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rigens da habitac¢ao social no Brasil ON a Ce mY el Cag ROMO Eons Difusao da Casa Propria Nabil Bonduki Estocdo liberdade A habitacao por conta do trabalhador m operdrio adquire um terreno; ele mesmo abre um poco depois do servico. Compra os tijolos. E aos domingos convida a turma para the dar uma mdo. Em poucos domingos as casas se levantam pelos barrancos da Vila Matilde, Vila Esperanca, Vila Gui- Ihermina. Sdo as “casas domingueiras", as mesmas que tremem com a ventania. (Have, 6/3/1947) Na década de 1940, em conseqiiéncia da crise habitacional, da desestruturagio do mercado rentista e da incapacidade do Estado em financiar ou promover a producdo de moradia em larga escala, consolidou-se uma serie de ex- pedientes de construgdo de casas 4 margem do mercado formal e do Estado que, de modo sintético, irei chamar de auto-empreendimento da moradia popular, baseado no trinémio loteamento periférico, casa propria € autoconstrugdo (Bonouki 1992), Esse processo acabou predominando em Sao Paulo e em grande parte das cidades brasileiras, tornando-se a forma mais comum de moradia dos setores populares. Muitos so os nomes usados para designar essa forma de cons- truco: casas domingueiras, casas de periferia, casas préprias autoconstruidas, ca~ sas de mutirdo. A caracteristica basica, porém, é serem edificadas sob geréncia direta de seu proprietario e morador: este adquire ou ocupa o terreno; traga, sem apoio técnico, um esquema de construcdo; viabiliza a obtengdo dos materials; agencia a mao-de-obra, gratuita e/ou remunerada informalmente; ¢ em seguida ergue a casa. - Sistema hoje largamente difundido e bastante conhecido {entre outros, Lemos & SAMPAIO 1978, MaricaTo 1979, Bonouki & Rouwik 1979, Sko PAULO, Estapo 1979, Kovarick 1980, VALLADARES 1980, BonDUkI 1986), 0 auto-empreendi- mento e 2 autoconstrugéo nao eram, na década de 1940, novidades, apesar da surpresa que causavam na imprensa € na opiniao publica. Porém, ainda que tenham cxistido praticas similares desde 0 inicio do século, elas nunca constituiram uma sitemativa para 0 conjunto dos trabalhadores. A grande expanso do auto-empre- endimento deu-se na década de 1940, no marco das novas condi¢g6es urbanas, econdmicas, imobilidrias e de reprodugao da forca de trabalho — todas forte- mente influenciadas pela intervencdo do Estado. £ dificil quantificar a expanso desse processo pois ele ocorreu a morsem des estatisticas oficiais. No entanto, a andlise da evolugdo do numero de wut ~ 281 Tapas ai domicilios préprios revela o enorme incremento da propriedade na cidade de S30 Paulo no periodo pés-40. E como a casa propria, para 2 maioria da populas3o, signi- ficava auto-emprendimento em loteamento periférico, esses dados expressam, in- da que de maneira indireta, 0 grau de crescimento dessa alternative habitacional Tabela 7.1 — Distribuigdo dos domicilios segundo a condigo de ocupagso Cidade de $0 Paulo, 1920 a 1970° Condigdo de ocupagio 1920 1940 1950 1970 Ocupados por locatirios 46.976 79% 187.555 67% 264.174 S8% — $86472 Ocupados por proprietarios 11.404 19% 69.097 25% 167.953 37% 683.830 Outras formas de ocupagio 1.404 2% 20.302 7% (23.290 St 101877 Total 59.784 276.954 455.417 1.272273 33/9 Fonte: IBGE 1940, 1950, 1970. Bourmy ox Dieetona oe Iwoistma € Cowen, n® 5/6, 1921 * 0s dados de 1920 referem-se ao mimero de prédios. Como os prédios de aluguel abrigam mais de um domicilio, & provavel que o numero de domiclios ocupados por locatirios esteja subestimado nesse 200 A extraordinaria expanso do auto-empreendimento nao € um processo isolado mas faz parte da “desmercantilizagao" do processo de produce da moradia popular, ou seja, da desestruturagao do mercado de moradias popula~ res produzidas por empreendedores privados. Nesse quadro, transferiu-se para 0 Estado e, sobretudo, para o morador, a responsabilidade pela producao da moradia. A aceitacao ambigua do conceito de habitacao social no periodo _levou, de um lado, a intervencao do Estado, que regulamentou as locagées, finan- ciou € produziu ele proprio moradias e, de outro, a auséncia do poder piiblico na periferia das cidades mais importantes, como Sao Paulo € Rio de Janeiro, 0 que per- mitiu uma ocupagao irregular do solo — numa verdadeira produgdo doméstica, nao-capitalista, de um bem essencial a sobrevivéncia do trabalhador. Ao se des- qualificar a producaio da moradia como mercadoria — transformando-a numa es- pécie de servico social (conjuntos habitacionais dos IAPs); descaracterizando seu valor, com a dissociagaio do custo de producao do valor do aluguel (provocado pela Lei do Inquilinato); ou entdo produzindo-a como valor de uso, no caso do auto-emprendimento —, configura-se uma situagao na qual se deixa de contabilizar © valor da habitagdo. E essa reducdo ou anulacdo do custo da moradia acarreta uma diminuicao do custo da forca de trabalho, sem que esta deixe de ser alojada, contudo, ampliando-se assim a taxa de acumulacao do capital. Nao que a moradia deixe, na esfera de circulagao, de ser merca- doria. Formas nao-capitalistas de promogao habitacional (realizadas tanto pelo Estado como pelo morador) geram um bem que, estando desocupado, pode ser in- corporado a0 mercado imobilidrio através da venda, adquirindo ou readquirindo seu valor. Mas 0 que nos interessa aqui é o momento no qual a moradia deixa de ser promovida de forma predominantemente mercantil € passa a ser produzida 282 ORIGENS DA HABITAGAO SOCIAL NO BRASIL por mecanismos que permitem 20s trabalhadores ter acesso a ela por um preco desvinculado de seu valor efetivo Foi fundamental para isso 0 auto-empreendimento da casa pro- pri, Com a omissio da Prefeitura, esse processo informal teve uma impressionante expansio, pois foi uma forma de viabilizar a moradia popular sem ampliar 0 in vestimento puiblico no setor. Ao mesmo tempo, 0 modelo difundiu a pequena pro- priedade urbana para ampla camada de trabalhadores de baixa ¢ média renda, propiciando-lhes uma sensaco de ascenséo social sem que houvesse redistriouigao de renda, elevaciio dos salarios ou comprometimento da acumulagao. No entanto, esse quase milagre nao se deu sem perda da quali- dade de vida dos segmentos sociais envolvidos. No apenas em termos da preca- riedade das moradias ou dos sacrificios requeridos por sua construcdo, mas também na desqualificagdo do modo de morar urbano — algo como o inverso do que os arquitetos e outros reformadores socials supunhram que poderia ser, nos conjuntos habitacionais de inspirago moderna, o espaco de moradia da nova classe operaria, responsivel pela construcao da nova sociedade. 0 auto-empreendimento na periferia, configurando 0 territorio da aventura individual, da propriedade privada, da moralidade crista e do conser- vadorismo politico — no espaco da casa em construcdo, do lote baguncado, da quadra clandestina, da rua semi-oficializada, do ponto de énibus sempre cheio, do tempo infinito até o trabalho —, formou a base do que chamo do modo de vida paulistano, tornando-se uma referéncia cultural estruturadora do cotidiano dos habitantes da cidade. Participar desse processo tornou-se sinal de incorporacéo 8 cidade e & cidadania, e também a aspiragdo maxima de ascensdo social acessive! aos trabalhadores de baixa renda. Origens dos loteamentos periféricos esde o principio do século, existem relatos de trabalhadores que promoviam € construiam eles proprios suas moradias nos arredores da cidade, sobretudo na zona rural (Roun 1981). No entanto, pelo menos até meados da década de 1920, esta pritica nao era significativa ¢ estava longe de constituir alternativa viavel de moradia popular para o conjunto dos trabalhadores. Varios foram os motivos que impediram, no periodo, uma larga difusao dessa modalidade habitacional: predominancia da producao rentista que produzia quantidade significativa de moradias de aluguel; falta de financiamento-¢ te esquemas de venda a prestagdes, com as devidas garantias juridicas; inexsténcia 283 de transporte coletivo, mesmo precario, ligando as zonas suburbanas ¢ rurais as reas centrais (com excecdo de nuicleos isolados, servidos por trens ¢ bondes); certo controle (ou receio de controle) do poder pubblico sobre 0 processo de construgao; longas jornadas de trabalho e auséncia, entre os trabalhadores, de tradicao desse tipo de empreendimento. Nao ha duvida, porém, de que a casa auto-empreendida estava presente na So Paulo das primeiras décadas do século, tendo sido construida so- bretudo por trabalhadores cuja renda permitia, além de pagar o aluguel, a aq sigdo de um lote e de materiais de construgéio. Os que optavam por esta solucao trabalhavam em locais préximos as zonas suburbanas, pois “a industria € outros polos de trabalho em Sao Paulo nao nasceram apenas concentrados em areas de perfil urbano e fabril mas, ao contrario, disseminados por um espaco amplo, ur- bano e rural” (Marrins 1992). Como mostra Lancensuck (1971), “a partir do final da década de 1910 foi aberta uma infinidade de loteamentos e arruamentos na zona suburbana e rural de So Paulo. Em 1930, ja havia um cinturao vasto e descon- tinuo de loteamentos que, por todos os quadrantes, estendia-se para além dos mais afastados bairros isolados, conforme se verifica no mapa da Sara-Brasil” A profusao de loteamentos nao significava, contudo, a existéncia de um processo semelhante ao modelo de produgao da casa propria que depois iria se generalizar. Esses loteamentos nao eram empreendimentos concebidos com 0 objetivo de se vender lotes para trabalhadores, mas sobretudo uma alternativa de investimento. Com o crescimento da cidade, o retalhamento descuidado de gle- bas rurais em lotes urbanos de 400 a 500 m’ era uma operacdo muito lucrativa. Grande parte dos loteamentos comercializados no periodo s6 existiu no papel, ndo passando por aprovacao, registro em cartério ou implantacio fisica. Sem infra- estrutura, foram arruados de maneira precdria e incorporados lentamente a0 uso urbano. E seus compradores eram investidores @ espera de uma valorizacao imo- biliéria (GrosteIn 1989:86). 0 auto-empreendimento de casas proprias ou a construgao de moradia de aluguel em lotes implantados nessas condigdes podem ter existido, mas foram excecdes. Prevalecia entao a compra como investimento, sendo que o com- prador “como nao pensava em ocupa-lo de imediato, nao necessitava ainda de ser- vicos urbanos” (GrosTEIN 1989:94). Na década de 1920, a venda em prestacdes faci~ litou 0 acesso a trabalhadores de baixa renda a esses lotes. Mas a ocupacio esparsa €a falta de transporte ¢ de infra-estrutura desestimulavam possiveis moradores. Desse modo, entre 1914 € 1930 ocorreu uma extraordinaria ex- pansdo da Area urbanizada da cidade, de 3.760 hectares para 17.653 hectares (Viwaca 1978), sem o correspondente incremento demografico. A densidade bruta da cidade caiu de 110 habitantes por hectare para apenas 47 ¢ permaneceu baixa durante décadas, como resultado dessa expansao horizontal. “Abertos sem qual~ quer controle, estes loteamentos excediam a demanda efetiva representada pelos residentes suburbanos em potencial [..]; 0 mapa de 1930 mostra a escassez de 284 ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL ee ocupagao da maior parte dos loteamentos, apresentando, em geral, no mais de uma ou duas dezenas de casas" (Lacenauch 1971). Entre urbanistas, como Prestes Maia e Uta Cintra (1926:227), autores do Plano de Avenidas, tornaram-se comuns as criticas ao parcelamento excessivo, realizado sem nenhum cuidado urbanistico: “A expansao da cidade tem sido obra da iniciativa privada que, sobretudo pelo sistema de vendas a prestaco, provocou 0 arruamento de zona imensa e em desproporcio flagrante com as ne- cessidade reais da populagdo. E essa dispersdo desordenada vem encarecer ainda 05 servicos publicos, especialmente calcamento e canalizacoes.” Até o final da década de 1920, ao lado de um mercado de locagéo ainda bastante ativo, a inexisténcia de transportes coletivos era uma das causas mais importantes da baixissima ocupacdo dos loteamentos. A rede de bondes, que pouco crescera desde sua implantagao no inicio do século, nao atendia senao as regides mais urbanizadas da cidade. Ja os trens, embora alcangassem os subtirbios € tivessem dado origem a alguns nucleos periféricos, tendiam a favorecer uma ‘ocupacao nas proximidades das estagdes, nao logrando, sem a complementagao de outro meio de transporte de baixa capacidade, ampliar sua area de atendimento. Mesmo assim, os loteamentos periféricos junto as linhas férreas foram os primeiros a serem ocupados, como mostra LaNGENUCH (1971): “O mapa da Sara-Brasil nos mostra que em 1930 os loteamentos sitos no dominio do tramway da Cantareira, tais como Chora-Menino, Tremembé, Tucuruvi ete., apresentavam certa ocupaco. Estes contrastavam, neste particular, com os loteamentos da mesma area sitos a maior distancia da ferrovia: Lausanne, Vila Gustavo etc., muito menos ocupados, quando nao inteiramente vazios." O inicio da operacgdo dos auto-dnibus, entre 1924 e 1925 (Set 1978), iria cobrir essa lacuna, essencial para a viabilizagao do padrao periférico. Sistema de baixa capacidade e grande capilaridade, os 6nibus puderam, ao con- trario dos bondes, propiciar acesso a areas distantes € pouco ocupadas. Incorpo- rado a vida da cidade de maneira descontrolada, 6 sistema cresceu conforme o interesse de seus proprietarios, as vezes 0 proprio motorista. S6 em 1934 a Pre- feitura iria regulamenta-lo, ainda de maneira precaria. De qualquer forma, ele foi fundamental para a formacao da periferia, a tal ponto que, posteriormente, seria muito comum a associagdo de empresas de dnibus e empresas de loteamento. Até entao, porém, apenas se delineava o tipo de empreendimento e de mercado buscados na periferia. Muitas vezes, o loteador tentava em vao atrair a classe média alta, difundindo o loteamento de periferia com a imagem da cidade-jardim, num momento em que a desconcentragdo urbana e as preocupa- Ges sanitdrias estavam em alta. Agiam como se tateassem 0 mercado, segmen- tando-o, definindo padrdes, precos e formas de atingi-lo, sem ainda identificar os compradores certos para seu produto. De toda maneira, a oferta excedeu em muito a demanda; os lotes nao passavam de pedacos de terra riscados num mapa impreciso, em geral sem ABIL BONDUKI 285 arruamento, acesso, infra-estrutura e legalidade: “Dir-nos-do que lotes urbanos superabundam. Entretanto 0 que € posto a venda em prestagdes, com raras excecoes merece 0 nome de lote urbano; na realidade é a mera promessa de vir a ser coisa parecida, promessa alids que faz toda a base do negocio" (Presres Maia &t CINTRA 1926:227). A despeito dos evidentes conhecidos problemas que esse mo- delo de ocupagao [ilegal, clandestina, antiurbana, insalubre, precaria e contraria aos principios da técnica urbanistica) trariam para a cidade no futuro, formou-se uma especie de conluio branco entre loteadores, compradores, Executivo, Legislativo e Judiciério para nao se criar empecilhos ao livre desenvolvimento desse tipo de empreendimento. A liberdade com que se processou, durante décadas, a transfor- mao, sem projeto nem obras, de glebas rurais em lotes teoricamente urbanos, foi decisiva para a difuséo do sistema de auto-empreendimento. Em 1931, no | Congreso de Habitaco, o assunto ocupou posicaio de destaque. Em palestra, Anhaia Melo — entdo prefeito de Sao Paulo e um dos urbanistas que tentaram em vao combater esse tipo de ocupagao — “mostrou, através de plantas, a dimensio dos arruamentos clandestinos, onde todos pude- ram se certificar que a cidade clandestina, que cresceu ao lado da oficial, € maior do que esta” (InsmuTo D¢ ENGENHARIA 1931:300). A tese apresentada pelo engenheiro municipal Lysandro Pereira da Silva, a mais importante contribuigao para se co- nhecer a extensao, caracteristicas e gravidade desse processo de parcelamento até 08 anos 30, mostra que ainda nao eram uma preocupagao as condigdes de moradia daqueles que, eventualmente, haviam mudado para essas dreas, Grostein (1989:209), que realizou extenso estudo sobre o assunto, mostrou que 0 processo era tratado como problematico apenas no aspecto da gestéo urbana, pois a questdo social estava embrionaria, inexistindo textos do periodo que tratassem dos problemas vividos pelos seus moradores. : Seria exagerado afirmar que, na década de 1930, inexistiam pro- blemas de natureza social nos loteamentos periféricos e clandestinos apenas por- que ndo foram mencionados em documentos da época. A precariedade da moradia na periferia ainda no era mencionada porque sua dimensdo nao era to grave quanto a situagao dos corticos, muito mais visiveis, « também porque os morado- res da periferia eram relativamente poucos e desorganizados, sem experiéncia reivindicativa que thes desse expressdo € presenga politica. Em meados dos anos 30 e inicio dos anos 40, nos levantamentos sobre o padrdo de vida operdria, aparecem referéncias a0 auto-empreendimento na periferia, como nas Jornadas de Habitacao Econémica: “as classes mais neces- sitadas tém apenas dois tipos de moradia a escolher: a casa feita com as proprias maos € 0 cortico” (ViANA 1942:133). Numa conjuntura anterior a da crise habitacional da década de 1940, a casa na periferia era uma alternativa ao cortigo, mas dependente de cus- tos, distincia do trabalho, salubridade, conforto e perspectivas para o futuro: 286 ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL ae “Visitemos outro cortigo: est a cinco minutos do tridngulo, sendo que devido a isto muitos de seus moradores 0 preferem a casa de que séo proprietarios em bairros distantes. 0 motivo desta preferéncia est no vulto da despesa com a con- dugo e na dificuldade com o transporte” (ViANA 1942:134). A década de 1930 parece ter sido, portanto, um periodo de tran- si¢o no qual se criaram as condigdes indispensaveis para possibilitar 0 acesso, mesmo que precario, ao lote periférico, seja do ponto de vista financeiro (presta- Ges) seja do ponto de vista do transporte (6nibus). No entanto, a ocupagao rare- feita dos loteamentos, a pequena difusdo da casa prépria (apenas 25% do domi- cilios em 1940) € a auséncia de favelas na cidade (que sé irdo surgir em 1942) mostram que, até o inicio dos anos 40, o mercado rentista dava conta de atender — com a precariedade bem conhecida do cortico € com a casinha bem-compor- tada da vila — as necessidades de moradia na cidade. A omissio do poder puiblico na periferia . enorme oferta de lotes baratos — pois distantes e desprovidos de benfeitorias urbanas — a venda nos quatro cantos da cidade, passiveis de serem pagos a prestacdo, que podiam ser ocupados sem 0s custos € os aborrecimentos envolvidos na feitura e aprovacdo de uma planta e sem 0 isco de perturbacao pela fiscalizagdo, com acesso por transporte puiblico (mesmo precario, lento e complementado por longas caminha- das) — eis as condigGes que viabilizaram o mercado de loteamentos periféricos € criaram uma alternativa habitacional de massa para os trabalhadores de baixa renda. Ao mesmo tempo em que nos gabinetes dos IAPs se formulavam sofistica~ dos planos habitacionais influenciados pelo Ciam e pela experiéncia de habitacao social na Europa, em Sao Paulo criavam-se as condicdes para a proliferacdo de uma solugdo habitacional arcaica e precaria, baseada na combinacao de loteamentos privados especulativos com 0 auto-empreendimento da casa propria. Ainda que esta solucdo nao tenha sido elaborada de propésito, em termos técnicos ou politicos, no foi por acaso que surgiram condicées t3o propicias. A forma como o Executivo ¢ 0 Legislativo (nos ambitos municipal, esta~ dual e federal) trataram — ou deixaram de tratar — a expansao dos loteamentos € suas condigdes de ocupagio e comercializacao, foi decisiva para a consolidacao do modelo de producao baseado no auto-empreendimento. Explicagdes genéricas do tipo “a cidade cresceu com muita rapi- de2", “o poder piiblico nao foi capaz de acompanhar a expansio urbana”, “faltou legislago adequada", “a fiscalizacdo era insuficiente”, “o Cédigo Civil nao permitia”, “o Cédigo de Obras era omisso” etc., ndo bastam para explicar a permissividade € 287 | i i ] i a auséncia do poder piiblico, pelo menos até a década de 1970, na formaciio e crescimento de uma cidade ilegal, desprovida de infra-estrutura, desarticulada da estrutura vidria da zona urbanizada e varias vezes maior que a cidade oficial. Seria ingenuidade supor que o Estado, que antes de 1930 mon- tou uma estrutura militar para eliminar o que considerava como ameaga a ordem sanitaria e que, a partir de 1930, interferiu de forma autoritaria nas relacdes eco- némicas, alterando ou promulgando Constituigdes, reformando a administracdo publica, restringindo o direito de propriedade, desapropriando sem pagamento prévio etc., — seria ingenuidade supor esse Estado incapaz de criar instrumentos juridicos e administrativos para controlar o parcelamento € 0 uso do solo na peri- feria das grandes cidades. Se isto ocorreu, foi porque nao houve vontade politica para conter 0 processo ou, até mesmo, porque havia a intenc3o de deixé-lo correr solto € ndo sé em beneficio dos que especulavam com os terrenos. A omissao do poder piblico na expansio dos loteamentos clan- destinos fazia parte de uma estratégia para facilitar a construcao da casa pelo pré- prio morador que, embora nao tivesse sido planejada, foi se definindo na pratica, como um modo de viabilizar uma solucdo habitacional "popular’, barata, segrega- da, compativel com a baixa remuneracao dos trabalhadores € que, ainda, Ihes desse a sensagiio, falsa ou verdadeira, de realizar o sonho de se tornarem proprietirios. Com a expansio periférica garantia-se dois objetivos ha décadas buscados pela elite: desadensar e segregar. Deste modo, os investimentos puiblicos poderiam ser concentrados nas areas habitadas pela classe média € alta e, por ou- tro, seria viabilizada uma alternativa de baixissimo custo para que os trabalhado- res tivessem acesso a casa prépria, sem onerar 0 poder ptiblico e o setor privado. Para desespero de técnicos € urbanistas da Prefeitura, incapazes de resistir a um processo selvagem de urbanizaco, 0 poder puiblico foi, de modo nao programado, orientando-se para esse objetivo, sem dar ouvidos aos que clamavam por uma cidade ideal — que esta ficasse restrita aos “oasis” edificados pelos IAPs como de- monstracao da preocupagao social do governo. Para se entender esse proceso, serio examinados a seguir ape- nas alguns aspectos da relago entre o poder ptiblico € os loteamentos, a fim de mostrar que o Estado nao sé deixou de combater como estimulou a abertura de loteamentos clandestinos e sua ocupacao pela moradia popular, ao mesmo tempo que punia os que ali iam residir com uma legislagdo que impedia a instalago de servigos urbanos. Dentre as acdes piiblicas que beneficiaram o modelo periférico, merece destaque a legislagdo federal, que regulamentou o loteamento de terre- nos (Decreto-Lei 58, de 1937). Estabelecido pelo mesmo governo centralizador (Getulio Vargas) que regulamentou, para todo o pais, o mercado de locagio (Lei do Inquilinato) e a produgao piiblica de habitagdo (com as carteiras imobilidrias dos IAPs), 0 Decreto-Lei 58 privilegiava os aspectos juridicos dos loteamentos, como 0 registro em cartério e as garantias aos que compravam os lotes em pres- tagdes, deixando de tratar do controle urbanistico, 288 ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL O decreto resguardava 0 direito do comprador do lote, caso 0 vendedor desistisse do negécio antes do término do pagamento das prestagdes — algo até entdo nao previsto no Cédigo Civil. 0 dispositivo era necessario e correto, pois a constante valorizagao dos terrenos tornava o arrependimento interessante em termos financeiros para 0 vendedor. Mas, ao dar garantias juridicas a0 com- prador, estimulando a comercializacao de lotes, 0 decreto foi deficiente a0 nao determinar um padrdo minimo de qualidade urbanistica — pois provocaria a ele- vagao do custo dos terrenos — e ao nao penalizar o loteamento clandestino. Ainda que 0 loteador fosse obrigado a depositar em cartdrio a planta aprovada pela Pre~ feitura, ndo havia nenhuma sancdo para os faltosos. “A falta de um gravame enér- gico contra o loteador levou os proprietarios a fazerem letra morta do Decreto- Lei 58. Foi assim que a esmagadora maioria dos loteamentos efetuados, mesmo nos centros como Sao Paulo, se realizaram ao arrepio da lei reguladora, sem qual- quer conseqiiéncia para os infratores” (FuNDAGAo Prereiro Faria Lima 1969:68). Em conseqiiéncia disso, “o poder ptiblico deixou de contar com instrumentos juridicos que o permitissem agir para penalizar os loteadores de em- preendimentos em desacordo ou revelia da lei, mesmo se quisesse agir” (Grosten 1989:413). Por mais de quatro décadas (a legislacao federal sé seria alterada em 1979, quando se criaram os instrumentos necessarios), nada foi feito para coibir © que, consensualmente, era uma das principais causas de inumeros problemas urbanos e da administracao publica nas principais cidades brasileiras. E dificil supor que as deficiéncias do Decreto-Lei 58 ¢ as quatro décadas de descaso em relacdo ao assunto fossem conseqiiéncia de desconheci- mento dos instrumentos juridicos que deveriam ser criados — incluindo a crimina- lizagio dos loteadores clandestinos: ja no | Congresso de Habitaco, Suva (1931:101- 14) demonstra conhecer a legislagdo adotada em outros paises sobre o parcela- mento € sugere varias iniciativas para combater a pratica. Também é pouco crivel que os loteadores fossem tao articulados ¢ influentes a ponto de impedir uma aco publica; a regulamentagdo do Estado Novo prejudicou setores muito mais poderosos que os loteadores. 0 mais provavel € que 0 governo nao tivesse interesse em tomar medidas para evitar a precariedade dos loteamentos porque isto significaria a ele- vagiio do custo do lote, da moradia auto-empreendida e, portanto, da reproducao da forca de trabalho. Postura, alias, coerente com outras aces empreendidas na mesma época pelo governo federal no campo habitacional, como o congelamento dos aluguéis € a produgao de habitagao social pelo Estado, sempre tendentes a reduzir 0 custo da habitagao. A missiio no combate aos loteamentos clandestinos € precarios viabilizava a criagdo, com reduzido investimento privado, de vastissimo estoque de lotes populares, onde as casas poderiam ser edificadas sem nenhuma restri¢ao legal. Em Sao Paulo, a atuacao da Prefeitura s6 confirma esse raciocinio. Como pediam os preceitos urbanisticos defendidos pelos tecnicos, promulgou-se uma ABIL BONDUKI 289 legislacdo de parcelamento do solo (Lei 2611/1923, consolidada no Cédigo de Obras de 1934): Esta, porém, quase nunca foi obedecida pelos loteadores, que abriam ruas ndo-oficiais, clandestinas ou particulares. Como as ruas nao eram oficiais, 0 poder puiblico estava impedido de ali instalar servigos de infra-estrutura ¢ ben- feitorias urbanas. Tratava-se de excelente justificativa para excluir da demanda por recursos puiblicos a maior parte da cidade, a que seria ocupada pela popula- So de baixa renda. Desse modo, 0 governo podia concentrar seus investimentos no centro € nos locais nobres, sobretudo na estrutura viaria. Enquanto os urbanistas desesperavam-se com uma cidade que crescia sem parar e sem controle, patenteou-se 0 descompasso entre a lei ¢ a in- suficiéncia da estrutura administrativa para aplic4-la. Como nunca deu prioridade & formulacao de um plano geral de expansao da cidade, indispensavel para a arti- culagdo dos novos loteamentos com a area ji urbanizada, como previa a lei, a prépria Prefeitura ndo tinha como cumprir as exigéncias legais. Este foi o caso das diretrizes vidrias: “O loteador deveria pedi-las e, se as pedisse, havia dificuldade ‘em obté-las. A maquina alministrativa era desestruturada e despreparada para atender a demanda existente. Loteava-se € arruava-se mais do que seria possivel @ municipalidade atender. 0 mesmo raciocinio se aplicava a fiscalizacao. Dentro desta realidade, a clandestinidade no poderia ser a excecdo mas sim a regra” (GrosTeIN 1989). Admitir a clandestinidade como regra significava dar total liber- dade ao loteador, que agia apenas em fungiio do mercado, ou seja, do preco ade- quado sua clientela. O padraio dos loteamentos, portanto, variava bastante. 0 certo € que, para os trabalhadores de baixa renda, sempre haveria um grande es- toque de terrenos em loteamentos nos quais pouco ou nada fora investido. A clan- destinidade desempenhava ainda outra fungao: 4 medida que as ruas eram exe- «cutadas em desacordo com as leis, restava ao poder piiblico “ndo aceitar essas ruas” Dessa forma, ndo era obrigado a inclui-las em seu patriménio — permaneciam ‘40-oficiais” ou “particulares” —, nem levar até elas os servigos urbanos. “[...] A situago irregular ou clandestina das vias do municipio gerou inumeros problemas de gestdo urbana, como a falta de conhecimento das ruas existentes e a impossi lidade de beneficia-las legalmente com servigos publics” (GrosteIN 1989:221-226). A situagdo acabava por se tornar uma excelente justificativa para administracées que nao tinham, de fato, prioridade em investir nos loteamentos populares. Em 1916, quando a questao ainda se colocava de outra maneira, a Prefeitura enfrentou o problema, oficializando em massa as vias particulares. Essa solugdo sé seria repetida em 1953, sob pressdo das organizagées de moradores. Nesses quase quarenta anos, enquanto cuidava do centro e dos bairros da elite e da classe média paulistana, abrindo avenidas, implantando viadutos e “embelezando” 9 centro, obras tao bem ilustradas por Prestes Maia (1945) e pelas indmeras publi- cagdes relativas ao IV Centenario da cidade (1954), a Prefeitura praticamente abandonou os loteamentos ocupados pela populacao pobre. 290 ORIGENS DA'HABITACAO SOCIAL NO BRASIL Entre 1916 € 1932, o poder piiblico esquivou-se de um problema que representava, como afirmou o prefeito Anhaia Melo, “uma cidade duas vezes maior do que a oficial” S6 entao comegaria a tratar do assunto (ato 304/1932 € Consolidagao do Cédigo de Obras de 1934), optando por uma politica de regula rizago dos loteamentos apés o exame de cada caso. O processo de regularizacao, porém, devia ser pedido pelo proprio loteador. E este s6 agiria se Ihe fosse conve- niente, pois nada havia na legislagdo federal e municipal que o obrigasse a tomar uma providéncia, E mesmo quando tentava regularizar o loteamento, deparava com enormes dificuldades, pois isso exigia enorme volume de trabalho e nao era uma prioridade da Prefeitura: "é evidente que a regularizacao de loteamentos era tarefa secundaria [...] considerando 0 pequeno numero de funcionarios vinculados a essa atividade" (GrosteIn 1989:316). Nao por acaso, a Prefeitura nunca conseguiu estruturar devida- mente a Divisdo (depois Departamento) de Urbanismo, drgdo encarregado de es- tabelecer as diretrizes, aprovar e fiscalizar a abertura de loteamentos, além de regularizar os clandestinos. 0 setor de aprovagao de loteamentos sempre contou com numero insuficiente de funciondrios, 0 que resultava na extrema morosidade dos procedimentos burocraticos ¢ na auséncia de fiscalizagéo. Tao demorada era a obtencdo do alvaré que até mesmo os loteadores bem-intencionados acabavam desistindo de regularizar sua situagao. Em 1944, a Prefeitura examinou 150 arrua- mentos e autorizou a abertura de apenas ito. “Esta situagao é insustentavel: a culpa cabe aos dois lados. Deve a prefeitura apressar a aprovagao e, ao mesmo tem- po golpear os transgressores" afirmou Looi (1949:36), diretor do Departamento de Urbanismo. Sua intencdo, entretanto, estava longe da realidade pois parece mesmo ter sido intencional a omisséo da Prefeitura. As multas aplicadas aos lotea~ dores clandestinos tornaram-se irrisérias € perderam totalmente seu cardter puni- tivo pois, fixadas em 1934, sé seriam atualizadas Vinte anos depois. Por outro lado, 0s funcionarios do Departamento de Urbanismo nao eram fiscais de fato, pois a fungdo nunca foi criada, apesar de solicitada durante décadas. Ao contrario dos fis- cais que controlavam as construgGes particulares, eles ndo tinham poder de policia nem autoridade, Como afirmou o dr. Julio, antigo funciondrio do Departamento de Urbanismo: Eram fiscais sem poder, aplicavam multas que eram sistemati- camente ignoradas pelos loteadores, que até mesmo as rasgavam na frente do fiscal ao constatar que este estava exercendo um cargo fora de suas fungdes LJ. Este fiscal tampouco podia embargar obras clandestinas ou irregulares [...]. 0 loteador néo respeitava a presenca do fiscal e a primeira coisa que pedia era sua credencial — que sabia néo existir, desautorizando o funcionério imediata- mente. (GRosTEIN 1989) JA no que se referia a construgao de moradias nesses loteamen- tos, tudo foi feito para facilita-la. A autorizagdo para se construir casas operarias 291 i (moradias de até trés comodos, além de cozinha e banheiro) na zona rural, onde se localizava grande parte dos loteamentos, foi simplificada, eliminando-se a exigéncia de alvard, bastando uma comunicagio a Diretoria de*Obras e Viagdo (Ato 572/1934). Iniciativas para proibir a construcdo em ruas ndo-oficiais (por exemplo, 0 ato 129, do prefeito Anhaia Melo), encontraram forte resisténcia, até mesmo do Tribunal de Justia, que confirmou o direito dos compradores de lotes em ruas ndo-oficiais de construir suas casas, desde que obedecessem ao Cédigo de Obras. Para Costa Manso, ministro do Tribunal, a abertura de uma rua nao de- pendia do proprietario do lote, € sim do arruador. Desse modo, o dono do lote nao poderia ter seu direito de propriedade tolhido por erro cometido por outro, no caso, 0 arruador (GrosteIN 1989:174). Segundo a mentalidade juridica predomi- nante na época, 0 direito de propriedade podia ser restringido (no caso de cons- trugdes, pelo Cédigo de Obras) mas nunca suprimido. A argumentagdo tornou-se jurisprudéncia, frustrando as tenta- tivas de impedir a ocupacao — ¢, portanto, a expanséo — dos loteamentos clan- destinos. Sem restrigdes na esfera legal, contando com extraordindria oferta de lotes e enorme quantidade de terra urbanizavel ainda desocupada nos arredores da cidade, a reprodugao do processo que viabilizava 0 auto-empreendimento da casa dependia apenas de um elemento-chave: 0 transporte coletivo Crise dos transportes € precariedade da periferia de importancia capital para 0 morador a localizagao da habitagao [... A escolha do local fica subordinada cos meios de transportes existentes € 4 eficiéncia ¢ custo desse transporte. Ainda mais, a existéncia ou nGo de servigo de dgua e esgotos, mantidos no Brasil geralmente pelos governos, e de luz e gas, explorados por companhias particulares, influem poderosamente na escolha do lugar. E interessante notar que destes elementos o tinico realmente insubstituivel é 0 transporte coletivo; a égua encanada pode ser substituida pelo poco, 0 esgoto pela fossa, a luz elétrica pelos modernos lampiées, ou mesmo gera- da na prépria casa e 0 gas, como combustivel, pode ser substituido facilmente pela lenha ou pelo carvao de madeira, Mas quando falta 0 transporte coletivo, a solu- ¢0 € 0 pé, acarretando grande perda e dispéndio de energia. (BARROS JR. 1942:83) Nao escapou, aos que buscavam viabilizar uma solugdo habita- cional na periferia, a importancia dos transportes: este era o fator decisivo para consolidar 0 processo de auto-empreendimento da casa. Era, entretanto, problema de dificil solucéo e, a bem da verdade, nunca seria efetivamente equacionado, pois a propria expansao dos loteamentos ampliou a escala das dificuldades. 292 ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL No final dos anos 30, a cidade enfrentava uma crise de trans~ portes. A Light, sentindo a concorréncia dos Onibus, deixara de fazer novos inves- timentos depois de a Prefeitura ter recusado proposta da empresa para moderni- zacdo do sistema (projeto de pré-metrd) em troca da manuten¢do do monopélio do transporte coletivo. Finalmente, a Light anunciou que pretendia abandonar 0 servico de bondes em 1941, quando terminaria sua concessao. Os dnibus, por sua vez, implantados desordenadamente por empresarios que buscavam apenas o lucro facil, nunca funcionaram a contento, apesar da forte expansao: os veiculos nao tinham horario fixo para circular, os itinerdrios eram alterados com freqiiéncia e sem aviso prévio, € os veiculos eram mantidos de forma precdria. Frente a crise, o prefeito Prestes Maia criou, em 1939, a Comis- so de Estudos dos Transportes Coletivos de Sao Paulo, encarregando-a de apre~ sentar propostas para os problemas de deslocamento na cidade. O relatério da Comissio mostrou as deficiéncias do sistema, como a existéncia de 7% da popu- ago (94 mil pessoas em 1940) morando em areas sem nenhum sistema de trans- porte coletivo e, portanto, obrigadas a caminhar longas distancias diariamente (PMSP 1943:342). A guerra agravou o problema. Frente ao racionamento de com- bustivel, falta de pecas de reposi¢ao € indefinico quanto ao futuro, as empresas de dnibus também deixaram de investir no servigo. Em 1941, para evitar 0 colapso total, 0 governo obrigou a Light a continuar operando, e ela o fez sem 0 menor interesse. As providéncias concretas s6 viriam em 1947, com a criacdo de uma ‘empresa de capital misto, a Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), que se tornou responsavel por todo o servico de transporte coletivo da cidade. Ao estatizar o sistema de transportes, a Prefeitura mostrou que considerava 0 setor essencial, merecedor de uma forte intervengao ¢ investimentos publicos. E que, num quadro de grave crise habitacional e de crescimento demografico devido a migracao, a reforma do sistema de transporte era fundamental para viabilizar a moradia na periferia. No entanto, a CMTC nunca conseguiu atender as necessidades de uma cidade em constante processo de expansao horizontal. Sem dispor de re- cursos suficientes para investir pois, por motivos politicos, as tarifas eram manti- das artificialmente baixas, logo se viu que a empresa nao garantiria bons servicos nem conseguiria manter 0 monopdlio dos transportes coletivos. Ndo tardaram a aparecer empresas de Gnibus clandestinas que passaram a fazer a ligacdo com os bairros desatendidos pela CMTC e que, gradativamente, acabaram se associando aos loteadores. Na falta de alternativas, essas empresas foram reconhecidas receberam concessdes para operar as linhas, reduzindo-se progressivamente a participagdo da CMTC nos transportes coletivos. Outro problema era o péssimo estado das vias de acesso aos bairros periféricos. Desprovidas de pavimentacao e abandonadas pela Prefeitura, essas ruas ficavam intransitaveis nos dias de chuvas, representando isolamento e NABIL BONDUKI 293 clevagao do custo de vida: "Com esse tempo de chuva, 0 abastecimento torna-se quase impossivel nestas redondezas. Ninguém quer se arriscar a vir até onde mo- ramos, porque as ruas so péssimas, sem calgamentos. Por isso quando recebemos mercadorias, pagamos precos caros devido aos carretos”, (Hove, 3/1/1947) Malgrado todos estes problemas, ainda que de forma precaria ¢ deficiente, estruturou-se na cidade um arcabouco de transporte coletivo que per- mitiria a ocupagdo dos loteamentos, pois a escassez de moradias nos bairros me- hor localizados empurrava os trabalhadores para os loteamentos distantes, inde- pendentemente da sua vontade ¢ da qualidade do transporte: "Ja no onibus, fa- Jamos com o sr. Oto Rohsbsk. Afirmou ele que mora ha dois meses no Jabaquara. Submeteu-se tortura do transporte porque nao ha casas para morar na cidade. Por isso arranjou, com muita dificuldade, uma casinha com dois comodos no Ja- baquara” (Hove, 13/11/1945). ‘A ocupacao dos loteamentos comegou entéo a ganhar impeto. Nao havia alternativa: nos anos 40, a produgao rentista de moradias, nos bairros ja urbanizados, reduziu-se drasticamente; os despejos se intensificaram; as favelas, que surgiram sobretudo nas varzeas bem localizadas, foram estigmatizadas € repri- midas; as casas com aluguéis novos s6 eram acessiveis aos que podiam pagar luvas; milhares de novos trabalhadores chegavam atraidos pelo forte aquecimento da economia, disputando as poucas moradias disponiveis; ¢ a especulacao imobiliria colocava abaixo prédios ainda novos, para dar lugar a novas incorporagoes. Entre 1940 e 1950, cerca de 100 mil familias, mais de meio mi- Iho de pessoas, passaram a morar em casas préprias. A grande maioria em lotea~ mentos periféricos, que no estavam mais desocupados como nos anos 20, En- frentar e dominar a periferia passou a ser a tarefa cotidiana de centenas de mi- Ihares de trabalhadores, que construiram em siléncio uma cidade muito maior do que a So Paulo oficial. Vamos, entio, percorré-la, de norte a sul, de leste a oeste, com os olhos de revolta de um diario de grande circulagao vinculado ao Partido Comunista: Nés, moradores da zona norte [...] deste grande centro indus- trial, somos uma imensa massa de sofredores que lutam diariamente contra todas as adversidades da vida, suportando os mais duros golpes de indiferenca da ‘administragao publica... Nao suportando o peso dos alugueres proibitivos das casas no centro [...] somos obrigados a abandonar a cidade em busca do con- forto do campo. Mas 0 conforto é apenas um sonho [...]. Sonhamos as poucas horas que dormimos com bons transportes, luz, dgua, ruas calgadas e, ao acordarmos, apenas encontramos péssimos transportes, calhambeques, trevas, seca, p6, lama e suor [...]. Ao entrarmos no trabalho fatigados, causa-nos até vergonha dizer que apés uma noite de sono nos encontramos cansados. Mas, como? sim para entrarmos no servico acordamos duas horas mais cedo, com as luzes das poucas ruas iluminadas ainda acesas, onde encontramos jovens, homens e velhos em bus- ca de uma fila de dnibus intermindvel, quilémetros € quilémetros sao percorridos 294 ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL diariamente até o alto de Santana, onde nos valemos dos bondes superlotados um simples descuido tem feito muitos invdlidos e muitas mortes. (Carta do sr. Julio de Oliveira, do Comité Popular da Vila Mazzei, in Hove, 21/10/1945) Como todos os bairros da periferia, Vila Celeste esté completa- mente abandonado e esquecido dos poderes puiblicos. So as sequintes as vilas das redondezas: Celeste, Invernadas, Paulina, Diva, Santa Clara, Leme, Ema, Par- que Sevilha. Os bairros, habitados quase que exclusivamente por operérios e cam- poneses recém-chegados do interior, ndo gozam do menor conforto moderno ou antigo [.... Para se chegar a uma dessas vilas [..] ndo hd meio de locomogéo. E preciso chegar até Agua Rasa e dai conseguir uma autolota¢ao; alguns traba- Ihadores véo a pé, demorando no percurso cerca de quarenta minutos. (Hose, 8/5/1947) Néo hé dgua, nem luz, nem transporte, as ruas séo intransi- taveis. Vila Santa Maria é um bairro completamente abandonado. Nem talvez na mais remota das zonas do interior poder-se-ia imaginar uma localidade téo assoberbada de dificuldades. O bairro possui cerca de mil casas. Por negligéncia da Prefeitura, as casas foram construidas ao acaso, 0 que resultou na formagéo de ruas tortuosas € esburacadas que, no tempo das chuvas, se tornam absolu- tamente intransitdveis até mesmo para pedestres. Mesmo em tempo normal é dificilima a passagem de veiculos ¢ néo ¢ raro que, por este motivo, a populagéo fique privada de géneros de primeira necessidade durante dias seguidos. A falta de condugao é, talvez, 0 problema mais sério do bairro. Os trabalhadores tém que caminhar cerca de duas léguas até atingir 0 ponto de condugao localizado na Casa Verde. (Hose, 22/2/1947) Quem se destina Vila Independéncia, depois de descer do éni- bus na rua Silva Bueno e de percorrer cinco quarteirées em meio 4 lama, chega ao seu final, por onde passa um fétido e lodoso riozinho. Ao final da rua Dois de Jutho existe uma pequena ponte, essa construida pelos moradores de Vila In dependéncia e unico meio de comunicagéo daquela vila com o centro da cidade. (Hove, 9/4/1949) Se quem espera sempre alcanga por que é que entéo, outro dia, cerca de duzentas pessoas passaram trés horas numa fila enorme € 0 énibus da Parada Inglesa néo apareceu? Ou o velho ditado estd errado, ou séo os Gnibus da cidade, de todos os bairros, que véo obrigando quem espera a se desesperar. (Hove, 1/11/45) Ontem @ tarde, mais de noventa pessoas esperavam, numa fila que metia medo, a chegada do énibus Santana, que chega na cidade de vinte a trinta minutos um do outro. Sao poucos os carros e a situagdo destes poucos ndo nada animadora. A viagem que os moradores daquele bairro tém de fazer é uma incerteza infalivel. Dentro de cada nibus a situagdo néo é nada diferente. Os ban- cos partidos, as vidracas emperradas, as cortinas rasgadas, dleo e graxa por todo lado e gente apinhada como num carnaval, uns sobre os outros. (Hove, 1/11/45) ABIL BONDUKI 295 Mal haviamos descido do bonde, notamos uma turma de colegiais sentadas na sorjeta [..J. Eram em ntimero de doze. Aproximamo-nos ¢ abordamos uma japonezinha, moradora em Eldorado. “Estamos esperando um caminhéo que nos leva para casa porque a estrada é muito deserta e tem lama que dé acima dos joelhos. Nos dias que ndo chove, temos que ir a pé, andando mais de dez qui- Jémetros, porque 0 Gnibus esté parado [...]. 0 cominhéo cobra cinco cruzeiros por menina e como nem sempre podemos gastar esse dinheiro, temos que sair és dez horas para chegarmos na escola ds treze horas, depois de duas horas de cami- nhada por estradas desertas e lamacentas. Néo podemos perder 0 ano por faltas € por isso fazemos sacrificios" (Hove, 3/1/1947) Acho que a empresa Eldorado tem razéo de suspender as via- gens [...] daquela linha de Gnibus. A estrada esté em péssimas condigdes porque a Prefeitura nunca por ela se interessou. Os carros que por ela transitam, na maior das vezes, ficam encathados porque existem buracos enormes que nos dias de chuva ficam cheios de dgua, 0 que faz com que os choferes néo tenham viséo exata da sua profundidade, O dono da empresa vem pedindo a Prefeitura que conserte a estrada, sem ser atendido pelo prefeito. Assim, centenas de pessoas ficam isoladas porque a Prefeitura teima em ndo querer consertar a estrada de Eldorado. (Hove, 3/1/1947) Em Vila Maria néo hd uma rua calgada, $6 po ¢ terra, quando hé sol, e quando chove a lama toma conta do bairro. A égua invade as casas, as ruas se tornam intransitdveis e perigosas [...]. Varias empresas de énibus se desinteressaram de explorar o servico para o bairro porque as ruas sao imprati- cdveis [.... E quase inacreditével que um bairro situado a menos de seis qui- Jémetros da principal praga de Séo Paulo, néo tenha ainda dgua encanada nem luz elétrica, (Hou, 4131947) ‘Ao mesmo tempo em que as obras de remodelagao do centro e os melhoramentos nos bairros de luxo eram conduzidos a toque de caixa pelo pre- feito Prestes Maia; enquanto os bondes exibiam com orgulho faixas exaltando a cidade como 0 maior centro industrial da América Latina € 0 governo do Estado construia as rodovias Anchieta e Anhangiiera, obras de ponta da engenharia na~ cional; no momento em que a frenética construcao de arranha-céus deixava a elite paulistana ufanista de seu progresso, preparando os festejos do IV Centenério, a longinqua periferia — onde nenhum progresso moderno ou antigo tinha chega~ do — escondia 0 lugar onde os trabalhadores habitavam. Trabalhadores que, para repetir um lugar comum, construiam o progresso do pais. “ Esses processos, entretanto, eram as duas faces da mesma moeda: 05 investimentos na cidade oficial e na criagdo de uma infra-estrutura para a ex- panso industrial, assim como as altas taxas de acumulagao da economia paulista, 6 foram possiveis gragas ao abandono da periferia e a redugao do custo de repro- dugao da forga de trabalho, obtida por meio de expedientes como 0 congelamento dos aluguéis ¢ a produgao doméstica da moradia. 296 ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL Exemplo do descaso das administragdes para com a periferia € 0 da aducao de agua potavel e expansao da rede de abastecimento, a cargo de um 6rgo estadual, o Departamento de Aguas e Esgotos. No periodo de grande cresci- mento dos loteamentos, entre 1943 € 1954, nao se verificou nenhum acréscimo no volume de agua aduzido (QuaoRos 1957:205). Em conseqiiéncia, ficou com- prometida a regularidade no atendimento e a expansao da rede, inexistente nos bairros surgidos nesse periodo. A repressao € a inexisténcia de eleigdes € de representacao popu- lar durante a ditadura atrofiou o debate e o questionamento sobre o fato de parte significativa da’ cidade nao receber benfeitorias urbanas. Mas a Situacdo da peri- feria era to precaria e acintosamente contrastante com o resto da cidade, que nao podia deixar de gerar nos seus moradores indignagao ¢ revolta. E o fim da ditadura em 1945, com a abertura democratica, liberdade partidaria e de organizago, cria~ ria as condigdes politicas para que eles pudessem expressar sua revolta e demons- trar sua forea. 0 reconhecimento da periferia como cidade ma moradora do bairro disse 4 reportagem: “a vida que levamos € horrivel, um verdadeiro castigo. Agua de pogo, nenhuma iluminagdo, condugéo nao existe. Estou desesperada!" A outra retrucou: “Faz dez anos que moro aqui e nada disso me- Ihora. Até agora ndo vi governo que se lembrasse da Vila Maria’: (House, 4/3/1947) Os comunistas, no breve periodo de legalidade de 1945 a 1947, foram os primeiros a perceber que a periferia era um espaco propicio ao surgi- mento de um movimento de luta por melhorias urbanas e organizacdo popular. E desempenharam importante papel ao identificar seus problemas, divulga-los no Hoje, jornal diario vinculado ao partido, ¢ estimular a formacdo nesses locais de Comités Democraticos e Progressistas (CDPs), drgdos de apoio ao partido. Nesse periodo, dezenas de comités foram eriados em boa parte dos bairros periféricos, onde antes pouco existia em termos de organizacao. Os comités reuniam a popu- lagdo, levantavam os problemas das vilas, promoviam cursos de alfabetizagdo ou de corte e costura, realizavam homenagens e, claro, difundiam as palavras de ordem dos comunistas: Eta Sao Paulo! Terra de Santa Cruz! De dia falta dgua! NABIL BONDUKI 297 De noite falta luz! ‘Sao Paulo sem condugéo Terra da esculhambagao 56 se fala em conserto em véspera de elei¢do Tudo isto vai acabar E serd 0 povo quem vai mudar! Os CDPs formularam uma série de reivindicagdes que tendiam a responsabilizar 0 governo pelas condigées da periferia e a exigir sua intervencao: 0 povo precisa fazer pressao junto as autoridades para que os bairros mais distan~ tes no continuem esquecidos como acontece com todos 0s baitras de Sao Paulo. Isto aqui é uma calamidade: falta luz, agua, esgoto, transporte” (Hove, 3/1/1947). (0 Hoje passou a dar destaque as condigdes de vida na periferia. Todo dia fazia uma reportagem “in loco” ou “recebia a visita” de representantes de bairros distantes, para ouvir suas reivindicacdes @ dar publicidade as suas precarias condigdes, sempre mostrando como o programa do PCB respondia as questoes levantadas, Ressalte-se que o PCB foi, individualmente, o partido mais votado na cidade de Séo Paulo nas eleicdes de 1947 para a Assembleéia Legislativa, € seu apoio foi fundamental para a eleigao de Adhemar de Barros como governador do Estado. ‘A atuagao dos comunistas nesse periodo foi fundamental para detectar, relacionar e hierarquizar os problemas da periferia e iniciar uma tradi- gdo de reivindicagdes de organiza¢o popular na periferia. O abaixo-assinado foi lima das préticas desenvolvidas por essas organizagées para encaminhar suas reivin- dicacdes as autoridades, numa pratica que se consolidou no periodo populista, ‘Até ento, a Prefeitura e as empresas concessiondrias de servicos “urbanos no se sentiam responsdveis por obras em ruas particulares, nao-oficiais € em loteamentos clandestinos, nao reconhecendo como sua obrigacao dotar estes bairros de equipamentos urbanos. Assim, a luta iniciada pelos moradores da per- feria fazia parte de uma questo mais geral: frente ao problema social gerado com a ocupacao dos loteamentos clandestinos pelos trabalhadores, caberia ao Es~ tado a implantacdo da infra-estrutura urbana e dos servicos basicos, mesmo que © causador do problema tivesse sido 0 empreendedor do loteamento. Trata-se, portanto, de mais uma faceta da concepcéo da moradia como questo social, na qual 0 Estado deve intervir. Os CDPs foram perseguidos e fechados quando o governo Dutra declarou 0 PCB ilegal. Nada, entretanto, arrefeceria 0 empenho da periferia para se tornar cidade. Com a retomada do processo eleitoral, a necessidade de incorpo- racdo das massas urbanas ao processo politico era inevitavel, propiciando o sur- gimento de movimentos ¢ organizagées populares que tinham como principal re- Feréncia o Estado (Moisés 1978). Assim, em outra perspectiva ideolégica mas com discurso similar, as Sociedades Amigos de Bairros (SABs), apoiadas por politicos populistas, deram continuidade ao trabalho dos CDPs, as vezes aproveitando suas 298 ORIGENS DA HABITAGAO SOCIAL NO BRASIL liderangas. Esse tipo de organizacdo pdde crescer a0 mesmo tempo em que se consolidou a expansio periférica, tornando-se elemento indispensavel para 0 éxi- to da solugo habitacional baseada no auto-empreendimento da casa propria. 0 final dos anos 40 € inicio dos anos 50 foram marcados pela problematizacao da periferia. A Camara Municipal, reaberta em janeiro de 1948, tornou-se o principal forum para as reivindicagdes dos moradores dos loteamen- tos clandestinos: “A populagio residente nessas ruas [particulares] [...] se dirigia freqientemente 4 Camara Municipal, solicitando providéncias. Era a formula en- contrada pela populagdo capaz de atrair os poderes competentes para aqueles locais, onde ha auséncia de luz, calcamento, agua, esgoto demais condigées ur- banisticas" (CAmara Municiat d& SAo Pauto 1952 apud Grosrein 1989). No entanto, até 0 inicio dos anos 50, a Prefeitura ¢ as concessio- narias de servigos piiblicos ainda se recusavam fazer benfeitorias nas ruas parti- culares ou clandestinas, que formavam praticamente toda a periferia. O arquiteto Cristiano das Neves, prefeito nomeado pelo governador Adhemar de Barros em 1947, reafirmou esta postura em entrevista ao Hoje (8/5/1947). Depois dé apresentar plano para exigir das empresas loteadoras a "doagao das ruas a serem abertas em novos loteamentos, de acordo com as plantas fornecidas pelo Departamento de Obras e com todas as instalagdes necessirias”, o prefeito afirmou que "tal medida viria ainda evitar que surgissem novos casos, como o que acaba de ocorrer, num impasse entre particulares ¢ a Light, que esta retirando os postes e fios elétricos de uma rua particular. Posso dizer mais ainda — essas ruas nao receberao qual- quer beneficio da Prefeitura. Nao sero calgadas. Somente as que forem doadas poderao contar com as benfeitorias.” Nestes anos, a politizagao do tema — com a mobilizagao dos moradores por melhorias para os bairros distantes e a apresentacao de denuincias por vereadores — acabou tornando insustentavel a situag’o. Com acidas criticas 8 Prefeitura, destacou-se o vereador Janio Quadros. Seus discursos proferidos da tribuna da Camara Municipal, depois de visitar “bairros esquecidos", geralmente acompanhado da imprensa, pouco se diferenciavam — fora o estilo — dos relatos. do jornal comunista; sao constatagdes da precariedade da periferia. A diferenga é que os comunistas foram cassados e perseguidos enquanto que Janio, com este discurso, se elegeu prefeito, governador e presidente: 0 Caxingui [...] surgiu com a forga de uma cidade proletéria, de construgées humildes — a classica sala com dois quartos — habitadas por tra- balhadores, em sua maioria bragais, que lutam, cada més, para satisfozer a prestagéo da propriedade de seus sonhos. Mas, a despeito do Caxingui ser um centro urbano aprecidvel, jaz no mais completo esquecimento. Nao tem iluminagao publica. Nem a estrada pela qual disparam Gnibus e caminhées em correrias doidas mereceu a graga de algumas limpadas [..] Nao tem policiamento, [..] as mulheres, particularmente, experimentam riscos de brutalidade inomindveis. Ao escurecer, é temeridade sair @ rua. Rua? ABIL BONDUKI 299 Mas, existe isso no Caxingui? [...] Vimo-las. Barrancos € buracos em intermind- vel sucessGo, apesar de edificados os dois lados. (Quapros 14/12/1949, in Anais pa CAMARA MUNICIPAL 1949, vol.18:31) Aqui, a gente é de Vila Formosa [...] para fins burocraticos € administrativos, para efeitos de servigos publicos, Vila Formosa situo-se nas imediagées do fim do mundol...J; a vida em Vila Formosa é tormento que Dante esqueceu, na capitulagéo dos suplicios infernais [..]; néo tem agua, ndo tem luz, néo tem esgoto, nao tem policiamento, ndo tem pavimentagéo, ndo tem assis~ téncia... (Quaoros 6/2/50, in Anais 0A CAMARA MuNIciPAL 1950, vol.1:209) Atendendo a um convite do jornal A Epoca estive em visita rua Luso-Brasileiro ¢ ao Cérrego |...) chamado Agua Preta. E desagraddvel, Sr. Presidente, que um vereador deva tomar o tempo da Casa para cuidar do proble- ma que, em qualquer Administragdo, seria havido como de somenos, rotineiro até se 0 facies de problema, mas com o cariiter, com o aspecto de simples questiin- cula administrativa. Infelizmente, o assunto se reveste de gravidade [...] porque este cérrego, recebendo as dguas pluviais, acostuma agigantar-se e, entdo, tra- batha pela eroséo dos alicerces de varias casas da rua mencionada e de outras casas de ruas adjacentes [...] Querem saber, Excelentissimos representantes do povo, a resposta do Sr. Secretério de Obras ao jornalista (sobre a possibilidade de desabamento): “Deixe cair.” (QuanRos 9/12/49, in ANAIS DA CAMARA MUNICIPAL 1949, vol.17:244) Na companhia de jornalistas da Folha da Noite ¢ a pedidos da populagao [...] do bairro da Moéca, estive em visita. A inatividade dos Poderes & a caracteristica. [...] Ao longo das construgées modestas, hd um intérmino cor- rer d’dgua contaminada, suja, mérbida, que a Municipalidade ndo viu até este instante, embora hd anos atormente cada morador, embora hd anos roube-lhe a satisfagéo de permanecer no lar, transformado ndo em local de repouso, ndo em local das delicias domésticas, mas em local de castigo. (Quaokos 12/08/49, in ‘Anais 08 CAMARA Municipal 1949, vol. 8:455) Contempla as fotografias que tenho em maos e compreenderds que este trabalho no mero € rotineiro trabalho de bairro, mas revela crime coletivo, traduz um estado de desleixo, de esquecimento quase inconcebivel, que mal poderiamos acreditar fosse possivel no Municipio de Séo Paulo. E visi- to costumeiramente os bairros. Tenho visto coisas pavorosas, terriveis, em Vila Formosa, em Vila Maria e nao sei mais em quantos bairros desta Capital, mas sempre dentro da cidade. (Quapros 10/2/50, in Anais 0A CAMARA Municipal 1950, vol. 1:355) O crescimento das denuincias € a mobilizagdo foram conferindo questo contornos cada vez mais graves. Politicamente, tornou-se insustentavel © poder puiblico ignorar quase metade das ruas da cidade, deixando-as sem ser- vigos urbanos € transporte, comprometendo a organizacao urbana. Era preciso, portanto, incorporar esses bairros a cidade legal. 300 ORIGENS DA HABITAGAO SOCIAL NO BRASIL A proximidade das primeiras eleigdes diretas para prefeito em 1953 (até entdo eram nomeados), acelerou a tomada de providéncias. Das duas alternativas para solucionar o problema das ruas particulares — submeté-las a um processo de regularizagao apés algum crivo técnico ou promover uma oficializa- co em massa das ruas em certas areas —, a administracdo optou pela segunda, muito mais expedita e que tornava a Prefeitura responsavel por todas as obras necessarias, sem nenhum énus para o loteador. A medida era de interesse da Secretaria de Financas, pois aceleraria a cobranga de impostos e desagradava 0 Departamento de Urbanismo e as corporagées técnicas, uma vez que as ruas a serem incorporadas estavam em desacordo com os critérios técnicos minimos. Segundo o projeto-de-lei 284/52, encaminhado pelo prefeito Armando Arruda Pereira, a oficializacao das vias seria ato administrativo pelo qual “os poderes municipais entregam, oficialmente, ao transito publico tais logradou- os, assumindo a responsabilidade pela sua manutencdo em estado que permita esse mesmo transito [...]. Na atual conjuntura, afigura-se-me como imperativa a oficializag3o de ruas, em massa, de vez que s6 por esse meio podera a adminis- tragéo acompanhar 0 extraordinario desenvolvimento da capital, com o objetivo de dotar suas ruas, pracas e avenidas dos melhoramentos urbanos peculiares aos logradouros oficiais” (Proceso 3379/52 apud Grosttw 1989:342-3). Era evidente o intuito eleitoral do prefeito. Em seu encaminha- mento 4 Camara recomendava — depois de quase quatro décadas de absoluta omissao da Prefeitura — “urgéncia para que todas as ruas particulares desta capital usufruam dos melhoramentos a que tém direito com assisténcia da Prefeitura, antes da comemoracao dos festejos do IV Centenario da cidade" (Proceso 3379/52:7 apud GRosTeI 1989:344). Isto era obviamente impossivel: estimava-se que as ruas oficializadas representassem mais de um terco do total. O projeto recebeu parecer positive na Camara, apesar de inume- ros problemas técnicos e juridicos, mas acabou ndo sendo aprovado na gestao de Arruda Pereira. Na eleicdo de 1953, surpreendentemente saiu vencedor Janio Qua- dros, candidato de partidos pequenos de oposigéio mas que contava com 0 apoio das SABs e dos bairros periféricos. Sua vitoria, ocorrida numa conjuntura de mo- bilizagéo dos trabalhadores, representou a derrota das forcas tradicionais € indicou © peso politico dos novos bairros carentes (Moists 1978) De forma habilidosa, Janio aprovou sem demora a oficializacao de logradouros (Lei 4371/53) e, aproveitando-se do programa de seu antecessor, obteve financiamento externo € langou o Plano de Emergéncia. Este, segundo seu secretério de Obras, engenheiro Jodo Caetano Alvares, do Partido Socialista, em entrevistas ao jornal Folha Socialista (20/7/1953, 5/3/1953 e 20/4/1954), com- preeendia trés setores de servicos: “a rua intransitével, mesmo aos pedestres; a inundagao periddica e os énibus se desmanchando através das vias esburacadas". Por outro lado, a Prefeitura passou a pressionar as concessionarias de servicos publicos para estender as redes de luz, gas ¢ telefone. ABIL BONDUKI 301 | 0 Plano previa atacar simultaneamente todos os mais populosos bairros periféricos da cidade “para dar algum beneficio a cada um dos 200 bairros ou Vilas que circundam esta cidade”, incluindo "servigos locais de captaco de Aguas pluviais e servidas, apedrejamento € pavimentacdo de ruas, retificagdo e canalizagdo de cérregos, ajardinamento e arborizagao, construgao de pracas, coor- denagao das obras puiblicas com os transportes urbanos etc.” 0 plano era ambicioso e simboliza 0 momento em que se inicia 0 processo de incorporacao dos bairros periféricos a cidade, com 0 poder publico assumindo a responsabilidade pelo investimento nao realizado pelo promotor pri- vado. De certa forma, representa uma outra perspectiva da incorporacdo da ha~ bitacdo como uma questo social a ser enfrentada pelo governo, pretendendo garantir o direito 4 cidade: “Pretende a secretaria de Obras, no prazo de quatro anos do atual governo, transformar cada um dos bairros mais populosos de So Paulo em miniatura de cidade, com sua praca ajardinada, suas ruas pavimentadas e adequadas ao trafego rodovidrio" (Fouua Sociauista, 20/7/1953). Janio trabalhou para marcar sua administragao pela inverséo de prioridades na ago do poder piiblico municipal, com evidentes objetivos politicos junto aos setores populares que Ihe davam apoio. No entanto, esta agao estimu- lou 0 processo de expansao periférica baseado em loteamentos desprovidos de infra-estrutura, pois gerou uma expectativa de que, mais cedo ou mais tarde, 0 poder publico traria as benfeitorias: “Nas administragdes municipais anteriores, a secretaria de Obras da Prefeitura, além de nao ter orientagdo planificada para seus trabalhos, voltava-se exclusivamente para o centro da cidade e para os bair- ros das pessoas influentes. A atual administrago vem realizando verdadeira revo- lugdo: foi concentrada toda a atengdo aos bairros periféricos, onde reside 0 grosso da populagao operdria. Foram abandonados os planos carissimos de embeleza~ mento da cidade para serem atacados os grandes planos urbanisticos destinados a por um pouco de ordem ao vertiginoso desenvolvimento de Sao Paulo’. (Fouwa Socausta, 5/3/1954) Frente a inexisténcia de qualquer aco anterior da Prefeitura nos bairros periféricos, os resultados do Plano de Emergéncia nos primeiros oito meses foram, segundo divulgou periddico que apoiava a administracao, excepcionais: 431 ruas estavam recebendo os beneficios programados, 130 quilémetros de ruas tinham sido asfaltados, 251 quilémetros de guias e 223 de sarjetas foram coloca~ dos; todas as ruas onde transitam coletivos estavam sendo pavimentadas; sete corregos foram regularizados. (FoLHA Sociauista, 20/4/1954) Com prestigio em alta, no ano seguinte Janio foi eleito para 0 governo do Estado, onde também se beneficiou de planos anteriores ¢ péde dar continuidade a esta politica, ampliando os servigos de abastecimento de agua na capital. O Departamento de Aguas ¢ Esgotos aumentou a capacidade de aducao da represa de Guarapiranga, elevando, no periodo de 1954 a 1957, de 1m’ para 5 m’ o volume de agua aduzido. 0 numero de prédios servidos pela rede passou 302 ORIGENS DA HABITAGAO SOCIAL NO BRASIL de 233 mil em 1953 para 344 mil em 1959 (acréscimo de 47%). Em conseqién- cia, inimeros bairros periféricos passaram a ser atendidos, Completava-se assim um ciclo: a primeira franja periférica foi integrada a cidade, sem divvida em desacordo com os critérios rigorosos de urbani- zaco propostos pelos urbanistas. Isto, entretanto, ndo impediu a implantac3o das benfeitorias urbanas essenciais. Em 1962 viria nova oficializagdo em massa de ruas clandestinas e assim por diante. Para além de qualquer legalismo, estabeleceu-se na cidade uma certeza e uma tradiga0: quem conseguia comprar € ocupar um pe- dago de terra num loteamento qualquer ingressava em um processo que, mais cedo ou mais tarde, Ihe garantiria, com grandes sacrificios na sua qualidade de vida, mas a.um custo reduzido, a propriedade da casa e 0 acesso aos servigos urbanos. O auto-empreendimento da casa propria, da casa de aluguel, da casa cedida ubstituindo as favelas, com dbvia vantagem para a cidade, porque possuem melhores caracteristi- cas, existem em Sao Paulo os bairros [...] que se caracterizam pelo grande adensamento de casas operérias, construidas sem um estudo prévio em loteamentos clandestinos; ruas ndo-delineadas ou muito mal-executadas; condi¢ées de acesso muito dificil devido 4 topografia, em geral muito acidentada; fundos de vales ou escoa- mento natural das dguas néo respeitados ¢ auséncia de servicos piblicos (Agua, esgotos, luz domiciliar). No entanto, as casas sdo de tijolos — revestidos ou néo =, cobertas em geral de telhas ¢ oferecem algumas condicdes de higiene, por exemplo, instalacdo sanitdria individual. Existe anogdo de propriedade, pois em geral, casa e terreno pertencem ao morador ou sdo alugados. 0 terreno é adqui- rido em pequenas prestacdes, de grande duragdo, e a parte principal da casa quase sempre é construida, depois de adquirido com sacrificio 0 material necessério, pelo proprio proprietério ajudado pela familia, parentes e amigos, em alguns dias, comumente num sébado, domingo. Remates ou acessérios da casa sao efetua- dos posteriormente, & medida das folgas do morador e familia. Nessas casas a nocdo de propriedade, suas vantagens e responsabilidades constituem evidente- mente um fator econémico-social benéfico para a coletividade. (SaNGiRARD! 1956) 0 acesso a casa propria tornou-se uma realidade. Como Oscar Egidio de Araujo previra na década de 40, 0 acesso & propriedade se viabilizou na zona rural, a um custo financeiro, para 0 morador, menor do que o aluguel de um cémodo no centro. Porém, ao contririo do que pensavam Araujo € outros, ndo foi necessdria nenhuma campanha educativa para mostrar ao trabalhador as vanta- gens dessa solugdo: bastou a crise de habitacdo eliminar qualquer outra possibili~ dade para que os trabalhadores mudassem para a periferia. NABIL BONDUKI 303 -- Foram € gostaram, apesar de todos os sacrificios e das condices precarias. Nas condigdes em que se deu a exploracao da forca de trabalho no Brasil nesse periodo, o auto-empreendimento da casa propria em loteamentos tornou-se, além de um expediente de sobrevivéncia, parte de um modo de vida que se desen- volveu em Sao Paulo, incorporado como padrao cultural ¢ cotidiano aceito € desejado pelos trabalhadores de baixa e média baixa renda. 0 arranjo engendrado na periferia — que combinava especulacao com terras, parceria com empresas de dnibus, omissdo do poder puiblico, auto- empreendimento da casa propria e outros expedientes de produgao de moradias no lote — permitiu manter em niveis baixos a despesa com moradia que, até ento, representava cerca de 25% da renda familiar. O efeito dessa redugdo no custo de reprodugio da forga de trabalho e, portanto, nos salarios pagos ao traba- Ihador, € natural e coerente com outras intervencdes do Estado no periodo, como 2 Lei do Inquilinato e a produgao estatal da habitagdo social. Mais ainda: ao acenar com a possibilidade de obtencao da casa propria, esse processo tornava os trabalhadores mais propensos a todo tipo de sa~ crificio, como se 0 que gastassem para erguer a casa nao representasse uma des- pesa com um item do orcamento doméstico, mas um investimento para adquirir um patriménio, que justificaria toda e qualquer compressdo das demais despesas fa- miliares. Se sujeitariam, assim, a morar de maneira precaria € trabalhar no final de semana, convencidos de que seria uma condicao temporaria. Esse padrdo de ocu- paco da periferia teve ainda outras conseqiiéncias: a subdivisdo do lote, a cons- trugdo de moradias de aluguel pelo trabalhador proprietario e a cessdo gratuita de parte do terreno para que outros trabalhadores pudessem deixar a condigo de inquilinos, ou nela nao ingressar. Assim, na década de 1940, quando se intensificaram as migragoes para Sao Paulo € 0 mercado de locagao entrou em colapso, havia na cidade uma ‘alternativa que impediu — com evidente vantagem para a cidade, como afirmou Sangirardi, ex-diretor do Departamento de Urbanismo da Prefeitura — o cresci- mento das favelas, que tanto apavorava a elite carioca. Uma solugao que ficava distante ¢ “escondida”, freqiientada e observada apenas por seus moradores. custo monetario de morar na periferia era baixo porque o prego do terreno era baratissimo. E nao s6 porque se comprava terreno rural sem ben- feitorias em prestagdes mensais, onde o loteador investia muito pouco, mas tam- bém porque, medida que se consolidou a pratica de loteamentos "padrdo popular”, seus empreendedores desenvolveram uma série de mecanismos especulativos que permitiam vender a precos muito baixos os primeiros lotes colocados a venda para, em seguida, elevar gradualmente os pregos dos demais (Bonouk! €& Rounik 1979). Ao deixarem vazias glebas entre os novos loteamentos € a area j4 urbanizada, e no interior de um mesmo loteamento, os empreendedores podiam vender muito barato os terrenos pioneiros, pois sua ocupagao e a reivindicagao popular pelas melhorias valorizavam os lotes ainda nao vendidos, garantindo 304 ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL altos lucros no futuro. Para o trabalhador de renda muita baixa, era a oportuni- dade de pagar pouco. A malha urbana tornou-se, assim, verdadeiro mosaico, no qual 0s arruamentos mais antigos foram ocupados por trabalhadores mais pobres, a0 asso que os contiguos foram adquiridos sucessivamente por setores de renda cada vez mais alta. Ou seja, era a especulagdo com a terra que permitia vender tio baratos os primeiros lotes. Buscando estimular de todas as formas a venda e a ocupacao, os loteadores facilitavam o auto-empreendimento da casa, oferecendo tijolos e, as vezes, telhas aos compradores: “Humberto de Oliveira comprou um terreno de 10 m x 40 m pagando Cr$ 4.480, em prestagdes. Ainda por cima recebeu 8 mil tijolos € quatrocentas telhas" (Martins 1946). Sem pagar mao-de-obra, usando em geral argamassa de barro, pois o cimento era caro € raro, e outros materiais improvisa- dos, erguendo a casa por etapas, a primeira das quais sempre era constituida de “dois cémodos", 0 minimo necessario para sé mudar, muito pouco se gastava. Em compensacao, “nos dias de tempestade as casas domingueiras tremem e as telhas dangam como mariposas loucas (...) No dia seguinte, os jornais noticiam laconi- camente: 0 vendaval de ontem derrubou quatro casas em Vila Matilde. (...) Parece certo que o material usado na construgao era improprio” (Marrins 1946). Numa época em que ainda nao havia sido desenvolvida uma tra digao de autoconstrugao na periferia e era grande a caréncia de materiais, sobre- tudo os importados, os desabamentos na periferia eram corriqueiros: O vendaval que varreu ontem a cidade atingiu particularmente dois bairros operdrios localizados nas proximidades de Séo Caetano, os de Vila Alpina e Vila Califérnia, onde cerca de dez casas de operdrios foram derrubadas, ficando reduzidas a escombros [...]. Uma das casas era de construgao recente. A hora em que a casa caiu, a familia se encontrava no dormitério e foi atingida por tijolos e telhas [...]. A estrada que liga Vila Prudente aos bairros citados estava intransitdvel e, assim, ndo se pode saber 0 niiméro exato de casas que desaba- ram. (Coraeto Pavustano, 9/7/1946) 0 padrao periférico, entretanto, nao significou apenas a casa pro- pria. 0 mesmo processo de produgdo que a viabilizou, por empenho do morador, também gerou uma gama de subprodutos de alojamentos. No terreno que servia para a construgdo da casa do proprietério, com freqiiéncia também eram ergui- dos cémodos, pequenas casas ou barracos de aluguel. Ou parte dele podia ser cedida para que um conterraneo, parente ou amigo confeccionasse, em geral em carater provisério, um alojamento precario para evitar 0 desabrigo, muito comum nesse periodo de despejos. Em ambos os casos, a construgao era realizada por auto-empreendimento: Andres Bentes ¢ antigo morador em Vila Monumento. Honesto € trabalhador [..., vivia hé vérios anos na mesma casa. Nunca pagou o aluguel em atraso, sempre foi muito pontual. Entretanto, o proprietario do prédio pediu-the ha varios meses que desocupasse a casa sob alegacéo de que ia residir na mesma. NABIL BONDUKI 305 | | f | | | Benfes nao perdeu tempo, procurou casa em todo o bairro e adjacéncias, porém em pura perda. Entretanto, em face da insisténcia do proprietério, o velho ope- rario encontrou outra solugdo para seu problema. Em terreno de propriedade de um parente resolveu construir com latas e pranchas velhas uma residéncia pro- visoria para si e sua familia. Bentes reuniu alguns amigos e, domingo de manhé puseram méos 4 obra, iniciando a construcdo do barracdo que vai servir de abri- go, sabe Deus Id até quando. Vai-se tornando muito comum, alids, em nossa capital, essa maneira de resolver 0 angustioso problema de residéncia para 0 povo, vendo-se em numerosos bairros casas toscas, primitivas e, naturalmente, insalubres, (Hove, 1/11/1945) A construcao de casas de aluguel € uma questo mais complexa. Nao resta divida de que, na década de 1940, um numero significative de moradias de aluguel foram edificadas no préprio lote ocupado pelo proprietario, represen- tando a principal forma de crescimento desta modalidade de moradia. Este tipo de empreendimento sempre existiu, mesmo nos baitros mais antigos, nos quais predominava a produgio rentista. Na periferia, porém, generalizou-se como uma saida para os trabalhadores complementarem seus baixos salirios. Assim, pelo mesmo processo de produco doméstica com que tinham construido suas casas, os habitantes da periferia também passaram a pro- duzir moradias para outros trabalhadores que ainda nao haviam adquirido um lote. Uma casa edificada informalmente, muitas vezes com trabalho néo remunerado, aproveitando uma nesga de terreno cuja fungao principal era servir de residéncia 4rio, podia ser alugada por valor inferior ao de uma casa produzida em base mercantis. Trata-se, portanto, de mais um recurso para baratear a habi- taco do trabalhador e criar uma alternativa de baixo custo & produgdo rentista formal que estava em declinio. ‘A presenca de casas de aluguel na periferia foi crescente com a Consolidagao dos loteamentos ¢ isto explica porque, entre 1940 e 1950, mais de 75 mil novos domicilios ocupados por inquilinos surgiram em Sao Paulo. Ao con- trario da produgao rentista “cléssica”, a locagdo de casas no proprio terreno onde morava 0 proprietario facilitava a retomada do imével e a conseqiiente elevacao do aluguel. As diversas versoes da Lei do Inquilinato previram a possibilidade do despe- jo para o locador que necessitasse do imével para uso préprio, situagdo que sempre poderia ser alegada quando 0 inquilino morava no mesmo lote que o proprietario. Outro indicio da presenga de casas de aluguel na periferia, du- rante a década de 1940, é um estudo sobre as condigées de habitacdo de 400 familias acompanhadas pela Legidio Brasileira de Assisténcia, realizado em 1944 (Guazzew 1945). A pesquisa revelou que, numa amostra de familias de baixa renda moradoras em 80 bairros do centro ¢ da periferia, apenas 3% possuiam casa pré- pria, enquanto quase 40% pagavam aluguel em casas individuais desprovidas de infra-estrutura, situagao tipica da periferia: "O grupo individual aparece com um numero bem considerdvel. Acontece porém que a maior parte destas casas tinha 306 ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL as suas condigdes bem precarias, sendo localizadas em terrenos com auséncia de qualquer conforto (agua, esgoto e até luz elétrica)" (Guazzeu! 1945). 0 modelo de ocupagio da periferia deu origem, portanto, a am- pla gama de solugdes habitacionais de baixo custo. No momento em que o mer- cado rentista estava em crise € 0 Estado assumia o problema habitacional como questo social mesmo sendo incapaz de atender a forte demanda existente na sociedade, essas solugdes produzidas pelos préprios trabalhadores asseguraram a produgao de moradias para o enorme contingente que realizou a grande expan- sao industrial e econdmica de Sio Paulo entre as décadas de 1940 a 1970. 0 significado da casa propria para o trabalhador m 1970, 54% dos domicilios de Sao Paulo eram pro- prios, enquanto apenas 38% eram ocupados por in- quilinos (tabela 7.1). No periodo em estudo, portanto, a maioria da populacdo paulistana conseguiu tornar- se proprietaria, gracas ao padrao periférico. A questo da casa prépria sera analisada a seguir sob 0 aspecto de seu significado para o trabalhador. A casa prépria auto-empreendida na periferia foi um aspecto basico da inser¢ao do trabalhador no processo de desenvolvimento de Sao Paulo. No periodo de maior crescimento da economia do pais, a0 mesmo tempo em que permitiu uma redugdo salarial conveniente ao capitalismo selvagem brasileiro, ela representou para os trabalhadores uma perspectiva, mesmo que iluséria, de as- censdo social e de estabilidade familiar. E isto nao so pela possibilidade de escapar do aluguel e morar a custo quase nulo como, sobretudo, por representar a unica perspectiva de entesouramento, de formacao de um patrimonio € de obtencao de uma renda extra que independesse do trabalho que uma familia trabalhadora podia almejar. Por essas raz6es, mais do que por motivos de ordem ideolégica, a aspiracdo pela casa propria foi tao forte e generalizada entre os trabalhadores de baixa renda. 0s estudos sobre a obtengao da casa propria por meio da cha- mada “autoconstrucdo" ja citados enfatizaram, de maneira geral, além de seu papel nas altas taxas de acumulacdo, o imenso sacrificio que exigiu das familias de baixa renda. Baseadas na argumentagao de Ouveira (1971), segundo o qual a autocons- truco contribuiu para aumentar a exploracdo do trabalho, e em uma critica ao modelo econémico brasileiro pds-30, essas andlises, que descrevem situagdes chocantes e de grande impacto em termos de sacrificios pessoais e familiares, também utilizaram 0 tema como excelente exemplo da chamada “espoliagao urbana” (Kowarick 1980). ABIL BONDUKI 307 - Nao ha duivida de que o processo de auto-empreendimento € bastante dilapidador; no entanto, a énfase neste aspecto obscurece o fato de que a obtencao da casa propria representava para os trabalhadores uma melhoria efe- tiva das suas perspectivas de vida, proporcionando-Ihes condicdes mais favoréveis para sobreviver numa sociedade em que os direitos sociais inexistem ou so pouco respeitados. A possibilidade de possuir uma casa foi das poucas oportunidades que os trabalhadores de baixa renda tiveram para garantir uma seguranga pessoal e familiar minima numa época em que a previdéncia social funcionava de ma- neira precaria, em que os mecanismos de poupanca monetaria implicavam perdas em valor real € em que nao havia (legal ou informalmente) estabilidade habita- cional. Num estudo histérico sobre o surgimento do modelo periférico parece ne- cessirio examinar 0 que ocorreu com aqueles trabalhadores que, nas décadas de 1940 € 1950, decidiram construir eles proprios suas casas na periferia. De acordo com os dados disponiveis, a possibilidade de melhoria das condigdes de vida e de progresso de suas familias foi muito maior do que a dos que continuaram morando em casas de aluguel. E por isso que, desde entdo, a aspiragao de todo trabalhador tornar-se dono de sua casa, algo vidvel apenas por meio do autoemprendimento. £ certo que a crise de habitaco impés ao tra~ balhador, nos anos 40, quase que compulsoriamente, a busca do lote periférico, quando talvez ele nao optasse por isso. No entanto, 2 medida que surgiu uma tradigdo de auto-empreendimento, que os loteamentos foram sendo incorporados as redes de servicos pilblicos e que se desenvolveram praticas culturais enraizadas nesse modo de vida, a aspirac3o de obter a casa propria generalizou-se entre a populacao de baixa renda, que passou a buscd-la sem medir sacrificios. Ao contrario de todas as outras condigdes de ocupagao (aluguel, cesso), apenas a casa propria auto-empreendida permite que a familia possa in- corporar trabalho e recursos para remoldar e melhorar permanentemente o espago fisico, de modo que este reflita € expresse 0 cotidiano familiar. Na casa alugada ou cedida, é a prépria familia que se adapta — seus habitos, costumes e modo de morar, assim como seus objetos — a cada moradia que consegue obter. Isto expli- ca porque parte significativa da populacdo de baixa renda prefere a casa auto- empreendida & casa propria padronizada nos conjuntos habitacionais construidos por 6rgdos governamentais. Quando se consolidou um padrao no qual o gasto com moradia nao & mais uma despesa corrente de sobrevivéncia, ¢ sim um investimento com a finalidade de constituir um patrimonio, a angustia do inquilino tornou-se ainda maior: mesmo tendo dispéndios monetarios significativos para se abrigar (ainda que mecanismos como a Lei do Inquilinato tenham sempre atuado para reduzir este valor), nunca conseguiria materializar num bem de grande valor, como uma casa, 0 esforco da familia no decorrer do tempo. Como disse um morador em casa “Aluguel voc paga todo més e depois néo tem nada” (Bonouki 1986:5).. propri ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL O horizonte da familia de baixa renda e de seu chefe, que traba- hava exaustivamente em condicées precarias, somente se tornaria menos tene- broso se fosse vislumbrada a obtencdo de resultados apés uma vida de privagies. Esses resultados, nas condicdes histdricas que configuraram a vida da classe tra- balhadora no Brasil a partir dos anos 30, s6 podiam ser a obtengao da casa propria € a boa criacdo e educagao dos filhos. Casa propria e filhos bem colocados, que de preferéncia pudessem sair casados da casa paterna para sua casa propria ¢ ingres- sar em condigées privilegiadas no mercado de trabalho, tornaram-se ento nesse periodo a aspiragdo maxima, no plano da vida privada, da familia trabalhadora. Sob todos os pontos de vista, 0 modelo concretizou o sonho dos defensores ¢ idedlogos da casa propria individual dos anos 30 € 40, assim como 0s planos de uma vertente do getulismo ligada ao Ministério do Trabalho, que jul~ gava importante a difusio da propriedade entre os trabalhadores para melhorar suas condigdes de vida € manter a ordem social (ArAlu0 1942, Porto 1937). Na pratica, contudo, a casa propria auto-empreendida surgiu sem a interferéncia do Estado e dos educadores sociais, como resultado de praticas desenvolvidas 4 mar- gem do poder publico, por loteadores e, sobretudo, pela propria populacao. 0 modelo habitacional resultante tem raizes claramente conser- vadoras e pequeno-burguesas, tanto no Ambito politico mais geral, como no am- bito micropolitico, da organizacao da vida privada. Esta passa a girar em torno da familia nuclear, consolidada, monogamica e reprodutora dos valores tradicionais, concretizando um modo de vida individualista, pobre de relagdes sociais ¢ pouco receptive aos processos coletivos de organizacao € participacao, fora aqueles absolutamente necessdrios para viabilizar 0 proprio projeto da casa propria. Assim, nas condicdes concretas de moradia e sobrevivencia coti- diana de uma metropole como So Paulo — cada vez mais agigantada e com cada vez menos estimulos a uma vida socializada e a sobrevivéncia fora do ambito doméstico —, 0s trabalhadores reproduziram o padrao conservador € pré-urbano de habitagao ¢ organizaco familiar. A casa propria auto-empreendida foi o ni- cleo desse modelo; a vida da familia passou a girar em torno da sua coneretizagao. Se, por um lado, esta absorvia todos os recursos monetarios, tempo € energia disponiveis, por outro era a grande conquista do trabalhador, a recompensa que 0 fazia sentir-se vencedor. A casa representava a seguranga de um abrigo permanente; a garantia de morar, a médio prazo, praticamente a custo zero; a possibilidade de auferir uma renda extra com a sublocagdo de cémodos no lote; a perspectiva concreta de entesourar, acumular — ndo de enriquecer mas de dispor de um bem de valor muito mais alto em relagdo ao preco do trabalho assalariado. Ela permitia, ainda, amoldar a casa aos desejos da familia, incorporando trabalho ¢ recursos num bem que se valorizava, ao contrario do que ocorria no mundo do trabalho, no qual parte significativa de seu trabalho era apropriada pelo patrao. Enfim, a casa propria dava consisténcia 4 formacdo do lar, territorio ABIL BONDUKI 309 da vivéncia cotidiana da familia como unidade de sociabilidade basica. Nesse espago era possivel gerar € criar os filhos, aconchega-los € manté-los longe dos perigos das ruas; guardar os bens que a sociedade de consumo em formag3o comecava a impingir através da criagdo de novas necessidades; abrigar a velhice quando o mercado de trabalho nada mais oferecesse ao trabalhador; situar a mulher em seu papel convencional de “rainha do lar’: Uma casa podia crescer por etapas, como crescia a familia, melhorar na medida em que a situag3o econdmi- ca fosse mais confortavel e, além disso, com a expansao urbana, ela ficava cada vez “mais perto” da cidade e se valorizava, Se para 0s mais ricos a casa propria pode ser importante por aspectos simbdlicos e subjetivos, como satisfacao propria, garantia de estabili- dade e criagdo de um ambiente doméstico compativel com 0 gosto, status social € cultural da familia, para os pobres, além desses elementos, a opcao pela casa propria torna-se o refiigio seguro contra as incertezas que 0 mercado de trabalho € as condigdes de vida urbana reservam ao trabalhador que envelhece. ‘Ao contrario de todos os outros bens de consumo, a moradia — ‘em especial a casa propria — no pode ser entendida a partir de uma correlagao direta entre qualidade ou “quantidade" do bem consumido e maior ou menor disponibilidade de renda em momentos especificos. Na habitagao cristalizam-se no sé as condicdes de remuneragdo de um determinado momento da vida do tra balhador € dos outros membros engajados no mercado de trabalho, mas sobretudo © resultado indivisivel de toda a vida da familia, O estudo das condigdes habita- cionais baseado na renda e tipologia familiar nao deixa margem a duvidas: a mo- radia propria € o resultado do esforgo conjunto da familia ao longo de toda a vida. Esse esforco extrapola a questio da renda familiar € expressa, entre outras coisas, a coesao familiar, a habilidade de obter o apoio de parentes © amigos, a capacidade de poupanca e sacrificio, a superagao das crises familiares € das doengas, a abdicagdo dos pequenos prazeres e facilidades da vida urbana, o bom gerenciamento das contas domésticas, a habilidade de fazer bons negécios na compra do terreno € dos materiais de construgao, de atrair amigos, colegas, parentes ou profissionais informais para ajudar na construcao — enfim, a oportu- nidade de alcancar sucesso como fruto de diferentes arranjos € expedientes de organizagdo da vida cotidiana de trabalho e sobrevivencia. E este éxito, resultante de um conjunto de fatores mais amplo que o nivel salarial, que possibilita a reali- zacao do projeto da casa prépria e seu melhoramento. Uma andlise que realizamos a partir de levantamento amostral efe- tuado pelo Departamento Intersindical de Estatisticas ¢ Estudos Socioeconémicos (Diese) em 1981, na Regido Metropolitana de Sao Paulo (Bonouki 1986), mostrou que a obtengao da casa prépria entre as familias de baixa renda (menos de um salario minimo do Dieese) foi muito alta, correspondendo a 48% do total. E, mais importante, o estudo revelou um progressivo proceso de busca da casa propria 3 medida que 0 trabalhador envelhecia. Assim, enquanto apenas 7,4% dos casais 310 ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL jovens (de 18 2 34 anos), sem filhos, possuiam casas, a porcentagem das familias, proprietarias ia crescendo em relacdo direta com 0 aumento da idade de seus chefes, até atingir, entre aqueles com mais de 50 anos, o indice de 76%. A anilise confirmou também o que se nota sem dificuldade nas periferias mais antigas: as casas € 0 bairro melhoram 4 medida em que os traba~ Ihadores € 0 loteamento envelhecem, Enquanto 49% das casas das familias jovens de baixa renda sio precarias, entre os mais velhos esta porcentagem cai para ape- nas 22%, Isto significa que ocorreu um processo de melhoramento acentuado nas moradias por meio da incorporagao de recursos € trabalho & casa. Tabela 7.2 — Condigo de ocupagdo da moradia segundo o momento do ciclo familiar (1981) Familias com renda inferior a0 salario minimo do Dieese na Regido Metropolitana de S80 Paulo Ciclo familiar Alugada __Propria__Cedida Favela Total Casal sem filhos 61.2% 7.4% 23.9% 7.58 100% 18.034 anos Casal com filhos 42.40% 35,200 8.8% 13,6% “100% 18 a 34 anos Casal com filhos 28.9% 57,79 4.6% 3.8% 100% 350 49 anos Casal com filhos 207% 68.0% 113% = 100% mais de 49 anos Casal sem filhos 12.2% 76.1% 10.8% 09% 100% mais de 49 anos Total 32.7% 48.6% 9.3% 9.4% 100% Fonte: Bonous 1986 No levantamento de 1981, entre os trabalhadores de baixa renda ‘com mais de 50 anos, 76% moravam em casa propria e 78% delas eram razoaveis ‘ou boas. Como quem tinha mais de 50 anos em 1981 ingressara no mercado de trabalho na década de 1940 e constituira familia entre o final dos anos 40 e os anos 60, pode-se dizer que a grande maioria dos trabalhadores do periodo estu- dado resolveu de maneira satisfatéria seu problema de habitacdo, com as eviden- tes limitagdes do modelo periférico. Portanto, os trabalhadores que ingressaram na aventura periférica dos anos 40 e 50 foram relativamente bem sucedidos, sentindo-se de alguma maneira participants do progresso de Sao Paulo no’ periodo de grande crescimento da economia paulista. No entanto, ao contrario do que acreditavam os arquitetos mo- dernos brasileiros dos anos 40 € 50 — que viam na habitagdo do operdrio indus- trial um espaco cada vez mais socializado, onde os equipamentos coletivos pas- sariam a ter importancia crescente em relacdo ao ambiente doméstico, familiar € individual —, 0 modelo habitacional que se desenvolveu no maior e mais moderno centro industrial do pais caracterizou-se por uma concepcao tradicional ¢ con- servadora de modo de vida e de morar. ABIL BONDUKI 311 > A habitagdo moderna, na qual o trabalhador e sua mulher seriam liberados dos servicos domésticos para poder participar de atividades culturais, recreativas € politicas, ndo se concretizou. Nas periferias convive-se cotidiana- mente com casas permanentemente em construcdo, materiais amontoados nas calcadas, fins de semana ocupados na edificacdo, manutenc&o, melhoramento, reforma e ampliago da casa. Como o auto-empreendimento esta alicercado na contraprestagao de servicos, além do trabalho na propria casa, o morador participa da construcdo de varias outras, num processo que 0 envolve por anos, transfor- mando-se numa pratica cultural e de sociabilidade na periferia. Assim como a casa propria tornou-se um bem indispensavel 8 afirmagao € ao éxito da familia, esta organizou sua vida em torno da moradia, como se ela fosse um troféu. Inicialmente sacrificando-se para obté-la, passando © tempo livre para construi-la, depois criando em torno do lar um modo de vida, um cotidiano sempre dependente do ambiente doméstico. Nada é mais significa~ tivo desse modo de vida do que a observacdo do tempo livre dos paulistanos que edificaram suas casas dessa forma € que constituem a maioria dos habitantes da cidade. Dentre as formas de entretenimento mais comuns, destacam-se o radio, a televisio e a visita a parentes, atividades que se desenvolvem no ambito da fami- lia e do lar. Isto ocorre devido as préprias caracteristicas da periferia, como a baixa densidade da ocupacdo; os transportes sempre lentos, precarios € caros; o medo da violencia urbana; a auséncia de equipamentos de lazer e cultura; 0 iso- lamento da habitaco unifamiliar em loteamento; € a inexisténcia de estratégias comunitarias para compartilhar problemas ¢ alternativas de lazer ¢ convivéncia — salvo a ago das igrejas que, em geral, reforgam esse modelo conservador. Tudo isso fez da moradia o cenario privilegiado da sociabilidade do trabalhador, que se volta para dentro de casa em busca de sua identidade. A habitagio por conta do trabalhador sucesso do modelo de moradia popular desen- volvido na periferia possibilitou a transferéncia para o préprio trabalhador do encargo de pro- duzir a habitagao, sem que o poder piiblico fosse Obrigado a investir significativamente. A enor- me quantidade de terra disponivel para o assen- tamento popular no entorno da cidade foi, certa~ mente, a razdo mais forte desse éxito. Gragas a essa disponibilidade, o lucrativo pro- cesso de expansio periférica péde se alastrar sem limites, pelo menos até a década de 1970, garantindo novas € novas areas de loteamentos nos quais a populacao de 312 ORIGENS DA HABITACAO SOCIAL NO BRASIL baixa renda conseguia adquirir um lote popular e construir suas casas. O pequeno niimero de favelas em Sao Paulo até os anos 70 € um indice da enorme capaci- dade de absorc&o desse modelo. Frente a reduzida produgo publica, apesar de o Estado ter assu- mido a habitago como um setor social e ter realizado uma intervencdo impor- tante do ponto de vista qualitativo, foi o desenvolvimento de praticas surgidas por iniciativa da prépria populacdo que viabilizou a produgao de moradia para os trabalhadores € a superaco da crise habitacional dos anos 40. Produzindo casas para seu prdprio uso, para alugar ou ceder, os trabalhadores empreenderam a construcao de pelo menos um milhdo de casas na Regiéio Metropolitana de So Paulo nos tltimos cinqiienta anos. Isto significa uma quantidade descomunal de recursos (monetarios ou em trabalho) incorporados pelos trabalhadores ao proceso de produco social, sem nenhum investimento estatal ou capitalista privado. Uma contribuigdo nada desprezivel para o cresci- mento da economia paulista e brasileira. NASIL BONDUKI 313

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