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Colegio Estos Dirgia por. Guinburg, DEDALUS - Acervo - FFLCH NNER 20900027092 ‘itis de rellzato = Tradusfo: Ana M. Goldberger Coelho; Revist: José fio Caldas ¢ Plinio Martins Filho; Plenejamento Grifio: Walter Greer, E. E. Evans-Pritchard OS NUER UMA DESCRICAO DO MODO DE SUBSISTENCIAE DAS INSTITUIGOES POLITICAS DE UM POVO NILOTA ‘SBD-FFLCH-USP wifi SS, = = PERSPECTivaA Introducao fechou © Sudio para mais explo- s penetraram na terra dos Nuer por um randes rios que a cortam: © Bahr el Jebel (com o Bahr nao pude me 0 que eles tiveram 6 OS NUER cadas apés a reconquista, existem uns poueos relatérios feitos por oficiais do exército que comtém observagbes interessantes e, freqdentemente, argutas?. A publicagio de Sudan Notes and Records, comegando em 1918, forneceu um novo meio para rar observagSes sobre os costumes dos pavos do Sudio .€ varios oficiais com cargos politicos contribuiram com eseritos sobre os Nuer. Dois desses oficiais foram mortos no desempenho do dever, 0 Major C.H. Stigand, pelos Aliab Dinka, em 1919, € o Capito V.H. Fergusson, pelos’ Nuer Nuong. em 1927. No mesmo periédico apareceu a primeira tentativa, feita pelo Sr. H.C. Jackson, de escrever um relato sobre os Nuer, e muito se deve a ele pela maneira em que a executou. apesar de sérios obstaculos?. Depois de ter comegado minhas pesquisas, foi publicado um livro da Sria. Ray Huffman, da Missdo Americana, ¢ alguns artigos do Padre J.P. Crazzolara, da Congregagao de Verona*. Embora minhas contribuigdes para varios periédicos estejam reproduzidas, sob forma resumida, neste livro, ou sero repro- duzidas em um volume posterior, fago aqui mengao a elas a fim de que 0 leitor possa ter uma bibliografia completa, Omiti muitos detalhes que apareciam nesses artigosS. Listas de algumas palavras nuer foram compiladas por Brun-Rollet ¢ Marno, Vocabuldrios mais detalhad eseritos pelo Major Stigand e Srta. Huffman, e gramaticas, pelo foram und den angrenzenden Negerlendern, in der Jahren 1869 bis 1873, 1878, Outros ‘Slo menconados mais adlant, especialmente nas pp. 139-40 ¢ 144 2, Essesrelatérios foram empregades pelo Ten.-Cel. COUNT GLEICHEN em sua compilagio: The Anplo-Ezyptian Sudan, 2 vols, 1908. 3, Major C.H. STIGAND, Warrior Classes of the Nuers, S.N. & R. pp. 11618, 1918, « The Story of Kir and the 1819; Cap. V.H. FERGUSSON, The Nuong Nuer, bid. pp. 146'S5, 1921, ¢ ‘uct Boast Tales ib, pp. 105-12, 1924, H.C. JACKSON, The Nuer of the 1923, (este artigo fol zeim- tom, sem data, econtinia um ensio final de Vine e tes pginas, de P. Corat, sobre “The Gawele Nuc") 4. RAY HUFFMAN, Nuer Customs and Folklore, 1931, 108 pp; Pe. J.P, CRAZZOLARA, Die Gar Zeremonie bei den Nocr, Africa, pp. 28-39, 1992 © Die Bedeutung des Rindes bei den Nuer, ibid. pp. 500-20, 1934 5S. EE, EVANS-PRITCHARD, The Nuer, Tribe and Clan, S.N. @ R 1983, pp. 157, 1934, e pp. 37-89, 1935: The Nucr, AgeSets, 1 pp. 208-45, 1937, Relating to Twins among the Nilotc Nuer, Ugenda 230-8, 1986; "Dail Lifeof the Nuer in Dry Season Camp, Custom 1s King. A Collection of Essoy in Honour of R.R. Maret, 1936, pp. 291-9: "Some Aspects of Marriage and the Family among the Nuer", Zeitschrift fr vergleichende Rechiswissenschaf, 1938, pp. 306-92; Nver Time Reckoning, Artic. pp. 189-216, 1939. O capitulo sobre ox Nucr (Cap. VD) de Pagan Tribes INTRODUGAO 7 Prof. Westermann e Pe. Crazzolara. O artigo do Prof. Wester- ‘mann contém também algum material etnoldgico*. 1 Descrevo neste volume a maneira pela qual um povo nilota obtém sua subsisténcia e suas instituigdes polfticas. As infor- mages que coligi sobre sua vida doméstica serao publicadas em um segundo volume. Os Nuer7 que chamam a si mesmos de Nath (singular, ran), sio aproximadamente duzentas mil almas e vivem nos pantanos e savanas planas que se estendem em ambos os lados do Nilo, a0 sul de sua juncao com o Sobat e o Bahr el Ghazal, € fem ambas as margens desses dois tributirios. Sao altos, de membros longos e cabegas estreitas, como se pode ver nas ilustragses. Culturalmente, assemelham-se aos Dinka, © os dois povos formam uma subdivisio do grupo nilota, que ocupa parte de uma drea de cultura da Africa Oriental, cujas caracteristicas extensio encontram-se até 0 momento mal definidas. Uma segunda subdivisio nilota compreende 0s Shilluk e varios povos que falam linguas semelhantes ao shilluk (Luo, Anuak, Lango, etc.) E provavel que estes povos que falam shilluk sejam mais semelhantes entre si do que qualquer um deles em relagio aos Shilluk, embora pouco se saiba ainda sobre a maioria deles. ‘Uma classificagao provisGria pode ser apresentada da seguinte forma: TIPO DE CULTURA DA AFRICA ORIENTAL, oo Outras culturas. Nilo-Hamitas —Nilotas —— grupo Shilluk-Luo grupo Nuer-Dinka Shilluk povos que falam shilluk Nuer Dinka ofthe Niotc Sudan, do Prot. C.G. ¢ Sra: BZ. S de meus eadernos de nots yman, 1932, foi eompilado laren der Dinka-, Nuch. und Schill Sprachen", Petermann's Mittheilungen, Er. Il, 1862.3, pp. 25-30; MARNO, “Klin Vecbulren Ger Fung, Tab, Bera und Noe Srche’, Reiser ingen des Seminars fr Orion {alische Sprachen, 1912, pp. 84-141; Major CH. STIGAND, A Nuor-Enalsh Vocabulary, 1923, 38 pps RAY HUFFMAN, Nuer-Englisk Dictionary, 1923, 63 pp. © Englih-Vuer Dictionary, 1931, 80 pp.; Pe. JP. CRAZZOLARA, Outlines of @ Muer Grammar, 1933, 218 pp. 7, A palavra “auer” fl sancionada por um séeulo de uso. B provavel mente de origem dinka 8 (OS NUER Os Nuer os Dinka assemelhamn-se demais fisicamente, suas linguas ¢ costumes so por demais semelhantes para que surjam davidas quanto a sua origem comum, embora no se conhega a histéria de sua divergéncia. O problema é compl cado: por exemplo, os Atwot, a oeste do Nilo, parecem ser uma tribo nuer que adotou muitos habitos dinka, enquanto que se atribui as tribos jikany da terra dos Nuer uma origem dinka. do mais, tem havido um contato continuo entre os povos, o qual resultou em muita miscigenacao e emprés: timos culfurais. Ambos os povos reconhecem ter uma origem Quando possuirmos maiores informagoes sobre alguns dos povos que falam shilluk, ser possivel afirmar quais sio os caracteres que definem a cultura e a estrutura social nilota. No presente, tal classificago & extremamente dificil, e deixo @ tentativa para mais tarde, dedicando este livro a um relato simples dos Nuer e deixando de lado as muitas comparagées ‘Sbvias que poderiam ser feitas com outros povos. [As instituigses politicas constituem seu tema pri porém elas n&o podem ser compreendidas sem que se leve em conta o meio ambiente e os meios de subsisténcia. Por con seguinte, dedico a parte inicial do ‘a uma descrigdo da regio onde vivem os Nuer e de como eles provém suas neces sidades vitais, Sera visto que o sistema politico nuer é coerente dde que mais se trata na parte final do livro sto © poro, a tribo e seus segmentos, 0 cla e suas linhagens, © os conjuntos etérios. Cada um desses grupos é, ou faz parte de, um conseqfentemente, o status de seus membros, ao agirem uns em relagio aos outros e em relagdo a estranhos, € ndo-diferencado. Tais afirmagies serdo elucidadas durante nossa Deserevemos, em primeiro lugar, o inter-relacionamento segmentos ierrit 08, &, depoi aquele sistema, O que entendemos por estrutura politica tornar- “se-4 evidente & medida que avangamos, mas podemos afirmar, como uma definigdo inicial, que nos referimos aos relacione- mentos, dentro de um sistema territorial, entre grupos de pessoas que vivem em areas bem definidas espacialmente e que 8. PONCET op. cit, pp. S4. No mapa da p. 129, eles figuram como orate Peerttrs 10 (OS NUER esto conscientes de sua identidade ¢ exclusividade. Somente ras menores dentre tais comunidades é que seus membros esto ‘em contato constante uns com 0s outros. Fazemos um: entre esses grupos politicos ¢ os grupos I principalmente os grupos domésticos, a familia, agrupada, que nio sio e nio fazem parte de sistemas sea: Flos e nos quais 0 status dos membros, uns em relagio aos outros e a tereeiros, é diferencado. Os lagos socials em grupos domésticos sao fundamentalmente de ordem de parentesco, ¢ a vida corporativa é normal sistema pol i todos os poyos com os quais eles tém contato. Por “povo”, queremos dizer todas as pessoas que falam a mesma lingua € que tém, sob outros aspectos, a mesma cultura e que se consideram diferentes de agregados semelhantes. Os Nuer, os Shilluk © os Anuak, ocupam, cada ‘um, um territgrio continuo, porém um povo pode estar distri- buido em éreas grandemente separadas, por exemplo, o Dinka. Quando um povo esti, tal como 0 centralizado politica: mente, podemos falar de uma “‘nagio". Os Nuer e 0s Dinka, Por outro lado, esto divididos em uma série de tribos que no ossuem uma organizaglo comum ou uma administragdo central, © pode-se dizer que esses povos constituem, em termos politices, um amontoado de tribos, que algumas veres formam federagées pouco rigidas. Os Nuer fazem uma distingSo entre as tribos que vivem na terra de origem a oeste do Nilo, daquelas ‘que migraram para leste do mesmo. Achamos conveniente fazer 4 mesma distingio e falar dos Nuer ocidentais e dos Nuer orien- tais. Os Nuer orientais podem ser ainda mais divididos, para finalidades de deseriglo, nas tribos que vivem perto do rio Zeraf ¢€ as que vivem a0 norte e sul do rio Sobat. entre os Nuer € a tribo. Nzo © maior segmento p seus membros ao ressarcimento dos danos. Uma tribo divide-se fem uma série de segmentos territoriais e estes constituem do que meras divisdes geograticas, pois os membros de ¢: consideram-se a si mesmos como comunidades di algumas yezes agem como tais. Denominamos os maiores segmentos tribais de “segdes primari segio ", 0s segmentos de uma maria de “segdes secundérias” € os segmentos de uma ccundiria de "segdes tercifrias”. Uma segio tribal tercidria consiste de uma série de aldeias, as quais constituem as, menores unidades polticas da terra dos Nuer. Uma aldeia é INTRODUGAO n formada de grupos domésticos, que ocupam aldeolas, casas e choupanas. Discutimos @ instituiglo do feudo € 0 papel que nele desempenha o chefe em pele de leapardo em relagdo ao sistema politico. A palavra “chefe” pode ser uma designagdo enganosa, mas é bastante vaga para ser mantida a falta de uma palavra mais adequada. Ele é uma pessoa sagrada sem autoridade politica. Na verdade os Nuer no tm governo e seu estado pode ser descrito como uma anarquia ordenada. Da mesma forma, falta-lhes a lei, se tomarmos este termo no sentido de julgamentos feitos por uma autoridade independente © impar- ‘ial que tenha, também, poder para fazer cumprir suas decisdes. Existem sinais de que ocorriam certas mudangas nesses as- pectos, ¢, m do capitulo sobre o sistema politico, descre- ‘yemos 0 surgimento de profetas, pessoas que abrigam os espi- ritos dos deuses do Céu, e sugerimos que, nelas, podemos pereeber os primérdios do desenvolvimento politico. Chefes em pele de leopardo e profetas sto 0s tinicos especialistas ri ‘que, em nossa opiniio, possuem alguma importincia politica, Depois do exame da estrutura politica, descrevemos 0 sis- tema de linhagem e discutimos o relacionamento entre 08 dois. As Tinhagens dos Nuer sio agnaticas, isto é, consistem de ‘pessoas que tragam sua ascendéncia exclusivamente através dos homens até um ancestral comum. O cla € 0 maior grupo de linhagens que pode ser definido tomando-se como referéncia as, regras de exogamia, embora se reconheca um relacionamento agnitico entre varios cls. Um la esté segmentado em linha- gens, que sio ramos divergentes de descendéncia de um ances- inamos os segmentos maiores em que se di sis méximas”, os segmentos de uma li- , 0s segmentos de uma ‘€ 0s segmentos de uma linhagem menor de . A Tinhagem minima & aquela normalmente mencionada por alguém quando se per- gunta qual é sua linhagem. Uma linhagem é, assim, um grupo dde agnatos, vivos ou mortos, entre os quais pode ser tragado um parentesco genealégico, e um cla é um sistema exogimico de Tinhagens. Esses grupos de linhagem diferem dos grupos polf- ticos pelo relacionamento de seus membros entre si, pois tal relacionamento baseia-se na ascendéncia e no na residéncia, pois as linhagens estio dispersas € no compOem comunidades locais exclusivas, e, também, pelos valores da linhagem, que ‘operam numa gama de situagdes diversas da dos valores politicos. Depois de discutiro sistema linear em suas relagdes com a segmentagio territorial, descrevemos sumariamente o sistema de INTRODUGAO 15 va ansioso para completar meu estudo sobre os Azande antes de empenhar-me em uma nova tarefa. Também sabia que um es. tudo dos Nuer seria extremamente diffcil. Sua regiao e carater sto igualmente intrativeis e o pouco que eu tinha visto anterior- Sempre pensei, e ainda penso, que um estudo sociolégico adequado dos Nuer era impossivel nas cireunstancias em que @ maior parte de meu trabalho era feito. © leitor deve julgar ‘que realizei. Eu the pediria para nao julgar com muito ois, se meu relato por vezes é insuficiente e desigual, eu ia que @ investigacao foi realizada em circunstancias desfavordveis; que a organizagdo social nuer é simples ¢ sua cultura pobre; ¢ que aquilo que descrevemos baseia-se quase Que inteiramente na observagao direta e nio esta acrescido de Hotas copiosas tomadas de informantes regulares, os quais, na verdade, nao tinha. Ao contrario da maioria dos G0 0s Nuer e devo julgar meu trabalho com maior se do que eles, ¢ posso afirmar que, se este livo revela muit ficiéncias, hhomem deve julgar suas obras pelos obsticulos que superou e as dificuldades que suportou, e, por tais padrbes, nao fico enver- sgonhado dos resultados. Pode ser que interesse aos leitores uma breve descrigao das condigdes em que realizei meus estudos, pois assim ficarao em melhores condigdes de decidir quais afirmagées provavelmente estdo baseadas em observagies sélidas e quais tém menos fun- damento. Cheguei a terra dos Nuer em principios de 1930, O tempo tempestuoso impediu que minha bagagem me aleangasse em Marselha, e, devido a erros pelos quais nio fui responsivel, ‘meus suprimentos de comida ndo me foram enviados de Mala. kal ¢ meus empregados zande nto receberam instrugdes de ir a meu encontro. Segui para a terra dos Nuer (regitio Leek) com minha barraca, algum equipamento e alguns suprimentos com- prados em Malakal, e dois empregados, um atwot e um bellan- da, escolhidos as pressas no mesmo lugar. ‘Quando cheguei a Yoahnyang’ no Bahr el Ghazal, os missionérios eat6licos de lé foram muito bondosos comigo. Es. ppetei nove dias as margens do rio pelos carregadores que me haviam prometido. Até 0 décimo dia, apenas quatro deles ti- ham chegado e, se nio fosse pelo auxilio de um mercador esta oportnidade pare informar aos letores que nfo grafei er de mode fonéico ccerente. Nao teaho sever de modo diferente, 16 OS NUER frabe, que recrutou algumas mulheres do local, eu poderia ter sido strasado por um periodo indefin Na manh seguinte, parti para a aldeia vizinha de Pakur, onde meus carregadores jogaram a barraca e os suprimentos no centro de uma clareira plana, perto de algumas casas, e recusa- ram carregéclos até a sombra, cerca de meia milha mais adiante. O dia seguinte foi dedicado a erguer minha barraca e a tentar persuadir os Nuer, por intermédio de meu empregado atwot gue falava nuer e um pouco de érabe, a mudarem minha mora- dia para perto da sombra e agua, fazer. Felizmente, um jovem, Nhial, que desde entio tem sido ‘meu companheiro constante ma terra dos Nuer, apegou-se a mim e, depois de doze dias, idiu seus compatriotas a car- ‘regarem minhas posses até os limites da floresta onde viviam. Meus empregados, que, como a maioria dos nativos do Sudio meridional, tinham terror aos Nuer, estavam por essa Gpoca tio assustados que, depois de varias noites em claro e com apreensio, escaparam para o rio a fim de esperar o préximo barco para Malakal, e eu fui abandonado com Nhial. Enquanto isso, os Nuer locais nio me davam uma mio para nada ¢ ape- znas me visitavam para pedir tabaco, expressando desagrado quando o mesmo lhes era negado. Quando cagava para alimen- tar a mim e aos empregados zande que tinham finalmente che- gado, eles tomavam os animais ¢ os comiam no mato, respon- dendo a meus protestos que, uma vez que os animais haviam sido mortos na terra deles, tinham direito ao mesmo. Minha principal dificuldade, neste estigio inicial, era a falta de habilidade para conversar livremente com os Nuer. Eu ndo tinha intérprete. Nenhum dos Nuer falava arabe. Nao ha- via uma gramética da lingua que servisse ¢, exceto trés breves vocabulérios nuer-inglés, nenhum dicionario. Conseqiiente- mente, toda minha primeira expedicio e grande parte da se- gunda foram ocupadas com tentativas de dominar suficiente- mente a lingua para poder fazer investigagées por meio dela, somente quem tentou aprender uma lingua muito dificil sem o auxilio de um intérprete e de uma orientagio literaria adequada sera capaz de apreciar plenamente a magnitude da tarefa. Depois de deixar a regio Leek, fui com Nhial © meus dois empregados zande para a regio Lou. Fomos de carro até ‘Muot dit, pretendendo morar nas margens do lago, mas 0 en- ‘contramos totalmente deserto, pois ainda era cedo demais para ‘a concentragio que ali ocorre todos os anos. Quando se podia encontrar algum Nuer, este se recusava a divulgar o paradeiro de acampamentos vizinhos e foi com consideraveis dificuldades que conseguimos localizar um. Erguemos nossas barracas ali e, quando os ocupantes se retiraram para Muot dit, nés os acom- panhamos. INTRODUGKO ” ‘Meus dias em Muot dit foram felizes e compensadores. Fiz, amizade com muitos jovens nuer que procuraram ensinar-me sua lingua € demonstrar-me que, embora fosse um estranho, eles no me consideravam detestivel. Passava horas, todos os dias, pescando com esses rapazes no lago © conversando com eles em minha barraca. Comecei a sentir que minha confianga voltava e eu teria permanecido em Muor dit se a situagao pol- tica tivesse sido mais favorvel. Uma forga governamental cer- cou nosso acampamento uma manha, ao nascer do sol, pro- curou dois profetas que tinham sido os lideres em uma re recente, fez reféns e ameagou levar muitos mais se os pro no fossem i identes poderiam tornar a ocorrer, e logo depois. ia casa ma terra dos zande, tendo executado um trabalho de apenas trés meses e meio entre os Nuer. Seria dificil, em qualquer época, fazer pesquisas entre os Nuer, e, no perfodo de minha visita, cles estavam extraordi- iente hostis, pois sua recente derrota pelas forgas governa- mentais e as medidas tomadas para garantir sua submissio final tinham provocado profundos ressentimentos. Freqiientemente, os Nuer tém-me dito: “Voo8s nos atacam, e contudo dizem que no podemos atacar os Dinka", “Vocés nos derrotaram com armas de fogo e nés tinhamos somente langas. Se tivéssemos armas de fogo, nds teriamos expulsado voces", e assim por diante. Quando eu entrava em um campo de criagdo de gado, fazia-o ndo somente na qualidade de estrangeiro, como também na qualidade de inimigo, ¢ eles pouco esforgo faziam para dis- fargar a aversio & minha presenga, recusando-se a responder a nudagies e chegando mesmo a dar-me as costas quando a eles. da visita que fiz em 1930 a terra dos Nuer, eu fio um pouco da lingua, mas tinha notas muito sobre seus costumes. Durante a estacéo da seca em para fazer nova tentativa, passando primeiro duas semanas na Missio Americana em Nasser, onde fui ajudado generosamente pelos funciondtios americanos e nuet, © indo, depois, para acampamentos de gado no rio Nyanding — uma es- liz, pois os Nuer de era mais hostis do que aque- les que até entdo eu havia encontrado, e as condi¢Ses eram mais duras do que quaisquer outras que eu havia até ento enfren- tado. A agua era escassa e sua, 0 gado estava morrendo de pes- te bovina e os acampamentos abundavam em moseas, Os Nuet recusavamse a carregar meus suprimentos e equipamento, e, como tinha apenas dus mulas, uma delas manca, era impos. sivel mudar de lugar. Afinal consegui obter um caminhio e des- vencilhar-me, mas nao antes de sentir o Nuer em seu estado de espirito mais paralisante. Como se fazia todo género de esforgo 18 (OS NUER para impedir minha entrada nos acampamentos de criacdo de gado e raramente tinha visitantes, estava quase que totalmente isolado de qualquer comunicago com o povo. Minhas tentativas de prosseguir na pesquisa eram persistentemente impedidas. Os Nuer sdo peritos em sabotar uma investigagao e, en quanto nio se morou com eles por algumas semanas, ridicula. izam firmemente todos os esforgos para extrair os fatos mais corriqueiros e para elucidar as préticas mais inocentes. Na terra dos zande, obtive mais informagdes em alguns dias do que obti- ve na terra dos Nuet em igual nimero de semanas. Depois de algum tempo, as pessoas estavam preparadas para me em minha barraea, fumar meu tabaco e mesmo fazer brinea- deiras e bater papo, mas no estavam dispostas nem a me rece: ber em seus abrigos contra o vento, nem a discutir assuntos sé. rigs. Perguntas sobre costumes eram bloqueadas com uma téc- nica que posso recomendar aos natives que sdo incomodados pela curiosidade dos etndlogos. A seguinte amostra dos métodos mi ‘comego de uma conversa,no rio Nyanding, sobre um assunto que pode ser um tanto obscuro, mas que, com boa von- tade de cooperar, po Eu: Quem & voo8? Cuol: Um homem. Eu; Como é seu nome? Cuol: Voeé quer saber meu nome? Eu: Sim. Cuol: Vocé quer saber mew nome? Eu: Sim, voc’ veio me visitar em minha barraca e eu gostaria de saber quem € voc’. Cuol: Esta certo. Eu sou Cuol. Como é seu nome? Eu: Meu nome é Pritchard, Cuol: Como é o nome de seu pai? Eu: O nome de meu pai também é Pritchard. Cuol: Nao, no pode ser verdade. Voc nao pode ter o mes- _-mo home que seu ps Eu: E 0 nome de minha linhagem. Como € © nome de sua linhagem? Cuol: Vocé quer saber o nome de sninha linhagem? Eu: Sim. Cuol: © que voct vai fazer com ele se eu disser? Voct vai levi-lo para seu pai Eu: Eu no quero fazer nada com ele. Eu s6 quero saber, ja que estou vivendo no seu acampamento. Cuol: Ah bom, nés somos lou. Eu: Eu nao perguntei o nome de sua tribo. Isso eu ja sei. Eu estou perguntando o nome de sua linhagem. Cuol: Por que voc® quer saber 0 nome de minha linhagem? Eu: Eu nfo quero saber, INTRODUGAO 19 Cuol: Entdo por que esté me perguntando? Dé-me um pouco de tabaco. logos a abrir caminho ‘a maluco com ela. De dil De Nyanding, mudei-me, ainda sem ter feito qualquer progresso conereto, para um acampamento de gado em Yakwac no rio Sobat, onde ergui minha barraca a alguns metros de dis tancia das protegdes contra o vento. Ali permaneci, salvo um pe- queno intervalo de tempo gasto na Missa Americana, por mais, de trés das dificul: dades iniciais h i -me membro de uma comunidade e a ser aceito como tal, especialmente depois de adquirir algumas cabecas de gado. Quando os ocu: antes do acampamento em Yakwac voltaram para sua aldeia terior, eu ndo tive meios para acompanhé-los e pretendia ver disso, um forte ataque -me para o hospital em Malai ai, para a Inglaterra. Um trabalho de cinco meses e meio foi realizado nes- ssa segunda expedigao. Durante 0 exereicio de um cargo seguinte no Egito, publi- quei, em Sudan Notes and Records, ensaios que formam a base deste livro, pois nao esperava ter mais oportunidades para visitar os Nuer. Entretanto, em 1935, foi-me concedida uma bolsa para pesquisa de dois anos pelos curadores Leverhulme, a fim de fazer um estudo intensivo dos Pagan Galla da Etiépia. Com a

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