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A QUEM INTERESSAR POSSA: A DIMENSÃO JURÍDICA DO SETOR ELÉTRICO

Gustavo Kaercher Loureiro1

Introdução

Esse texto discorre de modo informal e genérico sobre o direito2 que regula a indústria da energia
elétrica3 e também sobre os sujeitos que deste direito se ocupam por profissão, os advogados,
consultores jurídicos, dentre outros. Ele é inspirado por e orbita em torno de uma série de questões
que não serão, porém, apresentadas ou respondidas de modo direto, completo ou ordenado: “no que
consiste o direito da energia elétrica?”, “do que ele é composto e qual é seu objeto?”, “qual é a função
do direito na indústria?”, “como o direito da energia elétrica realiza essa função?”, “de que é feito o
conteúdo das suas normas?”, “como o direito se relaciona com seu objeto: ele o conforma inteiramente
ou é por ele condicionado (total ou parcialmente)?”, “qual é a relação do direito da energia elétrica
com as prescrições de ciências aplicadas (como a engenharia, economia etc.)?”, “qual é a função do
profissional do direito que atua na indústria?”, “quais são os principais tipos de tarefas que ele realiza
e como as realiza?” etc.

Na exploração dessas questões serão aplicadas, de modo não rigoroso ou excessivamente técnico,
noções básicas de teoria geral do direito. Elas auxiliam a explicar a posição que a dimensão jurídica
ocupa na indústria elétrica e as relações que existem entre o direito e outras áreas constitutivas do
setor (como a economia, a engenharia, a política), bem como entre seus profissionais e os profissionais

1
Doutor em Direito, ex-professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Consultor de energia
da Florence School of Regulation – FSR. Visiting Fellow na FSR (2020).
2
Mais, particularmente, de uma parte dele, aquela muitas vezes chamada um tanto estranhamente de “direito
regulatório”. Diz-se estranhamente porque, em um sentido, todo o direito é “regulatório” enquanto pauta
(“regula”) condutas, o que torna a expressão um pleonasmo. Se, porém, com “regulatório” se pretende identificar
certas normas de hiearquia infralegal (aquelas produzidas por entes especializados em determinados setores da
economia), a expressão pode evocar a ideia de “direito de regulamentos” o que, em nossa tradição, aponta para
os atos expedidos pelo Chefe da Administração, o Presidente da República (Constituição, art. 84, inc. IV). Ciente,
ou não, desses problemas, acaba-se por se identificar o “direito regulatório” a partir de uma mistura de critério
formal (normas jurídicas infralegais produzidas por agências reguladoras, na forma de atos administrativos
normativos) com critério substancial (de caráter essencialmente técnico-econômico). Trata-se, em todo o caso,
de uma manifestação normativa e, como tal, submetida às exigências do ordenamento jurídico.
3
Os termos “indústria da eletricidade” e “indústria elétrica” também serão empregados com o mesmo sentido
de “indústria da energia elétrica”.

1
de outras especialidades. Além disso, esses elementos pertencentes à teoria geral do direito chamam
a atenção para a necessária integração do direito setorial num plano normativo (e teórico) mais amplo.
Por mais que possa parecer, o direito da energia elétrica não é uma ilha.

O que segue está assim estruturado:

• Começa-se com uma apresentação do objeto primordial das normas jurídicas, a


indústria elétrica, qualificada como uma infraestrutura institucionalizada na qual
atuam sujeitos dotados de distintos interesses e equipados com diferentes
racionalidades (Seção I).

• Seguem-se considerações sobre o direito da energia elétrica que o concebem como a


dimensão institucional na qual ocorre a formalização, em variados níveis e momentos,
da interação entre os sujeitos indicados na Seção I. Essa formalização é por eles
buscada na medida em que dota suas ações e decisões de um específico tipo de
eficácia social, qualificado como cogência. Essa formalização também explica o caráter
onipresente do direito (Seção II).

• Estabelecidos o objeto das normas jurídicas, a indústria elétrica, e algumas


características básicas do direito que a disciplina, apresenta-se a contribuição
específica que o profissional do direito que atua na indústria aporta a ela e ao seu
direito. Desse exame resulta que racionalidade jurídica é a responsável pela adequada
formalização que torna “direito” as ações e interações dos diferentes sujeitos
interessados na indústria. À parte outras tarefas, o jurista é o sujeito encarregado de
assegurar a cogência das ações setoriais que delas necessitam (e/ou por seu controle
prévio ou a posteriori, à vista desse objetivo). Em segundo lugar, ele também é o
responsável por assegurar a inteligibilidade dessas interações, não apenas para os
especialistas aos quais as normas eventualmente se destinem de modo imediato, mas,
muito especialmente, para um conjunto específico de sujeitos encarregados de realizar
a cogência pretendida em caso de desacordo (Poder Judiciário). A primeira tarefa
relaciona-se ao plano da validade; a segunda, ao plano da segurança jurídica. Ambas
estão ligadas na medida em que é pouco útil um direito formalmente válido, se
dificilmente inteligível (Seção III).

• A seção final retorna, de certo modo, à Seção I e explora a relação entre o direito da
energia elétrica e sua indústria, em especial, a relação entre normas jurídicas e
prescrições técnicas de ciências aplicadas como a engenharia, a economia, a política
etc. (Seção IV).

Seção I - O objeto das normas do direito da energia elétrica: a indústria elétrica

Considerações gerais

2
A específica forma de energia que se encontra no movimento de elétrons, a energia elétrica, é, antes
de mais nada, um fenômeno natural. Como tal, tem escasso interesse para o direito4. Para que seja um
objeto de direito5, deve se tornar uma utilidade economicamente apreciável6, o que ocorre quando ela
é obtida pelo esforço humano consciente e se torna uma aptidão de trabalho7, ou, sinteticamente,
quando ela é explorada no contexto da indústria da eletricidade. Seria possível dizer, inclusive, que o
objeto da maior parte das normas jurídicas que formam o direito da energia elétrica é esta indústria e
não a própria “coisa”, energia elétrica. Esta última lhe interessa enquanto é o objeto explorado pela
primeira.

E por indústria da energia elétrica entende-se o conjunto organizado de sujeitos, bens e procedimentos
que realiza um destes resultados (um, alguns ou todos em conjunto): a obtenção, o manejo e/ou a
utilização da energia elétrica.

Trata-se de uma infraestrutura institucionalizada que se compõe de (i.) de uma base física, a
infraestrutura sistema elétrico8, formada pelos objetos e equipamentos que suscitam e controlam o
fenômeno natural energia, ou seja, as usinas, redes e outros componentes do sistema elétrico. Esta
base física é um construto humano (e não um fato natural), de caráter altamente complexo e
articulado, possui grandes proporções e crítica relevância social9, e é marcada por condicionantes e
determinantes técnicas (ou tecnológicas). Sobre essa base física, sobrepõe-se (ii.) um outro conjunto
de elementos menos tangíveis do que máquinas, mas tão importantes quanto, que viabiliza a inserção
da infraestrutura em um determinado ambiente social, onde existem preocupações de ordem
econômica, política, ambiental, jurídica etc. Essa sobre-estrutura (ou, em linguagem provocativa,
superestrutura) consiste na organização empresarial do sistema elétrico, na definição dos diferentes

4
Em tese, sob determinadas condições, fenômenos naturais podem ter alguma relevância jurídica, como “fatos
jurídicos stricto sensu”. Sobre as diversas espécies de eventos que podem aquirir significação jurídica, ainda
clássico é Pontes de Miranda, Tratado de Direito de Direito Privado, Parte Geral, RT, 2013, passim, mas
especialmente T. II e III.
5
Por tal conceito entende-se tudo aquilo que pode ser matéria de relação jurídica ou, mais precisamente, tudo
aquilo que “pode ser atingido pela eficácia do fato jurídico: nos direitos reais, é o substrato mesmo deles e diz-se
coisa; nos direitos de crédito é a promessa; nos outros direitos é a vida, a liberdade, o nome, a honra, a própria
pessoa de outro, ou outro direito.” Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, cit., vol. II, § 113.
6
CCB, art. 83, I.
7
Pfleghart, Die Elektrizitat als Rechtsobjekt, Heitz & Mündel, 1901, vol. 1, p. 07.
8
Poder-se-ia adotar aqui a categoria analítica de sistema (system) aplicada especificamente ao estudo da indústria
elétrica na obra clássica de Thomas P. Hughes, Networks of Power – Electrification in Western Society, 1880-1930,
The John Hopkings University Press, 2ª ed., 1993. Para Hughes, “sistema” é toda a estrutura complexa integrada
por componentes que estão relacionados e que interagem entre si, cada qual possuindo uma determinada função
e com impacto nos demais, todos eles predispostos à realização de uma ou mais de uma tarefa que é própria (e
privativa) do todo. Trata-se de uma categoria em certa medida formal e aplicável em distintas e variadas
dimensões (e que se possui diferentes espécies, como sistemas horizontais/verticais, fechados/abertos,
hierarquizados/não hierarquizados etc.). Tanto a indústria – a infraestrutura institucionalizada - como apenas a
sua base física podem ser consideradas como sistemas. Aplicado à base física, tem-se o sistema técnico (um objeto
tecnológico). Aplicado ao conjunto, tem-se o sistema institucional, ou setor elétrico.
9
Marc Bloch repreendia os historiadores de seu tempo por não tomarem a cargo o exame do impacto da indústria
elétrica para as sociedades modernas. Tinha-a por um dos eventos que possuía, por si só, maiores possibilidades
de conformar o futuro da humanidade do que todos os acontecimentos políticos combinados. Bloch, The
Historian’s Craft, Knoopf, 1959, p. 66.

3
serviços de energia10, nos seus tipos de mercado etc. A acomodação – e a realização - da base física ao
seu ambiente social, a institucionalização da infraestrutura, é o que fornece a indústria elétrica, como
uma entidade social complexa. As perspectivas (i.) e (ii.) costumam ser referidas como sistema e setor
elétricos11.

Esse objeto complexo é a resultante, em suas duas faces, da ação, ou mais propriamente, interação -
harmônica ou desarmônica, funcional ou não funcional – de diferentes sujeitos: consumidores
postulam menos tarifas e mais (e melhores) serviços; investidores e empresários setoriais pressionam
por melhores condições de investimento e retorno do capital aplicado; reguladores sugerem
determinado arranjo institucional de competências; ambientalistas batem-se por fontes renováveis de
energia e por usinas hidrelétricas a fio d´água; políticos (quando bem intencionados) desejam
instrumentalizar a indústria para que fomente o emprego nacional e auxilie a reduzir as desigualdades
sociais e regionais (além de prestar bons serviços); engenheiros argumentam em favor de
determinados equipamentos de proteção e desenhos da rede; economistas pugnam por uma alocação
ótima de capital na indústria e mesmo advogados opinam por uma determinada conduta (que
qualificam de “juridicamente devida”), em detrimento de outra (que tacham de “juridicamente
proibida”). Os exemplos poderiam se multiplicar, mas eles já dão uma ideia da multiplicidade e, mais
importante, heterogeneidade de ações e interações desses sujeitos, as quais resultam na indústria tal
como ela é (tal como se apresenta fisicamente e como opera num dado território e momento histórico).
Grosso modo, os exemplos sugerem que esses sujeitos possuem interesses ou objetivos a serem
atingidos e, além disso, atuam – não todos, mas boa parte deles – lastreados em certas racionalidades
(ou expertises ou práticas sociais). Pode-se mesmo falar em diferentes centros de interesses
(consumidores, investidores, reguladores etc.) e em diferentes racionalidades (engenheiros,
economistas, juristas, políticos etc.).

As relações entre diferentes forças (interesses) e razões (racionalidades) são difíceis de precisar,
sobretudo porque variáveis no tempo e lugar. Interesses instrumentalizam racionalidades e são por
elas, à sua vez, limitados. Igualmente não é simples determinar em concreto como convivem os
diferentes grupos de interesse e qual a contribuição de cada um para a configuração da indústria
elétrica em dado momento12. Esclarecer isso (que lembra vagamente a ideia de uma luta de classes,
para provocar novamente) demanda sofisticada análise sociológica, abundância e acurácia de
informações factuais, e não será objeto de estudo aqui. Nesta seção deseja-se realçar o caráter não
trivial e multifacetado do produto dessa dialética, a indústria elétrica para, depois, investigar a posição
do direito e da racionalidade propriamente jurídica em face dela13.

10
Assim, por exemplo: quais são os “serviços de energia elétrica” de que fala a Constituição (art. 21, XII, b)? O
Código de Águas, em sua versão original, concebia primordialmente a geração, que fazia acompanhar das
respectivas redes (art. 151, e). Seu regulamento, o Decreto 41.019/1957, ampliou o rol e distinguiu entre serviços
e funções de energia elétrica (v. arts. 2º-6º). Atualmente, temos quatro (e algumas possibilidades de ampliações).
Sobre isso, veja-se a obra pioneira, praticamente esquecida, de Maria de Lourdes Feitoza, Estágios da Função
Elétrica, Belo Horizonte, 1968.
11
Tolmasquim, Novo Modelo do Setor Elétrico Brasileiro, Synergia, 2011 passim.
12
Um esforço nessa direção é a obra de Richard Hirsch, Power Loss – The Origins of Deregulation and Restructuring
in the American Electric Utility System, MIT Press, 1999.
13
O presente artigo endossa completamente o insight pioneiro de Hughes, Networks of power cit., acerca do
caráter cultural – e não natural ou meramente técnico – de sistemas elétricos (suas dimensões físicas). O impacto

4
Como quer que ocorra, a interação entre forças e razões é uma constante na indústria. Ela se desenrola
tanto no plano do quotidiano e das providências materiais que colocam os serviços de energia elétrica
em funcionamento, quanto em esferas mais abstratas e solenes, de formulação das normas jurídicas
que sobre esse serviços incidem; e ela alcança tanto a base física (o sistema elétrico) quanto a sua
institucionalização (o setor elétrico). Mesmo as questões mais técnicas relativas à rede são, em certa
medida14, fruto dessa dinâmica e não simples escolhas de engenheiros e outros técnicos com base em
necessidades puramente naturais.

O que segue deixa em segundo plano os grupos de interesse - que, porém, irão aflorar aqui e ali ao
longo da narrativa - e se concentra em analisar as racionalidades que orbitam em torno da indústria,
uma vez que o objetivo deste artigo é apresentar mais detidamente uma delas, a jurídica. Para essa
análise, serve-se inicialmente de uma simplificação um tanto grosseira que consiste em selecionar
apenas aquelas expertises mais vistosas e as apresentar de modo isolado umas das outras e também
sem salientar possíveis tensões e divergências no interior de cada uma delas. Mais adiante, a
simplificação será parcialmente desfeita e essas racionalidades serão vistas de modo coordenado (e em
sua dupla valência, como dimensões de análise teórica e de conformação empírica da indústria da
eletricidade).

Físicos, engenheiros, economistas, políticos e outros especialistas

Introdução

Desde que deixou o laboratório dos “filósofos naturais” (mais tarde “físicos”) a partir ainda da primeira
metade do sec. XIX15, a energia manifestada na corrente elétrica que circula por um condutor não teve
mais paz e deixou de ser objeto de estudo e contemplação apenas de uma ciência teórica para tornar-
se tema de ciências aplicadas que lhe queriam transformar em utilidade social e fonte de riqueza. O
específico ambiente em que podia ser manejada e estudada, o circuito elétrico, ganhou escala,
sofisticação e relevância social, tornando-se “sistema”. Passou a chamar a atenção de outros sujeitos,

de fatores sociais sobre a tecnologia (e não o reverso) é tema recorrente em sua obra. Já na Introdução, assevera
que “power systems are cultural artifacts” e que “technological affairs contain a rich texture of technical matters,
scientific laws, economic principles, political forces, and social concerns.” (p. 01). Para ele, “electric power systems
embody the physical, intellectual, and symbolic resources of the society that constructs them.” (p. 02).
14
E encontrar a medida certa é algo tão difícil quanto importante.
15
Um marco dessa mudança de perspectiva foi o experimento ocorrido em 1806, na Royal Society, em Londres,
realizado por Humphry Davy. Até então, as investigações sobre a eletricidade – centradas no que hoje
chamaríamos de “eletrostática” - tinham se concentrado em conhecer o fenômeno natural, descrever suas
propriedades (eletrificação de objetos, efeitos de corpos eletricamente carregados etc.) e provocar alguns
experimentos. Em 1802 Davy, usando a maior bateria até então construída, concebeu a primeira lâmpada
incandescente e fez passar por ela uma corrente elétrica. A luz assim obtida não tinha, porém, duração suficiente
para servir a algum propósito prático, mas demonstrou o princípio a partir do qual a eletricidade poderia ser
aproveitada. Em 1806 Davy conseguiu produzir o fenômeno de modo mais constante e duradouro, com o que
abriu a possibilidade de aproveitamento estável e controlado da energia elétrica. Sobre a história da eletricidade,
v. Canby, A History of Electricity, Leisure Arts, 1964, Londres. Sobre a indústria propriamente dita em seus
primórdios, pode ser consultado com proveito, nada obstante não seja obra rigorosa, Jill Jones, Empires of Light
– Edison, Tesla, Westinghouse and the Race to Electrify the World, Ramdom House, 2004.

5
com diferentes formações, objetivos (e interesses). Engenheiros, economistas, financistas, políticos,
usuários e público em geral logo se interessaram pelo sistema elétrico que se organizou em “setor” da
economia.

A dimensão física

Encarecer a dimensão física num estudo de direito soa trivial ou pedante. Os equipamentos elétricos
obedecem à gravidade e as pessoas que trabalham nos serviços de eletricidade se movimentam de
acordo com as leis da mecânica.

Ocorre, porém, que a energia elétrica e os demais fenômenos associados à ela possuem algumas
características e comportamento físico que não estão presentes nos elementos naturais que se
tornaram objetos de direito e para os quais normas jurídicas foram concebidas, ao longo de mais de
dois mil anos de práxis e reflexão. A compreensão e o enquadramento jurídico da energia elétrica
foram, possivelmente, o maior desafio que qualquer ocorrência natural16 já apresentou ao direito17 –

16
Saliente-se o natural porque já o desenvolvimento dos “bens intelectuais” que mais tarde formariam o universo
dos direitos de propriedade intelectual trouxe desafios ao direito. Aliás, há quem aproxime de modo muito
interessante o objeto dos negócios jurídicos de energia com os objetos transacionáveis no âmbito dos direitos
autorais. Carnelutti, “Precedenti storici del diritto sull’energia”, in Rivista di Diritto Civile, v. 6, n. 2 (1960).
17
A classificação fundamental dos bens de Gaio, jurista romano do século I d.C., foi o referencial para o direito
até muito recentemente. Em suas Institutas (II, ns. 13 e 14), Gaio concebia dois tipos de coisas (res): as corporais,
que se poderiam tocar (quae tangi possunt) e as incorporais que, porém, eram apenas as entidades jurídicas como
os direitos (herança, usufruto, obrigações etc. – as res incorporales quae in iure consistunt). Apenas as primeiras
poderiam ser objeto de propriedade, posse e prestações de entrega, guarda, venda, locação etc.
Essa classificação, fundada no critério da corporeidade, foi recebida, dentre outros ordenamentos modernos,
pelo Código Civil alemão (BGB) de 1900.
Quando do advento da energia elétrica, a doutrina teve enorme dificuldades em qualificá-la juridicamente. O
primeiro problema prático que ela suscitou foi o enquadramento como delito da sua subtração dolosa (o tão
prosaico “gato” de energia). Após reiteradas negativas dos tribunais alemães de punir essa ação sob a figura do
furto – por não se poder configurar a eletricidade como “coisa” em sentido estrito, res corporalis – foi necessária
uma lei especial para, por meio de uma (quase) ficção, tipificar o “furto de energia”.
Outros problemas práticos surgiram no direito civil e tributário. Assim, por exemplo, doutrina e legislação
penaram para qualificar o contrato de energia, a começar pela exata identificação do objeto que as partes
transacionavam. Com a dificuldade em isolar o fenômeno natural (falava-se genericamente de “eletricidade” e
não se distinguia precisamente entre corrente elétrica, tensão, potência, energia etc.), sugeriu-se que o contrato
era de locação de coisa (do circuito elétrico ou do maquinário do gerador); ou de aluguel ou venda de corrente
ou força elétrica (ou de calor, luz, movimento); ou ainda prestação de serviços etc. Quando finalmente se isolou
a energia elétrica como objeto de direito, a controvérsia se deslocou para sua qualidade jurídica. Seria ela uma
coisa corporal ou uma especial coisa incorporal, distinta da antiga categoria das res incorporales quae in iure
consistunt? Ao final, e não sem vozes discordantes, tornou-se majoritário o entendimento de que a energia
elétrica seria (por ficção, por analogia ou mesmo por redefinição do conceito de res corporalis) uma coisa em
sentido técnico-jurídico, passível de ser tida em propriedade, posse e outros direitos (a seu modo, bem
entendido). Mesmo com esse avanço, restavam ainda alternativas para tipificar o contrato mediante o qual ela
seria fornecida, se locação de serviços (empreitada) ou compra-e-venda. Acabou por predominar a compra-e-
venda. Sobre essas e outras peripécias da dogmática, veja-se Jan Hövermann, Recht und Elektrizität – Der
juristische Sachbegriff und das Wesen der Elektrizität 1887 bis 1938, Mohr Siebeck, 2018. Para uma discussão
detalhada das polêmicas na Itália no início do século XX, v. Francesco Carnelutti, “Studi sulle Energie come Oggetto
di Rapporti Giuridici”, em Rivista di Diritto Comerciale e del Diritto in Generale delle Obbligazioni, v. 11, 1913,
Milão; Pietro Bonfante, “Natura del Contratto di Somministrazione d’Energia Elettrica” in Scritti Giuridici Varii, vol.
III, 1926.

6
até, pelo menos, muito recentemente18. A energia elétrica possui características incomuns, contra-
intuitivas e pouco familiares ao profissional do direito, as quais condicionam decisivamente os usos
possíveis da utilidade e também a indústria que se estrutura em torno dela, determinando em parte a
infraestrutura necessária a seu aproveitamento e também aspectos da respectiva superestrutura.
Encarecer, portanto, a dimensão física é juridicamente relevante - embora se possa discutir até que
ponto as determinações da física são decisivas ou determinantes para moldar figuras, conceitos e
normas jurídicas19. De qualquer sorte, as normas do direito devem pressupor e operar com a natureza
especial da energia elétrica (mesmo que seja para depois contrariá-la em parte...). A elaboração,
interpretação e aplicação delas não dispensa o contato com essa dimensão física, sob pena de
confusões, algumas inclusive com traços de comicidade20.

Embora, para variar, a curiosidade acerca do fenômeno natural seja grega21, os primeiros estudos
sistemáticos sobre a energia elétrica (ou, mais genericamente, eletricidade) datam do sec. XVIII e
versavam, em sua maior parte, sobre o que hoje qualificamos como eletrostática. Com o tempo, os
múltiplos fenômenos elétricos passaram a ser identificados, separados, mensurados e, mais
importante, controlados, num específico ambiente que é o protótipo de todos os modernos sistemas
elétricos, o circuito elétrico. “Carga”, “força elétrica”, “campo elétrico”, “potencial elétrico”, “energia
elétrica potencial”, “resistência”, “diferença de potencial”, “potência”, “energia elétrica” e outros
fenômenos foram correlacionadas em enunciados causais de grande generalidade, as chamadas leis
físicas. Com efeito, a dimensão física da indústria vem expressa na forma de “leis” (da eletrostática,

18
Atualmente, outros fenômenos colocam questões semelhantes como o espectro de radiofrequência,
qualificado pela Lei 9.472/1997 como “bem público” (art. 157); o meio-ambiente, dito ser pela Constituição (art.
225) “bem público de uso comum do povo” etc. A bem guardar, o problema da existência e configuração de
objetos de direito incorpóreos distintos dos direitos sempre esteve presente na realidade jurídica. Carnelutti, no
estudo citado acima, chega a sugerir que já o contrato de trabalho (e seus antecessores como a locação de
serviços do direito romano) flertava com a ideia de que sua configuração poderia ser tida como uma compra-e-
venda de energia (humana). A impedir essa perspectiva foram concepções éticas que eram absolutamente
contrárias a qualquer objetivização da atividade humana como tal (passado o período da escravidão, em que
seres humanos, verdadeiras “baterias”, eram objeto de compra-e-venda).
19
De modo geral, os primeiros juristas alemães prestavam mais atenção às questões físicas que seus colegas
italianos para decidir o status jurídico da energia elétrica. Não eram incomuns dezenas de páginas gastas pelos
primeiros a instruir os pobres causídicos nos mistérios da energia elétrica - e houve autor que inclusive dedicou a
maior parte de sua obra jurídica à física (Budde, Energie und Recht – Eine physikalisch-juristiche Studie, Heymanns,
Berlin, 1902).
Por outro lado, Bonfante e Carnelutti davam escassa importância às teorias físicas para determinar se a energia
elétrica seria coisa e se poderia ser objeto de posse e propriedade. Para o primeiro, bastava ao jurista a “física de
um ignorante” que se mostraria apenas no plano dos efeitos e aplicações práticas e não no estudo das leis e
causas finais da realidade (op. cit., p. 301). Ambos estavam de acordo em que o critério decisivo para o direito é
a praticabilidade da solução adotada, independentemente de sua correção à luz de algum critério de realidade.
Mais valia para o direito o “útil” do que o “verdadeiro” e a física (ou metafísica) necessária às normas jurídicas
poderia ser, em parte, objeto de ficções (“realidade por decreto”).
20
Embora nenhum jurista são de mente tenha pensado em ajuizar uma ação de inconstitucionalidade em face
da “lei” da gravidade, o autor deste artigo já testemunhou advogado manifestar dúvidas quanto ao adimplemento
contratual de gerador que vendeu energia elétrica, ao argumento de que não se poderia atestar que a energia
que o comprador, seu cliente, consumiu, veio do vendedor.
21
Os fenômenos elétricos, como o raio, encontram-se no imaginário de todas as culturas primitivas como
manifestação de poderes que estão ligados ao divino. Foi Tales de Mileto, filósofo pré-socrático do sec. VII a.C.,
que ofereceu uma primeira explicação menos sobrenatural para o movimento de atração de certos materiais por
outros, como o âmbar, chamado, em grego, de élektron.

7
eletrodinâmica ou eletromagnetismo, para ficar nas dimensões mais conhecidas). Elas vinculam
fenômenos naturais em relação de causa-e-efeito.

Diferentemente das leis jurídicas (que relacionam antecedentes com consequentes por meio do vínculo
da imputação normativa22) e mesmo das prescrições das ciências ou racionalidades aplicadas que
também operam com a causalidade (adiante), as proposições da física não realizam valorações,
positivas ou negativas, acerca dos objetos que descobre estarem relacionados. Em sua grande maioria,
limitam-se a estabecer, com generalidade e necessidade23, vínculos causais entre fenômenos físicos,
em nosso caso, os elétricos. Essas proposições são condensados descritivos com alto poder explicativo
e que permitem realizar, com a certeza suficiente, a previsão de ocorrências naturais. Não sem certo
toque de ingenuidade (e fé na ciência), pode-se dizer que a física é uma ciência eminentemente teórica
que procura descrever, com os modelos mais gerais e abstratos, a estrutura da realidade.

Incomuns, contra-intuitivas ou pouco familiares, essas características da natureza estão na base dos
passos sucessivos na direção da construção da indústria elétrica. Elas condicionam o trabalho de
engenheiros, economistas e quaisquer outros sujeitos com pretensões sobre a atividade. O direito que
pretendesse “revogar” ou ignorar essas leis não seria simplesmente ruim; seria um nonsense
inoperante - e já diziam os romanos que ad impossibilia nemo tenetur ou, “ninguém está obrigado ao
impossível” (o latim não poderia faltar num texto de direito24).

Ocorre, porém, que, como dito, a energia elétrica como simples evento físico não interessa ao direito
porque não é função de uma atividade humana deliberada que a torne uma utilidade com valor
econômico. Raios, descargas elétricas de animais e de objetos inanimados, por mais que conhecidos e
controláveis, assustam, fazem mal ou divertem, mas não geram normalmente direitos subjetivos,
pretensões, ações, exceções, deveres etc. Entre a física e o direito é preciso adicionar muitos
intermediários que vão suavizando e preparando a chegada da natureza bruta ao mundo dos
causídicos.

A dimensão técnica ou tecnológica (a “engenharia”)

22
A tão falada (e mal compreendida) distinção dos dois planos, do ser (próprio das ciências naturais) e do dever-
ser (próprio de ordens normativas, como o direito), bem como a subjacente distinção entre causalidade e
imputação normativa foi apresentada por muitos juristas. Clássicas são as considerações de Kelsen, em sua Teoria
Pura do Direito, no Capítulo “Direito e Ciência”, especialmente os ns. 17 (“ciência causal e ciência normativa”) e
18 (“causalidade e imputação; lei natural e lei jurídica”).
23
Bem entendido que não se trata da necessidade lógica, mas daquela possível no plano da empiria. Eis aí outra
questão de profundo significado filosófico que pouco importa ao direito e às suas mais humildes pretensões de
controle de condutas. Para os fins prosaicos deste estudo – e mesmo para os fins da regulação jurídica – não tem
também muita relevância constatar que as explicações físicas são modelos, submetidos à possibilidade de
falsificação (cfe. Popper, A Lógica da Pesquisa Científica, Cultrix).
24
Para quem quer mais latim, note-se que semelhante – e mais eficaz - ideia é veiculada por Ulpiano, Dig.
50.17.135 – “Ea, quae dari impossibilia sunt vel quae in rerum natura non sunt, pro non adiectis habentur.” Em
vernáculo significa, grosso modo, o seguinte: “Aquelas coisas impossíveis de serem dadas ou que não existem na
natureza, devem ser tidas como não expressas”.

8
Suficientemente conhecidos e controlados os fenômenos elétricos – ainda que não inteiramente
desvendada a natureza última da eletricidade e sua energia25 - não tardou para que sujeitos mais
pragmáticos do que o físico pensassem em torná-los de alguma serventia mais séria do que aquela
muito em voga até então, de animar salões de sociedade e convescotes.

Quando o circuito sai do laboratório, a partir de meados do século XIX, um novo sujeito entra em cena,
o grande protagonista do século retrasado (e dos seguintes, faça-se-lhes justiça): o engenheiro26. E com
ele a dimensão técnica ou tecnológica. A ciência deixará de ser puramente teórica e será aplicada. A
realidade não é apenas para ser contemplada, mas moldada. De cunho essencialmente pragmático (no
bom sentido), o engenheiro não espera pela última palavra da física sobre o que é, “realmente”, energia
elétrica. Ele se apropria das leis e das mensurações do físico e procura tornar o conhecimento teórico
em técnica, em tecnologia socialmente aproveitável. Começa a planejar e construir não mais simples
circuitos, mas sistemas elétricos sofisticados; melhora a performance de equipamentos, concebe novos
para incluir no sistema; procura empregos para energia elétrica em substituição a outras formas de
energia, indaga sobre fontes mais eficientes para sua obtenção etc. A sua importância é tal que para
muitos ele é considerado o senhor natural da nossa indústria.

À semelhança do físico, o engenheiro observa a realidade elétrica, mensura-a e estabelece relações


causais. E, também à semelhança do físico, seu objeto de estudo é o comportamento de grandezas
naturais. Mas, à diferença do primeiro, ele instrumentaliza essas atividades para conceber e obter
certos fins que devem ser realizados e males que devem ser evitados, uns e outros relacionados com
instrumentos que os propiciam ou afastam, e tudo isso presidido pela ideia de utilidade. A pergunta
básica formulada e respondida nesta dimensão – que se desdobra em inúmeras outras - é: “dada a
física, o que é necessário fazer para que os fenômenos elétricos possam ser suscitados, manejados e
utilizados com proveito?” A racionalidade técnica vale-se da causalidade para estabelecer prescrições27

25
Até o advento do modelo atômico proposto por Ernest Rutherford (e aperfeiçoado por Bohr), no início do sec.
XX, a eletricidade suscitava teorias concorrentes e curiosas que procuravam explicá-la. Dentre essas, a que maior
popularidade tinha no direito era a do éter: pensava-se que a eletricidade era o fluido de uma substância invisível,
presente em todo o universo, o éter (sobre essa teoria e suas repercussões jurídicas, v. Budde, Energie und Recht
cit.). As perplexidades, porém, não foram completamente eliminadas com a teoria do átomo. E não apenas
porque ela própria é um modelo explicativo que, como tal, se encontra sob o signo da falseabilidade popperiana,
mas porque o próprio fenômeno generalíssimo energia é ainda algo cuja “essência” está envolta em algum
mistério: “It is important to realize that in physics today, we have no knowledge of what energy is. We do not
have a picture that energy comes in little blobs of a definite amount. It is not that way. However, there are
formulas for calculating some numerical quantity, and when we add it all together it gives “28”—always the same
number. It is an abstract thing in that it does not tell us the mechanism or the reasons for the various formulas.”
(Feynman, Lectures on Physics, 4 – Conservation of Energy). Assim, nada obstante os imensos avanços em nossa
compreensão dos fenômenos elétricos e nossos largos passos em seu aproveitamento, é bom guardar uma
atitude de respeitoso ceticismo sobre questões de “metafísica da eletricidade”. Aliás, na base do direito da
energia elétrica repousam inúmeras ficções que fazem metafísica por decreto, para os modestos fins da regulação
jurídica. A primeira delas está no art. 83, I, do CCB, para quem devem ser consideradas coisas móveis as energias
que tiverem valor econômico.
26
O recurso heurístico empregado no texto deixa na sombra a circunstância historicamente interessante de que
muitas vezes reuniam-se na mesma pessoa o físico, o inventor, o engenheiro e mesmo o empresário. Exemplo
dessa conjunção de expertises, no setor elétrico, é Thomas Edison. Sobre ele e suas múltiplas dimensões, veja-se
a ainda útil biografia de Matthew Josephson, Edison: a Biography, Wiley, 1959.
27
O termo “prescrição” será usado para contrapor essas proposições normativas das ciências aplicadas aos
imperativos jurídicos, chamados de “normas”.

9
(as “boas práticas” da engenharia28), que irão estipular objetivos e relacioná-los com os meios de os
atingir. Objetivos e meios próprios da engenharia, bem entendido. Nessa tarefa de tornar o
experimento-circuito em utilidade-sistema, o engenheiro preocupa-se, fundamentalmente, em
conceber uma infaestrutura cuja operação proporcione energia elétrica de modo confiável, adequado,
e em quantidades tais que seja satisfeita a demanda pela utilidade.

A dimensão econômica

Logo que funcionais, os primeiros sistemas elétricos foram levados aos “capitalistas” já no final do
século XIX. Ao tornar o circuito algo potencialmente útil e a energia nele suscitada algo
economicamente apreciável, novos tipos de questões afloram.

Como todo o objeto tecnológico passível de exploração industrial, o sistema elétrico ingressa num
ambiente marcado pela escassez de recursos. O economista de profissão (não mais o “capitalista”) está
interessado em questões relacionadas com a distribuição de riquezas e bens finitos. Isso se traduz em
análises sobre modos de financiamento de sistemas elétricos (que competem por recursos com outras
atividades), taxas de retorno para investimentos neles, desenhos de mercados, custos de produção de
energia elétrica e seus preços, possibilidade e limites da competição e de monopólios etc.

Assim como o engenheiro, o economista possui uma expertise empírica. Observa e correlaciona
causalmente eventos os quais, porém, são diversos daqueles que chamam a atenção do primeiro, ainda
que relacionados ou relacionáveis a uma base comum (o sistema elétrico). Enquanto o técnico está às
voltas com o comportamento físico e com modo como os fenômenos elétricos podem ser controlados
e aproveitados, o economista reflete sobre esses mesmos objetos sob a perspectiva de sua
transformação em mercadorias e serviços, portanto, em riquezas.

A parte teórica, especulativa, da economia é relevante. Não menos, porém, é sua dimensão de ciência
aplicada, como a engenharia.

À força de observar os eventos econômicos, (muitos) economistas também formulam prescrições que
identificam objetivos próprios (“alocação ótima de capital”, “investimento adequado”, “custo
prudente”, “eficiente distribuição de recursos” etc.) e meios de os obter. Também “boas práticas
econômicas” acompanham a indústria elétrica (e suscitam, como no caso das prescrições da
engenharia, a relação desse tipo prescrição com as normas jurídicas, cfe. Seção IV). Como logo veremos
(Seção II), boa parte da configuração concreta que os sistemas elétricos tomaram ao longo do tempo
deve-se à busca de certos objetivos econômicos, como o fator de carga (load factor).

à v. Sally Hunt, Making Competition Work…, p. 03 (“the case for competition”).

28
Antes do law and economics as “boas práticas da engenharia” suscitaram uma das grandes questões do direito
da idade moderna, law and technology. Como veremos, essas boas práticas possuem uma relação complexa com
as normas jurídicas. Para um apanhado sobre esse problema mais geral – que relaciona o direito com quaisquer
indústrias que se valem intensivamente de tecnologia – veja-se Milos Vec, “Kurze Geschichte des Technikrechts”
in Schulte & Schroeder, Handbuch des Technickrechts, 2010.

10
Com a agregação dessa perspectiva, os sistemas elétricos construídos pelo engenheiro estão prontos
para se tornarem, agora, verdadeiras indústrias. Antes, porém, eles devem afundar os pés no terreno
social e fazer as contas com outras práticas e expertises aí presentes, talvez menos “racionais” ou
controláveis do que as até agora referidas, mas não menos importantes.

A dimensão política

Assim que a indústria elétrica botar o bonde na rua (literalmente quanto ao bonde e quanto à rua29),
ela encontrará o público, em geral; e a politica, em particular.

Ao entrar em um determinado espaço social, os esforços do engenheiro e do economista encontram


não apenas novas racionalidades, mas diferentes (e divergentes) interesses. A transformação do
sistema elétrico em uma indústria torna-se objeto da ação e reação de forças sociais as mais variadas.
Ambientalistas e profissionais de saúde, potenciais usuários e atividades concorrentes, fabricantes de
equipamentos e outros sujeitos podem ter algo a dizer sobre como a indústria deverá se organizar.

Nessa constelação de possibilidades, uma dimensão avulta, aquela política.

Não se trata aqui de discutir o caráter (ir)racional da atividade política e muito menos aferir se sua
influência é benéfica ou perniciosa. Ela é inevitável e tomada com certa dose de idealismo e boa-
vontade, pode ser vista tanto como um passe-partout utilizável para fazer referência ao mosaico de
interesses e racionalidades que atuam sobre a indústria, como também como uma dimensão específica
(ponto de chegada da ponderação de diferentes objetivos, desejos, fins etc.), preocupada em realizar
o interesse público em face dessa atividade30.

Já em seus primórdios, a indústria da eletricidade chamou a atenção do poder público e da sociedade


em geral e instaurou com essas forças não físicas uma relação que não mais terminou e que é
constantemente renovada e reconfigurada (os sucessivos “modelos setoriais”, radicalmente distintos
uns dos outros são a prova dessa dinâmica). A necessidade de uso de bens públicos (ruas, rios, riquezas
minerais etc.), a periculosidade inerente à atividade, o emprego da energia elétrica em serviços
públicos (transporte e iluminação públicos) e, sobretudo, o caráter estratégico e indispensável da
energia elétrica para sociedade como um todo31, foram todos fatores que justificaram a presença do

29
Com efeito, um dos primeiros elementos que chamou a atenção dos poderes públicos foi o uso da energia para
serviços públicos municipais, como o de transporte urbano por bondes, e a circunstância de que essa atividade
necessitava usar áreas públicas (ruas, praças, quedas d´água etc.). Sobre isto, ver o meu A Indústria Elétrica e o
Código de Águas – O Regime Jurídico das Empresas de Energia entre a Concession de Service Public e a Regulation
of Public Utilities, Fabris, Porto Alegre, 2007.
30
Sobre o conceito de interesse público, ver, por último Juliano Heinen, Interesse Público – Premissas Teórico-
Dogmáticas e Proposta de Fixação de Cânones Interpretativos, Jus Podium, 2019.
31
“Of the great construction projects of the last century, none has been more impressive in its technical,
economic, and scientific aspects, none has been more influential in its social effects, and none has engaged more
thoroughly our constructive instincts and capabilities than the electric power system. A great network of power
lines which will forever order the way in which we live is now superimposed on the industrial world. Inventors,

11
Estado na indústria. Ao lado de engenheiros e economistas, está sempre o político – às vezes para
desespero dos dois primeiros.

Assumindo-se que, em sua face positiva e construtiva32, a política preocupa-se em acomodar a indústria
ao interesse público, tem-se uma porta aberta às mais diversas especulações e pretensões. Essa
expressão vaga e de sentido necessariamente ambíguo, pode assumir significados coincidentes com
ideais técnicos e de eficiência econômica ditados nas respectivas prescrições, mas pode também
indicar precisamente que nem sempre é de se identificar a “melhor indústria” com essas diretrizes33.
Em resumo, a evocação ao interesse público permite acomodar ou expressar outras dimensões (aqui,
inclusive, não exploradas).

Como quer que seja, e tal como as ciências aplicadas, a política tem seus objetivos e meios a serem
considerados. E tal como elas, faz prescrições. Ela responde – ou orienta a resposta – a questões que
não são, como tais, do métier do economista ou do engenheiro (os quais, por óbvio, podem possuir
opinião sobre isso). Desde seu advento34, foram-lhe feitas perguntas como: “qual será o papel do
Estado nessa atividade econômica”, “qual poder público incidirá sobre sobre ela?”, “quais serão suas
competências?”, “quão profunda será a atuação estatal?”, “a que outros fins, para além de prover
energia elétrica, a indústria servirá?”, “terá ela uma ‘função social’?” etc35.

engineers, managers, and entrepreneurs have ordered the man-made world with this energy network.” Hughes,
Networks of power cit., p. 01.
Para dar-se conta, de modo vívido e romanceado, desta importância, confira-se a narrativa introdutória da obra
despretensiosa de David Bodanis, Electric Universe – The Shocking True History of Electricity, Crown Publishes,
Nova Iorque, 2005, pp. 1-4.
32
Não se nega a possibilidade (bem presente) de práticas políticas perniciosas em face da indústria. Nessa
dimensão, bastante conhecida em nosso país, a lógica de ação é pratimonialista, para dizer o mínimo, e os efeitos
da instrumentalização de empresas estatais (e mesmo da regulação setorial), desastrosos. E para quem acha que
a utilização deslavada de empresas estatais é uma chaga recente, recomenda-se a leitura de Faoro, Os Donos do
Poder.
33
“As a result of the emphasis on economic factors, decision making in the utility industry was relatively
straightforward compared to what it would have been if engineers and managers had felt obliged - or indeed had
been obligated - to fulfill social needs despite costs. In the fifty-year history of electric power systems considered
here, influential voices did not call for the cross-subsidized supply of light to hospitals, prisons, and other public-
welfare institutions; the argument was not made that the streets and houses of the slums should be lit first
because lighting would have a more dramatic impact on the quality of life there; and demands that electricity be
used first in workplaces where the physical burdens were heavy were not expressed. If these social values had
been stressed, the decision-making process would have been more complex and electric power systems would
have developed different shapes. (…). In the decade alter 1930, interest in introducing a more complex set of
values into the design of electric power systems increased. In the United States, planners of the Tennessee Valley
Authority stressed that the TVA system would not simply supply electric power; it would also endeavor to meet
such social objectives as providing labor-saving appliances for a depressed rural population and making the rivers
of an economically backward region navigable. Other social objectives included soil reclamation through the
manufacture of fertilizers (using cheap electricity) and the prevention of soil erosion through the control of flood
waters and runoff.” Hughes, Networks of Power, cit., p. 464.
34
Ainda quando muito se discutia, em direito (em na física), acerca da essência última da energia, questões de
estampo político eram feitas e respondidas (Pipia, L´elettricità nel Diritto, Hoepli, 1900, p. 39).
35
Na sua qualidade de curinga, a dimensão política ainda formula questões como “qual será a matriz elétrica que
o país deverá buscar?”, “Quais serão os cuidados com a saúde da população que operação de redes elétricas
deverá ter?”, dentre outras.

12
Distintas tradições político-jurídicas responderam de modos muito diferentes a essas perguntas –
grosso modo, contrapõe-se a concepção francesa da concession de service public à ideia norte-
americana da regulation of public utility36. A resposta a elas dá origem àquela porção do direito da
energia que o vincula ao direito administrativo geral (e constitucional). Em todo o caso, quando são
solucionadas (sempre provisoriamente), a indústria elétrica já é uma instituição social a pleno título37.

Em síntese, a indústria da energia elétrica, essa infraestrutura institucionalizada é o resultado dessas –


e de tantas outras - racionalidades. E por elas se deixa analisar (daí as duas dimensões referidas na
introdução a este estudo: constitutivas e analíticas).

A esta altura, o leitor já deve estar impaciente porque pouco ou nada se falou do direito. Ele já está por
aí, mas antes de vê-lo, convém dar mais um passo.

A interação dessas racionalidades na constituição da indústria da energia elétrica

Logo no início desta seção se disse que o recurso heurístico às diferentes racionalidades as introduziria
numa certa sucessão, em isolamento e de modo idealizado. De consequência, a narrativa acima poderia
sugerir a ideia de que a indústria elétrica é o resultado de uma interação ordenada e sucessiva dessas
distintas expertises. Engenheiros se ocupariam de construir sistemas, economistas de mercados e
políticos de coordenar tudo isso numa instituição social que promovesse o bem de todos. Depois, o
consultor jurídico seria chamado para redigir a lei. Parodiando o céu dos juristas imaginado por Ihering
e lembrado por Cohen38, no paraíso platônico dos engenheiros, livre de restrições econômicas e
relações de poder, sistemas elétricos seriam vistos em todo o seu esplendor como a resultante
exclusiva das suas reflexões e fadigas. Desprovidos de outras limitações que não as naturais, esses
sujeitos conceberiam e construiriam sistemas perfeitos, custassem o que custassem. Algo semelhante
se poderia dizer do paraíso dos economistas, e assim por diante.

A realidade, porém, infelizmente é outra. Logo batem à porta do escritório de projetos do engenheiro
o economista e o político para introduzirem irritantes variáveis não técnicas. O economista também
trabalha cercado de “ineficiências” e “irracionalidades econômicas” que perturbam o que ele considera
uma boa circulação de riqueza. Para apanhar o objeto das normas jurídicas de modo um pouco menos
ingênuo, é necessário observá-lo com uma pitada a mais de complexidade (e - por que não dizer? - de
confusão).

Em primeiro lugar, como se viu na introdução, não existem (somente) racionalidades bem ordenadas
operando na construção da indústria elétrica. Existem sujeitos de carne e osso que, mesmo dotados de
certos tipos de conhecimentos (e nem todos os são), operam como portadores de diferentes interesses

36
Ver o meu A Indústria Elétrica, cit., Cap. IV.
37
Estamos nos inspirando no conceito de “instituição social” oferecido por MacCormick, “Law as Institutional
Fact”, in MacCormick e Ota Weinberger, A Institutional Theory of Law – New Approaches to Legal Positivism,
Kluwer, 2a ed., 1992, p. 56.
38
COEHN, Felix. El metodo funcional en el derecho, trad. Genaro Carrió, Buenos Aires: Abeledo Perrot, 1962, p.
11-12.

13
que já muito a custo se deixam organizar em discerníveis e relativamente homogêneos centros
(consumidores, investidores, reguladores etc39).

Depois, é hora de desfazer a impressão ingênua de que as ciências aplicadas são monolíticas. No interior
de cada uma delas – para não falar da política – grassam divergências em importantes aspectos que
vão desde a identificação e mensuração dos objetivos de cada área, e os modos de coordená-los entre
si, até a eleição da melhor solução que os promoverá40.

Em parte por isso, é também importante perceber que a ordem da interação nem sempre tem uma
mesma direção. Diante da possibilidade de escolhas técnicas, é bem possível que o construtor de
sistemas opte por determinada alternativa em razão de suas convicções políticas (em sentido amplo, o
que inclui também, p.ex., preocupações ambientais). A decisão entre duas soluções de engenharia
pode ser ditada pelo interesse econômico do acionista da empresa de energia que prefere uma certa
liga de metal para os condutores à outra; pela pressão do consumidor por tarifas mais baixas ou por
serviços mais confiáveis; pelas exigências de ambientalistas que desaprovam usinas hidrelétricas com
grandes reservatórios e preconizam aquelas a fio d’água; ou mesmo pelas admoestações do consultor
jurídico acerca do dever de escolher certa configuração técnica por exigência de alguma norma setorial.
Enfim: uma míriade de variáveis pode entrar em cena para decidir uma questão eminentemente técnica
(ao menos para aquelas que admitem alternativas)41. Nem sempre opera o técnico “puro”. E nem
sempre se logra estabelecer precisas linhas de demarcação entre a técnica, a economia, a política (e o
direito, cfe. adiante).

Por fim, e isto é particularmente penoso de admitir, o acaso, a teimosia, a má-fé e a irracionalidade
também jogam algum papel na constituição da indústria. Também de Hybris e Chaos é feita a vida no
imperfeito mundo sub-lunar onde vivemos.

Ou seja: guardados certos limites – e a identificação desses limites é tão complexa quanto importante
– mesmo para construção da base física há espaço para deliberação. Reitere-se quanto referido ainda
na introdução deste trabalho: a infraestrutura é, sim, uma realidade empírica, mas ela não é um dado
da natureza – como a dimensão física do comportamento da energia elétrica o é. Ainda que por vezes
engenheiros tentem fazer passar determinada configuração de turbinas e cabos elétricos por um “fato
necessário” certo é que o sistema elétrico é um construto humano em que há espaço para alternativas
e, portanto, decisões por onde se infiltram interesses e outras expertises. É fora de questão que

39
Diz-se relativamente porque nem mesmo entre consumidores, por exemplo, há unidade de interesses. Basta
pensar nos embates que podem surgir entre os chamados consumidores livres e os cativos, relativamente ao ônus
de suportar encargos setoriais ou custos de expansão do serviço de distribuição.
40
Para ficar apenas na engenharia, pense-se na atual controvérsia técnica acerca das distintas metodologias para
cálculo e revisão das garantias físicas das usinas que integram o parque gerador brasileiro.
41
Pense-se no modo como se decide por determinada fonte para geração de energia elétrica: nessa espinhosa
questão o engenheiro preocupa-se com a confiabilidade da oferta de energia (comportamento da fonte, o modo
de sua integração no parque gerador existente etc.); um economista estaria atento aos custos de construção e
operação das alternativas; o político, em vários outros aspectos (a geração de empregos, o desenvolvimento da
indústria nacional, a participação em algum negócio ilícito com a empreiteira especializada na construção de certo
tipo de usina etc.); o ambientalista nos impactos para a floresta ou na quanidade de carbono produzido; o militar
no desenvolvimento da tecnologia relevante para a segurança nacional e assim por diante.

14
máquinas e objetos que dão choque parecem ter mais “solidez”, “concretude” ou “inequivocidade” do
que outros construtos humanos, como o direito ou a política; mas o sistema elétrico, como a política e
o direito, é também o resultado da ação humana refletida e deliberada.

Esta artificialidade – e a intensidade da interação - se apresenta com ainda maior força quando se passa
do plano da configuração da infraestrutura para aquele de sua institucionalização num dado meio
social. Aqui há ainda mais vastos espaços de decisão e escolha. Como exemplo histórico real e grandioso
pode ser lembrado o chamado utility consensus uma convicção setorial que, sob o pressuposto de um
aparente dado econômico, dominou a indústria elétrica até recentemente42.

Em síntese, sistemas elétricos, como objetos culturais que são, têm por base “entrepreneurial drive
and decisions, economic principles, legislative constraints or supports, institutional structures,
historical contingencies, and geographical factors, both human and natural43.”

Por outro lado, constatar esse estado de coisas decepcionante para alguns não impede reconhecer que
há questões e áreas da indústria onde se dá primazia a certas racionalidades, em detrimento de outras.
Por óbvio que engenheiros têm mais a dizer do que políticos acerca da adequada espessura de cabos
condutores e que economistas deveriam ser ouvidos antes que advogados sobre a (boa) estrutura de
mercados. Sistemas tecnológicos têm, sim, uma lógica interna44 e não se nega que certos grupos de
interesses45 e também certas racionalidades tomem a dianteira, em determinados momentos
históricos, inclusive de forma estável e duradoura46.

42
A expressão é de Richard Hirsch, em Power Loss, cit. Para Hirsch, passado um primeiro período de competição
física entre diferentes prestadores de serviço, foi se formando, de modo progressivo mas consistente, uma
convicção acerca da melhor conformação para a indústria elétrica. Em síntese, tratava-se de reconhecer que ela
configuraria um “monopólio” (genericamente concebido), em face do qual, porém, se instalaria uma intensa e
extensa regulação estatal (effective regulation of public utilities). Em seus capítulos iniciais, Hirsch mostra como
essa percepção geral estaria assentada, inicialmente, em premissas econômicas (começava a ganhar bases
sofisticadas o estudo dos “monopólios naturais”) que, porém, foram encampadas, reformuladas e
complementadas por distintas elites atuantes no setor elétrico, em especial, políticos, engenheiros e, sobretudo,
os administradores das grandes companhias norte-americanas. O utility consensus seria, em última análise, uma
obra conjunta desses distintos atores que conceberam de um modo particular e não necessário (como hoje se
vê), o fato econômico do monopólio natural (inegavelmente) presente na indústria.
43
Hughes, Networks of Power, cit., p. 462.
44
Essa complexa questão – que suscita, como um seu subtema, o problema desenvolvido na Seção IV, adiante –
foi analisada por Hughes, no Capítulo IX de sua já referida obra, Networks of Power.
45
Hirsch nota como, passado o momento inicial da construção do utility consensus, os managers das companhias
elétricas procuraram blindar a indústria de influências e dinâmicas externas e passaram a exercer a hegemonia
na condução da atividade: “Though forged by elite managers, politicians, and reformers, the utility consensus
quickly won support from other parties. Investment bankers endorsed the agreement because they profited from
fuelling money into the capital-intensive utility industry. Manufacturers of electric equipment thrived too, by
supplying more advanced technologies to the growing power companies. Likewise, consulting firms, universities
and customers became integrated into a web of ‘enrolled’ actors who benefited from the system created by the
consensus. Almost immediately, utility managers took effective control over the expanding system. They did so
partly because other participants involved in shaping the consensus demurred form assuming a leadership role.”
(Power Loss, cit., p. 33).
46
Em linha com o grupo de interesse dos managers, a racionalidade econômica de estampo capitalista foi,
segundo Hughes, decisiva a partirda década de 30 do século passado, para a indústria elétrica. “These economic
forces in turn manifested the values that transcended lime and place and pertained to Western society, or at least
to the United Slates, Germany, and England. The values were those of a cost-accounting, capitalistic civilization.

15
Em todo o caso, poucas questões da indústria são simplesmente o resultado das elucubrações e ações
do “titular da pasta”. As ciências aplicadas podem conduzir algumas discussões, mas raramente
decidem sozinhas o êxito da reunião. Suas prescrições não são nem leis da física, dotadas de
necessidade, nem normas jurídicas dotadas de cogência (adiante).

E mais: a aceitação dessa realidade não impede que, para fins analíticos, sejam isolados e tratados
separadamente os traços técnicos, econômicos, políticos e mesmo jurídicos da indústria. Ela pode ser
objeto de estudos descritivos ou valorativos sob cada uma dessas perspectivas, e ainda de outras:
ciência política, sociologia, história e mesmo teoria jurídica. Por isso, inclusive, se diz que as dimensões
apresentadas não são apenas constitutivas da indústria, mas também ferramentas analíticas dela.

De tudo já se falou, e pouco ou nada foi referido de propriamente jurídico. Onde entra a dimensão
jurídica?

Ela será objeto das próximas seções, mas desde já se antecipa que o direito, como conjunto de normas
jurídicas que pautam e determinam (quaisquer) condutas, é o ponto de encontro dessas racionalidades
materiais; é a instância de formalização da interação delas e de suas decisões, nos mais diferentes
momentos e planos e estará presente sempre que se pretender garantir força cogente à certa atividade
ou decisão tomada no âmbito da indústria, seja de que natureza for (técnica, econômica, política etc.).

Já a racionalidade jurídica, isto é, a expertise própria do profissional do direito, é ela também uma
ciência (ou arte?) aplicada, à semelhança das anteriores mas, à diferença delas, tem cunho
eminentemente formal e é dirigida ao conhecimento e manipulação de normas sobre a indústria
elétrica (e não à indústria elétrica enquanto tal). Como ciência aplicada, ela contribui para essa
infraestrutura institucionalizada aportando o conhecimento específico que produz a adequada
formalização das interações entre esses sujeitos todos. E como tal, também faz valorações acerca de
seu objeto, as normas jurídicas, apreciando-as sob a perspectiva de sua inteligibilidade, validade,
sistematicidade e estabilidade. Tudo isto à vista de objetivos essencialmente jurídicos, como a validade
e a segurança jurídica. Veja-se isso mais de perto, finalmente.

If a would-be Darwin or the technological world is looking for laws analogous to the environmental forces that
operate in the world of natural selection, the economic principles of load factor and economic mix are likely
candidates. In the history of supply systems, these embodied the values of a culture that was capitalistic, a culture
where interest on capital was calculated to ascertain the cost of goods and services. Because electric power
systems were capital intensive, interest was of paramount importance. The cost of capital was calculated by the
utilities operating electric power systems irrespective of the form of ownership—private, public, or mixed private
and public. In a culture that did not calculate capital cost— the medieval Western civilization for instance—electric
light and power systems would have grown differently.” cit., pp. 462-63. “The decisions that were made to
improve load factor and economic mix shaped the growing electric supply systems in their cost-accounting
settings. Only rarely were these principles violated, either by private undertakings or government-owned
utilities.” (op. cit., p. 464).
Em todo o caso, ele se apressa em qualificar essa influência: “Economics was not an absolute determinant of the
growth and shape of electric power systems before 1930, application of the principles of load factor, economic
mix, and pricing on the basis of cost notwithstanding. There were exceptions, as has been noted. Also, there were
innumerable variations in the way in which economic principles were applied. Therefore, the economic factor
should be considered deterministic rather than determining, and the result a soft determinism.” (p. 465).

16
Seção II - O direito da energia elétrica

Introdução

Os leitores familiarizados com o quotidiano de uma empresa de energia elétrica ou de entes públicos
que possuem competências em face da indústria não terão dificuldade em imaginar as seguintes
situações:

a. Funcionários de uma distribuidora saem a campo para realizar a fiscalização de medidores


e para lacrar aqueles considerados fraudados.

b. A equipe do Centro de Operações de uma distribuidora realiza, inadvertidamente, certas


manobras na rede não previstas nos manuais de operação do sistema e provoca com isso
queda de energia em uma inteira região da cidade.

c. As áreas técnica e financeira de uma transmissora, em reunião conjunta, decidem a compra


de um equipamento elétrico necessário às redes que, se não é aquele dos sonhos da
engenharia, tem a vantagem de realizar adequadamente a função por um valor que deixa
o financeiro confortável.

d. O corpo diretivo de uma grande geradora, em assembléia geral de acionistas, oferece


informações sobre o estado econômico da empresa e sobre os planos de ampliação e
modernização de uma usina obsoleta e ambientalmente problemática.

e. Os engenheiros da distribuidora planejam a expansão da rede para os próximos 5 anos e


enviam ao regulador uma comunicação sobre isso.

f. Um condomínio de casas que possui certas características de potência e consumo formula


a um comercializador pedido para comprar energia proveniente de certas fontes
incentivadas nas normas setoriais.

g. Uma empresa geradora celebra um acordo de financiamento com um banco com base na
receita esperada oriunda de contratos de venda de energia.

h. O prefeito de cidade atendida pela distribuidora celebra com ela um acordo para incluir
nas faturas de energia informações de utilidade pública sobre o município.

i. Uma cooperativa de eletrificação rural recebe da ANEEL um título para prestar seus
serviços também em área adjacente àquela em que atuava.

j. Na ANEEL, a Superintendência de Regulação Econômica e Estudos de Mercado (SRM), a


Superintendência de Fiscalização Econômica e Financeira (SFF) e a Superintendência de

17
Regulação dos Serviços de Distribuição (SRD – integrante do núcleo de Regulação Técnica
e Padrões de Serviço) produzem, em conjunto, uma Nota Técnica com uma série de
recomendações acerca da necessidade de modernização de certos equipamentos
utilizados nos serviços de distribuição e respectivos custos prudentes.

k. Também na ANEEL, a Diretoria decide punir um gerador por não ter ele obedecido à ordem
de despacho dada pelo Operador Nacional do Sistema – ONS.

l. No Ministério de Minas e Energia, o Ministro edita uma Portaria com critérios gerais para
revisão de garantias físicas das usinas hidrelétricas.

m. Uma associação dos investidores em energia limpa ingressa em juízo para sustentar a
necessidade de a ANEEL implementar uma providência prevista em lei de incentivo a fontes
renováveis.

n. Consumidores cativos mandam uma correspondência à ANEEL para que esta, em certo
prazo, tome uma providência contra o que consideram uma alta abusiva das suas tarifas.

o. No Congresso Nacional, Deputados e Senadores, depois de várias audiências públicas em


que foram ouvidas associações de consumidores, dos investidores em autoprodução de
energia, a ANEEL e diversas entidades acadêmicas como o CERI-FGV/RJ, o GESEL, do
Instituto de Economia da UFRJ, e o Centro de Excelência em Energia e Sistemas de Potência
(CEESP), da Universidade de Santa Maria, decide votar um conjunto de disposições gerais
e abstratas sobre o Novo Marco Regulatório do Setor Elétrico. A proposta é aprovada e o
Presidente da República, com ela concordando, faz publicar o texto no Diário Oficial.

Todas essas circunstâncias exemplificam a complexidade e o modo de construção concertado da


indústria elétrica indicado na seção anterior. E, mais do que mostrar isso, essa longa lista de exemplos
sugere também que os sujeitos indicados pretendem que suas ações tenham relevância perante
terceiros, que sejam respeitadas, que produzam determinados efeitos inclusive, se for o caso, contra a
vontade desses terceiros. Em termos genéricos e sem entrar ainda no juridiquês, todos eles pretendem
que essas ações e interações tenham eficácia inter-subjetiva.

Para tanto – e agora abusando da linguagem própria do direito - todos eles eles praticam atos jurídicos
com os mais diferentes conteúdos. Com tais atos, pretendem gerar “direitos”, “deveres”, “pretensões”,
“poderes”, “competências”, “imunidades” etc. No caso a, está-se às voltas com as noções de poder de
polícia e ato ilícito; no caso b, com responsabilidade e culpa; no caso c, com negócio jurídico ou contrato;
no caso d, com prestação de contas; no caso e, com uma declaração unilateral de vontade; no caso f,
com uma proposta; no caso g com um negócio jurídico de financiamento; no caso h com um convênio;
no caso i, com uma permissão de serviço público; no caso j, com um ato administrativo; no caso k, com
uma decisão administrativa punitiva de imposição de penalidade; no caso l, com um ato administrativo
normativo; no caso m com uma ação judicial; no caso n com uma notificação extra-judicial. No caso o
nasceu uma lei.

18
A interação das forças e expertises, quaisquer que sejam elas e onde quer que ocorram, revestiu-se de
caráter jurídico. Como esses exemplos deixam entrever, o direito é onipresente.

E se o direito está em tudo, seus profissionais também.

O consultor jurídico faz muitas coisas. Orienta cursos de ação, sobre os mais diversos temas, para
verificar as consequências que daí decorrem: pode/não pode/deve/não deve a diretoria rescindir o
contrato de concessão? Tem a ANEEL competência para editar a providência demandada pela
associação que alega ter direito subjetivo à ela? Examina atos e eventos passados com o mesmo
propósito: é válido o contrato de financiamento celebrado, de tal sorte que produz, no momento
adequado, uma pretensão de exigir a prestação da instituição bancária? Há nulidade na decisão punitiva
tomada pela diretoria por falta de competência ou abuso de poder? houve ato ilícito praticado pelo
funcionário que usou da força para entrar na residência do consumidor? Nasceu um direito à
indenização em favor dos consumidores que tiveram seu fornecimento de energia interrompido pela
manobra equivocada na rede? Além de disso, ele auxilia na exteriorização desses atos (redige
contratos, verifica a compatibilidade da decisão de diretoria com a lei, ajuda na elaboração da resolução
normativa. E, ponto importante, o causídico defende os interesses de seus clientes em instâncias
encarregadas da solução de litígios (cortes judiciais, instâncias arbitrais e órgãos administrativos).

Do ponto de vista empírico, a onipresença do direito e de seus profissionais é uma características


moderna do setor. No período anterior (grosso modo, entre 1960 e 1993), marcado pela propriedade
pública e verticalização das empresas, os advogados eram poucos e os departamentos jurídicos,
acomodados em modestos espaços ao lado do almoxarifado, ocupavam-se de questões trabalhistas,
cobranças de consumidores, implantação de servidões e promoção de desapropriações. Também neste
período, é notória a falta de formalização das mais fundamentais relações setoriais, os contratos de
suprimento de energia47 e mesmo as concessões de serviços públicos. A interação entre os atores
desembocava menos no direito e mais nos comandos puramente políticos, hierárquicos ou mesmo no
simples mas eficaz entendimento entre sujeitos conhecidos entre si48. Isso ocorria porque se obtinha a
eficácia social desejada por esses outros meios. Com as reformas legislativas ocorridas a partir de 1995
e com as privatizações e introdução da competição em alguns segmentos, os departamentos jurídicos
tornaram-se transversais, passaram a ocupar áreas nobres da empresa, e hoje raras são as decisões
técnicas, econômicas e mesmo políticas que não passam pelo crivo e carimbo do “jurídico”. Num
ambiente de propriedade fragmentada, competição e tensão entre estranhos (e potenciais inimigos),
o direito tornou-se a principal instância para dar essa eficácia social à interação entre os agentes.

O que dizer de tudo isso, à parte que o mercado de trabalho dos profissionais do direito tornou-se vasto
e promissor?

Os planos e o papel do direito

47
Sintoma disso foi a Lei 8.631/1993.
48
Vejam-se as interessantes observações feitas em Memória da Eletricidade, p. 52 e segs.

19
O elenco de situações (não tão) imaginárias deixa evidente que a onipresença do direito se faz sentir
em vários planos, desde o mais prosaico e individual possível – a ação de um fiscal que lacra um medidor
fraudado contra a vontade do consumidor – até o mais geral, abstrato e solene – a edição de uma lei-
quadro que reformula inteiramente o setor elétrico. Entre um plano e outro estão o contrato – e
contratos multilaterais, como o CCEAR, o CPST etc. - a decisão de diretoria, o ato administrativo
individual e concreto, o ato administrativo normativo etc. O direito tem vários alcances e as ações
qualificadas como jurídicas dão origem a “produtos” que vinculam dois sujeitos específicos ou uma
quantidade indeterminada deles49.

Em qualquer desses planos, estamos sempre às voltas com pautas de condutas, com ações humanas
conscientes e deliberadas que se realizam ou se deixam descrever em base a padrões estabelecidos em
normas jurídicas50. Um contrato de suprimento realiza a hipótese abstrata prevista no art. 10 da lei
9.648/1998 e a própria lei que serve de parâmetro para a qualificação de um ato como contrato é, ela
também, fruto de atos realizados em base a normas: uma votação no Congresso Nacional que dá
origem a uma lei é parte de um conjunto de atos concatenados previstos na Constituição51. De igual
modo, uma uma decisão do regulador, para ser uma resolução normativa é o ponto final de um
conjunto de atos prescritos em leis. Grosso modo, todas as ações que pretendam se revestir de
juridicidade realizam um suposto de fato previsto em uma – rigorosamente: em mais de uma – norma52

49
Ou seja: o direito da energia elétrica é composto pelo conjunto de normas gerais e abstratas – disposições
constitucionais, leis, regulamentos, atos administrativos normativos como portarias, resoluções etc. – e também
pelo conjunto de atos jurídicos individuais e concretos que as realizam - contratos, ordens e permissões concretas,
manifestações unilaterais de vontade etc. Normas gerais e atos concretos têm por objeto alguma conduta
relacionada à indústria elétrica.
50
Essas condutas são os “fatos institucionais” de que fala o neoinstitucionalismo de MacCormick e outros,
apoiados em Searle. Fatos institucionais seriam aquelas ações ou eventos que não apenas podem ser descritos
em suas propriedades físicas, empíricas, mas também por referência a regras. Assim, a movimentação de uma
peça numa superfície quadriculada pode ser descrita com coordenadas puramente espaço-temporais mas,
também, por referência às regras do xadrez, como cheque-mate. A pronúncia de certas palavras entre dois
sujeitos, além de ser uma ocorrência física, pode ser também considerada como um contrato, por referência a
normas do Código Civil. Sobre isso, veja-se Neil MacCormick, “Law as Institutional Fact”, cit., p. 51 e segs. Note-
se, ainda, que mesmo o ato ilícito se encaixa nessa descrição enquanto realiza uma hipótese de incidência, cfe
adiante.
51
Essa circunstância chama a atenção para a existência, no direito, de outros tipos de normas, para além daquelas
que comandam ou proíbem, como são aquelas que conferem poderes, competências, estipulam procedimentos
etc. de que fala Hart (The Concept of Law, 2ª ed., Clarendon, 1997).
52
Como o leitor familiarizado com a teoria do direito já deve ter percebido, estamos falando daquela espécie de
norma jurídica chamada “regra” que tem uma estrutura singela, de “se α então β”, isto é, com um antecedente
(ou “suporte fático”, na linguagem ponteana) e um consequente, ligados por uma imputação normativa. Não
estamos, de momento, interessados no modus operandi da outra espécie de norma, os famosos princípios. Esse
grupo não se deixa assimiliar à estrutura das regras e princípios são comumente qualificados como “mandados
de otimização” que se aplicam segundo certas possibilidades, manifestadas por uma técnica específica, a
“ponderação”. A distinção entre princípios e regras é hoje lugar-comum. Tratamentos clássicos são os de
Dworking e Alexy. No direito brasileiro, por todos, Humberto Ávila, Teoria dos Princípios: da Definição à Aplicação
dos Princípios Jurídicos, 18ª ed. Malheiros, 2018. Α Seção IV tratará deles e de seu lugar no direito da energia
elétrica. A mecânica do funcionamento das regras foi exemplarmente descrita por Karl Engisch em sua Introdução
ao Pensamento Jurídico, 1988, Calouste Gulbenkian.

20
que, por sua vez, é ela também o produto de atos que realizam certos supostos de fato e assim
sucessivamente (até sabe-se lá onde53).

Dessas primeiras observações facilmente se confirma a percepção do senso-comum de que o direito é


uma instituição social destinada a regular condutas; que é - ou é composto de - um conjunto de normas
e atos de distintas abrangências.

Mas de que tipo?

Sob a perspectiva do conteúdo, tanto as manifestações jurídicas concretas quanto as mais abstratas
podem veicular qualquer matéria de relevância para a indústria elétrica. Como nossos exemplos
indicam, há normas jurídicas de cunho técnico, econômico, político, ambiental etc. Os atos jurídicos e
seus resultados absorvem o conteúdo das distintas racionalidades que constituem a indústria elétrica
(Seção I). Eles podem – e devem, cfe. adiante - usar a linguagem e os conceitos jurídicos, mas, em larga
parte (não em sua totalidade54), veiculam matéria especificamente setorial.

Essa característica polifacetada das normas jurídicas explica a onipresença do direito e se torna
compreensível uma vez que se reconhece que o direito é a instância social onde a interação entre os
centros de interesse e as racionalidades materiais se institucionaliza para ganhar um específico – e
muito valioso – tipo de eficácia social que só ele é capaz de proporcionar: a cogência. Como se disse,
não é mais o (nu) poder político ou a hierarquia administrativa que providenciam a eficácia social; é o
direito55. Ao se juridicizarem (corretamente), essas interações passam a ser dotadas da qualidade
especificamente jurídica da cogência, a capacidade de conformar condutas inclusive de modo contrário
à vontade dos terceiros, por meio do apelo a certas instituições sociais específicas (em ultima ratio: as
cortes). Para obter cogência, juridiciza-se (quase56) tudo.

É certo que normalmente não se pensa no direito como cumprindo apenas essa função. Tem-se-o por
um equipamento de apreciação e mitigação de riscos, uma variável no planejamento econômico
empresarial, um termômetro para prever o comportamento futuro de terceiros e por vezes até por

53
No plano em que estamos, não precisa nos preocupar a questão que assombra a filosofia do direito, acerca do
ponto final desta espiral regressiva. Os problemas jurídicos do setor elétrico felizmente não precisam saber o que
diz a Norma Fundamental de Kelsen ou a Regra de Reconhecimento de Hart
54
Nem todas as normas jurídicas setoriais dedicam-se, ao menos explicitamente, à energia elétrica. Essa
circunstância já havia sido notada na obra pioneira de Pfleghart que, logo no início de seu extenso estudo sobre
a energia elétrica como objeto de direito, distinguia entre uma parte do direito que regulava as ações e
procedimentos que permitiam a instalação da indústria e que faziam uso de noções jurídicas próprias do direito
administrativo, comercial, civil etc.; e outra parte que se preocupavam com a energia como tal, isto é, como
produto e como mercadoria. Era essa segunda parte que suscitava os maiores desafios e à ela o jurista se dedicou
(Die Elektrizitat als Rechtsobjekt Vols. 1 e 2).
55
As diferenças entre cogência, validade e eficácia e as complicadas relações entre esses conceitos (sobretudo
entre os dois últimos) serão solenemente ignoradas neste estudo.
56
Como se verá adiante, nem tudo. O que é, por natureza, necessário não tem cogência jurídica. Simplesmente
acontece e seria um absurdo (também) transformar em leis jurídicas as “leis” da física. Só se torna cogente o que
pode ser objeto de deliberação, escolha e decisão. A questão, porém, é mais nuanceada com relação às
prescrições das ciências aplicadas, como veremos. Elas não são necessárias como as leis da física, mas, em certos
casos, a não juridicização delas – e a juridicização de irracionalidades sob esse ponto de vista – leva a problemas
que não podem ser solucionados em base ao velho aforisma do fiat justitia pereat mundus (adiante).

21
uma “moeda” (direitos, pretensões e ações podem ser negociados, cedidos etc.). Mas essas serventias
mais prosaicas e imediatas estão lastreadas na possibilidade de, “se tudo der errado, recorrer ao
Judiciário para exigir o que é de direito”57.

As vias e as operações do direito

Como se viu acima, algo não é ou não se torna jurídico porque possui esse ou aquele conteúdo. O que,
então, opera essa façanha da transformar, por exemplo, uma diretriz técnico-econômica de despacho
de usina em um comando jurídico cogente que, se descumprido, pode gerar uma multa? Com se
juridiciza algo?

Em termos muito gerais e simplificados, já o dissemos na seção anterior: todas as ações que pretendam
se revestir de juridicidade realizam um suposto de fato previsto em uma norma (regra). Mais
tecnicamente, quando um fato ou uma ação humana se amoldam à uma descrição abstrata prevista
em uma – ou num conjunto de – normas, ocorre o fenômeno jurídico da subsunção. Essa descrição
abstrata é o suporte fático (ou suposto de fato) e à ela está ligada uma (normalmente mais de uma)
consequência jurídica58.

As condutas que levam a um “contrato de fornecimento” realizam o suposto de fato previsto em


alguma(s) norma(s) da REN ANEEL 414/2010: o pedido de ligação pelo consumidor seguido de
determinadas providências pela concessionária etc dá nascimento ao negócio jurídico. As condutas que
produzem uma “lei” seguem a Constituição. Mesmo o ato dito “contrário a direito” (o ilícito civil ou
penal) é a realização de uma norma que o prevê como o suposto de uma consequência desfavorável
ao agente que o pratica (sanção). E, como o contrato, ele gera direitos (à indenização), deveres (de
indenizar), pretensões, ações etc. Ou seja: o ato ilícito é tão jurídico quanto o contrato. Ele é o resultado
da subsunção fato-norma59.

Via de regra, quando se segue uma norma, o ato jurídico que dela nasce é dito válido, isto é, possui
aptidão para produzir efeitos jurídicos como direitos, deveres, poderes, competências etc60. E isso

57
Aproximamo-nos aqui perigosamente da ideia de certos realistas americanos, em especial de Holmes, para os
quais, o direito nada mais é do que um instrumento para prever o comportamento das cortes. Mas, quem sabe
ele não tinha mesmo razão?
58
Trata-se de um evento do plano ideal que não se confunde a aplicação da lei – que é o que, afinal, se pretende.
Sobre a distinção entre subsunção (ou “incidência”) e aplicação, mais uma vez Pontes de Miranda, Tratado, cit.,
vol. I, §§ 14 a 15.
59
Kelsen, Teoria Pura do Direito, cit., p. 166 e segs. Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, vol. II, § 159,
n. 3, p. 254: “o hábito de se excluírem, no conceito e na enumeração dos fatos jurídicos, os fatos contrários ao
direito (...) provém de visão unilateral do mundo jurídico, pois os atos ilícitos (...) entram no mundo jurídico, são
fatos jurídicos contrários a direito, que, recebendo a incidência das regras jurídicas, que neles se imprimem,
surtem efeitos jurídicos (direito, pretensão e ação de indenização e até restituição, direito ao desforço pessoal, à
reedificação etc.).”
60
O centro das atenções neste estudo é o universo das condutas humanas conscientes e deliberadas orientadas
à produção de efeitos desejados por seus autores. Mas, como já referido, o direito também torna seus eventos –
humanos ou naturais – em que a vontade não está presente ou não é relevante. São os “fatos jurídicos” ou “atos-
fatos jurídicos” de que fala a doutrina. No caso dos atos ilícitos, a conduta realiza o modelo normativo que se
encontra vinculado a uma sanção, cfe. nota anterior.

22
significa que as condutas que são objeto destes direitos, deveres etc. podem ser exigidas ou realizadas
sem que terceiros possam impedi-las e que, em certos casos, esses terceiros podem até serem
chamados a colaborar, queiram ou não.

O processo de juridicização ou de subsunção é mais complexo do que pode parecer à primeira vista. Na
grande maioria dos casos, tende-se a prestar atenção apenas aos elementos de fato mais imediatos ou
problemáticos (e às normas que os veiculam). Para celebrar um contrato, o diretor de compras de uma
geradora preocupa-se principalmente em formalizar adequadamente os termos do acordo a que
chegou com o fornecedor de equipamentos, “como o exige a lei”. E normalmente isso basta. Mas pode
não ser suficiente: imagine-se que, depois de pago o preço, o produto não seja entregue e se descubra
que a pessoa que respondeu o email ao funcionário da usina era um menor de idade de 8 anos, filho
do dono da empresa fornecedora de equipamentos. Nesse caso, uma das partes não tinha possibilidade
legal de se obrigar (e de obrigar terceiros) e o contrato não será válido, pois nem todos os elementos
requeridos “por lei” para que se tivesse um negócio jurídico perfeito se verificaram61. Não foi atendida
uma norma que na maior parte das vezes é dada tacitamente como observada, a capacidade. Nos
termos do art. 104 do CCB, “a validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito,
possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.”

Esse exemplo singelo mostra o que já vínhamos sugerindo em passant, ou seja, que a descrição
completa do suposto de fato normalmente é a resultante da junção de distintas normas. Uma lei
(válida) não é apenas o resultao de uma votação no Congresso Nacional. Para que algo seja tal,
necessita ter sido proposto pelo sujeito competente (art. 61 da Constituição), votado segundo
determinado procedimento (art. 64 e segs. da Constituição), sancionado pelo Presidente da República
(art. 65 da Constituição) etc. Ainda quanto ao suposto de fato, ele pode ser construído de modo mais
ou menos indeterminado. Será “ato ilícito”, nos termos do art. 186 do Código Civil, toda a “ação ou
omissão voluntária, negligência ou imprudência” que “violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral”. A esse suposto de fato bastante indeterminado o art. 927 do CCB ainda imputa
a consequência também altamente indeterminada de “dever de reparação”. Bem mais controlável é a
disposição que se encontra no art. 25 da Lei 10.848/2004, segundo a qual “[o]s contratos de
fornecimento de energia elétrica de concessionárias geradoras de serviço público, inclusive as sob
controle federal, com consumidores finais, vigentes em 26 de agosto de 2002, poderão ser aditados
para vigorarem até 31 de dezembro de 2010”.

Como quer que seja, podemos tomar como útil guia o que dispõe o art. 104 do Código Civil. Para que a
ANEEL produza um ato administrativo válido, exige-se que tenha competência (capacidade para praticá-
lo); que o tema sobre o qual verse (e o modo como verse sobre o tema) não seja ilícito ou de qualquer
modo contrário a direito (que se respeite aquilo que as normas de superior hierarquia já tenham
porventura dito sobre ele); e que se manifeste pelas formas adequadas. Tomando-se a expressão
“forma” em sentido amplo, exige-se que o ato do regulador tenha sido produzido em observância do
devido procedimento, no tempo adequado e se revista de características próprias (antecedido por
audiência pública e notas técnicas, por escrito, com publicação no Diário Oficial etc.). Feito tudo isso,

61
A capacidade das chamadas “pessoas físicas” está regulada nos arts. 2º e segs. do Código Civil Brasileiro, as
quais também têm que ser atendidas.

23
estará cumprido o suposto de fato de uma “resolução normativa”, o que tem por consequência básica
o dever de atendimento às normas aí presentes por parte dos seus destinatários.

Em síntese: se o ato for produzido de conformidade com as normas pertinentes (e normalmente várias
delas são pertinentes), ele será considerado válido e, portanto, apto a gerar efeitos e a ter cogência. Se
não for produzido assim, será considerado nulo e incapaz de produzir tais efeitos (a nulidade gera
efeitos, mas não os esperados pelas partes ou pelo sujeito que a realiza)62.

Vale frizar: o processo de juridizição não ocorre em razão do conteúdo veiculado – que, certo, deve ser
lícito e possível – mas da forma. O direito, como instância de institucionalização da interação de
diversos interesses e racionalidades que pretendem cogência na indústria elétrica, é forma, como, aliás,
já diziam alguns – no âmbito da teoria geral do direito - para escândalo de muitos63. E, como forma,
recebe de bom grado quaisquer conteúdos (econômicos, técnicos ideológicos etc.)64.

Chegando-se a esse ponto, dois tipos de perguntas surgem muito naturalmente. O primeiro tipo é
expresso por questões como: toda e qualquer ação ou decisão que se pretenda seja obedecida ou
seguida – ou que se pretenda possa ser praticada sem a interferência de terceiros - deve estar, de
algum modo, relacionada a uma norma jurídica? Tudo que for relevante para/na indústria deve ser
juridicizado, de tal sorte que o direito é, então, o senhor dos destinos da indústria elétrica? O segundo
tipo de dúvidas: dado que o conteúdo das normas do direito advém em boa medida de matérias não
jurídicas, para que serve, afinal, o profissional do direito? As primeiras perguntas remetem ao delicado
problema da relação do direito com seu objeto, a indústria elétrica (e especialmente e as prescrições
das ciências aplicadas) e serão o tema da Seção IV. O segundo tipo suscita a reflexão sobre a
contribuição específica da racionalidade jurídica para a indústria e será tratado agora.

62
Sobre a nulidade, não vamos entrar aqui na discussão das diferentes figuras (e diferentes consequências da
nulidade absoluta, anulabilidade etc.) e na determinação da sua natureza jurídica (se sanção ou algo dela distinto).
63
Comandos absolutamente iníquos, racistas e fascistas emanados de uma Constituição serão “direito”, assim
como uma péssima configuração setorial da indústria elétrica prevista em uma lei. Ao dizer que algo é “direito”
não se está fazendo qualquer juízo de valor acerca da qualidade do que foi positivado. A mania de infiltrar
considerações de conteúdo para determinar se algo é “direito” é muito antiga provém da soberba de juristas que
pretendem imprimir uma espécie de aura de santidade às normas jurídicas, como se o que fosse “direito” fosse,
ipso facto, “justo”. Começou com os romanos – que derivaram erradamente a palavra ius (direito) de iustitia
(justiça) e definiram o ius como a “arte do bom e do justo”, e por isso pretenderam ser chamados de sacerdotes
(laicos) da justiça” (Digesto 1.1.1., pr.). Depois, essa pretensão (não jurídica) passou aos jusnaturalistas e chegou,
de forma desfigurada e quase irreconhecível, ao direito da energia elétrica (!). Engenheiros e economistas trajam
as vestes dos antigos moralistas quando pretendem que o direito, independentemente do que tenha sido
efetivamente positivado, assuma tal ou qual conteúdo (“pela natureza das coisas”). Logo veremos isso.
64
Não é um caso que Posner, ao advogar o pragmatismo no direito, tenha visto em Kelsen um aliado. Falando de
sua leitura da Teoria Pura do Direito, assevera: “I argue counterintuitively that Kelsen, the legal positivist, the
author or a ‘pure’ theory of law, provides a more hospitable venue for pragmatic adjudication, with or without an
economic inflection, than the economist Hayek does. Kelsen´s positivism (...) is jurisdictional rather than
substantive in character. Law has no prescribed content; it is simply what people authorized to do law do until
their authority is withdrawn from them (...).” E chega, com isso, inevitavelmente ao ponto encarecido acima:
“Kelsen´s theory creates a space for bringing ideology and social science (...) into the practice of judging.” Law,
Pragmatism and Democracy, Harvard, 2003, p. 18.

24
Seção III - A função do profissional do direito que atua na indústria

Introdução

Ainda que os agentes setoriais realizem, por si, a todo o instante, atos jurídicos, lícitos e ilícitos, o
conhecimento e manejo das regras de institucionalização da interação é a expertise específica do
profissional do direito e a correta aplicação delas – em caso de dúvida, sobretudo - é sua contribuição
própria.

Essa institucionalização é complexa; realiza-se de diversos modos, segundo o tipo de ato ou de decisão
de que se trate. Ordinariamente, os passos para alcançá-la foram genericamente enunciados antes:
determinação e atuação do sujeito com capacidade ou competência; adequada procedimentalização
que culmina com o ato pretendido; identificação e emprego da forma de exteriorização condizente;
adequado encarte do ato pretendido no âmbito da hierarquia das fontes do direito; compatibilização
do conteúdo do ato ou decisão com o conteúdo exigido ou permitido por normas de superior hierarquia
etc. Consoante com essa diversidade, o jurista transforma ou qualifica os atos dos diversos atores como
contratos, negócios jurídicos, atos ilícitos, manifestações unilaterais de vontade, atos administrativos
normativos, regulamentos, leis etc. e lhes faz seguir determinados efeitos como a criação, modificação
ou extinção de direitos subjetivos, pretensões, ações, deveres, exceções, privilégios, imunidades etc.

Para além desse objetivo primordial (de garantir validade/evitar nulidade, tudo a bem da cogência), o
operador do direito deve também cuidar para que o ato produzido seja intrinsecamente inteligível e
seja também compreensível a tantos quantos forem os destinatários dos atos e decisões que formaliza,
em especial, seja compreensível àqueles sujeitos encarregados de realizar a força cogente do ato em
caso de necessidade, as cortes. Esse segundo objetivo relaciona a racionalidade jurídica com o ideal de
segurança jurídica (em uma de suas dimensões).

Esses são os objetivos que procura alcançar o jurista prático, quando desempenha suas inúmeras
tarefas listadas ao longo desse estudo. Antes, porém, de detalhar essas considerações, permita-se a
confissão de uma fraqueza e um desagravo.

O ato de humildade (tão próprio da categoria em estudo), é este: por formação profissional específica,
nosso sujeito não está habilitado a decidir acerca do conteúdo, mérito ou demérito, da ação ou decisão
que o ocupa, esteja-se no âmbito de um contrato, de uma lei, ou de uma resolução normativa etc.
Advogados, como tais, não opinam sobre a qualidade de equipamentos comprados em negócios
jurídicos que redigem e que examinam. Consultores jurídicos não são remunerados para prever qual
será o efeito, no mercado, da lei que cria certas categorias de geradores incentivados e que ele aprecia
sob a perspectiva da boa técnica legislativa e da constitucionalidade. O direito tem conteúdo técnico,
econômico etc; o profissional do direito, porém, não é (e não precisa ser) engenheiro, economista etc.
É-lhe certamente indispensável possuir um firme conhecimento básico das noções não jurídicas que se
aplicam aos sistemas e ao setor elétrico. Mas ele não usa esse conhecimento para decidir ou dar pitacos
acerca de como construir e operar sistemas elétricos ou para discorrer ex cathedra sobre o melhor
modelo de organização ou financiamento setorial. Tal massa de conhecimento lhe habilita a

25
compreender as ações dos agentes setoriais (a “lógica do negócio”, como se costuma dizer), a orientar
as diferentes manifestações e atuações desses sujeitos (sob a perspectiva de sua adequação ao
ordenamento jurídico existente) e, sobretudo, a interpretar, aplicar e elaborar as normas jurídicas.

O desagravo é o reverso do ato de humildade: assim como não se deve deixar um advogado decidir
qual é a melhor tensão de atendimento de consumidores, também não se deve deixar um engenheiro
redigir a resolução que cuidará disso. Quando sujeitos não versados nas artes do direito resolvem
tornar jurídico o resultado da interação entre eles sem chamar o causídico, não raras vezes escrevem
coisas incompreensíveis para os não iniciados em suas especialidades (Judiciário, por exemplo) ou, pior,
não observam alguns salamaleques próprios do direito, produzem nulidades e colocam em risco um
dos principais valores que a razão jurídica pode aportar, a já referida segurança jurídica. Aliás, quando
dispensam o advogado esses sujeitos propiciam, exatamente, o desvairio e a hipertrofia da razão
jurídica que tanto os desagrada e que se manifesta mais ou menos disfarçadamente nas vestes da
“hermenêutica jurídica”, ou “aplicação de princípios” que vicejam justamente lá onde a norma (regra)
é confusa ou atropela algumas exigências de procedimento e hierarquia para as quais as racionalidades
materiais não atentam.

A racionalidade do profissional do direito é (como o seu campo de ação, o direito), de tipo


essencialmente formal e diz respeito à boa institucionalização da interação de que já tanto se falou. Ela
é de outro tipo, mas não é menos importante do que as racionalidades materiais. A ação externada de
modo inadequado ou emanada de um ente incompetente ou a norma mal-feita do ponto de vista de
sua redação e hierarquia podem ser tão danosas como o defeito de fabricação de um equipamento
elétrico ou como um direito de péssimo conteúdo.

Feito esse preâmbulo, veja-se o tema de modo mais organizado.

As preocupações do profissional do direito

Advogados, pareceristas, consultores jurídicos etc. não opinam sobre questões técnicas, econômicas
ou conveniências políticas porque não se ocupam imediatamente da indústria elétrica, como fazem
outros. Eles se ocupam das normas que se ocupam da indústria elétrica, o que é coisa (bem) diferente.
A seu modo, isso já dizia um dos primeiros livros dessa especialidade, que tinha um título cuja extensão
era inversamente proporcional à sua pretensão em face da indústria: “It is not whithin the scope of this
work to enlarge on the progress of electrical science, except in so far as it has determined or stimulated
the action of the Legislature”.65

Relativamente a tal objeto de trabalho, as normas, os sujeitos mencionados as explicam (interpretam


os textos de onde saem66), estabelecem relações as mais diversas entre elas (de hierarquia,

65
The Law Relating to the Electric Lighting: Being the Electric Lighting Acts, 1882 & 1888, with a General
Introduction, a Continuous Commentary and Appendices, Consisting of the Rules, Regulations, and Model Form of
Provisional Order Issued by the Board of Trade, Bower e Webb, 1889, Londres.
66
Vale sempre a pena lembrar que a norma é o resultado da interpretação do texto; não se interpretam normas;
se as obtêm.

26
complementaridade, exclusão etc.) e as aplicam para sugerir ações futuras, analisar as ocorridas,
produzir ou auxiliar na produção de manifestações jurídicas, apresentar efeitos e exigi-los
cogentemente (cfe. acima). Eventualmente, o profissional do direito até faz incursões no conteúdo
pretendido para verificar, apenas, se o objeto é “lícito e possível” (cfe. acima). Em todo o caso, o núcleo
de sua atividade – aquilo para o que ele é treinado - está em verificar: (i.) a adequada
procedimentalização da norma ou do ato, conforme seu tipo e/ou hierarquia (por procedimentalização
entende-se o conjunto de atos temporalmente sucessivos e concatenados pelo resultado final a que se
orientam); (ii.) a observância da hierarquia das fontes do direito. Ordem normativa escalonada que é,
o direito compõe-se de um conjunto de comandos e permissões de diferentes hierarquias em que cada
degrau seu (à exceção da Constituição) deve se conformar (ou ao menos, em certas hipóteses, não se
contrapor) ao grau superior sob diferentes perspectivas (materiais ou formais). Tendencialmente, o
que é “decisivo”, “mais importante” ou “cláusula pétrea” deveria ir veiculado pelas fontes de maior
hierarquia, mais transparentes em sua feitura e estáveis, por possuírem procedimentos de elaboração
e alteração mais complexos e exigentes. Não se deveria, por exemplo, ser decidido por portaria de
Ministério ou resolução da ANEEL o que é questão absolutamente estruturante para o setor, ao mesmo
tempo em que não seria adequado, em princípio, materializar em leis providências de menor relevância
ou passíveis de alterações frequentes, a depender de circunstâncias conjunturais ou sazonais67; (iii.) a
capacidade e/ou competência do sujeito que produz a norma. Esta exigência está intimamente
relacionada com a anterior, mas é dela distinta pois se faz presente mesmo em planos de mesma
hierarquia (divisão de tarefas de entes de mesmo status hierárquico).

Essas atividades todas ele as executa para, sobretudo, determinar a validade dos atos jurídicos, chave
de acesso da nota jurídica da cogência – que leva à eficácia social, por todos desejada.

Mas, como já antecipado na introdução a esta seção há, ainda, um outro objetivo a atingir com a
aplicação da racionalidade jurídica.

Para além da validade: a contribuição do profissional do direito para a segurança jurídica

Introdução

Supondo que se esteja diante de um profissional do direito bem intencionado (e não ávido por criar
dificuldades para vender facilidades), sua tarefa não se esgota em evitar nulidades e proporcionar
validade à interação dos sujeitos que habitam o setor elétrico. Ele pode auxiliar – e muito – na obtenção
de uma outra qualidade valiosa: segurança jurídica.

A segurança jurídica é um conceito complexo, sobre o qual muito se escreveu e se escreve68 e sobre o
qual muito se fala, inclusive fora do ambiente jurídico. Ela tem várias faces e perspectivas e evoca ideias

67
É certo que, por vezes, as duas ideias nem sempre se encontram juntas: pode ser o caso de que certa
providência seja, ao mesmo tempo, decisiva para a configuração do setor (o que recomendaria sua positivação
em lei) e, por sua natureza, de caráter necessariamente mutável (o que recomendaria sua positivação em ato
administrativo).
68
v. por todos, Ávila, Humberto, Teoria da segurança jurídica, 4ª ed., Malheiros, 2016.

27
como previsibilidade, estabilidade, cognoscibilidade, certeza etc. das normas e dos atos realizados em
base a elas. Essa compreensão intuitiva e vaga é suficiente para o propósito que temos. Nosso
profissional é responsável por agregar certas notas ao direito que o encaminham em algumas dessas
direções.

Se a estabilidade é algo desejável que quase sempre escapa ao controle de nosso bacharel (e que
parece não estar presente em nosso setor69), especialmente importante é sua contribuição para que o
direito que se pretende cogente, seja, antes de mais nada, compreensível e bem articulado com o
conjunto total do ordenamento jurídico. Ou seja, para que possa ser manejado e aplicado não apenas
pelos destinatários imediatos de seus preceitos mas também por sujeitos não dotados de
conhecimentos setoriais, especialmente aqueles indivíduos responsáveis, em última instância, por
providenciar a eficácia social própria do direito, os juízes. A qualidade de ser compreensível a todos e
também às cortes judiciais está, em boa medida (ainda que não exclusivamente), nas mãos de
advogados e consultores jurídicos.

O plano mais básico da inteligibilidade do direito da energia elétrica

Assim como pôde parecer óbvio ou pedante encarecer a dimensão física da indústria elétrica, pode
parecer perda de tempo chamar a atenção para a importância do domínio do vernáculo no âmbito das

69
Tem sido incessante a produção normativa desde a Lei 9.074/1995. A partir dela, tivemos novas leis e
regulamentos ao longo de praticamente todos os anos. Por vezes, mais de uma lei ou decreto por ano. Ao setor
não foi dado o privilégio de uma construção inaugural (uma lei-quadro), como ocorreu em outras áreas (inclusive
de infraestrutura, como o demonstra a Lei Geral das Telecomunicações). E, mesmo com essa impressionante
produção – ou talvez por causa dela – partes desses mesmos diplomas ficaram rapidamente obsoletas e foram
modificados por leis seguintes. Instaurou-se desde cedo uma prática bastante visível: cada lei ou decreto não se
limita a trazer novidades, mas corrige, emenda e altera os anteriores. A esmagadora maioria das leis setoriais, e
mesmo as mais recentes, foram objeto de duas, três, quatro ou mais modificações. Um mesmo dispositivo chega
a sofer várias alterações - algumas no curso de menos de um ano. Existem inclusive leis dedicadas
primordialmente a mudar outras leis, de vários períodos e distintas áreas do direito (e não só o setor elétrico).
Em síntese: é uma característica formal do direito da energia elétrica a sua mutabilidade frequente, realizada de
modo que se poderia dizer pouco ordenado, como a sugerir improviso, falta de convicção ou mesmo casuísmo.
Pode-se discutir a necessidade de atualizações e correções de rumo, mas dificilmente a velocidade, quantidade e
o modo como foram feitas as mudanças em nosso setor se explicam apenas por uma imposição objetiva. Exemplo
disso é o art. 26 da Lei 9.427/1996 que trata do importante tema do regime jurídico de aproveitamento de
potencial hidráulico dotado de certas características e que poderia ser apenas autorizado (ao invés de concedido).
Originalmente, seriam meramente autorizados pela ANEEL os aproveitamentos com potência entre 1.000kW e
10.000kV. Em 1998, a Lei 9.648/1998 alterou o limite superior para 30.000kW; em 2015, com a Lei 13.097/2015,
os limites ficaram entre 3.000 e 30.000kW; em 2016, com a Lei 13.360/2016, esses limites foram novamente
alterados, agora entre 5.000kW e 30.000kW (alterações no inc. I do art. 26 da Lei 9.427/1996). Mais
impressionante ainda foram as alterações de regime jurídico desses aproveitamentos, introduzidas por meio de
mudanças nos §§ 1º e 5º desse mesmo artigo. O § 1º, inexistente na redação original da Lei 9.427/1996, foi criado
pela Lei 9.648/1998 e alterado ainda 7 vezes: pelas Leis 10.438/2002, 10.762/2003, 11.488/2007, 13.097/2015,
13.203/2015 e finalmente, pela Lei 13.360/2016. O § 5º é ainda pior: incluído pela Lei 9.648/1998 foi mudado
nada menos do que 8 vezes, pelas Leis 10.438/2002, 10.762/2003, 11.488/2007, 11.943/2009, MP 579/2012, Lei
12.783/2013, 13.097/2015 e, finalmente, 13.360/2016. Muitos outros exemplos poderiam ser trazidos, mas a
“campeã” nesse quesito parece ser a disciplina da Conta de Desenvolvimento Energético – CDE, positivada no art.
13 da Lei 10.438/2002. Dada a quantidade e complexidade das alterações dessa conta não é possível apresentar
seu desenvolvimento aqui. Deixa-se à curiosidade do leitor a tarefa de traçar a (breve mas complicada) história
da CDE.

28
normas. A bem guardar, são situações que possuem certo paralelismo, pois física e português são os
requisitos mínimos que se deve possuir e exigir para bem operar com a indústria da energia elétrica,
de um lado, e comandos jurídicos, de outro. Assim como todos sabem que potenciais hidráulicos
funcionam em base à força da gravidade, ninguém ignora que os textos normativos são escritos em
português e que é preciso compreender a língua de Camões para identificar as normas jurídicas obtidas
a partir deles por interpretação. Até aqui, não há maiores problemas (embora por vezes se tope com
textos que, sem maiores explicações, empregam termos estrangeiros de uso não consolidado entre
nós70).

Algumas dificuldades, porém, surgem já no plano imediatamente sucessivo, do “bom” português que
se requer para a redação de textos normativos.

Numa dimensão ainda prosaica, é de comum sabença que não se pode abusar de períodos largos,
recheados de apostos, cláusulas adverbiais, complementos adnominais e outros balangandãs que
tornam o texto do caput de um artigo de lei uma verdadeira salada de frutas (inclusive com várias
normas acavaladas numa mesma unidade sintática71).

Aprofundando um pouco mais – e deixando o português para adentrar na técnica legislativa, mas ainda
no domínio do bom senso – nos deparamos com recomendações sobre como dispor a matéria
normativa ao longo de um texto. Não é preciso ser advogado para entender que diferentes comandos
autônomos que não se referem diretamente ao mesmo objeto não deveriam andar embolados ou
relacionados como se um fosse a especificação de outro. E o setor elétrico é pródigo em artigos de lei
com um surpreendentemente grande número de parágrafos, incisos e alíneas tratando de matérias
que bem poderiam compor unidades normativas autônomas72. É comum existirem cabeças de artigos
que não fazem minimamente supor o conteúdo que será veiculado nas suas demais partes73.

70
Art. 21 da Lei 12.767/2012.
71
Exemplo é o § 7º do art. 13 da Lei 10.438/2002 em sua redação original (que possui até problemas de
concordância): “§ 7º Para fins de definição das tarifas de uso dos sistemas de transmissão e distribuição de energia
elétrica, considerar-se-á integrante da rede básica de que trata o art. 17 da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995,
as instalações de transporte de gás natural necessárias ao suprimento de centrais termelétricas nos Estados onde,
até o final de 2002, não exista fornecimento de gás natural canalizado, até o limite do investimento em
subestações e linhas de transmissão equivalentes que seria necessário construir para transportar, do campo de
produção de gás ou da fronteira internacional até a localização da central, a mesma energia que ela é capaz de
produzir no centro de carga, na forma da regulamentação da Aneel.”
72
Para que se tenha uma ideia do fenômeno, o art. 22 da Lei 11.943/2009 tem nada menos do que vinte
parágrafos, vários deles com um grande número de incisos e alíneas; o art. 13 da Lei 10.438/2002 tem uma
enormidade de incisos (só o caput tem 14) e mais de trinta parágrafos; o art. 1º da Lei 10.848/2004 tem mais de
vinte parágrafos, muitos com uma plêiade de incisos e alíneas.
73
O caput do art. 26 da Lei 9.427/1996 trata de competências da ANEEL para emitir autorizações a diferentes
atividades – diga-se en passant fora do local adequado, art. 3º da Lei 9.427/1996. Já alguns parágrafos deste
mesmo artigo regulam a disciplina comercial de certos agentes geradores e chegam a criar, inclusive, uma nova
figura de consumidores (aqueles “incentivados”). À toda evidência, essa não é a melhor maneira de tratar de um
tema de tamanha relevância e que se encontra disciplinado ex cathedra em outra Lei (9.074/1995).

29
Também não facilita o entendimento construir um contrato complexo como um texto corrido, sem
pausas que separem e identifiquem diferentes temas, matérias. O mesmo deveria ser observado em
relação às leis74.

Da mesma forma, não é de bom tom contrabandear a compra de produtos de almoxarifado num
contrato de empreitada para a construção de uma usina (inserindo, no final do EPC, uma cláusula
perdida que dispõe sobre material de escritório para a secretaria da diretoria de operações). Mas no
setor elétrico ocorre com certa frequência de se encontrarem importantes dispositivos nos locais os
mais improváveis, isto é, fora de leis setoriais e nos quais sequer a ementa deixaria suspeitar que ali se
estariam (salvo, talvez, pela referência de praxe das “outras disposições”)75.

Barbeiragens como essas podem acontecer com leis, negócios jurídicos e atos unilaterais. Elas não são
apenas falhas de etiqueta ou rabugices de advogados burocratas, mas problemas que dificultam a
inteligibilidade do direito, a obtenção da segurança jurídica e, em casos mais graves, sua cogência. O
direito da energia elétrica – sua parte regulatória sobretudo – já é suficientemente complexo pela
natureza das coisas e não precisa receber também esse fardo perfeitamente evitável porque fruto da
preguiça ou da pressa – ou do desejo de não gastar dinheiro com o advogado.

Aliás, a observância da boa técnica de redação de normas é um comando jurídico. E comando jurídico
transportado por veículo pesado: a Lei Complementar 95/1998. Alguns preceitos dela são intuitivos, de
simples observância e valem não apenas para leis, mas para quaisquer atos normativos emanados de
entes competentes76. Quantas e quais dessas exigências são observadas em nosso âmbito?

74
Diplomas extensos e complexos, como, p.ex., as Leis 10.438/2002 e 10.848/2004 não possuem sequer grandes
divisões estruturais que orientem minimamente um leitor interessado em saber apenas do que tratam essas leis.
75
A Lei 11.488/2007 trata dos mais desencontrados assuntos: cria o Regime Especial de Incentivos para o
Desenvolvimento da Infra-Estrutura – REIDI; determina a instalação de equipamentos contadores em
estabelecimentos que produzem cigarros (art. 27 e segs.); coíbe fraudes no comércio exterior (art. 33), prescreve
regras de enquadramento tributário de cooperativas (art. 34) e altera inúmeras leis de variados ramos do direito.
Entre tantos e tão desconexos assuntos, encontram-se aqui e ali disposições sobre o setor elétrico, tanto na forma
de alterações de leis anteriores quanto de providências diretas, como aquelas constantes dos seus arts. 25 e 26
nos quais se disciplina o pagamento pelo uso de bem público empregado na geração de energia elétrica e a
distribuição dos valores da CDE entre usuários do SIN.
A Lei 11.943/2009 regula várias coisas sem relação umas com as outras: autoriza a União a repassar ao Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES recursos captados junto ao Banco Internacional para
a Reconstrução e o Desenvolvimento – BIRD; altera o § 4º do art. 1º da Lei 11.805/ 2008; dispõe sobre a utilização
do excesso de arrecadação e do superávit financeiro das fontes de recursos existentes no Tesouro Nacional; altera
o art. 1º da Lei no 10.841/2004 (que autoriza a União a permutar Certificados Financeiros do Tesouro). No que
interessa, ela altera as Leis 9.074/1995, 9.427/1996, 10.848/2004, 3.890-A/1961, 10.847/2004, e 10.438/2002.
E, Para culminar, apresenta por si mesma uma minudente regulação de contratos de suprimento de energia no
art. 22 e seus vinte parágrafos.
Por fim, a Lei 12.688/2012 em sua maior parte é dedicada a instituir e regular o Programa de Estímulo à
Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior – Proies. No meio disso, porém, autoriza
a Eletrobras a adquirir o controle acionário da Celg Distribuição S.A. (art 1º) e altera várias leis, setoriais (art. 2º)
e não setoriais.
76
A Lei Complementar se aplica não apenas a normas de superior hierarquia, mas também a atos de
regulamentação expedidos pelo Executivo (art. 1º, par. único).

30
Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de
aplicação, observados os seguintes princípios:
I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;
II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por
afinidade, pertinência ou conexão;
III - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o
possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva;
IV - o mesmo assunto não poderá ser disciplinado por mais de uma lei, exceto
quando a subsequente se destine a complementar lei considerada básica,
vinculando-se a esta por remissão expressa.

Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem
lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
I - para a obtenção de clareza:
a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma
versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura
própria da área em que se esteja legislando;
b) usar frases curtas e concisas; (...)
e) usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos de caráter
estilístico;
II - para a obtenção de precisão:
a) articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita
compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o
conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma;
b) expressar a ideia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras,
evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico; (...).
g) indicar, expressamente o dispositivo objeto de remissão, em vez de usar as
expressões ‘anterior’, ‘seguinte’ ou equivalentes;
III - para a obtenção de ordem lógica:
a) reunir sob as categorias de agregação - subseção, seção, capítulo, título e livro -
apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei;
b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio;
c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma
enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida; (...).

Caso seguidas essas diretrizes, o direito setorial seria menos difícil para todos, especialistas ou leigos.
Agentes da indústria ou consumidores. Público em geral e juízes.

A propósito deste último grupo mencionado, há ainda uma outra faceta da inteligibilidade que deve
ser encarecida e que deve ser objeto de preocupação do causídico que presta consultoria no setor.

O plano superior da inteligibilidade: integração do direito da energia elétrica no ordenamento jurídico

31
Como se disse lá no início deste estudo, o direito da energia elétrica não é uma ilha. Ele é parte do
ordenamento jurídico total. Sua integração com esse ordenamento não é uma questão de
conveniência, mas uma exigência normativa. Nosso direito setorial possui intersecções com o direito
constitucional, civil, comercial, adminstrativo, ambiental etc. e trava com normas de outras áreas
relações de hierarquia, complementação, contraposição etc., além de fazer uso de comandos,
conceitos e institutos desses outros âmbitos. A sistemática dos títulos mediante os quais privados são
habilitados a prestar serviços de energia elétrica (concessões, permissões ou autorizações) é parte do
direito administrativo. As prestações de serviços das pessoas físicas são regidas pelo direito do trabalho;
os contratos de energia – e outros – são disciplinados pelas disposições gerais do direito privado e de
direito administrativo; os tipos organizacionais que as empresas de energia assumem são retirados do
direito empresarial e così via.

A consideração dessa circunstância, de um lado, e, de outro, a constatação de que o direito da energia


elétrica é altamente especializado por seu objeto e possui um conteúdo multidisciplinar, coloca a
questão acerca da relação entre o uso da linguagem, dos conceitos e dos institutos propriamente
jurídicos e o uso de linguagem e figuras das demais racionalidades constitutivas vistas na Seção I77.

Entende-se, por uma série de razões que serão apresentadas adiante que, em sua atuação prática, o
profissional do direito deve procurar um equilíbrio entre diferentes alternativas de expressar os
comandos que incidem sobre o setor. O uso da linguagem e das realidades do direito é uma
necessidade para promover a adequada integração entre as normas setoriais e o restante do
ordenamento que conhece e emprega essa linguagem e não aquela setorial. Em certo sentido, tal uso
é pressuposto da inteligibilidade especificamente jurídica do direito setorial. Por outro lado, o uso da
linguagem e das realidades das racionalidades materiais (e o boa e velha linguagem coloquial) são
também requeridos.

Ao sustentar isso, é melhor esclarecer de imediato que não se está a postular o emprego de termos
latinos, ornamentos de linguagem, expressões arcaicas ou empoladas e outros malabarismos de que é
rica a retórica jurídica78. Necessária como é a retórica em determinados contextos, não é disso que se
trata. Defende-se que o jurista prático empregue em suas atividades o uso da linguagem técnica e dos
conceitos (e institutos jurídicos) que o direito desenvolveu.

77
Essa questão afeta sobremaneira a parte dita regulatória do direito da energia.
78
Um exemplo do uso (pesado) da retórica para sustentar o que estamos buscando aqui nos vem,
previsivelmente, de Rui Barbosa. Ao falar da linguagem do Código Civil, carregou nas tintas: “Quando o problema,
de que se trata, é ‘tão grave e complexo como o de um código civil, tanto maior razão, para que nos desvelemos
em lhe dar forma irrepreensível ante as normas do idioma falado pelo povo, a que aquele se destina; já porque
com a pureza exterior se identifica o sentimento da decência em todas as criações intelectuais vazadas na palavra
humana, e, quanto maiores elas forem, mais delas se exigirá o seu decoro; já porque, sendo a língua o veículo das
idéias, quando não for bebida na veia mais limpa, mais cristalina, mais estreme, não verterá estreme, cristalino,
límpido o pensamento de quem a utiliza. Além de que, se no comum dos atos legislativos os defeitos de
linguagem, que os eivarem, são passageiros como eles, com as leis, a bem dizer, seculares, com os códigos civis,
a perpetuidade das suas incorreções, transmitindo-as de uma geração a outra, e a outra, além de imortalizar a
imperícia e o erro, fazendo impudentemente deles padrão e escola, obriga a posteridade aos esforços e riscos de
embaraçosas decifrações, que uma redação esmerada lhe pouparia.” Obras Completas, Vol. XXIX, Tomo III, Rio de
Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1953, p. 301-302.

32
De outra banda, tampouco se trata de propugnar a eliminação - nas manifestações jurídicas concretas
ou abstratas - de conteúdos técnicos, econômicos etc. (o que seria simplesmente impossível), ou da
respectiva linguagem (o que seria possível, mas pouco prático). O que se propõe é a necessidade de
encontrar um equilíbrio, considerando o caráter heterogêneo dos destinatários das normas. A
linguagem básica do direito e os conceitos e categorias por ela significados são suficientemente
elásticos – e, no fundo, formais ou “ideologicamente neutros”79 – para permitir que sejam vertidos nela
os diferentes conteúdos de que são feitas as normas que lidam com a energia elétrica80.

Qual é, pois, este ponto de equilíbrio? No que consiste essa “tradução”? E por que ela deveria nortear
o trabalho do jurista prático?

Não sabemos responder à primeira pergunta e já oferecemos uma sugestão de resposta à segunda ao
longo desse estudo (vide nossas constantes referências a direitos, pretensões, competências etc.).
Trataremos agora da terceira questão, com o objetivo sensibilizar os profissionais do direito para que
não se deixem impressionar e não tentem impressionar, desdenhando completamente o “juridiquês”
e trocando-o por termos da moda na indústria (apreendidos e empregados sem muita reflexão), num
esforço para parecerem up-to-date e para poderem “falar a língua do cliente”. O fato de se ignorar
onde reside o justo meio (se essa for de fato a orientação da primeira resposta) não impede de se o
reivindicar, sobretudo quando se tem a impressão de que hoje ele não existe e de que o advogado
setorial corre o sério risco de ser colonizado pelas racionalidades técnicas e econômicas, como se
estivesse a pagar o preço de sua onipresença com a diluição de sua identidade.

A primeira razão para sustentar a necessidade de se usar os trajes do direito nas manifestações setoriais
está relacionada com a circunstância de que assim procedendo aproveita-se com maior facilidade o
arsenal de reflexões, máximas etc. que a ciência – sim ciência – do direito desenvolveu ao longo de
mais de dois mil anos de incessante trabalho intelectual. Como a física, a engenharia e a economia, o
direito possui um vocabulário específico, forjado para lidar com os objetos específicos de que se ocupa
– as normas jurídicas. Experimentos, resultados e conclusões realizados em outras áreas do direito
podem ser trasladados para o setor, com proveito prático. Soluções por analogia, interpretações

79
Ao falarmos da “linguagem básica”, temos em vista, em primeiro lugar – mas não apenas – as tradicionais
figuras dos deveres, direitos, competências, imunidades, liberdades etc. Um estudo analítico e hoje clássico
desses elementos é o de Hohfeld, para o qual recentemente João Alberto de Oliveira Lima chamou a atenção com
destaque, inclusive, para a neutralidade referida no texto (Consolidação de Normas Jurídicas: Encontro entre
Direito, Ciência da Informação, Filosofia da Linguagem e Lógica, a Convite do Neoinstitucionalismo, tese de
doutorado, 2019).
80
Ninguém duvida que o direito penal – qualquer que seja o tipo de conduta que se queira punir e a quem quer
que se dirija – deva ser formulado recorrendo-se às noções de capacidade, imputabilidade, culpabilidade,
competência, dever, direito, faculdade e outras próprias não apenas desta área do direito, mas patrimônio comum
de todos os seus ramos. Ou que dê origem a institutos especificamente jurídicos como o crime, a legítima defesa
e tantos outros, todos partes de um estoque compartilhado de termos e conceitos? Da mesma forma, o direito
civil e o comercial, em sua parte negocial, tratam dos mais diferentes aspectos das relações sociais e acomodam
as mais variadas transações que se possa imaginar. Articulam-se, porém, usando a racionalidade jurídica: falam
em direitos subjetivos, obrigações, faculdades, pretensões, competências, poderes, ações etc. e concebem os
institutos do contrato (e seus tipos), direito de propriedade e outros direitos reais etc.
Por que seria diferente com o direito da energia elétrica?

33
extensivas e mesmo a hoje tão valorizada jurisprudência de outras áreas do direito necessitam, para
transitar, de um meio que faça a ligação entre dois pontos. O hermetismo das normas setoriais impede
tanto que se vá apanhar lições alhures como que se as forneça a quem as desejar.

Mas não é apenas o livre trânsito de ideias entre diversas áreas do direito que exige uma moeda única81.
Como se disse já, as relações entre normas de diferentes áreas do direito – inclusive aquelas de
hierarquia – tornam-se identificáveis e analisáveis na medida em que o direito da energia elétrica for
homogêneo com o restante. Seu conteúdo pode ser o mais próprio possível, mas a formulação dele em
linguagem e conceitos comuns aos demais ramos permite vislumbrar com mais clareza, p.ex., relações
de complementaridade, acessoriedade, lacunas e também aquelas mais sensíveis como legalidade,
constitucionalidade, ou suas contrárias. O uso dos velhos métodos de interpretação finalística e,
sobretudo, sistemática, tornam-se mais fáceis e mais produtivos.

Ainda que se queira ver nessas considerações argumentos de escasso apelo prático – o que não é o
caso – há também uma razão de cunho essencialmente pragmático e vinculada diretamente à
segurança jurídica para que o direito da energia elétrica vista-se com a toga e a beca. O exemplo que
segue – um caso verídico de que participou o autor desse artigo, adaptado e manipulado para melhor
ilustrar o ponto – é a mostra disso.

Em complexa demanda envolvendo disputa sobre uma questão de compra-e-venda de energia, as


partes, por meio de seus patronos esgrimiam densos e completos argumentos para sustentar suas
posições, todos eles vertidos em impecáveis lógica e jargão setoriais (que reproduziam ipsis litteris o
teor das normas regulatórias). Ocorre que, até determinado momento do processo, a discussão já tinha
conseguido a façanha de ter recebido quatro decisões judiciais completamente diferentes umas das
outras. Não apenas as decisões, mas as justificações usadas para sustentá-las pareciam se referir a
casos completamente diferentes entre si. Ou seja, nada obstante as duas partes estivessem
plenamente de acordo acerca do objeto da lide e acerca dos elementos necessários para resolvê-la,
não conseguiram, ao longo de vários anos, comunicar um padrão de inteligibilidade unívoco às
instâncias julgadoras. Por fim, o elemento que, em boa medida, decidiu a causa foi o parecer de um
aclamado jurista, não especialista no setor elétrico, que traduziu a disputa em termos próprios do
direito – inclusive da teoria geral do direito. No dizer do voto condutor, foi apenas com o parecer
referido que a contenda se tornou inteligível, pois teria ele vertido em linguagem adequada “aquilo que

81
Para quem aprecia história, a metáfora suscita imediatamente o fenômeno da redescoberta do direito romano
na Europa, a partir do sec. XI, com os Glosadores. Inicialmente, essa recepção funcionou como potente amálgama
entre os intelectuais europeus, fornecendo-lhes uma linguagem técnica comum para expressar conceitos de
política e direito que permitiram, posteriormente, o desenvolvimento de ordenamentos jurídicos nacionais, cada
qual com suas particularidades, mas todos ligados entre si pelo que se convencionou chamar de “tradição
romanística”. Independentemente do valor que se atribua a essa tradição, é fato inegável que a especificidade e
a uniformidade da linguagem e do vocabulário proporcionado pelo direito romano foi um fator de unidade,
diálogo e desenvolvimento das ordens jurídicas modernas. Ao lembrar disso, não se está ingenuamente
postulando a aplicação do direito romano para lidar com o direito da energia elétrica; está-se, sim, sugerindo que
este último se integre na “tradição jurídica” (qualquer que seja ela) e compartilhe com as suas partes integrantes
uma linguagem, conhecimentos e reflexões comuns (sobre o belo e interessante tema da recepção do direito
romano na Europa e seu impacto político e jurídico, é ainda insuperável a obra de Paulo Koschaker, Europa und
das römische Recht, Beck, 1947).

34
os tecnocratas têm dificuldade em expor de forma simples”. E sugere que o conflito seja lido a partir
do parecer “porquanto há perceptível dificuldade de exposição clara dos fatos pelas partes em
conflito.” Não havia obscuridades para os iniciados no setor, mas para aqueles que deveriam dizer
“quem tem o direito”.

Supondo-se a lisura e o domínio do tema pelos patronos de ambas as partes, esse episódio ilustra bem
a circunstância de que o inegável conteúdo complexo das normas do setor elétrico nem sempre é o
principal obstáculo à compreensão, pelos tribunais, das questões litigiosas que lhes são apresentadas.
Muitas vezes, o problema não está numa narrativa incompleta ou falsa, mas no falar a verdade
empregando uma língua incompreensível para o ouvinte. E, no caso, não se trata de um ouvinte
qualquer, mas de integrante da instituição social encarregada de satisfazer o que todos esperam do
direito, isto é, que discipline, de modo o mais inequívoco possível, condutas com força cogente.

Logo se vê que a razão final para sustentar a necessidade de uma maior atenção com o uso de termos
técnicos do direito e de institutos jurídicos nas normas setoriais está em que o momento decisivo (e
muitas vezes o último) para que o direito logre cogência é quando de seu encontro com as cortes.
Idealmente, todas as manifestações jurídicas na indústria elétrica deveriam ser conformadas à vista da
possibilidade de terem que passar pelo crivo do Poder Judiciário, circunstância que exige, antes de mais
nada, que lhe sejam inteligíveis. Verter as ações, negócios, comandos etc. relevantes para o setor em
manifestações jurídicas revestidas de adequada roupagem jurídica é um importante elemento para
tornar menos demoradas, aleatórias e incertas as decisões judiciais que muitas vezes são objeto de
críticas infundadas e que deveriam ser redirecionadas à fonte de onde provém a falta de cuidado com
a linguagem e os conceitos do direito. Esperar que as faculdades de direito, de onde saem os juízes,
passem a ser mais sensíveis à “realidade” e aos aspectos não jurídicos do direito (em especial aos seus
pressupostos e consequências econômicas) é uma boa aposta que não se sabe se e quando se
concretizará e que, além disso, nada diz sobre como essa realidade extra-jurídica será descrita e
expressa pelos profissionais do direito. Em todo o caso, enquanto isso não ocorre, é pragmaticamente
aconselhável fazer o percurso inverso: tornar os aspectos não jurídicos menos infensos à compreensão
de profissionais do direito que não habitam o setor elétrico. Aliás, como lembra um jurista pragmático
e grande representante do law and economics, pode ser uma estratégia pragmática ser formalista82.

Em síntese: é certo que o direito da energia elétrica possui conteúdo “não jurídico”. Também é certo
que o seu profissional tem de conhecê-lo, e bem. Mas isso não significa que deva sucumbir à tentação
de escrever como um engenheiro ou economista. O resultado para seu cliente – cuja língua ele se
esforça por falar - nem sempre será o melhor.

82
Rigorosamente, não se postula, no texto, um approach formalístico, no sentido em que o entende e critica
Posner, Law, Pragmatism cit., p. 19. Não se defende a ideia de que o direito seja um sistema fechado, a partir do
qual derivar soluções a priori e entende-se que a sua linguagem e os seus conceitos podem acomodar quaisquer
conteúdos empíricos. Em todo o caso, mesmo no sentido forte de formalismo empregado por Posner, é sempre
de se ter em conta que um juiz pragmático “might in some circumstances decide to adopt a formalist rhetoric for
his judicial opinions – might even decide to embrace formalism as a pragmatic strategy rather than just as a
pragmatic rhetoric.”

35
Seção IV - A relação do direito da energia elétrica com seu objeto e, em especial, com as prescrições
das ciências aplicadas

Com essa seção encerramos nosso estudo.

As ideias lançadas acima parecem fazer do direito um tirano cuja onipresença domina a indústria da
eletricidade. A coisa está em tudo e sua armada participa de todas as batalhas. Faz-se sentir no humilde
quotidiano e no momento solene e decisivo; absorve e digere considerações técnicas, econômicas,
políticas etc. Parece que tudo deve ser juridicizado e que a infraestrutura institucionalizada é um
rebento da arte em que o excelso Celso exceleu.

Em certa medida assim é, mas, como todo o tirano, o direito precisa reconhecer certos limites e
incorporar dentro de seu aparato governativo algumas forças que poderiam se voltar contra ele, caso
fossem alijadas completamente do poder. O que segue explora um aspecto específico dessa questão
mais geral83.

Considere que as providências abaixo tenham sido determinadas em leis formalmente válidas:

i. A prorrogação, pela enésima vez, de um subsídio setorial que de há muito já não é mais
necessário para se alcançar a função que justificou sua criação e que, além disso, é
reconhecidamente um forte estímulo para a ineficiência econômica, desvio de recursos etc.

ii. A partição das instalações de transmissão em três categorias taxativas e sem possibilidade de
criação de outros grupos, as quais se demonstraram insuficientes sob as perspectivas
econômicas e técnica.

iii. Em certo dispositivo de uma lei que trata de condições gerais de editais de licitação de
contratos de compra-e-venda de energia, determina-se que o licitante vencedor deverá
comprar equipamentos elétricos de fabricantes internacionais, em detrimento de empresas
nacionais que os produzem ao mesmo custo e com as mesmas prestações técnicas.

iv. Por força da pressão de um certo grupo de interesses, edita-se uma lei comanda ao ONS que
coloque na base da curva de carga um conjunto de usinas caríssimas, sem qualquer justificativa
(técnica ou econômica), deixando sem operar e vertendo água geradores hídricos de menor
custo e menos poluentes.

83
Sobretudo no plano das normas gerais e abstratas, a relação do direito com a indústria que regula é complexa
e nuanceada. Em parte, as normas devem tomar aspectos da indústria como dados naturais, necessários, os quais
não podem ser ignorados, muito menos contrariados. Em parte, o direito também se vê às voltas com
circunstâncias dessa indústria que são frutos de ação humana consciente (e não condicionantes físicas
necessárias), em face das quais, portanto, ele não se encontra absolutamente vinculado, mas não fará bem em
ignorar. Trata-se dos “fatos técnicos” ou “dados tecnológicos” que conformam a indústria elétrica. Finalmente,
num espaço que é mais propício à escolha, deliberação e decisão, a indústria é a resultante de ações que aplicam
as normas jurídicas. A distinção entre esses aspectos – a identificação do que é “fato tecnológico” da indústria
que se impõe ao direito – não é simples e suscita a delicada questão da relação entre normas jurídicas e
prescrições técnicas explorada no texto.

36
v. Finalmente, uma outra lei comanda ao mesmo ONS que adote certos parâmetros operacionais
que colocam em risco a higidez de uma parte importante do Sistema Interligado Nacional.

Questões como essas, que incomodam o economista, o engenheiro e o político (e qualquer pessoa de
bom senso), não são tão incomuns no setor, embora se apresentem normalmente menos dramáticas.

Elas estabelecem um conflito entre, de um lado, normas jurídicas e, de outro, prescrições de diferentes
racionalidades (mais genericamente, as “boas práticas da indústria”).

Guardadas as proporções e as devidas diferenças temáticas, esse conflito repropõe a interminável


discussão acerca da relação entre o direito e outras ordens prescritivas. Tradicionalmente, a cruz
dolente foi a relação entre o direito e a moral - diretamente enunciada como tal ou contrabandeada
como direito natural. No fundo, o problema é semelhante: deve o direito formalmente perfeito mas –
sob alguma perspectiva – “injusto” ou “irrazoável” ceder perante interesses que parecem ser mais
nobres do que a segurança jurídica? Ou fiat ius pereant mundus (em vernáculo frouxo: “obedeça-se ao
direito e o resto que [literalmente, para a última hipótese] se exploda”)?

O primeiro passo para resolver o problema é reconhecê-lo como tal, isto é, levar a sério a circunstância
de que são possíveis duas soluções. Em nenhuma das cinco hipóteses as normas jurídicas são
impossíveis de serem atendidas. As ações comandadas (“prorrogue o subsídio”, “classifique as
instalações de transmissão em a, b e c”, “compre equipamentos importados”, “coloque para despachar
usinas mais caras”, “tome a medida x”) são perfeitamente concebíveis e realizáveis. Elas contrariam
alguma máxima ou prescrição não jurídica e podem ter por efeito a não realização de um objetivo
desejável ou a materialização de algo que se tem por um mal. Mas não determinam que se torne um
círculo quadrado. Há um conflito entre dois comandos que não almejam o impossível: uma norma
jurídica e uma prescrição de certa racionalidade que não foi positivada, antes, foi contrariada

O segundo passo é evitar duas soluções fáceis e preguiçosas: não deixar o destinatário da norma dar
de ombros e dizer simplesmente “cumpro ordens” ou, ao contrário, esquecer-se de que existe uma lei
ruim, varrê-la para baixo do tapete como se não existisse, e tratar como fato necessário84 o contrário
do que ela preconiza, ou, pior: considerar como “direito”, sem mais, a prescrição técnica que se quer
seguir, mas que norma jurídica não é porque não foi formalizada cfe. acima (às vezes chega-se cúmulo
de editar uma portaria com o conteúdo oposto ao da lei, a pretexto de a “esclarecer”). No limite, a
primeira solução pode levar a um desastre; a segunda, à substituição de uma ação identificável e certa
(aquele preconizada pela lei), por milhares de alternativas, dependentes em alguma medida da vontade
e das opiniões individuais dos sujeitos em condições de ignorar a norma jurídica.

Recomendável ainda seria tentar evitar, por um atividade hermenêutica responsável, o resultado que
prima facie decorre do texto legal e que se tem por inoportuno ou insensato à luz de uma prescrição

84
Como manifestações de uma razão pragmática, esssas prescrições não são descrições de estados-de-coisa
necessários (como as leis da física). Envolvem, pois, deliberações e escolhas de meios e fins e não podem ser
tomadas irrefletidamente como dados de fato que se imponham tout court ao direito.

37
não jurídica. Respeitado o limite dos sentidos possíveis85, deve-se esgotar as possibilidades de se
interpretar o texto legal de modo a não criar o indesejável conflito com a solução de “bom senso86”.
Neste passo, inclusive, as máximas técnicas, as boas práticas podem servir como úteis subsídios de
interpretação de um texto que permite mais de uma leitura.

Em não sendo isso possível, há de se tratar o problema.

No mais das vezes, entende-se que deve prevalecer a regra jurídica, por razões bastante simples e
intuitivas ligadas à segurança jurídica. Deixar que cada qual faça valer a “sua verdade” é fonte de
intolerável insegurança e, no limite, arbítrio.

Em alguns casos, porém, será recomendável afastar a norma jurídica que decorre imediatamente do
texto legal. Mas não se animem demasiado com isso os engenheiros e os economistas. Essa operação
se passa dentro do direito e não equivale simplesmente a substituir a lei por outra coisa não jurídica.
Como um astuto tirano, o direito torna seus aliados as forças que o contestam.

Os casos em que esse afastamento ocorrerá são assemelhados aos chamados hard cases, isto é, aquelas
hipóteses de conflito em que ao lado do sempre presente interesse em atender a segurança jurídica
seguindo-se uma regra (de pedigree legal em nosso exemplo), outro valor tão relevante quanto esse
primeiro se alevanta, algum de cunho material que a norma jurídica não promove, ao contrário,
prejudica87. Em certas circunstâncias, o custo de atender à segurança jurídica é intolerável.

Exatamente quando esse custo se torna intolerável é matéria de argumentação caso a caso e não se
pretende aqui resolver uma disputa sempre em aberto enquanto o direito positivo for o produto de
homens e não de seres infinitamente justos e perfeitamente racionais. Sempre se poderá dizer que tal
ou qual hipótese é um hard case e que deve ser resolvida afastando-se a regra jurídica imediatamente
aplicável (e o autor tem a impressão de que se diz isso com muita facilidade e frequência no setor
elétrico, em detrimento da estabilidade normativa). O que, sim, se deseja pontuar, é o modo como essa
operação deverá ocorrer. Como se disse, ela é interna ao direito e convoca, como seu instrumento, um

85
“Toda a interpretação de um texto há de iniciar-se com o sentido literal. Por tal entende-se o significado de um
termo ou de uma cadeia de palavras no uso linguístico geral ou, no caso de que seja possível constatá-lo, no uso
linguístico especial do falante concreto, neste caso, no uso da lei de que se cuida.” Methodenlehre der
Rechtswissenschaft, 6ª ed., Springer Verlag, p. 320 (tradução do autor).
“O que está para além do sentido literal linguisticamente possível e é claramente excluído por ele já não pode ser
entendido, por via da interpretação, como significado decisivo do termo. Diz acertadamente Meier-Hayoz que ‘o
teor literal tem, por isso, uma dupla missão: é ponto de partida para a indagação judicial do sentido e traça, ao
mesmo tempo, os limites de sua atividade interpretativa’. Uma interpretação que não se situe já no âmbito do
sentido literal possível já não é interpretação mas modificação de sentido (...).” Larenz, Methodenlehre cit., p. 322
(tradução do autor).Para além do sentido possível, já se está fora da interpretação: “... não é possível achar outra
demarcação entre interpretação e desenvolvimento do Direito complementador ou modificador da lei senão a
do sentido literal linguisticamente possível.” Karl Larenz, Methodenlehre, cit., p. 323 (tradução do autor)
86
Curiosamente, parece se estar preconizando aqui uma espécie de “interpretação conforme” do texto legal não
à Constituição, mas a um padrão não jurídico. Como se verá logo adiante, isso não é exatamente o caso.
87
Essa não é a configuração canônica de um hard case. Considera-se tal aquele em que se aventa afastar uma
regra em favor de um princípio, a bem da “integridade do direito”. O texto clássico é o artigo de Dworkin, “Hard
Cases”, in Harvard Law Review, vol. 88, n. 6, 1975 (tornado o Capítulo 4 de seu livro Taking Rights Seriously,
Harvard Press, 1978).

38
outro tipo de norma jurídica que desempenhou até o momento neste estudo um ralo papel: os
chamados princípios jurídicos.

A literatura sobre princípios é praticamente interminável, diretamente proporcional ao fascínio que


eles provocaram na doutrina jurídica moderna e por isso nem de longe se pretende deles tratar com
alguma suficiência88. Sugere-se, apenas, que o afastamento da norma jurídica prima facie incidente
ocorrerá por meio da formulação de uma outra norma jurídica fundada em um princípio jurídico. Essa
norma derivada é que incorporará e tornará juridicamente atuante a prescrição do engenheiro, do
economista ou do político. Não se trata, portanto, de fazer passar por cima do direito a boa prática,
mas de torná-la direito.

Como se vê, está-se em diante de um tirano que está presente em tudo – mesmo quando o direito se
vê forçado a eliminar um rebento seu, uma norma jurídica legal, por força da pressão da “opinião
pública”. Ele transforma essa opinião pública em órgão de governo, por via da operação de um grupo
especial de normas, os princípios jurídicos.

Trata-se, portanto, de um tirano esclarecido.

88
Por todos, além de Dworkin e Ávila, já citados, também Alexy, Theorie der Grundrechte, Surkhamp, 1986,
traduzido em português por Virgílio Afonso da Silva, Malheiros, 2008 (Teoria dos Direitos Fundamentais).

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