como a realidade televisiva, que po- de ser mais ou menos documental ou ficcional. Os programas e as outras unidades auténomas (0s promos € os aniincios publicitérios) sao tecnicamente moldurados no fluxo te- levisivo. Mantém-se, assim, apartados, mas ingerem uns sobre os outros, ¢ decorrem dessa pratica algumas questées éthicas (relacio- radas aos sentidos identitarios), que s4o também atravessadas pe- Jas molduras e molduracdes praticadas pelos programas. Ai, ¢ importante perceber as tensdes que existem entre a moldura pro- grama ¢ a programacao, ¢ a interveng&o do Ibope (audiéncia) tat na programagiio quanto no programa, Programas também adotam ‘varias préticas que so enunciativas de sua ethicidade, como ¢ 0 ca- so da abertura dos programas, dos promos, das vinhetas do progra- ma ¢ a insergao de comerciais dos anunciantes. A espectagao de Suzana Kipp 21 ‘TV, entretanto, quando recorta programas (recorta-se tempos de TV, na verdade) do mesmo ou de diferentes canais (zapping), pro- duz um outro programa. Esse tempo de tevé é, também, uma im- portante moldura, que foge ao controle do emissor, e deve ser considerada nos emolduramentos do espectador. As molduragbes intrinsecas (que vao além da edig4o) dos pano- amas televisivos so indicativas de muitas e diversas praticas de montagem que tém implicagSes éthicas para as personas para as si- tuagdes intrinsecamente molduradas, Sao bastante produtivas as _ categorias usadas para a andlise das montagens, desde que, porém, se leve em conta os atravessamentos das demais molduras que ai esto sobrepostas. A programagio tel \ au o virtual (as grades) e su ethicdades televisivas. Por tas dela, hd uma grade oculta nas grades e mais ainda no fluxo, mas que 6, talvez, a moldu- ra das molduras, ¢ a que as emissoras mais resistem em al ‘Ao inscrever a televisdo, uma ethicidade complexa, na indtis- da cultura, oferecemos & consideracao algumas alternativas a0 ‘amento tradicional em fungdo do lugar da produgao: que a te- se atualiza em certos momentos de certas tevés como pro- ra de mercadorias culturais; que Ihe cabe a vitrinizagao das ias produzidas pela indistria; que ela seja pensada como de reciclagem de restos culturais; e, principalmente, que ‘a como produtora de molduras, molduragdes e ethicidades vas. veicula) do discus tclevisvo em rigem no fato de. ses se fazem numa relacdo de molduras sobrepos., 22 _taondatumepea televisiveis. Ela se atualiza de certos modos nas praticas de emisso- ras de TV, produtores e criadores de programas e outras unidades auténomas, para o que intervém, mais ou menos decisivamente, nao apenas os espectadores, mas todas as pessoas ¢ organizagoes que ingerem sobre o mundo das midias. A televisio, na medida em que também se enuncia ethicamente ¢ esté sujeitada as priticas das molduragées que pratica, ela mesma ¢ televisiva como todas as ethicidades de cuja enunciagao participa. Resumindo e sistematizando o que dissemos até agora, pode- mos dizer que no Brasil a TV aberta tem agendado priticas em que prevalecem sentidos émicos autoritétios, enunciados por estéticas mais ou menos erraticas, mais personalistas que subjetivadoras, in- seridas em panoramas que pretendem ser (nem sempre, é bem ver- dade) uma paisagem neutra e asséptica de certas brasilidades de 3's, autorizados a emitirem e a enunciarem ethicida- des, Essas ethicidades so, no entanto, televisivas, o que significa dizer que sao fruto de molduragées televisivas dessas ethicidades, Nesses termos, a TY aberta no Brasil pode efetivamente ser ‘Pensada como um poder, (que seria 0 quinto, e no o quarto), do ‘qual participa visivelmente o poder oficial (0 Brasil legal) e o poder oficioso (0 Brasil do jeitinho dos bastidores que seria 0 quarto po- der), entendido como 0 que emerge e governa & margem das insti- tuigdes oficiais = 0 compadrio = que frequentemente.ainda ¢ ha muito tempo rege as relacdes que distribuem favores e privilégios ‘no Brasil. Situacdo verdadeiramente outra talvez estivesse colocada se © cardapio de emissores autorizados fosse outro, no qual houvesse uma desconcentragao dos poderes hoje outorgados aos autorizados Ja emitir, e se 0s canais— estatais ¢ comerciais— fossem efetivamente piiblicos, controlados nao apenas pelo poder publico, mas, princi- palmente, pela sociedade. ‘Mas nao é essa a situacdo dada, E, mesmo que fosse, de imediato nao se mudasse muita-coiss, porque as homologias ‘éthicas praticadas coinstituem imagindrios (e logicas) de tel que tendem.a reproduzir-se também fora do mercado principal. Basta ver as molduras e molduragdes que tém sido praticadas pelas aoe aE Suzana Kilpp 23, tevés universitérias ¢ comunitérias que esto no ar para constatar _Serem as mesmnas. a a ‘Bergson diz. que ao lado da consciéncia e da ciéncia, existe a vida. Existem tendén- cias cujo estado se negligenciou ¢ que se explicam simplesmente pela necessidade que temos de viver, ou seja, em realidade, de agir. A necessidade de se alimentar nio é a tinica. Outras se orga- nizam em torno dela, visando a preservar 0 individuo ou a espé- ie. Cada uma dessas necessidades leva a distinguir, a0 lado de ‘nosso proprio compo, outros corpos dos quais devemos nos apro- ximar ou fugir, Sao feixes luminosos que, visando continuidade das qualidades sensiveis, desenham ai corpos distintos. Estabele- cer essas relacdes muito particulares entre porcdes assim recorta- das da realidade sensivel é justamente 0 que chamamos viver. A maior ou menor tenso da duragao exprime sua maior ou menor intensidade de vida. Queremos crer que, apesar de tudo, ha vida na televisao aber- ‘que se faz:no Brasil, como de resto ha vida no Brasil. Ou seja, tem possivel nao resignar-se a praticas continufstas, homologica- ¢ estruturadas e estruturantes, que, até, a0 contraério, foram s por homens de televisio, por profissionais da comunica- 1 escolas de comunicacao, pela pesquisa em comunicagao, tadores de televisdo, por todos quantos esto preocupados engao a vida. emos isso porque nas cartografias que vimos fazendo fo- varios tensionamentos praticados na tevé: por miais nas molduragdes das red Iduragdes intrinsecas na enunciagdo dos géneros; por tes As homolégicas; por jails diversas.aho- i was € das personas televis homoldgicas da publ \eOes contratele' levisdes, min: idades, molduras e molduragées) sao indi- s..Tais tensionamenios 2A teondotumepato ciais de outras percepedes da televisio, bastante razodveis para ~adentrar as quase-gramaticas televisivas e chegar ao propriamente televisivo. No Brasil, eality shows como Big Brother Brasil e Casa dos Artistas sdio programas em geral de expressiva audiéncia que reacendem an- tigas querelas entre espectadores, criticos de TV e pesquisadores. Dizem porque, embora eles sé estejam sendo vistos como tais na ultima década, o género surgiu décadas atrés, talvez na TV norte-americana, Ou seja, 0 formato Endemol tem aparecido e sido interpretado como novo, o que é, na verdade, um equivoco. Se novidade existe, ela relaciona-se justamente, no caso bra- sileiro, aos cenarios praticados, que incluem muito mais que antes imagens de cameras, espelhos e imagens especulares. E por isso que reacendem antigas discusses, sempre acaloradas, sobre a indi- cialidade das imagens de TV, sobre a esperanca (e cobranga) de a ‘TV ser, diretamente, espelho da sociedade e janela para o mundo dito real, Afinal, diante da perda de referencialidade que é propria da cultura contemporaniea, a mais importante midia de massa n&o deveria ser e agir de modo a suprir caréncias fundamentais da so- ‘ciedade contemporanea? Nao deveria defender os conservadores ‘valores morais, padrdes de comportamento, reflexibilidade, dis- cernimento entre falso ¢ verdadeiro etc., 0 quais, entretanto, os poderosos ha muito tempo j4 corromperam, usando-os em seu pro- prio beneficio? E também o que esperam, em termos mais largos, os que sempre delegam a um outro responsabilidade sobre os proble- mas da sociedade, bem como a sua solugio. Mas, se aquilo que é realizado por cada midia enquanto apa- relho ou extensio humana é circunstancial, 0 realizado nio deve no ser criticado; mas a critica também nao deveria sugerir e de- mandar da TV o que no esté efetivamente ao seu alcance. A TV, enquanto tal, ndo pode mais do que o meta-aparelho que a proj mal £ muita ingenuidade pensar que ela, ou qualquer outra mi pudesse resolver os problemas comunicacionais (e outros) da socie- dade em que vivemos... Quando, porém, reality shows problematizam a especularida- de midiética nas imagens que criam na telinha, mesmo sem ter essa Suzana Kipp 25 intengdo eles movimentam nossas crengas, expectativas e percep- ‘g0es habituadas, e nos fazem pensar acerca da questo. A nds pes- quisadores cabe, de outra feita, refletir sobre 0 que se esta pensando/dizendo, assegurando-nos tratar-se (ou no) de impor- tante percepco da TV, expressa numa atualizacao midiética de fe- n6meno que a transcende: a construgio de espelhos que nao sio espelhos. Essas imagens televisivas podem ser pensadas, ento, co- ‘mo conceitos ou cenas de qué? O que desvelam sobre a especulari- dade (¢ outras questées afins) na cultura contemporanea? Temos a conviccio de que é preciso utilizar metodologias de pesquisa compativeis com tais formulagSes, que nos distanciern de ‘um olhar habituado e ja viciado pelos clichés, especialmente os dae 0s dos estudos da televisto. E se os sentidos identitérios das ethici- dades televisivas sfo enunciados em um compésito de molduras sobrepostas, como sugerimos, nfo vemos alternativa sendo a de propor a pesquisa uma metodologia que considere as molduras ea pritica de moldurag6es televisuais como decisivas para que os sen- tidos, na TY, sejam agenciados como tais ou quais. Ent, como jé dissemos, frisamos que os sentidos identitérios ethicidades sio enunciados no interior de quadros ou territérios xperiéncia e significagao, numa incessante produgao e articula- de molduras sobrepostas em cada frame, programa, antincio, tempo de TY. Esse compésito é imagem média de TV, compési- pode variar de emissora para emissora, de programa para 'ma etc., 0 que institui séries diferentes de imagens médias, inuam a ser todas, entretanto, muitas similares entre si, va- de uma para outra apenas em grau e nunca em natureza. molduras nao tém sentido em si mesmas, mas estdo. (cao ao principal, quer dizer, so imagens de grande {que nao esto ai para ser percebidas, mas, ao contrério, ler e disfargar os modos da produgao das imagens prin- ue sao percebidas na espectacao habituada). fotografia (ou mesmo antes, nas imagens tradicio- ocultar 0s modos da produgao da imagem, em geral is realismo ao que vemos ¢ magicizar a técnica, 0 26 twonda tum ele cédigo. Nao hé, a principio, uma intenco primordial de denegrit ou elogiar a técnica, mas sim a de chamar a atengo para sua fun- 0, Mesmo nas estéticas metalinguisticas que intentam desmagici- zar a técnica opera-se assim, s6 que noutro estrato da imagem. Alids, todas as imagens de sintese (as que vemos) resultam da estra- tificagao de imagens de transito, que deixam seus rastros na sintese finals Dado seu papel decisivo na significagio das ethicidades, as ‘molduras recebem em nossa pesquisa um tratamento preferencial, pata 0 que vimos propondo, testando e aperfeigoando uma meto- dologia, a qual, na falta de nome melhor, chamamios de metodolo- gia das molduras. Também ela é um compésito de procedimentos técnicos e analiticos, direcionados a autenticacao e significagao das ethicidades em mapas cartograficos ou em constelagdes de imagens dialéticas, cujas sinteses (que so, neste caso, atualizacies do obje- to) insistem em manter-se em aberto, com miltiplas saidas. Insis- tem em manter-se no fluxo da duragao do objeto.6 ‘Nossa proposta inscreve-se, portanto, de imediato, numa perspectiva de Ciéncia que autentica nos objetos seus modos de ser e agir complexos, e que adota por principio que os objetos e os mo- dos de se entendé-los s4o indissocidveis. Da mesma maneira, uma Cincia em que os métodos e os procedimentos metodolégicos pre- cisam ser formulados ou inventados continuamente revisados e, or vezes, até totalmente recriados, justamente por demandas do objeto-problema. por isso que a metodologia das molduras ensaia procedi- _mentos de trés.ordens:.a técnica, a discursiva e a cultural, que so ‘exatamente relatiyas as trés dimensOes das a caso do tema deste livro, deseja dar conta das pri cas que entendemos serem distintivas das audiovisualidades de televisdo. Entio, metodologia das molduras € um conjunto de procedi- ta (e As vezes desorienta) pelo rigar de pri loséficos, politicos e estratégicos. Ela ai ‘Suzana Kipp _27 desconstrugio e dissecagdo, ao mesmo tempo em que busca assegu- rar 0 rigor de um principio ético-estético (a diferenga solidaria de Guattari) que é anterior a tudo: o de manter a pesquisa sempre erm aberto; de autenticar linhas de fuga e inventar platds— nés articula- dores ou conexdes entre as linhas ~; de acessar e atualizar niveis da meméria do objeto, sua duracao, devir e poténcia. A intuigdo & método proposto por Bergson antes de tudo, no ‘que aqui interessa, para distinguir os falsos e os verdadeiros proble- mas de pesquisa, ¢ alcangar as verdadeiras diferencas do objeto em relaco a outros, diferencas essas que so de natureza e nao apenas de grau. Implica, no interior de sua filosofia, autenticar no objeto 0 misto que Ihe da existéncia, misto que é sempre constituido de duas naturezas, dentre as quais as mais decisivas seriam sua virtualidade € suas atualizagdes, ou seus modos de sere seus modos de agir, ‘ou, em sentido mais largo e definitivo, sua duragao e seus instan- tes, 0 tempo e o espaco que coinstituem o objeto. Implica, em tilti- ma andlise, formular os problemas mais em termos de tempo do que de espago.? ‘A cartografia, cuja origem seja, talvez, a geografia e a topogra- émétodo (ou procedimento, em alguns casos) proposto também 1m outras éreas de conhecimento para desenhar mapas conceituais. ‘0 praticado por pesquisadores como Guattari e Rotnik e de res, na esteira das importantes apropriacdes de Deleuze. ambém, jé tem inscrig6es mais antigas e desdobramentos im- tes dentro da Comunicacao através, por exemplo, de Benja- ¢, em sua esteira, de Martin-Barbero e Canevacci.# ‘Com tal metodologia instituem-se mapas dindmicos e nunca ados, que autenticam linhas de fato e de fuga relativos ao mo- lo objeto (uma sua tendéncia ou devir) que evolui, distin- izomaticamente.? As autenticagdes remetem, por \quelas caracteristicas do objeto que vo sendo percebidas lor de acordo com suas afeceSes (fundamentais tam- todo intuitivo, que mencionaremos adiante), tomadas ;peties no decurso do processo investigatério (no que Bergson “reviravolta”®), e que, como tais, retornam a meméria, , reinventando-o (ou atualizando-o criativamente). 28 twondodum api Assim, a cartografia proposta como parte da metodologia das molduras se con: ialmente, de um transitar de maneira aleat6ria entre audiovisuais de tevé, A flaneuria”" audiovisual pro- posta ndo impde limites a tipos, formatos, fungées, técnicas, discur- 80s ¢ aspectos culturais dos audiovisuais. Ao perambular nesse dominio, o pesquisador deve estar pautado (por conta do método in- tuitivo) por suas afecedes, sem levar em conta, necessariamente, as percep¢des habituadas das hegemonias, predominéncias, desta- ‘ques. Os encontros (inscripSes na mesma durago) que ocorrerem no percurso permitem apurar também rizomas, fluxos e subjetivi- dades que configuram as audiovisualidades como um todo, sobre- tudo em seus devires, Desconstrugio € um termo cunhado por Derrida, ¢ que, como meétodo (0 desconstrucionismo, renegado pelo autor como méto- do) ou mirada, procura chegar aos elementos to valendo-se das linhas de fuga contidas nas teorizacdes sobre ele Ao assim desarticular as teorias hegeménicas, excentrando-as, ex perimenta-se de novo 0 objeto ¢ se o reinventa desde outras pers- pectivas, Tal procedimento, aplicado ao conceito-objeto, permite encontrar elementos que, sendo minoritarios nos audiovisuais ana- ogico-digitais, sao, porém, potentes para a atualizaco que se quer empreender. A dissecagdo, subsidiaria da cartografia e da desconstruso, um procedimento de ordem técnica que desdiscretiza digitalmente ‘a imagem técnica audiovisual, que & sempre discreta!? em qual- quer suporte. Ao intervir nos materiais empiricos, ela dé a ver as, montagens, os enquadramentos e os efeitos de imagens discretas, que nao tém sentido no video, mas que sao praticados para produ- zir os sentidos.'3 Occonceito de dissecacdo parte de uma metéfora a dissecasao do cadaver, cuja inspiragdo se encontra em Leonardo da Vinci. Implica dizer que para adentrar a telinha e ultrapassar os teores conteudisticos da TV — que nos cegam e ensurdecem em relagao aos procedimentos técnicos e estéticos que so 0 modo sui generis da midia produzir sentido — é preciso matar o fluxo, desnaturalizar a espectacio, intervir cirurgicamente nos materiais plisticos e narra- Suzsea Kipp 29 tivos, cartografar as molduras sobrepostas em cada panorama, ¢ ve- rificar quais sdo e como elas esto agindo umas sobre as outras, reforgando-se ou produzindo tensdes no agenciamento de sentidos. Resta esclarecer ou enfatizar que com o termo moldura desig namos um territério de experiéncia e significado qualquer. Nos ‘mesmos termos a que nos referimos as ethicidades, hé molduras ‘mais s6lidas, que sempre estao ali, na telinha: 0 canal, a emissora, 0 genero, 0 programa, as demais unidades aut6nomas (como as vi- nhetas € os brakes comerciais), a programacao (em grade e em flu- Xo), a TV como midia, e as molduragdes intrinsecas aos panoramas (0 éeran, ou telinha; ou quadro-limite, nos termos de Aumont). Porque a TV monta em sequéncia e sobrep6e nos panoramas molduras de diferentes graus € natureza, a consideragao da razoa- lade dos sentidos deve passar, na andlise, pela dissecagao de ca- ima delas e pela remissao de umas as outras. E assim que os ‘que sio imagens técnicas televisivas deles) sto significados. Se hhicidades tém sentidos identitarios fluidos é justamente por do compésito de molduras em que sao significados. Na significaco, os sentidos so agenciados entre emissor €, or, que tem repertorios pessoais e culturais distintos, memé- ie percebem diferentemente a mesma matéria - a partir do 1amos de seu corpo-moldura (seguindo de perto as propo- Je Bergson) -, sendo que.os'emolduramentos finais resul- into, de agenciamentos.entre.emissor.e receptor. * imo, e ainda fundamental, no conjunto dos trés eixos gia das molduras, é preciso pensar nos imaginérios im de mundos assim engendrados pela TV e compa- mente porque esses imagindrios so minimamente dos,

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