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Capitulo I Lendas e Realidades dos Primeiros Tempos Praia brithante entre as trevas da pré-historia italiana ¢ aquelas, quase jqualmente espessas, em que a decomposi¢io do Impéric mergulhou o mun- do ocidental, Roma ilumina com uma luz viva cerca de doze séculos da his- ‘éria da humanidade, Doze séculos a que nio faltam, sem divide, guerras € crimes, mas durante a maior parte dos quais se viveu uma paz duradoira «esegura, a paz romana, imposta e aceite das margens do Clyde as montanhas da Arménia, de Marrocos as margens do Reno, por vezes as do Elba e que 6 terminava nos confins do deserto, nas margens do Euf-ates, A este imenso império teremos ainda de acrescentar toda uma franja de 3stados submetidos 4 sua influéncia espiritual ou atraidos pelo seu prestigio. Como poderemos espantar-nos com o facto de estes daze séculos de historia se encontrarem centre os mais importantes para a raga humana e de a acgio de Roma, apesar de todas as tevolugses, de todas as mudangas de perspective ocorridas neste tmilénio ¢ meio ainda se fazer sentir, vigorosa e duradoura? Esta acgo sente-se em todos dominios: espagos nacionais e politicos, estética € moral, valores de todos os tipos, sistema juridico dos Estados, uusos € costumes da vida quotidiana; nada do que nos rodeia seria o que é se Roma nio tivesse existido. A propria vida religiosa conserva a marca de Roma, Nao foi no seio do Império que o cristianismo nasceu, conquistou as suas primeiras vitérias, formou a sua hicrarquia e, em certa medida, amadureceu a sua douttina? SoOOS ) A Crvitizagio Romana Depois de ter deixado de ser uma realidade politica, Roma tomou-se um mito: os reis barbaros fizeram-se coroar imperadores dos Romanos, A propria nogio de império, tao vaga, tio complexa, s6 se compreende na perspectiva romana: a sagragio de Napoledo, na Notre-Dame de Paris, s6 seria celebrada com validade pelo bispo de Roma. O renascimento siibi- to da idcia romana, que poderiamos julgar definitivamente morta, no nesse inicio de Dezembro de 1804, uma fantasia de tirano, mas @ intuigio politica de um conquistador que, para além de mil anos de realeza francesa, ‘encontra uma fonte viva do pensamento europeu. Seria fécil evocar outras tentativas, mais recentes, cujo insucesso ndo pode fazer-nos esquecer que despertaram fortes ccos quando um povo ouviu proclamar que o Império renascia nas «olinas fatais de Roma. As colinas de Roma, as sete colinas que nem mesmo os historiadores antigos sabiam a0 certo quais cram, continua a erguer-se junto das mar- gens do Tibre. Sem diivida que a poeira dos séculos se acurmulou nos vales que as separam a ponto de esbater o seu relevo e de as fazer parecer me- nos altas. $6 0 esforgo dos arqueélogos poder reconstituir a geografia da Roma primitiva. Nao pensem que se trata de um jogo gratuito de erudiao: conhecer geografia do lugar, nos seus primeiros tempos, ¢ de extrema importéncia para quem queira compreender o extraordinsrio éxito da Cida- de € € também importante para desenrigar a meada das tradigbes ¢ teorias sobre as origens deste éxito. Cicero, numa pagina célebre do tratado Sobre a Repiiblica, louwva Ré- ‘mul, 0 fundador de cidade, porter escolhido tao bem o local onde tragou 0 sulco sagrado, primeira imagem da cintura urbana. Nao havia outro Iugar, diz Cicero, mais apropriado para a formagao de uma grande capital: Rému- Io evitava, sabiamente, a tentayio de construir a sua cidade junto ao mar, © que teria permitido, sem mais esforcos, uma prosperidade facil. As cidades maritimas, argumenta Cicero, niio $6 estéio expostas a imimeros perigos, Gevido aos piratas e invasores vindos do mar, cujas incursdes sto sem- pre sabitas e obrigam & manutengo de uma vigiténcia constante, como, sobretudo, a proximidade do mar comporta perigos mais graves: do mar provém as influéncias cormuptoras, as inovagdes do estrangeiro, juntamente om as mercadorias preciosas e um gosto imoderado pelo luxo. Além do mais, o mar — estrada sempre aberta ~ convida quotidianamente a viajar. Os habitantes das cidades maritimas detestam estar quietos, na sua patria; 10 Lennas € REALIDADES bos Prntinos Tentros © seu pensamento voa, como as velas, em direceio a paises longinquos, ¢ com ele as suas esperangas. A perspicacia que Cicero atribui a Romulo té- -lova levado a preferir uma terra situada a uma distancia razoavel da costa, para evitar essas tentagdes, mas suficientemente préxima, porém, pare que Roma, depois de solidamente implantada, pudesse comerciar facilmente com os paises estrangeiros. O seu rio, © mais caudaloso e regular de toda a Itilia Central, permitia o transporte de mercadorias pesadas nao s6 en- ‘re Roma e 0 mar, mas também para o interior e, quando deixava de ser navegivel, 0 sea vale continuava a ser via de cormanicapo preciosa que penetrava bastante em direceio ao norte. Neste aspecto, a anise de Cicero 6 perfeitamente correcta: é verdade que o Tibre desempenhou um papel es- sencial na grandeza de Roma, ao permitir que o jovern Estado tivesse, des- de-cedo, um «pulmo maritimon, o que determinou em parte a sua vocagio de metrépole colonial e ao canalizer para ela ~ e, derois, ao submeter 20 seu controlo ~ as correntes eomercias e étnicas que convergiam dos vales dos Apeninos e se dirigiam para sul ‘No entanto, estas vantagens a longo prazo nfo eran de avaliaglo ime- diata ¢ seria preciso que Rémulo tivesse um poder de penetragao mais do que divino para se aperceber, numa iluminagdo sabite, de um mecanismo ccujas engrenagens $6 se afinaram a0 cabo de um longo processo de evolu- ‘p20, Vendo bem, as fatalidades geograticas s6 sto pereeptiveis devido as ‘suas consequéncias © para aqueles que percorrem em sentido inverso as ‘correntes da histéria, Para justificar @ escotha de Romulo, Cicero apresenta ainda outros ar- gumentos, muito menos concludentes. Ao fazé-lo, fecha deliberadamente ‘8 olhos a um determinado niimero de realidades evidentes. Escreve, por exemplo, que 0 fundador «escolheu um local rico em nascentes ¢ salu- bre, no meio de uma regio de resto pouco saudavel, pois as colinas tém tbom are dio sombra aos valess, H esquecer certas vendades que, hoje, sto perfeitamente evidentes depois das pesquisas reslizaias no Férum e no Palatino. Na realidade, @ Roma dos primeiros tempos. aquela cujos restos descobrimes inseridos no subsolo da cidade, pobres cabanas de que sub- sistem os vestibulos e, por vezes, vestigios das estacas que constituiram avsua armagao ~, essa Roma era bastante insalubre. Todo 0 centro da fu- tura cidade ~ entre o Capitélio e a pequena colina, a que, mais tarde, foi dado o nome de Vélia ~ era, em grande parte, um paatano meio submer- 80 € coberto de agua a cada inundagto do Tibre. Os regatas que desciam das colinas estagnavam no Campo de Marte, formado apenas por aluvides A.Civitizagio Rowan do rio ao serpentear entre as colinas vaticanas ¢ 0 macigo constituido, na margem esquerda, pelas rochas do Capitdtio, do Palatino e do Aventino. ‘Todas as zonas baixas eram pantanosas. Os Romanos tiveram muito tra- balho para conter esses ‘guas caprichosas, apertar o ‘Tibre entre margens fixas ¢ sanear a cidade. E ~ estranho paradoxo ~ neste local coroado pelo elemento liquido, os Romanos tinham falta de agua potavel. E verdade que ta possivel encontré-la cavando poros profundos nas zonas mais baixas, © que foi feito, jé que as escavagdes puseram a descoberto um nimero con- siderivel de pogos no Férum. Mas, nas colinas, foi necessério desde muito cedo construir cisternas, expediente oneroso e precirio. Roma s6 resolve verdadeiramente o seu problema de agua potavel em mesdos do século a. C., cerea de quinhentos anos depois da fundaco, quando comesaram @ construit-se aquedutos. ‘Tudo isto torna improvével que a localizagao tenha sido escolhida em fungdo da sua comodidade material ¢ da sua salubridade, mas deixa en- trever as verdadeiras razies da escolha. Situada na extremidade ocidental de um imenso planalto dominado, a leste, pelos montes Albanos, Roma parece ter sido, inicialmente, uma espécie de posto avangado, um tenté- culo estendido para oeste pelos Latinas fixados nas altitudes de Alba. Os colonos tinham-se instalado, muito naturalmente, numn ugar forte; esco- Iheram as colinas da Roma futura, que se erguiam num dédalo inextricivel de pantanos, protegidas pelo Tibre de éguas velozes e profundas que, fre quentemente, transbordavam das margens. Destas colinas, duas sobretudo pareceram-lhes propicias: 0 Capitélio e o Palatino, de encostas abruptas e ligados ao resto da regito apenas por uma estrada natural muito estret ‘Tem-se repetido que Roma nasceu num vau do Tibre e que, pelo menos no inicio, foi a cidade-ponte por exceléncia, Mas tudo prova A saciedade que no ¢ assim. Pelo contrério, Roma encontra-se no tinico ponto em que, no vale, o rio s6 dificilmente se transpoe. O van existia, mas varias milhas @ ‘montante, proximo de Fidena, ¢ 0 destino de Fidena nem de longe se asse- melhou ao de Roma. As caracteristicas geogrificas desta cidade, fechada como uma mio em volta do Forum, isolada da margem direita do rio e durante muito tempo .¢20 com ela e rapidamente separada mesmo da sua metré- pole albana por uma enorme muraiha de terra que isolava o planalto dos Esquilios, correspondem bem as particularidades csquivas dos Romanos; ‘mesmo no tempo das suas vitérias mais recuadas, os Romanos sempre se sentiram cercados, As stias conquistas destinavam-se a manter & distancia 2 Lawoas & ReaLibapes pos Paieios Teaeos ‘um provavel ¢ temido agressor. Roma nfo teve um nascimento feliz, um desenvolvimento tranquilo, mas sim a desconfianga de um povo em guerra, contra uma natureza hostil, inquieto quanto & sua propria seguranga e es- cudado perante o mundo, A tradigio dos historiadores antigos situa a Fundagdo de Roma em mea- dos do século va. C., cerca do ano 754. Durante muito tempo accite sem discussio, depois severamente criticada, esta tradigao é confirmada pelas descobertas arqueolégicas, se admitirmos a existéncia 4e um primeiro pe- riodo de povoamento pré-urbano, antes da criagio da cidade propriamente dita que teria surgido no inicio do século vi a. C. Uma necrépole muito mais antiga escavada no Férum no inicio deste século, ¢ depois, mais re- centemente, a retomada sistematica das escavagées no Palatino mostraram que havia habitantes no local onde se encontra a cidade a partir de meados do século vn a, C., ou seja, desde o tempo em que os primeiros colonos hhelenos criaram os seus estabelecimentos histéricos, ra Itdlia Meridional (Magna Grécia) ¢ na Sicilia. Na Itdlia, a situagdo & complexa, Distinguimos diversos grupos de po- vos instalados nas diferentes reaides; mas os dados brutos da pré-historia e da proto-historia, isto 6, a descrigio dos facies de civilizacao, dio lugar a grandes divergéncias de interpretago. Todavia, alguns factos parecem ad- quiridos: uma primeira vaga de povos incineradores (isto é, que queimam 0s seus mortos) ¢ conhecem o uso e a técnica do cobre no Norte de Ita rho segundo milénio antes de Cristo; concentram-se em aldeias de forma regular (geralmente trapezoidal), por vezes instaladas em zonas pantano sas, Constituem aquilo a que chamamos a «civilizagio das terramaras», © admite-se, geralmente que representam os primeiros invasores indo- -europeus, vindos dos paises transalpinos. Uma segunda vaga, também de povos incinerantes, veio mais tarde (no final do segundo milénio antes Ge Cristo) sobrepor-se aos Terramaricolas. Esta civilizagio, revelada pela primeira vez em meados do século passado, pela desceberta da r pole de Villanova, perto de Bolonha, caracteriza-se pelos seus ritos funerd- rigs: as cinzas dos mortos eram depositadas em grancles unas de terracota @ cobertas por uma espécie de escudela que se enterreva no fondo de um poco. A técnica industrial dos Villanovenses marca umn avango em relagao dos Terramaricolas; caracteriza-se pelo emprego do ferro. Os Villanoven- ‘ses ocuparam uma zona muito mais vasta do que os seus antecessores. B A Cwvizagio Romana ATTALIA CERCA DE 500 A. €. haa (seu centro de difusto parece ter sido a costa tirrona da Itélia Cental e s6 muito tarde devem ter atingido a planicie do Pé, no momento do seu apo- sgeu, mas a sua origem étnica nflo deixa por isso de ser setentrional. ‘Terramaticolas c Villanovenses nfo tinham chegado a uma Itélia deser~ ta, J4 ld encontraram outras populagdes, aparentemente de origem medi- tetrnes, que continuavam as civilizag6es neoliticas. Estes «primeiros» ba- bitantes eram inumadores e tinham softido, em alguns locais, a influéneia da civilizagdo egeia. Fosse como fosse, estas populacdes, em contacto com = C2 4 [LENDAS F REALIDADES Dos PiMnos Tesr0s (8 imigrantes, no tardaram a evoluir, dando origem « civilizagdes origi nais, diferentes consoante as regides. Foi assim que a costa adristica viu desenvolver-se uma cultura tipica, que muito deve, sem divida, as relagdes cestabelecidas com as populagdes ilricas. Esta civilizagio, dita «picentina» (por o seu centro se situar no antigo Piceno), & um exemplo do particula- rismo de povos que, na época histérica, resistiram conquista romana e 86 se integraram verdadeiramente em Roma no inicio do século 1 antes da nossa era, e apés sangrentas lutas. No Licio, uma civilizagio de tipo villanovense estava solidamen- te implantada no inicio do primeiro milénio antes de Cristo. Contudo, a raga latina, aquela que deu origem 2 Roma, nfo & um grupo éinico puro, ‘mas o resultado de uma sintese lentamente realizada em que os invasores indo-europeus assimilaram os Mediterrfnicos para dar origem a um novo povo, Como acontecera na Grécia, a lingua que triunfou foi a dos Arianos, ‘mas a adopeio de um dialecto nao pressupde o desaparecimento radical dos primeiros habitantes do pais. Esta realidade complexe é expressa, de forma mitica, pelos historiadores romanos: contavam que 0 povo latino resultava da fusdo de duas ragas, os Aborigenes, rudes habitantes do Lé- cio, cagadores seminémadas, adoradores das forgas naturais dos bosques, eles préprios saidos de troncos de arvores, ¢ os Troianes, companheiros de Eneias, vindos da longinqua Frigia depois do desastre que se abateu sobre a sua propria patria. Esta lenda esta, sem divida, muto longe dos dados argueolégicos. Fixemos, porém, esta concepedo da origem mista do povo latino, onde os elementos unascidos do solo» teriam sido civilizados, vivi- ficados por estrangeitos. Talvez tenha acontecido o mesmo com a civiliza- ‘glo etrusca, muito préxima de Roma, e depois chamada a exercer sobre a cidade nascente uma to profunda influéncia, Os historiadores esto longe de estar de acordo quanto a origem dos, Etruscos(*). Ao certo sabemos apenas, devido as escavagdes, que a civili- ago etrusca surge na Italia Central no século vin a. C.e que sucede, sem qualquer solugo de continuidade aparente, & civilizago villanovense. A sua «certidao de nascimento» ¢, para nés, 0 aparec:mento nos mesimos locais de uma arte orientalizante. O que nio significa que este nascimento tenha implicado a imigrago maciga de um povo oriental que teria vindo instalar-se na Itélia Central por essa época. O fenémeno parece ter-se de- senrolado essencialmente no plano cultural, ¢ ndlo no da violencia. Tudo se (9 Para as palavrasassnaladas com um asteriseo, ver 9 disienéro no fim do lives 18 A.Civzagio ROMANA passa como se, subtamente, tdéncaslatente se tivesemn desenvolvdo, como germes chamados a um brusco despertar. Uma hipétese, recente mente ormulads, expica bastante bem como pade produzi-se semelhante fenémeno: a civilizagtoorientalizante dos Etruscos~ que se desenvolveu, assim, no mio da civilzagao vllanavense e, em muitos aspectos, come reaveio contra ela (ito da inumaglio contrapondo-se ao rito da incinera- {0 tipico dos Villanovenses, gosto pels riqucza © mesmo pelo fausto, em Contrate com a pobreza das spultures anteriores) ~poderis nfo pessar de tum renascimento, por influéncia de novos contribatos vindos éo Oriente, de elementos éinicos imigrados do Egeu muitos séculos ante, talvez no inicio do séeuo xa. C., ow mesmo no fm do slo x, iso, em plena cidade herbiean. ‘Do mesmo mode, modifica-s a idea tradicional que os historiadores formaram das origens da cidade de Roma © da propria natureza da «ro- ranidaden, Nesta pespectiva, a sintese postlada pelos escritores antigos entre elements itilicase imigrados orientas, essa unido simbolizada pelo casamento de Eneias com Lavinia, filha do rei Latino, nfo seria uma fanta- sia postica, mas uma realidade. E verdade que o pove romano se quis co loca em oposigo ao povo etusco; agradava-Ine contrastara sta laboriosa pobreza, a sua coragem militar com # opuléncia ea raqueza dos Eiruscos, exprimiu frequentemente o seu desprezo cm relacao aos «piratas tirrenos», saqueadores som fé¢ sem lei, mas ents contastes séo vilidos sobretudo em relapto 20 periodo histérica, quando o pove etusco,enriquecido plo comério pela pilhagem nos mares, se abandonara a urna lenta decadén- cia, Remontando no tempo, a oposigdotoma-se menos sensivel,epodemos perguntar-nos se Livia, outrre, no se mostrata também acolhedor em relagao as infuéncias vindas do mare se, desde o advento da proto-hist Fa nfo teriam sido semeados na foe do Tibre germes culturais destinados a desenvolves-se muito mais tarde, na 6poca histrica, quando as correntes comerciais emanadas da Grévia comegaram a helenizarverdadeitamente 0 pals latino, De qualquer modo, nfo podemes opor a priori uma Roma monoitica, de pura essénca arian, a uma Gréciaimpeegnada de pensamento oriental Se os Indo-Europeus impuseram asta lingua 40 Lécio, enquanto os Etrs- cos conservavam até a0 inicio do Impécio o seu antigo dialecto peldgico, em outros aspects, particulamente em matéria de crengas ¢ritos,e mes” ro de politic ede organizagdo social, a velha comunidade mediterrénica marcava de forma indelével a heranga da cidade que ia nascer. 16 Lewoas © REALIbapes pos Pansinos Taras ‘A fundagdo de Roma esté rodeada de lendas. Os historiadores contam que Rémulo eo seu irmao, Remo, abandonados nas margens do Tibre pou- co depois de nascerem, foram milagrosamente amamentados por uma loba saida dos bosques. Ela fora, evidentemente, enviada pelo deus Marte, que era o pai dos Gémeos, ¢ os Romanos, até ao final da sua histria, gostaréo dese chamar «os fithos da Loba». Recolhidos por um pastor, o bom Féustulo ~ cujo nome é por si s6 um auggirio favorivel, js que deriva de favere(') =, Rémulo e Remo foram eriados por sua mulher, Acca Larentia. Por detrés dos nomes de Féustulo e da mulher escondem-se nomes de divindades; 0 primeiro assemelha-se muito a Fauno, o deus pastoril que habitava os bos- ques do Lacio, 0 segundo recorda o dos deuses lars, p:otectores dos lares romanos, ¢ em Roma existia mesmo um culto a uma tal Mae dos Lares que bem poderia ter sido, afinal, a excelente ama dos Gémeos — a nfo ser que, ‘como é mais provavel, a lenda tenha utilizaclo nomes divinos para conferit ‘uma identidade aos seus herdis, ‘Acabana de Féustulo, segundo a tradigao, erguia-se no Palatino e, no tempo de Cicero, os Romanos apoitavam-na orgulhesamente, ainda de pé com o seu telhado de colmo e as suas paredes de adobe. Pode pensar- se que @ lenda de Féustulo se incrustou nesta cabana, sltimo vestigio da mais antiga aldeia de pastores que se fixaram na colina e conservada ‘como testemunho sagrado da inocéncia e da pureza primitivas. A cabana do Palatino no era, de resto, a tinica que subsistia da Roma arcaica Havia outra no Capitélio, em frente do templo «maior» da Cidade, o de ipiter Muito Bom e Muito Grande, ¢ como as lendas no t8m quaisquer preoeupapdes de coeréncia, garantia-se que esta cabana capitolina tam- ‘bem abrigara Rémulo ou o seu colega na realeza, o sabino Tito Técio. Nao foi s6 desta vez que se multiplicaram as reliquias sagradas. No en- tanto, neste caso, as recordagdes lendirias so plenamente confirmadas pela arqueologia. Os restos de aldeies pastos a descoberto no Palatino neerépole do Féram remontam, como demonstram os caracteres da ceri- ‘mica encontrada no local, a meados do sSculo vi a. C.¢ esta data corres- ponde & primeira ocupagao do solo romano. E sabido que, depois de adultos, os Gémeos se fizeram reconhecer pelo v6, cujo reinado restabeleceram, e partiram para fundar uma cidade no lo- () Favere— ser favorivel,favoroce,(N. do 7.) ” go oO Aq acho ROMANA cal que tio favorével thes fora, Para consultar os deuses, Rémulo escolheu © Palatino, bergo di sua infincia. Remo, porém, instalou-se do outro lado do vale do Grande Circo, no Aventino. Os deuses favoreceram Rérmulo enviando-Ihe o pressigio extraordingrio de um voo de doze abutres. Remo, por seu lado, viu apenas seis. Coube, portanto, a Rémulo a glia de fundar a Cidade, 0 que fez de imediato, tragando, & roda do Palatino, um sulco com uma charrus; 8 terra revolvida simbolizava a muralha, 0 proprio suleo 6 fosso e, no local das portas, a charrua erguida simulava uma passagem. E certo que os Romanos nio acreditavam nesta histéria, mas accita~ ‘vam-na; sabiam que a sua cidade no era apenas um conjunto de casas © ‘templos, mas um espaco de solo consagrado (o que as palavras pomerium & ‘templum (*) exprimem, em diversos casos), um local dotado de privilégios religiosos, onde o poder divino se encontra particularmente presente e sen- sivel. A continuagio da lenda afirmave, de forma dramética, a consagrarao da Cidade: Remo, trocista, escameceu da «amuralha» de terra ¢ do seu ri- culo fosso; transpé-los de um salto, mas Romulo langou-se sobre ele & imolou-o, dizendo: «Assim morrerd quem, de futuro, transpuser as minhas muralhas!y Gesto ambiguo, criminoso, abominivel, ja que se tratava do assassinio de um inmio c atribuia go primeiro rei a mancha de um parri- cidio, mas gesto necessério, pois determinava de forma mistica o futuro & assegurava, talvez para sempre, a inviolabilidade da Cidade. Deste sacrifi- cio sangrento, 0 primeio oferecido divindade de Roma, o povo guardaré para sempre uma recordagao assustadora. Mais de setecentos anos depois da Fundagio, Horacio ainda o consideraré uma espécie de pecado original cujas consequéncias provecariam, inevitavelmente, a perds da cidade ao levarem os seus filhos a massacrarem-se uns 20s outros. Em todos os momentos eriticos da sua histéria, Roma interrogar-se~é angustiadamente, julgando sentir pesar sobre si uma maldigao. Tal como, ‘20 nascer, no estivera em paz com os homens, também nio o estava com 08 deuses. Esta ansiedade religiosa pesara sobre o seu destino. & fil - de- rmasiado ficit - op6-la boa conscincia aparente das cidades gregas. E, no entanto, Atenas também conhecera crimes: na origem do poder de Teseu estava 0 suicidio de Egeu. A pré-historia mitica da Grécia esta tio repleta de crimes como a lenda romana, mas os Gregos devem ter considerado que 6 funcionamento normal das instituigbes religiosas bastava para apagar as raiores manchas. Orestes foi absolvido pelo Areépago, sob a presidéncia dos deuses. E, além disso, a macula que Edipo inflige a Tebas ¢ limpa pelo bbanimento do criminoso; sangue que, mais tarde, correrd como expiagio, 18 Lenpas & ReAuipabes bos Penesnos Toros sera apenas o dos Labdacidas. Roma, pelo contririo, sente-se desesperada- ‘mente solidéria com o sangue de Remo, Parece nfo ter sido eapaz. do op- timismo grego; Roma treme, tal como mais tarde Eneias, no qual Virgilio querera simbolizar a alma da sua pétria, tremeré perante a expectativa de um pressigio divino, ‘A lenda dos primeiros tempos de Roma esti, assim, repleta de wsinais» que 0s historiadores actuais tentam decifrar. Seja qual for a origem das ferentes lendas (0 rapto das Sabinas, o crime de Tarquinio, a luta dos Hord- cios e dos Curiicios e muitas outras), quer se trate de recordagdes de factos reais, de velhos rituais interpretados ou de vestigios ainda mais antigos, provenientes de teogonias esquecidas, estes relatos reflectem outras tantas convicgdes profundas, atitudes determinantes para o Fensamento romano, # por isso que todo aquele que tente descobrir 0 segredo da romanidade os deve ter em conta, ja que representam outros tantos estados de consciéneia sempre presentes na alma colectiva de Roma A lenda continua a contar como Rémulo atraiu para a Cidade os jovens pastores da vizinhange e, mais tarde, todos os vagabundos, todos os pros- critos, todos os sem-péitria do Licio. Mas como era necessério assegurar © futuro da Cidade ¢, entre os emigrantes, no havia mulheres, resolveu organizar jogos magnificos em que participassem as familias das cidades vizinhas. Segundo um sinal combinado, a meio do espectéculo, os Roma- nos langarar-se sobre as jovens e, no meio do tumultc e da confusto, rap- taram-nas ¢ levaram-nas para suas casas. Estes acontecimentos estiveram na origem de uma primeira guerra, muito longa, que 0s raptores tiveram de travar contra os pis des jovens. Estas eram, na sua maior parte, Sabinas, origindrias de aldeias situadas a0 norte de Roma; nao eram de raga latina. A segunda geragfio romana formara, portanto, uma populagéo de sangue misto, como jé 0 eram os Latinos. Sabemos como tudo tersninou. As Sabinas, bem tra:adas pelos maridos, intervieram na contenda ¢ estabeleceram a concérdis. Ao concordarem com © casamento, libertaram-no da violéneia e do perjirio. E, mais uma vez, importa reflectir sobre 0 significado que este episédic dramatico assumia para os Romanos. Ble testemunha o lugar atribuido & mulher na cidade: se, aparentemente, a mulher é, segundo os juristas, uma etema menor, se no pode, teoricamente, aspirar aos mesmos direitos que os homens, nem por isso deixa de ser depositiria e garante do contrato em cue assenta a cidade. 19 A Civitizagio Romana Foi ela que, no campo de batalha, lavrou a acta das promessas trocadas en- tre Romanos e Sabinos, e pretende a tradigao que os primeiros se compro- rmeteram a poupar as esposes todo o trabalho servil, deixando-Ihes apenas o encargo de «fiara la». A Romana sabe, portanto, desde a origem, que nao 6 uma escrava mas uma companheira, uma aliada, protegida pela religizo do juramento antes de o ser pelas leis: & a recompensa da piedade das Sa- binas, ao evitarem que os sogros derramassem o sangue dos genros & que estes fizessem correr o que circulava nas veias dos seus proprios filhos. Reconeiliados com os companheiros de Rémulo, os Sabinos vieram instalar-se em grande nimero na Cidade, que cresceu consideravelmente. Simultaneamente, um rei sabino, Tito Técio, foi convidado a partilhar a rea- leza com Rémulo. Mas 0s historiadores antigos, muito embaragados com este colégio real, ndo the atribuem um papel muito activo e apressam-se @ ignoré-lo para de que de novo reine apenas Romulo. Naturalments, muito se tem especulado sobre o sentido deste episodio. A resposta mais provavel E que se trata de uma projece4o na lenda de um facto politico mais recente, a divisdo colegial das magistraturas. A organizagao do consulado, no tem= po da Republica, encontrava ai um precedente precioso. Mas o conjunto da lenda sabine assenta, sem divida, numa recordago exacta, o aparecimento de tribos sabinas em Roma a partir da segunda metade do século vii a. C. € 1 sus unio com os pastores latinos. Mais uma vez, a tradigao tem um valor propriamente histérico. Com efeito, os arquedlogos julgam poder distin~ guis, em solo romano, a presenga de correntes culturais diversas, algumas das quais vindas dos peises do interior Romolo, depois de ter fundado a Cidade, assegurado a perenidade da sua populago, organizado nas suas grandes Tinhas o funcionamento da c dade criando senadores ~ os patres. chefes de familia ~ ¢ uma assembleia do povo, e depois de ter levado a bom termo algumas guerras menores, de- sapareceu mum dia de tempestade, perante todo 0 povo reunido no Campo de Marte, e a voz do povo proclamon que se tomara deus, Foi-Ihe prestado culto sob o nome de Quirino, velha divindade que passava por sabina e que tinha um santuirio na colina do Quirinal A figura de Rémulo, sintese completa de elementos muitos diversos, domina toda a histéria da Cidade: fundador «feliz», a sua filiagao divina talvez conte menos que a incrivel felicidade, sorte que marcaré os seus pri- -meiros anos e que fazia com que tudo prosperasse nas suas mos. A litera- tura ~ a poesia épica e sobretudo o teatro ~ acrescentou a lenda elementos romanescos retirados do repertério das narragées miticas do mundo grezo, 20 LLenoas & REALIDADES Bos Prinitos Teres mas sem conseguir dissimular certos tragos romanos que continuam a ser fundamentais: Romulo é um legislador, um guerreiro e um sacerdote. E tudo isto simultaneamente, sem grande coeréncia, ¢ éinitil procurar nos actos que Ihe sio atribuidos a unidade de um carécter ou de um espitito. © que nos oferece é essencialmente a figura ideal daquele que se chamaré mais tarde 0 imperator, simultaneamente intérprete diresto da vontade dos deuses, espécie de personagem-feitiva, possuidor em si mesmo de uma ficaz magia, combatente-invencivel, devido, precisamente, a essa graga de que esté investido, ¢ arbitro soberano da justiga que rsina entre 0 povo. A tinica unidade de Romulo ¢ este carisma que se manteré ligado, ao longo de toda @ histéria romana, primeiro aos reis ¢ depois, pelo mero facto da sua renuntiatio (proclamagao como cleitos do povo), aos magistrados da Repibtica, ¢, por fim, aos imperadores, que serdo essencialmente magis- trados vitalicios. A tentagao de criar reis permanecera sempre muito forte no seio do povo romano: # medida deste facto é-nos dada pelo medo que este titulo suscita, Teme-se que um magistrado ou um simples eidadzo se aproprie do poder real porque se sente confusamente qte este esth sempre pronto para renascer. Rémulo, encamagio ideal de Roma ~ que Ihe deu 0 rome ~, esta presente nas imaginagGes e, por varias vezes, pareceu pres- tes a reencarnar: em Camilo, no tempo da vitéria sobre Veios, em Cipiao, quando foi consumada a vitéria sobre Cartago, em Sila, em César, © s6 por meio de uma hébil manobra parlamentar © jovem Octivio, vencedor de Ant6nio, evitou a perigosa honra de ser proclamado um «nove Rémulo». Estamos muito mal informados sobre a maneira como se processou © crescimento de Roma, no seu inicio. A importancia -eal da aldeia fun- dada no Palatino nao parece ter respondido 4 preemiréncia que a lenda Ihe atribui. Na verdade, a partir da segunda metade do século vin, essa rea parece ter sido ocupada por aldeias separadas: niio s6 0 Palatino, com os seus dois cumes, ento distintos € hoje reunidos pelas construgdes da Epoca imperial, mas também o Capitélio, o Quirinal, as encosias ociden- tais do Esquilino eram habitados. O vale do Férum, drenado muito cedo, constituia o centro da vida social ¢ da vida religiosa. E ai ~ e nfo no Pala~ tino ~ que se encontram os santuatios mais antigos e mais essenciais, em particular o de Vesta, lar comum onde se conservavam @s Penates do povo romano, misteriosos feitigos ligados & salvago da Cidade. Pouco distante deste santuario, um outro, chamado a Regia (isto é, a casa do rei), dé gua- rida a Marte e a deusa Ops, que & a abundancia personificada, Ai se con- 2 A.Ciuzacao Romana servam outros feitigos, escudos sagrados, um dos quais passa por ter caido, do céu, e que eram, também eles, garantes da salvago comum. Bra entre estes dois locais de culto que passava a Via Sacra, caminho das procissdes solenes que levavam periodicamente o rei, acompanhado pelo povo, até ao rochedo do Capitilio onde reinava Jupiter. A tradigdo atribuia a orgenizagao religiosa de Roma ao rei Numa, um sabino que teria reinado de 717 a 673 a. C. ¢ que, dizia-se, teria sido ini- ciado nas coisas divinas pelo proprio Pitagoras. J4 os historiadores roma- nos se tinham aperccbido do anacronismo: como & que o rei Numa que, afirmava-se, vivera no fim do século vi, podia ter encontrado 0 filésofo, cuja pregacio na Itilia Meridional nao € anterior a meados do século vi? Mas também se insistiu no facto de o pitagorismo da Magna Grécia reunir elementos religiosos que ja existiam antes da vinda do Sébio © nada nos impede de admitir que se tenham atribuido ao pitagérico Numa praticas, crengas e ritos originérios das regides sabinas, no sentido mais lato, isto 6, do interior da Italia Central ¢ Meridional. Numa simboliza formas de vida religiosa diferentes das que se prendem com o imperator Rémulo, € que ndo esti oricatadas para a acgo ~ politica ou militar ~ mas para um conhecimento mais desinteressado das realidades sobrenaturais. Assim se exprimia uma das tendéncias mais vivas da religito romana, ¢ que levava a colher fevoravelmente todas as formas do sagrado ¢ do divino. Mas, preci- sameate por causa desta mesma tendéncia de que desconfiavam, pois podia conduzir 0 povo ao desinteresse © & extravagincia, os Romanos esforga- vvamse por Ihe criar mil obstéculos destinados a assegurara estabilidade da tradiga0. Numa foi um inovador, mas ~ como mais tarde Augusto ~ teve a habilidade de inscrever as suas inovagdes na linha das crengas ancestrais. ‘A tradigdo atribui as reformas de Numa a fundagio do Templo de Jeno, edificio misterioso situado no extremo norte do Férum e consagrado 2 uma divindade de rosto duplo, acerca de cuja natureza os teblogos de Roma se interrogaram longamente. O que é certo & que Jano no éum deus da tradi- a0 latina, Além disso, Numa dividiu as funges sacerdotais por varios co- légios(*), em vez de as deixar, como cutrora, ligadas apenas & pessoa real. A ele se atribuia a instituigao dos famines, um dos quais prestava culto a JTipiter € 0 outro a Marte. Ao faz8-to, retorava sem ditvida uma tradigao indo-europeia, como testemuunha o proprio nome destes sacerdotes, que 2 ctimologia compara a0 dos brimanes. Mas, ao lado destes flamines, Numa criou ou organizot o colégio dos Sélicos, cujas dangas guerreiras em honra 2 LLunoas & REALioapes bos Pansies Taures de Marte s40 um antiquissimo rito itflico, observado en diversas cidades € cujos acessorios, nomeadamente os ancis, escudos de chanfradura dupla, testemunham uma remota influéncia egeia e provém da idade dita geomé- trica da Grécia. Na verdade, a arqueologia revela a presenga de escudos chanfrados em diversos pontos da peninsula, cerca de 700 a, C, Mais uma ver, a tradigao recolhe a lembranga de um dado real, Nema teve o cuidado de designar um chefe encarregado de velar pelo exacto cumprimento dos ritos e de impedir, no futuro, a introduedo abusive de irovagées estrangei- xas, Este chefe foi o Pontifice Maximo: nome de pontifice (pontifex) con- timua a ser para nés um mistério. Os Antigos relacionavam-no com o termo que designa ponies, ¢ os pontifices teriam sido, iniciainente, os «constru- tores de pontes», mas parece muito pouco provavel que Roma, que durante muito tempo manteve uma comunicagao muito precarie com a margem di- reita do Tibre, tenha atribuido um lugar preeminente na vida religiosa a um sacerdote que tivesse por principal funco zelar pela transposigio do rio. Se assim for, endo tivermos sido iludidos por uma semelhange enganosa, € se 0s pontifices foram mesmo «construtores de pontes», ento estas pontes devem ter comegado por ser caminhos (sentido que justfica a comparagiio com outras linguas do dominio indo-europeu), e a imaginacdo sugere que estes caminhos talvez tenham sido apenas aqueles que permitiam que @ oracdo ¢ 6 rito chegassem ao pais dos deuses. Mas tudo isto € muito du- vvidoso. Sugeriu-se também que os pontifices eram sacerdotes «nio espe- cialistas», encarregados de celebrar todos os ritos que no coubessem no quadiro das atribuigdes dos outros sacerdotes (flamines, etc.) Fosse como fosse, foi no reinado de Numa que os Romanos adquiriram a sélida reputagdo de piedosos © que engueram um altar & Boa Fé (Fides), fundamento da vida social e também das relagGes internacionais, na me- dida em que fides implica a substitigto das relagdes de forga por relagoes baseadas na confianga mitua. Adivinha-se jo nascimento de uma organi- zagio de forma juridica cuja ambi¢ao consiste em regular, de uma vez. por todas € de acordo com a ordem do mundo, toda a vida da cidade. Roma pensa-se segundo um sistema total, harmoniosamente inserido no ritmo do universo, Neste aspecto, € significative que Numa tenha passado, 20 ‘mesmo tempo, por grande reformador do calendério: « sua reforma tinha por objective fazer coincidir, tanto quanto possivel, os ciclos lunaes e os ciclos solares. Para tal, imaginou um sistema de meses intercalares que, em vinte anos, conduziria & coincidéncia de uma dada data com uma posiglo determinada do Sol A Crumuizacso Romana Uma terceira figura domina a formago de Roma, tal como # tradigo a ctiou: a do rei Sérvio Tlic. Sexto rei, depois de Rémulo (¢ Tito Técio), ‘Numa, Tilio Hostilio (tendo estes trésitimos reinado, segundo a tradieo, respectivamente de 672 a 641, de 639 a 616 e de 616 a 579 a, C.), Ancus Martius(*) e Parquinio, 0 Antigo, era fitho de um escravo da casa real. Mas, por ocasiéio do seu nascimento, produziu-se um prodigio que o expés & atengiio do rei Tarquinio, Segundo outra tradigao de origem etrusca, de que © imperador Claudio se fez eco, serie um aventureiro chamedo Mastarna. ‘Tendo-se tornado rei depois da morte de Tarquinio, decidiu reonganizar a sociedade romana. Distribuiu os cidaddos por cinco classes «censitérias», reunindo a primeira os cidadios mais ricos ¢ a iltima os mais pobres. Cada uma destas classes estava, por sua vez ~ excepto a iltima, cujos membros estavam isentos do servico militar ~, dividida num mimero variavel de centirias(*). Esta divisto em centirias tinha um caricter essencialmente militar e corespondia a uma especielizapao dos cidadaos no interior do exéreito, Foi assim que houve centtrias de cavaleiros, recrutadas na aris- tocracia, entre os cidadios da primeira classe, os tinicos suficientemente ricos para suportarem a compra e 0 equipamento de um cavalo, Todas as classes (com excepedo da quinta) forneceram igualmente centirias de in- fantaria, cujo armamento variava conforme a riqueza. Além disso, 0 rei formou centirias de soldados «de engenharie», artifices da madeira ou do ferro, para servirem o exército, e mesmo centtrias de tocadores de trompa e trombeta. A divisio em centirias foi também adoptada por ocasido das operagdes de-voto, o que teve por resultado prético conferir,na cidade, a preeminénci & ristocracia da riqueza, De facto, por ocasido das votagGes, cada contiria contava apenas como um voto, se bem que, nas centirias que congregavam tum maior nimera de cidadaos (as das classes mais pobres), a voz de cada individuo tivesse menos peso do que nas outras. Além disso, e mais impor tante ainda, as operagdes comecavam pelas centirias da primeira classe © cessavam depois de obtida a maicria, Sendo assim, as centirias das tltimas classes nunca votavam Este sistema censitirio persistiu até ao fim da Repiblica e sobreviven mesmo durante 0 Império, Os comicios centuriates, isto &, © pove convo- ‘cado dentro do set: quadro militar, continuavam a eleger, ainda na Repi blica, os magistrados superiores e a votar certas leis importantes. IE muito rovavel que a organiza¢ao des classes servianas seja muito posterior a0 século vi, mas € significative que a tradigao tena atribuido essa honra 4 LLENDAS & REALIDADES Dos PriweRos Teseres ao rei de origem servil que, embora nao tendo ousado quebrar os velhos quadros sociis, hes sobrep8s, pelo menos, uma hierarquia baseada na ri queza, Quanto a historicidade do rei Sérvio Télio, muas vezes posta em causa pela hipercritice modema, é actualmente reconhecida. E verdade que Roma sofreu, no fim do século vi, profundas transforma;0es, reveladas por escavagbes recentes, precisaments nos locais ¢ no sentido que a tredigdo os historiadores antigos sugére. Antes de Sérvio, existia outro sistema que datava do proprio reinado ‘de Romulo: todo 0 povo se encontrava dividido em tréstribos, que usavam ‘0s nomes arcaicos de Ramnos (ou Ramnenses), de Ticienses ¢ de Liceres. ‘Como se pensou, talvez estas trés tribos conservem a lembraaga de ume ivisio tripartida da sociedade, caracteristica dos poves indo-europeus; ou talvez, pelo contririo, se trate de uma diviséo émnica, ou muito simples- mente de uma divisdo topogrifica. Seja como for, a orizem do sistema era desconhecida dos préprios Romanos. Cada tribo formava dez cirias © © conjunto das trntas ciias constituia a assembleia do povo. As atribuigbes destes comicios curfates cram, sem divida, originalmente muito vastas, mas depois da reorganizagao serviana foram-se restringindo. Como 0 seu papel essencial consistira primitivamente em investir o rei designado por suftégio pela auctoritas do Senado ¢ conferit-lhe 0 imperium, é ainda a cles que compete, na Repiiblice, conferir este mesmo imperium aos magis- trados eleites polos comicios centuriais. Também eram consultados para acges juridicas respeitantes & religifo, ¢ 4s adopgdes. A onganizagao curial da cidade assentava, de facto, em lagos religiosos, na participagio num cculto comum da ciria, cujo sacerdote usava o nome de curido: existia, portanto, entre os membros da mesma cGria uma fratemidade sagrada, Um terceiro sistema de classificagto dos cidadaos veio sobrepor-se aos dois precedentes quando, com os progressos da plebe, esta obteve 0 reco~ nnhecimento oficial das suas assembleias orgénicas, que se tornaram ent comicios tributa, Estes comicios tiveram por quadro as tribos — nfo as tribos de Rémulo, mas quatro tribos de cardecter topgrafico instituidas por Sérvio Tilio. Estas quatro tribos correspondiam apenas a quatro regides (ns ditiamos abairros») em que o rei dividira a cidade. Mais tarde, 0 mé mero de tribos atmentou, quando se criaram, ao lado das tribos urbanas, tribos risticas que reuniam os cidadios residentes nas suas propriedades, fora de Rome, Era grande a complexidade deste sistema, no qual se tinham sobre- posto reformas sueessivas sem que ninguém se lembrasse alguma vez de 25

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