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Celso Ferrarezi Junior Renato Basso Semantica, A ® semanticas uma introdu¢do Copyright © 2013 dos Organizadores Tadas os direitos desta edigao reservados 3 Ezditora Contexto (Editora Pinsky Leda.) Foto de capa Jaime Pinsky Montagem de capa e diagramacio Gustavo S. Vilas Boas Preparagio de texios Daniela Marini Iwamoto Revisio ‘Ana Paula Luccisano Catalogagio na Publicacio (ctr) ira do Livro, sr, Bras Junior e Renato Basso, ~ Sio Paulo : Contexto, 2013. Varios autores Bibliografia. ISBN 978-85-7244-801-7 1. Linguistica 2, Semantica I. Ferrarezi Junior, Celso. Il. Basso, Renato, 13-05037, DD-401.43 Tdices para catdlogo sistema inguistica 401.43 2. Semantica : Estudos 401.43 Eprrora Contexto Diretor editorial: Jaime Pinsky Rua Dr: José Elias, $20 ~ Alto da Lapa (05083-030 ~ Sio Paulo ~ se 1) 3832 5838 contexto@editoracontexto.com.br www.editoracontexto.com.br Sema@ntica Formal Renato Basso O que é a Sema@ntica Formal? Podemos encontrar as raizes da Semantica Formal nos silogismos aris- totélicos e nas reflexdes que foram por eles incitadas e que, num longo e muitas vezes tortuoso caminho, desembocaram na légica moderna (Kneale e Kneale, 1985). Porém, na Linguistica, a Semantica Formal é uma ciéncia mais nova, cuja forma atual tem cerca de cinquenta anos e cujas carac- teristicas definidoras so encontradas também na Filosofia e na Légica, quando essas duas disciplinas estavam preocupadas, no final do século xix, em dotar a Matematica de uma linguagem exata, livre de ambiguidades, vagueza e indeterminagdes. Uma das principais figuras desse movimento €0 filésofo, matematico e légico alemao Gottlob Frege (1848-1925), que revolucionou a légica ao formalizar a ideia de quantificadores, refutou a teoria ingénua do significado, dividindo essa nogao entre as nogdes de sen- tido e referéncia, e, com suas investigacdes, elaborou praticamente toda a agenda das questdes fundamentais em Semantica. Podemos também citar Bertrand Russel] (1878-1970), que, num texto de 1905, certamente um dos textos filos6ficos mais importantes do século xx, aplicou as ideias de Frege e algumas desenvolvidas por ele mesmo para a andlise do artigo definido em inglés (the); sua analise é um belo exemplo de como empregar as fer- ramentas légicas para a andlise da lingua natural e da busca pela “forma légica’ das sentengas das linguas naturais. Ameu ver, ha trés ideias principais por tras das reflexdes em Semantica Formal: fa)a lingua ¢ um sistema regrabn; [b).a wnespIthapan LAS DUDSALTDS 136 Seméntica, seménticas linguisticas é referencial; (c) 0 sistema linguistico é composicional. Essas ideias est4o no centro da teoria justamente porque ela assume, ancorada em razdes empiricas, que nosso conhecimento semantico é assim estrutu- rado. Na tradi¢ao formal, esse conhecimento é modelado através de uma metalinguagem légico-matematica. Além disso, uma nogao fundamental na Semantica feita atualmente éa ideia de “condigdes de verdade” (uma das facetas da ideia de que as linguas naturais s4o referenciais). A Seméntica Formal tem por objetivo fornecer as condigdes de verdade das sentengas de uma dada lingua, que é considerado 0 minimo que sabemos quando interpretamos uma dada sen- tenga. Por exemplo, para podermos afirmar que interpretamos a sentenga “Chico Buarque é um compositor” temos que ser capazes de discernir quais situagdes no mundo (ou num modelo de mundo) tornam essa sentenga verdadeira. As condigdes de verdade nos permitem relacionar sentengas a entidades extralinguisticas através do conceito de verdade: saber inter- pretar, em seu nivel mais basico, é saber atribuir condigdes de verdade. E importante notar que nao é o papel da Semantica dizer se uma dada sentenga é de fato verdadeira ou falsa — esse é um problema de verificagao empirica, que diz respeito a ciéncia; 4 Semantica cabe fornecer as condi- ges nas quais uma dada sentenga é verdadeira. Sabemos, por exemplo, as situagGes em que a sentenga (i) “Do outro lado da lua ha uma montanha em forma de cachorro” é verdadeira — basta haver, do outro lado da lua, uma montanha em forma de cachorro, pois isso torna (i) verdadeira —, mas nao sabemos efetivamente se tal sentenca é ou nao verdadeira, e esse conhecimento nao é da algada da Semantica. As trés ideias descritas anteriormente, que detalharemos melhor na sequéncia, foram articuladas por filésofos como Donald Davidson (1917- 2003) e Richard Montague (1930-1971), entre fins de 1960 e comego de 1970; eles, e outros pesquisadores, deram importantes passos filos6ficos e técnicos para 0 estabelecimento da Semantica Formal. Davidson (1967) talvez tenha sido um dos primeiros a relacionar uma teoria do significado com a Sintaxe Gerativa proposta por Chomsky, argumentando que as duas teorias acabariam convergindo, de modo que a estrutura semantica se re- lacione de maneira previsivel a estrutura sintatica; a opgao por uma teoria como a de Chomsky tem a ver com a caracteristica recursiva do sistema gerativo, que se alia automaticamente a ideia de composicionalidade — isso Seméntica Formal 137 nao quer dizer que a Sintaxe Gerativa seja a tinica a ser usada pelo seman- ticista; o semanticista precisa de uma sintaxe, ela pode, mas nao precisa ser a Sintaxe Gerativa. Por sua vez, Montague propés que nao ha diferengas significativas entre as linguagens légicas e a lingua natural — ou fragmen- tos das linguas naturais — e apresentou uma série de inovagGes técnicas e insights que permitiram o entendimento de varias estruturas linguisticas — com os avancos de Montague, a Semantica Formal péde de fato algar voo. Mas talvez a figura mais importante na historia recente da Semantica Formal das linguas naturais tenha sido Barbara Partee (1940-), justamente porque ela conseguiu juntar as ideias expostas anteriormente de um modo muito articulado e empiricamente interessante, mostrando de que manei- ra podemos efetivamente fazer semantica das linguas naturais. Um dos resultados disso é que nesses cinquenta anos aprendemos muito com a Semantica Formal sobre o funcionamento das linguas naturais, a ponto de alguns autores proporem universais e pardametros seménticos, em paralelo ao que ocorre com a Sintaxe Gerativa (ver, por exemplo, Chierchia, 1998). A primeira das ideias colocadas — a lingua é um sistema regrado — esta presente tanto no estruturalismo descendente de Saussure quanto em Chomsky. A contribuigo de Chomsky é, a um s6 tempo, individualizar a estrutura linguistica de sistemas légicos mais tradicionais, por ela apresentar propriedades peculiares (por exemplo, 0 movimento de constituintes), ¢ isolar a lingua ou 0 conhecimento linguistico num 6rgao mental possuido por todos e cada um dos seres humanos, separado de outros sistemas — com essa demarcagao epistemoldgica, podemos falar de estrutura linguistica sem nos remeter, por exemplo, ao entorno social. Desse ponto podemos reter a ideia de que a lingua tem uma estrutura propria, inclusive uma estrutura seméntica, que deve ser investigada. No entanto, para os semanticistas formais, a lingua nao pode ser um sistema fechado, justamente por eles assumirem que estruturas linguisticas se relacionam com algum tipo de estrutura nao linguistica — essa, mais uma vez, é a ideia de que a lingua é referencial. Partimos de uma intuigao muito basica: certos itens linguisticos, os nomes préprios, por exemplo, se referem a objetos em nosso mundo — “Luiz Inacio Lula da Silva” se refere ao individuo que foi presidente do Brasil entre os anos de 2003 a 2010. Nesse caso, relacionamos estruturas linguisticas (um nome proprio) com estruturas extralinguisticas (uma pessoa). 138 Seméntica, semanticas Por fim, a estrutura linguistica é potencialmente infinita, no sentido de que sempre podemos modificar uma sentenga ou estrutura existente (pense, por exemplo, nas oragées relativas que sempre podem ser acrescentadas a uma sentenga ja existente, como na histéria do cachorro gue mordeu o gato, que comeu 0 rato, gue roeu o muro, que era feito de tijolos...). Para poder- mos lidar com um objeto infinito, precisamos de uma metalinguagem que obedega ao principio da composicionalidade: o significado de uma expressao complexa é funcdo do significado de suas partes e do modo pelo qual esto combinadas. Sabemos 0 que “Brasil” significa, 0 que “presidente” e “ex” significam e sabemos combinar esses itens recursivamente, construindo sentengas como: “Luiz Inacio Lula da Silva é um ex-presidente do Brasil”, “Fernando Henrique Cardoso é um ex-presidente do Brasil”, “Dilma Rousseff é presidente do Brasil” ete. Podemos dizer entao que o objeto de estudo da Semantica Formal saio estruturas linguisticas composicionais que se relacionam sistematicamen- te com algo exterior a linguagem e permitem certos tipos de raciocinio, conforme veremos adiante. Ao falar das trés ideias anteriores, nado toquei diretamente naquilo que certamente vem a mente das pessoas que ja toparam com a Seman- tica Formal e que é causa de espanto para alguns e fascinio para outros: a metalinguagem légico-matematica. Emprega-se metalinguagem! nas disciplinas cientificas para a descrigdo precisa e transparente dos fe- némenos sob anilise, mas, além disso, a metalinguagem nos permite, em certo sentido, enxergar 0 que esta além dos fendmenos que esta- mos imediatamente descrevendo, revelando padrées antes invisiveis, e assim possibilita dar uma formulagdo tnica a enunciados linguisticos que diferem na forma gramatical, mas que se assemelham do ponto de vista de sua significagdo. Essas caracteristicas tornam a metalingua- gem também uma importante ferramenta heuristica com que podemos realizar previsdes verificaveis. A ideia é que conhecemos bem a metalinguagem e por isso podemos usa-la para descrever os fendmenos que queremos entender. No caso das linguas naturais, podemos usar a mesma lingua (no caso, 0 portugués) como lingua objeto ¢ metalinguagem — neste ultimo caso, acoplada a nogdes ldgico-matematicas.’ Tomemos a sentenga “Chico Buarque é um compositor” para dar suas condigdes de verdade: Seméntica Formal 139 linguagem objeto, sob analise (1) [{Chico Buarque é um compositor]] = v se e somente se [[Chico Buarque]] € {x | x € compositor} 0 individuo referido por “Chico Buarque” pertence ao conjunto dos compositores condigdes de verdade Podemos ler (1) como: “a sentenga “Chico Buarque é um compositor’ é verdadeira se e somente se o individuo referido pela expressdo ‘Chico Buarque’ pertence ao conjunto dos compositores”. Ao destrinchar 0 esquema em (1), vemos que ha uma sentenca entre colchetes duplos (que indicam interpretag4o); essa sentenga pode ser consi- derada verdadeira (esquematicamente [[s]] = v) se e somente se certas condi- Ges se realizam no mundo (ou modelo de mundo), justamente as condigdes de verdade da sentenga em questdo. Note 0 conectivo “se e somente se” ligando a sentenga em anilise (lingua objeto) a suas condi¢des de verdade, expressas pela metalinguagem. Tudo no esquema (1) é metalinguagem, com exce¢ao da sentenga s (“Chico Buarque é um compositor”). Além disso, © esquema (1) nos mostra que sentengas com a forma “sujeito-predicado” sao verdadeiras se e somente se 0 individuo referido pelo termo sujeito pertence ao conjunto referido pelo predicado, como pode ser verificado por “Joao é humano”, “Maria é loira”, “Lila é um labrador” — todas essas sentengas sdo verdadeiras se e somente se 0 referente do termo que ocupa a posigao de sujeito (Joao, Maria e Lila) pertence, cada um, ao conjunto dos humanos (Joao), loiras (Maria) e labradores (Lila). A vantagem de usar uma metalinguagem fica clara quando pensamos, por exemplo, em sentengas ambiguas. Uma sentenga como “Todo homem ama uma mulher” tem duas interpretagdes: (i) todos os homens amam uma mulher diferente, i. ¢., cada um ama uma, por exemplo, sua propria mae; ou (ii) ha uma mulher especifica que todos os homens amam. As interpre- tagdes (i) e (ii) podem ser explicitadas através da metalinguagem usada pela Semantica Formal como: (i) para todo homem / existe uma mulher m tal que ama m; ou (ii) existe uma mulher m tal que para qualquer homem h, h ama m. Esse tipo de ambiguidade € conhecida como ambiguidade de escopo e tem a ver com a montagem de duas formulas diferentes na 140 Seméntica, seménticas metalinguagem, uma para cada interpretagdo, a partir de uma sentenga ambigua em lingua natural. E interessante mostrar que essa ambiguidade s6 ocorre se tivermos sintagmas quantificados (encabegados, por exemplo, por “uma” e “todo”) nas posigdes de sujeito e objeto — “Joao ama uma mulher” e “Todo homem ama a Maria” tém, cada uma, apenas uma interpretagao (essa andlise, obviamente, langa mao de uma metalinguagem rudimentar). Na segao “Poderia me dar um exemplo?”, veremos mais sobre esse topi- co; agora, nos interessa apenas ilustrar as vantagens de contar com meio preciso para descrever de modo individual as interpretagdes possiveis, e uma metalinguagem inspirada na lgica desempenha muito bem esse papel. Arazao de usar uma metalinguagem “exata”, em suma, é a ideia de que podemos explicar os fenémenos que queremos entender (fendmenos linguis- ticos) através da “tradugdo” para um campo ou dominio que conhecemos (a metalinguagem ldgica); em outras palavras, a metalinguagem explicita os fendmenos linguisticos, é 0 meio no qual as explicagdes dos semanticistas sao formuladas, de maneira muito similar ao que os fisicos fazem quando langam mao da matemiatica para explicitar sua teoria. Como acontece com a relagao entre a fisica e a matematica, a metalinguagem empregada pelos semanticistas nao é apenas um exercicio de “traduc’io” ou de erudica pelo contrario, a metalinguagem tem carater preditivo e heuristico, ou seja, ao relacionar uma dada forma linguistica com uma formula logica, 0 semanticista diz como se interpreta aquela formula. Para resumir, a Semantica Formal é uma teoria sobre um certo tipo de conhecimento que nos fornece, através de uma metalinguagem légico- matemiatica que atende ao principio da composicionalidade, uma maneira sistematica de relacionar a lingua a uma realidade extralinguistica por meio da ideia de condigées de verdade, e assim explicar nosso conheci- mento seméntico. O que a Semantica Formal estuda? Na secao anterior, citamos alguns grandes nomes da Semantica Formal do passado e também alguns mais recentes. Antes do aparecimento desses pesquisadores, e em particular do trabalho de Barbara Partee, a Semantica tinha um tratamento informal e se resumia ao estudo de ambiguidade: Seméntica Formal 141 polissemia, sinonimia e relagdes como essas? — fendmenos que atualmen- te compdem em boa medida o que é conhecido como Semantica Lexical (ver capitulo “Semantica Lexical” deste livro). Porém, quando 0 estudo da relagdo entre a estrutura linguistica (sintatica e semantica, pareadas) a estrutura extralinguistica se sedimenta através da ideia de condigdes de verdade, o trabalho do semanticista passa a ser o de determinar como atribuimos condigdes de verdade as sentengas; e, dado que o sistema é composicional, também se exigird que ele explique qual é a contribuigdo dos blocos que compdem uma expressao complexa e 0 aporte semantico das relagdes sintaticas envolvidas. Falando nos grandes temas da Semantica Formal, nao seria incorreto dizer que, num primeiro momento, a Semantica se Ppreocupou mais com o papel do sintagma nominal. De que modo construgdes como “Lula” e “O presidente do Brasil” contribuem para as condiges de verdade de senten- gas como (a) “Lula chegou ontem” e (b) “O presidente do Brasil chegou ontem’? Essas duas sentengas, pronunciadas em 2010, podem ter, numa dada leitura, as mesmas condigdes de verdade, quais sejam: 0 individuo denotado ou referido por “Lula” (ou por “o presidente do Brasil”) (i. e., Luiz Inacio Lula da Silva) chegou no dia anterior ao proferimento da sen- tenga (“ontem”). Repare ainda que podemos dizer, em 2012, (c) “Lula nao é mais o pre- sidente do Brasil”, mas isso é muito diferente de dizer (d) “O presidente do Brasil nao é mais o presidente do Brasil”. Dado que a tnica diferenga entre essas sentengas € o sintagma nominal que ocupa a posigao de sujeito, uma das perguntas do semanticista sera: de que modo esses sintagmas nominais contribuem para que as condigdes de verdade sejam as mesmas numa certa ocasiao de proferimento, mas nao em outra? Perguntas semelhantes podem ser feitas com relagdo a fendmenos que tém a ver com o verbo e com o sintagma verbal, passando assim para o “dominio verbal”. Se alguém pergunta, por exemplo, “O que vocé ta fazen- do neste momento?”, sabemos que a pergunta trata do presente, mas nao podemos usar com felicidade a forma verbal do presente como resposta, € 0 mais usual aqui seria a forma do gerandio (“#” indica que a sentenca causa certo estranhamento): (2) # Agora eu vejo um filme. (3) Agora eu t6 vendo um filme. 142 Seméntica, seménticas Suponha agora que (2) e (3) séo respostas para “O que vocé costuma fazer agora?”; neste caso, (2) pode ser uma resposta adequada. Por que podemos usar 0 gertindio para expressar uma agdo presente (i. e., que acontece agora), mas nao o tempo verbal presente? E por que tanto 0 presente simples quanto a forma perifrastica podem expressar um habito? Quando é possivel usar 0 presente e quando é possivel usar a construgao com o gerindio? Em outras palavras, quais sao as condigdes de verdade do presente ¢ quais as da construgdo com o gerindio? Podemos, em suma, continuar definindo a tarefa do semanticista como a procura pelas condigdes de verdade das sentengas investigadas, mas temos que fazé-lo tendo em mente que nao ha sentengas isoladas; dar as condigées de verdade de uma sentenga isolada ¢, em grande medida, dar as condigdes de verdade de uma lingua, por conta do principio da compo- sicionalidade. Como as sentengas so compostas por elementos menores (construgées, palavras, morfemas), o trabalho do semanticista comega na sentenga e desce até os niveis estruturais mais basicos de construgdo do significado, retornando ao nivel das inter-relagdes entre sentengas. Por conta disso, os semanticistas tém prestado cada vez mais atencao, por exemplo, para as relagdes entre a semantica e a prosddia. Uma amostra simples pode ser dada pela sentenga “O Joao também comeu chocolate”. item “também” dispara uma pressuposicao; por exemplo, numas das tantas interpretagdes possiveis para essa sentenga, se dizemos “A Maria também veio”, é porque mais alguém veio. Mas a pressuposi¢ao introdu- zida por “também” pode estar ligada a diversos elementos na sentenga € a entoagao pode ajudar a saber qual elemento esta sendo considerado. Se lermos as sentengas a seguir interpretando o maitisculo como indicagao de proeminéncia na pronuncia, teremos interpretagdes diferentes:* (4) OJOA0 também comeu chocolate (alguém além do Joao comeu chocolate); (5) O Joao também comeu chocolate (além de comer, 0 Joao fez algo mais com o chocolate — comprou, vendeu, trouxe etc.); (6) O Joao TAMBEM comeu chocolate (além de chocolate, 0 Joao comeu outra(s) coisa(s)).* Hoje em dia sabemos que fenémenos prosédicos nao apenas nos aju- dam a decidir qual é a interpretag4o relevante, mas servem também para licenciar uma sentenga que sé é possivel com uma certa entoagdo0, como no exemplo a seguir: Seméntica Formal 143 (7) #Mulher discutiu futebol na festa. (8) MULHER discutiu futebol na festa. A sentenga (8) é, para muito falantes, melhor do que (7) — se esse for o caso, 0 semanticista tem que desvendar as raz6es para tanto. Assim, 0 objeto de estudo da Semantica Formal é qualquer item, forma ou manobra linguistica que de alguma maneira tenha impacto nas condi¢des de verdade das sentengas. Na pratica, esse estudo se faz indo das sentengas para as menores unidades significativas e retornando para 0 nivel da trama de sentengas. Como estudar algum desses fenémenos usando a Semantica Formal? Diante de duas ou mais sentencas (ou expressdes) que aparentemente difiram em condigdes de verdade, o primeiro trabalho do semanticista é (i) verificar se a diferenga entre as sentengas em consideragiio deve-se de fato as suas condigdes de verdade; feito isso, que é, em geral, uma tarefa bastante complexa, o proximo passo é (ii) deixar claro qual ¢ a diferenca em condigdes de verdade, especificando-as 0 maximo possivel; é necessario ento (iii) estabelecer qual elemento é responsavel (ou quais elementos so responsaveis) pelas diferengas de condigdes de verdade; para, final- mente, (iv) atribuir um papel e uma definigao a esse(s) elemento(s) dentro da metalinguagem utilizada, que se encaixe em todo o conhecimento ja estabelecido e nao fira 0 que se sabe ou supée estar correto. Para ilustrar, tomemos as duas sentengas abaixo: (9) Joao é rico ¢ generoso. (10) Joao ¢ rico, mas é generoso. Ha um paralelo entre (9) e (10), qual seja: ha duas sentengas unidas por “e”, em (9), e por “mas”, em (10), conforme o esquema “ e/mas y" (9 € vy estéio por uma sentenga qualquer). Mas elas dizem o mesmo? Quais so as condigdes de verdade das sentengas (9) e (10)? Em que situagdes, por exemplo, a sentenga (9) é verdadeira? Para que a sentenga (9), “Jodo € rico e generoso”, seja verdadeira é necessario que Joao seja rico ¢ que Joao seja generoso. Se pensarmos em 144 Seméntica, semanticas termos esquematicos, podemos elaborar 0 seguinte raciocinio: chamemos “Joiio € rico” de 9 ¢ “Joao é generoso” de y; dado que as sentengas podem ser verdadeiras ou falsas e que (9) é a combinagao de duas sentengas, 0 papel de “e” é selecionar uma combinagao especifica de valores de verdade, de modo que a sentenga (9) s6 sera verdadeira quando as duas sentengas unidades por “e” foram verdadeiras, como revela a tabela de combinagdes abaixo, em que v esta por verdadeiro e F por fals O|y/ ey v v v F F F E F V F Vv F Segundo a tabela, o item “e” das linguas naturais tem uma interpretagaio precisa: ele s6 comp6e uma sentenga verdadeira quando todas as sentengas que ele une sdo verdadeiras. Ha uma peculiaridade interessante com relagdio a essa anilise: se “p e y” é verdadeira, entdo, nos termos da tabela, “ye ” também o é, ou seja, se é verdade que “Joao é rico e Joao é generoso”, também é verdade que “Jodo é generoso e Joao é rico”. Ha certas sentengas em que a ordem é muito importante — “Joao morreu e Joao saiu” é estranha, mas nao “Joao saiu e Joao morreu”. Contudo, para 0 caso de (9) a ordem entre ser rico e ser generoso nao é relevante. O ponto interessante é que as condigdes de verdade de (10) sao as mesmas de (9), ou seja, “Joao é rico, mas é generoso” sé sera verdadeira se “Joao é rico” é verdadeira e se “Jodo é generoso” também for verda- deira.° Contudo, essa caracterizacdo obviamente nao basta para descrever (10), pois sabemos que (10) diz mais do que (9): em (10) estabelecemos uma espécie de contraste através do “mas”, espera-se que quem é rico nao seja generoso, mas Jodo quebra essa expectativa. Contudo, ja foi argumentado que a diferenga entre (9) e (10) nao esta nas condigdes de verdade: ambas sao verdadeiras nas mesmas condic¢ées, isto 6, se Joao & rico e se Jodo é generoso. Essa situagao nos coloca diante de duas alternativas: (a) podemos dizer que o “mas” exerce um papel pragmatico e semanticamente ele é idéntico 0 “e” (i, €., as condigdes de verdade de ambos sdo as mesmas), ou (b) podemos dizer que 0 “mas” propée um desafio ao semanticista, pois sua analise demanda a construgao de uma metalinguagem mais expressiva. Seméntica Formal 145 Poderia me dar um exemplo? Tomemos como exemplo de andlise em Semantica os determinantes, itens como “todo”, “algum”, “nenhum’”, “um”, “o”, “pelo menos dois”, “1 maximo trés”, sobre os quais j4 falamos um pouco. Como ressaltamos, a metalinguagem empregada pela Semintica foi criada por ldgicos e mate- maticos e faz um largo uso da teoria de conjuntos e da nogao de fungdo. Assim, o ideal para o semanticista formal seria analisar 0 fendmeno em tela com tal metalinguagem, fornecendo hipoteses verificaveis. Como € possivel fazer isso para o caso dos determinantes? Seriam eles passiveis de serem expressos através de nogdes logico-matematicas? Para a Semantica, do mesmo modo que nomes proprios como “Lula” se referem a individuos, todos os outros itens linguisticos tém, em principio, também uma denotacao ou referéncia, se referem a algo. Por exemplo, verbos intransitivos, alguns adjetivos e substantivos comuns se referem a um conjunto de individuos: “correr” se refere ao conjunto dos que correm; “verde” se refere ao conjunto das coisas verdes; “homem” se refere ao conjunto dos homens e assim por diante. Nosso objetivo entio ¢ saber qual € a denotag’o do determinante “todo” na sentenga a seguir, levando em conta suas condigdes de verdade e a hipétese de que “homem” e “corre” denotam conjuntos de individuos: (11) Todo homem ¢ inteligente. Quando a sentenga (11) é verdadeira? Intuitivamente, sabemos que ela é verdadeira se tudo aquilo que for homem for também mamifero; em outras palavras, para que (11) seja verdadeira, se algo ¢ homem, entao esse algo é mamifero, ou ainda, sendo (11) verdadeira, deve ser 0 caso que nao haja algo que seja homem e que nao seja mamifero. Assumindo que tanto “homem” quanto “mamifero” denotam conjuntos, podemos representar graficamente as condigdes de verdade de (11) através do seguinte diagrama: 146 dos Seméntica, seménticas conjunto dos inteligentes ou | conjunto dos homens ou H O que temos ¢ que 0 conjunto dos homens (11) esta contido no conjunto que sao inteligentes (1): todos os membros do conjunto 4 so membros do conjunto 1. Podemos dizer em nossa metalinguagem que a sentenga (11) expressa a relagdo de continéncia (indicada por C), tal que 1 esta contido em tar/ Se 1 (4 C1). Em outras palavras, o que o determinante “todos” faz é deno- se referir a uma das tantas relagdes que podem existir entre conjuntos. essa explicacdo estiver correta, podemos esperar, como hipotese, que os outros determinantes também denotem relages entre conjuntos. Para verifica-la, devemos analisar, nos moldes de (11), as sentengas abaixo, com os determinantes em itdlico: das (12) Algum homem é inteligente. (13) Nenhum homem ¢ inteligente. (14) Pelo menos dois homens sio inteligentes. (15) No méximo trés homens sao inteligentes. O primeiro passo da anilise é estar seguro sobre as condigdes de verdade sentencas em questéo. Uma primeira possibilidade seria que: + asentenga (12) é verdadeira se hd pelo menos um homem que é in- teligente; em termos de conjuntos, ha pelo menos um elemento que tenha as propriedades de ser inteligente e ser homem, ou seja, esse individuo pertence ao conjunto dos homens e dos que sao inteligen- tes. Isso é 0 mesmo que afirmar que a relagdo de intersecedo entre 0s conjuntos H e 1 ndo é vazia; * asentenga (13) é verdadeira se nao ha homem que seja inteligente; em termos de conjuntos, se nado ha um elemento que seja ao mesmo tempo homem e inteligente, ou seja, a intersecgao entre os conjuntos ne1é vazia; Seméntica Formal 147 * a sentenga (14) é verdadeira se hd no minimo dois homens que sao inteligentes; em termos de conjuntos, ha no minimo dois elementos que sejam homens e inteligentes, ou seja, a intersecgdo entre os conjuntos He 1 tem no minimo dois elementos; * asentenga (15) é verdadeira se nado ha mais do que trés homens que sao inteligentes; em termos de conjuntos, a intersec¢do entre os conjuntos 1 e 1 ndo tem mais do que trés elementos. Podemos representar essas intuigdes graficamente como a seguir, junto com sua nota¢do em teoria de conjuntos. (12) H I (13) H 1 / IHorl #0 lHall=o (5) (4) = Hat] 22 lHail <3 Aexplicacao da hipotese que apresentamos ilustra o funcionamento e cer- tas caracteristicas da semantica, da metalinguagem e de seu poder preditivo: (i) ela € uma teoria verificavel: para refutd-la, basta encontrarmos um de- terminante que nao denote uma relagao entre conjuntos ou basta encon- trarmos um uso de um determinante em particular, “todos”, por exem- plo, que nao estabelega uma relagdo entre conjuntos; (ii) faz previsdes: se algo é determinante, entdo deve denotar relagdes entre conjuntos; se “todos” indica inclusio de conjuntos, ele deve fazer 0 mesmo em todos os contextos em que aparecer; (iii) se da através de uma metalinguagem elaborada e robusta, cujas formu- las reconhecemos como isentas de ambiguidade: a teoria de conjuntos. Obviamente, 0 que fizemos anteriormente nada mais é do que uma exemplificagdo bastante superficial do que sabemos sobre determinantes, 148 Semantica, semanticas cujo objetivo é apenas ilustrar os modos pelos quais a Semantica pode iluminar nosso conhecimento sobre as linguas naturais. Quais so as grandes linhas de investigacao? Como dissemos no inicio, a disciplina da Semantica Formal das lin- guas naturais é ainda extremamente jovem ¢ ha, portanto, muito trabalho aser feito, em praticamente todas as areas que ela recobre. Sabemos ja um tanto de coisas, mas sobretudo sabemos como proceder diante de um novo. problema, quais sao os principais passos a serem tomados, as ferramentas a serem utilizadas etc., porém, com relaco aos detalhes ha muitos debates em aberto e muitas escolhas a serem feitas. Ha pelo menos dois tipos de trabalho que um semanticista formal pode realizar: um trabalho mais empirico, de analise de dados de linguas naturais, e um trabalho mais tedrico, no qual o pesquisador avalia as postulagdes e previsdes de uma teoria ou discute as bases de uma dada teoria semintica. Pensando no cenario brasileiro, 0 primeiro desses caminhos contribuira para a descrigao do portugués brasileiro (pp), uma lingua com mais de 190 milhdes de falantes, que ainda precisa ser mais bem compreendida; por sua vez, 0 segundo caminho é¢ interessante por conta dos didlogos que a Semantica tem com a Filosofia (da linguagem, da mente, da légica) e com a propria Légica. O px, por ser uma lingua relativamente pouco estudada na vertente for- mal, apresenta-se como um grande territério a ser explorado, seja por ele mesmo, seja em contraste com o portugués europeu. E possivel debrugar-se sobre as classes de palavras para entender seu funcionamento semantico, sobre itens lexicais especificos, sobre construgées particulares e sobre formas especializadas. Podemos nos perguntar, por exemplo, 0 que é um adjetivo e um advérbio do ponto de vista semantico e como identificd-los no ps. Tome-se a propaganda abaixo: (16) Skol é a cerveja que desce redondo. O item “redondo”, na forma do que seria o masculino, é um adjetivo ou um advérbio? Como justificar a resposta do ponto de vista semantico? E se a sentenga fosse “Skol ¢ a cerveja que desce redonda”? Tomemos agora as sentengas a seguir com o item “la”: (17) Joao foi la pra casa Seméntica Formal 149 (18) Eu sei la! O“la” em (17) e (18) € 0 mesmo? Da a mesma contribuigéo semantica? A construgao “tem + participio passado” é muitas vezes chamada de pretérito (perfeito composto), mas esse nao parece ser 0 caso. Tomemos as sentengas: (19) Jodo tem visitado seus pais. (20) 2? Joao tem visitado seus pais ontem. Imagine agora que a Universidade x fechou no ano passado, mas antes de fechar formou boas turmas. Ainda assim, sabendo que a Universidade x fechou, a sentenga abaixo parece muito ruim: (21) #A Universidade x tem formado bons alunos. Assim, apesar de ser ainda chamada de pretérito, tal construgdo nao serve para reportar eventos que ocorreram uma tnica vez no passado (20) nem eventos que no vao mais ocorrer (21). Sera mesmo que essa construgao trata de passado simplesmente? Em suma, o linguista que tem interesse em estudar a SemAntica do pp do ponto de vista formal encontrara fendmenos que precisam ser ainda descritos e outros que precisam ser mais bem compreendidos em pratica- mente qualquer “canto” da lingua. Notas "De fato, 0 recurso a uma metalinguagem é normal em qualquer tentativa de explicarfatos inguisticos (sintti- 0s, fonoldgicos etc.); o recurso.a metalinguagens logicas, proprio da Semantica Formal, ¢justificado pelo fato de que essas metalinguagens foram construidas de modo a ser, entre outras coisas, isentas de ambiguidades. Ao leitor mais versado em filosofia, ldgica e matemética ficard claro que a metalinguagem que usamos aqui € 0 cileulo de predicados de primeira ordem. As formulas desse célculo podem ser interpretadas através da teoria de conjuntos, € por isso apelamos a nogdes vindas dessa teoria, provavelmente mais conhecida, ‘Um dos objetivos dessa Semiintica era explicar 0 significado das palavras, ou seja, que caracteristicas deve apresentar um objeto, para receber corretamente uma ceria denominagio. * Esse tipo de problema deu inicio a0 que hoje conhecemos como Semintica de Alternativas, um ramo que tem fortes ligagSes com teorias de informacao, o que jé sabemos e o que estamos colocando como novidade, mas suas raizes se encontram nos estudos ancoradas na “perspectiva funcional da sentenga’ * Aprocminéncia acentual desta interpretagio pode recair sobre toda a expresso “também comeu chocolate”. Imagine que Joao nao seja rico — nesse caso, (10) ¢ falso; imagine que Jollo nfo seja generoso ~ nesse caso (10) também é falso; logo, (10) & verdadeiro se Jodo € rico ¢ ¢ generoso.

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