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A QUESTAO DO METODO NA CONSTITUICAO, DA TEORIA SOCIAL DE Marx" \ Epson Marceto Huncaro”™ Consideragées iniciais’ | discussdo do método naquelas que se convencionow cha- A= de ciéncias humanas e sociais sempre carregou um | alto grau de complexidade. Podemos identificar sua gé- | nese, na modemnidade, nas elaboragdes de Descartes (1973) e, em } seu desenvolvimento, desde o século XVII, até a presente data, quando se fizeram rolar muita tinta e muito esforgo intelectual de indmeros pensadores do ocidente. Em acorda com Lukcs,julgamos que ao fnal da claboragd0 dos Grundhisse (1857/1858), Mare jé dispbe de seu conjunto de categorias com 0 qual empreendera a elaboragio de O capital. Assim, nossa andlise tataré de uma selepdo de textos até 1857, especialmente aqueles que nos ajudam a | entender a constituigho da teria socal de Mars. E obvio que, na seleglo, \ alguns textos elissicos ficaram de fore, mas foram lidos e alimentaram a andlise (como slo 0s casos do “Manifesto do Partido Comunista" e do “I8 Brumério”). "Professor da Faculdade de Educasio Fisica da Universidade de Braslia (FEF/UnB), vineulado ao Programa de Pés-Graduaglo em Educaglo Fisica, Doutor em educagdo fisica pela Universidade Estadual de Campines (Unica) e mestre em servigo socal pela Pontificia Universidade CatSlica e Sao Paulo (PUC-SP). Coardena, em conjunto com 0 professor doutor Femando Mascarenhas, o Grupo de Pesquisa e Formacdo Sociocritica em Educagio Fisica, Esporte e Lazer (AvaNT®) ‘Nas citagdes, os trechos em negrito so destaques do autor, e os em itélico sho do original (N. da E), 16 | O métado dalésico na pesquisa em educagao . _ Acgénese desse complexo debate coincide com o processo 4e crise da ordem feudal e de suas tepresentades mentais. Como se sabe, o feudalismo supunha uma visio teocéntrica de mundo nna qual a verdade era patriménio de poucos ¢ um ato de revela- eo divina (Hetzer, s.d.). © pensamento modemo, desde sua génese (no Renascimento), iré se defrontar com tal viso teocéntrica ¢ re- conhecera que a verdade é uma descoberta da raz e no uma revelagdo (Heiter, s.d.). Aos seres humanos € possivel a desco- berta racional da verdade. Bis a afirmagao, 0 mesmo tempo, do racionalismo ¢ do humanismo! Eis, do ponto de vista do pen- samento, a passagem do teocentrismo para 0 antropocentrismo! Tal reconhecimento dessa possibilidade de acesso 4 ver- dade pela razdo humana coloca uma problemética a ser enfren- tada: como conhecer? A resposta a essa questio fundamentou imimeras elaboragbes de cardter metodolégico. Algumas delas frontalmente colidentes — vejamos, por exemplo, as elaboragées empiristas de David Hume (1973) em confronto com as formula- ‘9Ges cartesianas que julgam ser a experiéncia (a empiria) fonte de ‘erro ~ mas todas, as suas maneiras, reafirmando o reconhecimen- to de que é a raziio humana que distingue 0 verdadeiro do falso ‘Vé-se, portanto, como é complexa a discussdo sobre méto- do no pensamento ocidental ~ tanto do ponto de vista da grande- za do debate quanto do ponto de vista das polémicas envolvidas. Tal complexidade é ainda maior quando a empreitada intelectual tem por objeto a questo do método em Marx, por algumas ra- 25es que relacionamos a seguir: a) Marx, diferentemente de Descartes, de Weber e de Durkheim, ndo escreveu um tratado sobre método. Poucas so as paginas, na obra de Marx, destinadas a discussto metodolégica ~ algumas compostas com Engels na Ideologia alemd, em 1845/1846; outras so encontradas em sua polémica com Proudhon na Miséria da filosofia, em 1847; outras poucas, mas significativas, na Introdugdo de 1857; mais umas poucas paginas no “Prefaicio” ¢ no “Posfécio” a segunda edigo de O capital (Huncaro, 2008). { ) A questo do método na consttuigdo da teoria social de Marx | 17 ) Inimeros foram os tratamentos equivocados do pen- samento marxiano, seja por parte de seus proprios se- guidores, seja por parte de seus detratores. No campo daquilo que se convencionou chamar indevidamente de marxismo ~ melhor seria “marxismos” — & possivel que se identifiquem péssimas tradigées que muito mais ser- vviram para adulterar e falsificar o pensamento de Marx! ©) A trajetéria e a recepeao da obra de Marx foram, histo- ricamente, marcadas pela censura c pela repressio, pois se trata de uma obra vinculada a uma perspectiva revo- lucionéria, Sua correta interpretagdo sempre teve contra si as deformagbes originadas pelas reagdes aos supostos teérico-metodolégicos resultantes da elaboragdo mar- xiana. Sobre isso é exemplar a brilhante observacao de Paulo Netto (2011, p. 10): “Durante o século XX, nas chamadas ‘sociedades democraticas’, ninguém teve seus direitos civis ou politicos limitados por ser durkheimia- no ou weberiano ~ mas milhares de homens e mulheres, cientistas sociais ou nao, foram perseguidos, presos, tor- turados, desterrados ¢ até mesmo assassinados por se- rem marxistas”. 4) Como resultado das transformagées sociais recentes (Pauto Nero, 1996) ~ especialmente aquelas notadas no ambito politico ~, no debate das chamadas ciéncias sociais ¢ humanas ~ impactado pelo fim do chamado so- cialismo realmente existente (Hosspawnt, 1995) e, con- sequentemente, dos Estados Sociais -, Marx é tido por muitos como ultrapassado, como um pensador jé supera- do, Para esses muitos, o fim do socialismo representou, 20 mesmo tempo, o fim de Marx (EvaNoetista, 1992). ©) Aambiéncia cultural e politica contempordnea ¢ avessa a impostagdo ontolégica de Marx (Pavto Netro, 2002) Para alguns autores que se denominam pés-modemnos, 08 problemas contemporéneos tém como raiz a manei- ra modema de pensar (Woop, 1999; EvaNoEuista, 1992; 1 Fugiria totalmente a0 escopo desse texto, especialmente em sua introdugo, a abordagem detalhada dessas tradigbes. 18 | 0 nétodo dialético na pesquisa em educagdo Huncano, 2001), ou seja, 0 projeto da modemidade e fa razio dele derivada. Tal critica, como se sabe, peca por excessiva generalizagdo — uma vez que tats Marx © Comte da mesma forma, jé que sto representantes da “totalitéria maneira modema de pensar”, sem perceber que, na modernidade, é possivel identificar, 20 menos, dois vieses: um instrumental ¢ outro revolucionério/ emancipador. Marx é, indiscutivelmente, berdeiro do viés emancipador. ) Essa ambigncia contemporinea acaba por trazer uma importante problematica: como 0 debate pés-modemo entifica a razio (Woon, 1999), desconsiderando a his- toria (“o problema da humanidade € a totalitéria razio modema”), ele acaba reduzindo os homens a sua capa- cidade de saber e, assim, reduz-se fundamentalmente & discussdo epistemol6gica (0 que chamamos de “episte- ‘mologismo”). Tal ambiéncia resiste a uma elaboragao de cariz.ontologico como a de Marx (pela ética de Lukécs). ‘A demonstragio da complexidade do tema, na sintese con- signada, contextualiza 0 nosso ponto de partida, uma vez que ele @ uma tentativa de enfrentamento & complexidade aludida ¢ a suas resultantes. Na contracorrente do “epistemologismo” reinante, nfo tra- taremos a questio do método independentemente do “espirito” da obra de Marx. Nao ha, em Marx, um tratamento metodolégi- co auténomo, A compreensio de seus poucos, mas riquissimos, ‘apontamentos metodoldgicos exigem, ao mesmo tempo, © enten~ dimento do significado de sua obra (a que ela se destina), bem ‘come o processo de sua constituigao. Nosso ponto de partida para a compreensdo da obra mar- xiang € 0 de que ha nela uma nova teoria social (LukAcs, 2007). Empreendendo uma critica economia politica cléssica ~ a pri- meira elaboragtio de uma teoria social na modernidade -, Marx acaba por constituir ~ numa trajetéria riea e acidentada — uma nova teoria social. ‘Tal compreensdo supde que muito mais do que procedimen- tos lgicos (uma nova epistemologia, um “paradigma” de andli- se, um conjunto de conceitos ou um “método de abordagem”), A questbo do método na constituicto da teoria social de Marx | 19 Marx nos deixa como heranga uma compreensifo teérica sobre um determinado objeto de investigagao: a ordem burguesa — modo de produgio capitalista. mene ‘Nessa ética, Marx tratou de investigar a génese, o desenvol- vimento, a consolidaglo e as crises da ordem burguesa (PAULO Nerro, 2011) — a organizagao social que estd fundada no modo de produgdo capitalista?. Claro que o fez de uma perspectiva ra- dicalmente distiota daquela da economia politica clissica — tanto que nomeou a sua de Critica da economia politica. ‘J4 que partimos do suposto de que a obra marxiana ¢ a cons- tiuigdo de uma nova teoria social, cabe-nos expictar 0 enten- dimento de tedtia aqui consignado. Teoria é a reprodugo ideal 1o movimento do real (PAUL Nerro, 2011). Isso significa uma concepsio ontolégica de teoria, ou seja, nao ha nada que se passe na consciéncia que néo se tenha passado previamenie na propria realidade; assim, “reprodugdo ideal” significa a “reconstrugio”, no plano das ideias, de algo que se passou, anteriormente, na realidade, Porém, essa mesma realidade é compreendida como uma processualidade, como movimento, enfim, como vir a ser gue carga em ‘elementos de superagao e de continuidade. A vestigagao sobre o soci wrt 4 mu ives obo al nao é, portanto, uma “fotografia”, um E nesse sentido que supomos a obra de Marx como uma teoria social, mais especificamente, como uma teoria social da ordem burguesa. Uma rica tentativa de compreensao de um de- terminado sujeito investigador a fim de apreender os determi- nantes constitutivos de certa organizagdo social — o capitalismo. Pore Siferentemente de outros “tedricos do social” (entre eles, onomistas politicos classic cl ‘ poltensubvendn essa nnem cal svewekeke nea, partimos, aqui, do “ponto de chegada” sobre a re- dio marxiana, ou seja, de que ela nos fez herdeiros de uma nova teoria sociel, cabe, enti, recuperar 0 processo de consti- ‘tuigdo desse “poato de chegada”. Em outras palavras, devemos 2 Ouros pesquisadores também se ocuparam dessa problemitica — ndo no mesmo enfoque (como Durkheim e Weber, por exemplo) -, ‘mas as diferengas estio na perspectiva de anise, na con -metodolégica e na perspectiva politica r ne onesie ees 20 | O método dialérico na pesquisa em educacdo recuperar seu processo de apreensio dos determinantes constitu tivos do movimento de seu objeto de investigagio. Trata-se, como veremos, de um processo “inaugurado” em 1843, 0 qual, numa trajetdria “acidentada’, estaré consolidado em 1857/1858. Em 1843, Marx se pe as voltas com o entendi- mento da relagio entre Estado e sociedade civil, instigado por sua leitura da Filosofia do direito de Hegel, ¢ percebe que o des- ‘yendamento dessa questio exigiria a compreensao do que € a s0- ciedade civil, De 1843 a 1857/1858, Marx se enfrentard com esse abjeto até “concluir” o processo de aquisigzo do “arsenal cate- gorial” necessério A sua compreensto. De 1857/1858 em diznte, Teremos a fase de maturidade intelectual de Marx, na qual sero consignadas/expostas as suas mais geniais descobertas. A década de 1860 é sua fase mais produtiva. De meados da década de 1870 até o final de sua vida, sua produgdo decairé. ‘Antes de recuperarmos esse proceso a que nos referimos, cabe, ainda, uma tltima observagdo ~ que jé foi relativamente aludida: essa recuperagio do processo de construgio da obra tnarxiana é absolutamente necessaria pela propria especificidade do autor, O entendimento dos fundamentos teérico-metodolégi- cos de Marx s6 € possivel em concomitancia com a apreensio de sua andlise te6rica, Em sua obra, Marx no estabelece um trato metodolégico auténomo, A ele no interessava uma discussio sobre as condigdes para se conhecer (epistemologia), interessa- varlhe muito mais as condigdes para entender um objeto deter- minado a ordem burguesa. Ha, portanto, uma subordinagio da preocupagao epistemolégica & impostagao ontolégica. ‘A origem do problema de investigagio: a critica A Filosofia do direito de Hegel (1843) Fracassado seu projeto de se tomar professor université- rio ~ inviabilizado pela ascensio de Frederico Guilherme IV 20 poder, o qual, entre outras medidas, promoveu um processo de limpeza, na universidade de Berlim, das infiuéncias hegelianas (a que Marx se fliava intelectualmente) — hé que se buscar uma altemativa profissional, e Marx ingressa, assim, no jornalismo. Vai trabalhar na Gazeta Renana — um jornal financiado pe'a des~ contente e frigil burguesia alema e rapidamente se toraa seu A questo do método na constiruigdo da teorla social de Mare | 21 redator-chefe. Uma vez no jomal, Marx passa a criticar Frederico Guilherme que, por sua vez, coloca problemas ao jomal? Em 1842, Frederico Guilherme impde um decreto impe- rial que toma a coleta de lenha ilegal e, portanto, criminalmente imputavel. Essa coleta de Ienha, por parte dos desvalidos, era um direito consuetudinério que compunha uma antiga tradigao. Conclusto: ha um forte movimento de resisténcia a essa medida, cans como jornalista que era, fica responsabilizado de noticiar Marx, entio, escreve um artigo com o objetivo de defender 0s coletores de lenha, porém pereebe que a sua defesa carece je fundamentigao tedrico-politica. Ou seja, a sua formago em filosofia nfo Ihe deu condigdes te6ricas pata uma corretainter- pretagao dos acontecimentos, Sua defesa dos coletores de lenna deveu-se muito mais a principios ético-humanistas. ‘A débil burguesia alema, financiadora do jomnal, consegue, entdo, o que pretendia com os ataques ao monarea (um acordo que The beneficia) e corta as verbas que o sustentavam. Marx, assim como seus colegas de jomnal, fica desempregado, . Da experiéncia no jornal, Marx recebe algumas influéncias: (i) ele nota que a formagao de filésofo era insuficiente para lidar com a histéria em seu cotidiano processo de construgdo — propria da atividade jornalistica; (if) percebe a debilidade da burguesia alema e os conflitos de classes; (iii) tem seu primeiro contato com poli € percebe que nao ha como se reivindicar ética Em virtude de suas insuficiéncias ¢ 1843, Marx decide seguir paren, em Pan afin coder Além dessa, outras duas razSes 0 motivaram. Uma dessas foi o convite de Ruge para, com ele, editar uma revista de refugiados alemaes na Franga — 0s Anais Franco-Alemdes; a outra razio é 0 fato de ser Paris (no pés-década de1830) uma espécie de micro- cosmo do mundo. Antes de seguir para a capital francesa, casa- -se, e passa algumas scmanas em Kreuznach. Nessa cidade, em- preende estudos sobre a histéria da Revolugao Francesa e sobre a Ha uma cole nea que traz dois interessante at Hina cole igosexcrtos por Marx acer- os problemasenfentadns com omonarea. Esa coletines ee depo- nivel par oletor brasileiro em Mare (2006). 22 | Ométodo dialético na pesquisa em edueagdo ‘modema teoria politica (de Maquiavel a Rousseau). Na ercpreita- da, mazeado pelos acontecimentos recente e por sus preocupasao com a realidade alema, confronts-se com um texto de Hege! ave aborda as relagdes entre a sociedade civil e o Estado, Trata-se ‘uma obra, de 1821, intitulada Filosofia do direito. farx considerava a Filosofia do direito de Hegel como a mais wvsnads expresso tedrica do Fstado modero €, portato, pare ‘ jovem publicist, eriticar a obra equivalia a criticar a propria realidade que the servia de referéncia. Como Marx, contraria- mente a Hegel, desconhecia ainda a economia politics, estavs desarmado para uma refutacfo profunda das analises do seu ad- versirio [FReDERICo, 1995, p. 52}. ara Hegel, a sociedade civil é 0 “reino da miséria fisiea € racionelmente organizado, segundo Hegel, é pela intervengio Go Estado, o qual é entendido como principio racional oreanizader da sociedade civil. Para esse filésofo alemto, arian, Est mi za racionalmente a sociedade civ sa PEAS, Marx enfrentava obra egeliane fia a ela imimeras criticas, as quais, sob a influéncia de Feuerbach, cons tatavam que, na Filosofia do dieito, Hegel empreendia com 0 Estado a mesma mistificagdo, notada por Feuerbach, operada no ‘Fenomenologia do espirito. Ou seja, na compreensio ds relaglo fea plémin de Feuerbach com Hes us Feet ramen esi reeset Hel na Fenomevaloge do cera ure alo mre ee esp Exec en Seer pop dncteae Nese porn de asociceanen Sa ue pac oman ie nex), Conran a a ee mands modicanse,aearse eps o8 Oe, gaoe ava wa nova relidade ~ 9 “espFtO sTnando”, Tem-se, aqui, a Fanos triade da dialésica hegeliana: afirragto, “Ryo cero danentn, Lsvig Pevtach em 641, o=reve cree ele ence de ransn, etapa cm 2 pe eae vce cnc desta i Tee eve ach of Desa qo co omens ooo eros turers que, ascohecndo sus eas potas, oa gra al gu Deo dese). Pane, pore eee una niente clean out €redca como ee owns sata como pedads A questo do método na constituicdo da teoria social de Mars | 23 entre 0 Estado e a sociedade civil, Hegel, mais uma vez, invertia predicado ¢ sujeito. Como vimos, para Hegel, o Estado funda a sociedade civil. Seguindo 0 “espirito” da critica de Feuerbach a Hegel, Marx elege, entretanto, outro objeto: o Estado. Marx, contudo, elege como abjeto a ser desmistificado no um produto da conscigncia, mas um ser material: o Estado, que sempre se faz acompanhar de uma pesada burocracia e de um truculento e ameagador aparelho repressivo. A critica da politica langou-o num territério destoante do onirismo que circunsere- via a infiexdo feuerbachiana, A quimera da religido, responsével pelo exilio da esséncia humana no além, cede agora lugar a0 Estado politico, entendido como uma projeglo iluséria de um ser material [FREDERICO, 1995, p. 56], Embora inspirado em Feuerbach, Marx nao deixa de notar as limitagdes dessa fonte inspiradora. Para ele, a compreenséo feuerbachiana de Estado é muito complicada e representa até um rretrocesso se comparada a da Filosofia do direito. Em uma carta ‘a Ruge, datada de 13 de margo de 1843, Marx expressa sua reser- ‘va com Feuerbach. José Paulo Netto (2004, p. 27) esclarece-nos a respeito dessa questi: Mais flagrante ainda é a separagdo que se verifica entre Marx e a sua “fonte” unanimemente mais citada, Feue:bach. Mencionei que a leitura das Teses provisérias...provocou em Marx uma reasdo muito positiva, expressa em carta a Ruge (13/3/1843) Entretanto, nessa missiva, ele escreve também: “Os aforismas de Feuerbach apenas no me persuadem [...} enquanto pouco referidos a poitca”, A reserva no é um detalhe - e adquite seu peso real se voltamos os ofhos para as escassas atengdes aque Feuerbach dedica ao Estado nas Teses provisdrias... Nelas, 0 Estado aparece como a “explicta, desenvolvida e realizada totalidade do ser humano”, com o soberano visto como 0 “re- presentante do homem universal”, ja que “deve representar in- distintamente todas as classes” que, em face dele, “sto todas igualmente necessérias e possuem todas os mesmos direitos” (Feuzsaact, p.67). Estas colocagées mostram realmente, um re- trocesso em comparagio com a Filosofa do diveito; no plano po- lito, Feuerbach continuava (como Marx haveria de esclarecer posteriormente) encarcerado em concepedes que expressavam 24 | O método dialtico na pesquisa em educagao ‘oe limites do sen materialismo. Se se diz, portanto, que a Circa [eareferéncia, aqui, é aos Manuscrites de Kreuznach] incorpora muito das teméticas e ideias feuerbachianas, para que @ afirma- ao nfo redunde em equivoco € necessirio dar realee, ao mesmo Tempo, 20 fato verificavel de que, no plano politico, ela € tam- ‘bém uma polémica contra Feuerbach, ‘Apesar da critica, ha congruéncias. Marx, assim como Hegel, interpreta que a sociedade civil € 0 reino do privatismo, dos interesses particulares, da “miséria fisica ¢ moral”, porem, diferentemente do que afirmava o velho fildsofo, é ela que fun~ da o Estado. E a sociedade civil que permite a compreensio do Estado, ja que este nada mais é que a expresso daquela. Ora, se Estado nada mais é que a expresséo da sociedade civil que 0 funda, no representa em absoluto a universalidade, o principio organizador do “reino da miséria fisica moral”. (© resultado desse estudo foi a produgdo de um caiet- no de anotagdes — que Marx no pretendia publicar, pois cram tao somente anotagdes de estudo ~ 0s Mamuscritos de 1842 ou Manuscritos de Kreuznach ~ publicados em 1927, com 0 titulo de Critica da filosofia do direito de Hegel. Contra a Filosofia do direito de Hegel, que the parecia uma armagao ldgica mistficadora da vida social, Marx levantou-se ‘com a impetuosidade de um jovem polemista recém-saido de tuma experiéncia jomalistica de luta contra o Estado prussiano. Os Manuscritos de Kreuznach formam um momento iinico na histbria da filosofia, momento em que um pensador ainda imatu- ro enfrentou, num combate decisivo, a obra de um filésofo con- sagrado, no seu momento de mais extremado conservadorismo [Faevsrico, 1995, p. 52] Dessa atividade de estudos, dois ensinamentos foram tira- dos: 0 primeiro € 0 de que para entender o Estado faz-se ne- cessirio entender a sociedade civil; 0 segundo diz respeito a0 fsclarecimento, por Marx obtido, dos limites de uma aborda- fgom filoséfica, ou de uma abordagem juridico-politica, para se entender o Estado. Bis os pontos revolucionérios dessa critica 4a Hegel. Eles apontam para uma refiexio histérico-sistematica Marx, ao empreender a critica & politica levando-a além das fron- teiras juridico-politicas, inicia uma critica a sociedade. Sinaliza A questo do método na constituicso da teoria social de Marx | 25 um itnsito da erica politica & ertioa da sociedade, embors este tltimo néo seja, ainda, levado as tltimas consequéncias, A vsibildade deste emergente process tedrico-metodolégico € indiscutivel se nos atvermos 0 principal nicleo problemético que Marx enfenta: a relagao Estado/sociedade civil. A Critica ‘ity 96 “invert u explicagao genética proposta por Hegel, de- monstrando os atfcios ldgicos que sustentam a construgdo nistificadalmistiicadora da Filosofia do direito. A “inversio” vai necessariamente acompanhada de uma nova compr lética, com 0 Estado posto nfo mais como mediasdo universal dos interessesprivados e gerais e sim como instanciaalienada da representagdo (também alienada) da contraposigto privado‘pi- blico~aautonomia que a Filosofia do iret confer ao Estado, 4 “esfera piblca” como tal, é dissolvida pela remisso a vida social. E nlo sé no eixo temitico Estado/sociedade civil o men- cionado process ¢ verificdvel: também o é, decorrentemente, na critica teoria hegeliana da representacdo, na funcionalidade da constituiglo, na concepgto de soberania e, marcantemente, na detecgio das relagdies entre propriedade, trabalho e cidadania, 3 res es pasos como ma conepto de demoeracia gue toda a Critica exsuda, o politico remete 20 social (Pav tt eae, pln rene 0 il fat oNero, Temos, como se vé, ji na Critica de i 7 V8, jd na Critica de 1843 0 primeiro passo ‘de Marx rumo a teoria social. Nelajé esth manifesta sua preoou- ‘pagdo fundamental: a compreensdo das relagdes sociais consti- tutivas do Estado, Sobre isso, conclui Paulo Netto (2004, p. 30 “Aooriginalidade do manuserito de 1843, nesse linha interpretat- "a, reside no gio que ele documenta: Marx transcend os limites da critica ant-hegeliana ao encaminhar a sua resoluglo para fora do politico, ao impeli- para o dominio do social. A critica do Estado ~e da sua representagiofloséfica abstrata ~ hipotecada 4 critica da sociedade civil (burguesa). Marx esté encontrando, bau pontadeqel "ho conduor"a gue pemnaecer ae até seus ultimos dias. aver Soferade Desdobra-se dei, para Marx, um . , , um problema investigativo: se a sociedade civil que funda o Estado, o conhecimento deste 26 | O método dialetico na pesquisa em educaso liltimo demanda o conhecimento da primeira. Mas como conhe- ‘cet a sociedade civil? Como compreender 0 “reino da miséria fi- sica e moral”? Sobre isso, Marx ainda néo possuia pistas s6lidas. Ele s6 as encontrard, em 1844, no autoexilio em Paris. ‘A evolugio parisiense ~ da emancipagiio politica & ‘emancipacdo humana como tarefa do proletariado No final de novembro de 1843, Marx chega a Paris, ¢, de- pois de instalado, dedica-se & publicagdo da revista a qual havia Fido convidado a editar com Ruge: os Anais Franco-Alemaes. ‘Na edigio da revista, toma contato com um artigo de um jovem alemdo que residia ém Manchester, na Inglaterra, Trata-se de Engels que, desde 1842, estava na Inglaterra para cuidar da in- ‘lista do pat, na sua chegada a Manchester, havia se ligado ‘20 movimento operario ingles. "Ao ler o artigo® por ele enviado, Marx ficou impactado com o texto. Na verdade, tratou-se de uma influéncia decisiva em sua trajetéra, Tratava-se de um artigo no qual Engels percebia que @ tconornia politica inglesa representava a racionalizacio de classe dda burguesia acerca da dinmica da ordem capitalista. Vinte anos depois da primeira lire, Marx (1977.25) referiu-se a esse igo 0 “genial esbogo”. ae Paris, portanto, Marx rapidamente recebe influéncias decisivas: a primeira delas foi a de Engels*, que Ihe “abriu a por- A questa do método na constitugdo da teoria socal de Marx | 27 ta” para a economia politica, mas, no exilio parisiense, também. tomara contato com o pensamento socialista francés em razio de sua aproximagao com as associagdes de trabalhadores (movi- ‘mento operirio) Nesse contato, Marx teve acesso a classicos da tradicio so- cialista’, especialmente, aos escritos de Blanqui. Além disso, nas. associagdes operérias, conheceu um mundo em que a fraternida- de era uma possibilidade real. Com isso, em Paris, Marx se toma, comunista, ‘Nesse proceso, jé € um pensador muito diferente daquele de 1841/1842. Trata-se, agora, de um intelectual que fez escolha, por uma detérminada perspectiva politica e, ao mesmo tempo, vinculou essa perspectiva a um problema teérico: a compreensio. da sociedade civil burguesa. Porém, pela influéncia de Engels, j esti em posse d: uma chave heuristica: a economia politica. Cerea de seis meses apés a redagdo dos Manuscritos de Kreuznach, en- contramos um Marx com alguns avangos em relacdo a resolugaio do problema que havia se posto em 1843, Para.a edicdo dos Anais Franco-Alemdes, preparou dois ari {gos que sinalizam esses “ganhos” intelectuais, Sao les:““A questi. judaica” e “Critica da filosofia do direito de Hege! — introdugao”. ‘No primeiro texto ~ “A questio judaica” ~ Marx polemiza com Bruno Bauer acerca da questo dos judeus na Alemanha, os quais, nessa quadra histérica, por nfo aceitarem a religido de Estado, no desfrutavam de direitos politicos. Bauer, ao tema- tizar 0 assunto, aborda a questo de modo idealista, religioso e teolégico. Para ele, ninguém na Alemanha era emancipado poli- ticamente ¢ isso decorria do cardter religioso do Estado. Segundo Bauer, os judeus nio percebiam que a condigo de sua emanci~ pagdo estava debitada & condigo de emancipagao do Estado em relagdo & relig:do. Nao haveria, nessa logica, possibilidade de romper o preconceito religioso com o judeu, pois ele mesmo —o judeu - para se emancipar, deveria abrir mao de sua religio, Em sintese, a emancipagao politica seria a emancipagio do Estado. em relagdo a qualquer religidio. TT Ressalta-se, aui, 2 inspiragdo socialist, pois € sabido que o movimento socialsta nfo coincide imediatamente com o movimento operiro, Este I> imo, indiscutivelmente, é mais amplo do que a tradigfo socialist 28 | Ométodo dialérico na pesquisa em educagdo Marx confronta-se com essa interpretagio julgando-a idea- lista. Deslocando o eixo para a emancipagao humana, demonstra que a emancipagao politica tanto do judeu quanto do cristéo é certamente a “emancipacdo politica do Estado em face a reli- gifo” (Luxics, 2007, p. 166), mas isso nao emanciparie a huma- nidade da religido. Em um ensaio publicado originalmente em 1955, sobre 0 jovem Marz, Lukaes (idem, ibidem), analisando 0 tema, assim sintetizou: Mars, em sua critica desta representagdo idealist, mostra que a ‘emancipagao politica tanto do judeu quanto do cristio ¢ certa- mente a “emancipagdo do Estado em face da religic”, ou seja, 1 rendincia por parte deste a uma religido oficial; mas mostra também, que a emancipagdo politica ndo poderia ter como con- sequéncia a emancipagio em face da religifo, j& que a emanci- ;pagdo politica “no € 0 modo completo, sem contredigées, da emancipagao humana”. E Marx prossegue: “o limite da emanci- past politica revela-se imediatamente no fato de que o Estado pode libertar-se de um limite sem que 0 homem dele se tenia realmente libertado, que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre’. O mesmo ocorre quando 0 Estado (como em muitos Estados norte-americanos) a abolir 0 voto censitirio, anula politicamente as distingdes de renda que ‘existem na sociedade civil-burguesa: deste modo, “a proprieda- de privada ndo apenas no é suprimida, mas torna-se até mesmo um pressuposto”. Percebe-se, portanto, que, para Marx (2010, p. 50), ha limi- tes no processo de emancipacio politica. Ele jé identifica que a revolugdo burguesa (responsavel pela emancipagéo politica) cria tao somente a democracia formal ¢ os direitos e liberdades por ela anunciados, representam promessas falaciosas na medida em que sto impossiveis na sociedade civil burguesa. © Estado suprime a seu modo as diferengas de nascimento, de condicdes sociais, de educagdo, de profissdo, quando declara que nascimento, condigdes sociais, educasdo € profissio nio ‘to diferengas politicas, quando proclama que cada membro do povo participa em igual medida da soberania popular, sem le~ ‘var em conta essas diferengas, quando trata todos cs elementos Ga vida teal do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, 0 A quesido do método na constcugto da teoria social de Marx | 29 Estado deixa que a propriedade privada, # educagto, a profissa0 atuem a seu modo € afirmem sua natureza particular, ov seja, precisamente como propriedade privada, como educagi0, como profisslo. Longe de suprimir estas diferencas de faro, 0 Estado existe somente na medida em que as pressupde; esente asi mes- ‘mo como Estado politico e faz valer sua propria universalidade somente em oposigao atais elementos (idem, ibidem). Marx, entdo, demonstra que, no ambito da emancipagao po- Iitica, estd expressa aquela contradigao entre Estado e sociedade civil burguesa, O Estado aparece como um “ente espiritual” € sua relacdo com a sociedade civil carrega essa caracteristica de parecer ser “uma relago espiritual”. Tal decorréncia também se da no proprio individuo particular, pois ele esta “fraturado” em cidadao (citoyen) ~ va sua “vida espiritual”, publica; e burgués (bourgeois) - na sua vida material, privada. Essa é a contradigao fundamental a ser resolvida, Aqui, para Marx, jé hd uma clara consciéncia da politica como meio e nao como um fim em si préprio. Seus estudos sobre a Revoluedo Francesa ¢ 0 contato inicial com a economia politi- ca vao talhando um pensador que ja nota claramente a distinedo entre emancipagao politica e emancipago humana e demonstra, focando a contradi¢ao Estado/sociedade civil, como o homem, nessas circunsténcias, também aparece dilacerado pela alienacao. Quanto a importincia do desvelar da Revolucdo Francesa para Marx, Lukics (2007, p. 169), assim resumiu a questio: Esta revolugto bateu o feudalismo, libertou a consciéncia do citoyen, oprimida e fragmentada na sociedade feudal, recolheu © espirito politico e o constituiu em Estado, enquanto “esfera {deal em relagdo aos elementos particulares da vida civil”. Mas, acrescenta Marx, essa “realizagao do idealismo do Estado foi, a0 mesmo tempo, a realizagao do materiaismo da sociedade civil- -burguesa. A derrubada do jugo politico foi, ao mesmo tempo, a derrubada dos entraves que limitavam 0 espirto egoista da sociedade civil-burguesa”. A revoluglo, alimentada pelo ideal ‘lusério do citoyen ¢ através de esforgos heroicos, langou as ba- ses da modema sociedade burguesa; a0 fazé-lo, gerou, a0 mes ‘mo tempo, o carater contraditorio do desenvolvimento Social, a dilaceragao do ser social, a cisto e a autoalienagdo do homem 30 | Omérodo dialétco na pesquisa em educagao ‘em grau maximo, Deste carster contraditério deriva, portanto, ‘a nafureza da emancipagao politica, Ginica forma de lbertagio possivel no quadro da sociedade capitalista. Por isso, éiz Marx, “q homem nao foi libertado da religido, recebeu a liberdade re- ligiosa. Nko foi libertado da propriedade: recebeu a liberdade de ser proprietério, Nao foi libertado do egoismo da profissto: recebeu a liberdade de escolher profissio”. Portanto, a dilacera- ¢20 e a cisdo do homem no foram abolidas pela emencipacdo politica, mas, 20 contrério, foram levadas a seu grau maximo. Mas, no texto, Marx jé dd indicios daquela sua preocupagéo em desvelar a sociedade civil-burguesa. Ele jé identifica, debil- mente, a base econémica (material) como o fundamento dessa di- lacerago, demonstrando, portanto, que a emancipagdo humana esté diretamente ligada & supressto desta ‘vida material”, Para Marx, a causa desta vida desumana reside no fate de que o dinheiro domina “a esséncia alienada da vida e do trabalho do homem”; de que a sociedade burguesa é o mundo da proprieda- de privada, onde tudo se transforma em mercadoria eem objeto de troca; de que o principio da sociedade burguesa ¢ o egoismmo ea relagdo dos homens entre si é caracterizada pela hobbesiana ‘guerra de todos contra todos”. Somente com a supressdo destas ‘condigbes de existéncia ¢ que se realiza a emancipagao do ho- mem [idem, p. 169-170} ‘Nesse momento, temos um autor que ji avangou em uma série de questées relativas sua problematica investigativa, po- ‘ém seu contato com a economia politica ainda ¢ excessivamente insuficiente, portanto suas categorias ainda Ihe aparecem mum ni- vel muito abstrato. Também ainda néo Ihe esta claro qual a clas- se a quem caberia protagonizar 0 movimento de emancipagao humana ~a revolugio, Em uma de suas mais belas construgées, Marx caracterizaré o que compreende por emancipagao humana, embora nao sinalize a classe social responsével por ela: ‘Somente quando o homem real, individual, reassumirem si o ci- dado abstrato, e quando, como homem individual, em sua vida empirica, em seu trabalho individual, em suas relagSes indivi- duais, iver se tornado ente genérico, somente quando o homem reconhecer e organizar suas préprias forgas como forgas sociais A questde do método na consttuigdo da teorla social de Marx | 31 «,portanto, nfo mais separar de sia forga social na figura da for- 4 politica, somente ento realizar-se-d a emancipaglo humana [Marx, 2010, p. 54]. A identificagan dessa forga social capaz de realizar 0 proces- so de emancipacdo humana sera percebida e desenvolvida, mes- mo que de maneira ainda incipiente, no outro artigo elaborado por Marx para compor a revista: “Critica da filosofia do direito de ‘Hegel ~ introdugdo”. Nesse texto, no qual Marx vincula a eman- cipagdo humane a filosofia classica, tem-se, pela primeira vez, a associagdo da revolupdo a necessidade de uma classe social determinada ~o proletariado ~, que sendo a mais desumanizada, por suas condigdes histéricas, é a nica que possui exigéncias radicais de humanizagao. Segundo nosso autor, as “promessas” que a filosofia clés- sica colocou no mundo ~ de emancipag%o humana - s6 pode- Flo ser realizades pelos herdeiros dessa filosofia: 0 proletariado. Vinculam-se, aqui, portanto, as promessas emancipatérias da filosofia classica com uma determinada classe social ~ o prole- tariado ~e 0 processo de realizagao dessas promessas é a revolu- ¢2o. Vejamos como isso se opera no texto. Marx (2005, p. 145) inicia o artigo afirmando que, na Alemanha, a critica & religifo jé chegou a seu fim e seu funda- thento é 0 seguinte: © homem faz areligido; a religido nao faz.o homem. E a religido é com efeito, a autoconsciéncia e 0 autossentimento do homem ue ainda no adquiriu a si mesmo ou se tornou a perder. Mas © omem ro € um ser abstrato, que permanece fora do mundo. © homem é 0 murido dos homens, 0 Estado e a sociedade. Este Estado, esa sociedade produzem a religito, wma consciéncia invertida, porque eles so umm mundo invertido, A religito é a teoria social deste mundo, seu compéndio enciclopédico, sua Ié- gica sob a forma popular, seu point d’honeur espritualista, seu entusiasmo, sua sango moral, seu solene complemento, sua ra- 2io geral de consolagao e justficagdo. Ea fantdstica realizagdo da esséncia humana, porque a esséncia humana néo possui uma verdadeira realidade. A luta contra a religigo é, portanto, indi retamente, a lnta contra aquele mundo que tem na religido seu aroma espiritua. 32. | O metodo dialético na pesquisa em educapao A teferéncia a Feuerbach aparece explicitamente ~ na Alemanha, a critica & religido jé chegou ao fim ~, mas também, ‘aqui, tem-se 0 prentincio do que Marx entenderé como a realiza- ‘¢do das promessas da filosofia classica e, a0 mesmo tempo, 08 limites da antropologia feuerbachiana ~ a referencia € clara: “O homem € 0 mundo dos homens”, portanto, trata-se de superar a situagdo social que gera a religido e nao tio somente a religido, Esse é um ponto de afastamento em relagao ao materialismo li- mitado de Feuerbach. Tem-se, aqui, uma clara incursio ao mate- rialismo histérico. Segaindo a andlise, na abertura do texto jé se percebe a ana- logia que empreenderé entre a critica & religido e & critica ao mundo dos homens. Segue ele: ‘A miséria religiosa &, de um lado, a expressdo da miséria real e, de outro, o protesto contra a miséria real. A religifo ¢ o suspiro dacriatra alta, o estado de dnimo de um mundo sem coragéo, porque € o espirto da situapko sem esprit. A religito € 0 épio dopovo. [A superagio da religo como felicidade iluséria do povo é a fexigencia de sua felicidade reel. A exigéncia em abandonar as ilusdes sobre uma situagdo é a exigéncia de abandonar uma si- tuagdo que precisa de ilusbes. A critica da religio é, portato, © germe da critica do vale de lagrimas, cuja aparéncia sagrada € a religifo [Mana 2005, p. 145} Com um estilo elegante ¢ vigoroso, Marx vai desviando da critica & alienagao religiosa para a critica & alienagdo material Percebe-se, também, que a preocupagao com a emancipago hu- ‘mana passa a ocupar um lugar central na andlise ¢ é entendida ‘como uma tomada de consciéncia, como a realizagdo da filosafia classica, Além disso, 0 pensador alemio deixa limpida essa rela- do entre a realizaciio da filosofia e a historia dos homens: A.critica da religito desilude o homem para que pense, para que atue ¢ organize sua realidade como um homem desiludido que ‘chegou & razdo, para que gire em tomo de si mesmo e, portanto, de seu sol real, A religido é somente um sol ilusério que gira em temo do homem, enquanto este nfo gira em tomo de si mesmo. A questo do método na constitugao da teoria social ae Mars. | 33 {..] misso da histéria consiste, pois, jd que desapareceu o aléme da verdade, em descobrir a verdade do aguém. Em primeiro Iu- gar, a missdo da filosofia que esté a servigo da histéria, consiste, uma vez que foi desmascarada a forma sacra da autoalienago. Jhumana, em desmascarar a autoalienagdo em suas formas profa- rnas. A critica do céu transforma-se, com isto, na critica da terra, aritica da religido na critica do direito, a critica da teologia na critica da politica (idem, p. 146] O processo de emancipagao humano esta, portanto, vincu- lado com a realizagdo da superagdo da alienago — com a tomada de consciéncia. Marx, ao analisar no texto 0 atraso da Alemanha, refere- -se de maneira respeitosa a Hegel ~ que é um dos alvos de sua critica. Ele identifica que a Alemanha, do ponto de vista do de- senvolvimento politico-material, encontra-se “abaixo do nivel da hisiéria, abaixo de toda critica” (idem, ibidem), porém, o me ‘mo ndo se passa em relagao a filosofia (e a referéncie a Hegel é, aqui, clara): Somos contemporéneos filoséficos do presente, sem sermos seus contemporneos histdricos. L..] A critica da filosofia alema do direito e do Estado, que en- controu em Hegel sua expresso iiltima, a mais consequente ¢ a mais rica, é simultaneamente, tanto a andlise critica do Estado moderno € da realidade relacionada com ele, como a resoluta negagao de todo o modo anterior de conscincia pelitica e juri- dica alema, cuja expressto mais nobre, mais universal, elevada a categoria de cincia, ¢ precisamente a propria filosofisespecu- lativa do direfto (idem, p. 150-151] Embora haja essa atitude “respeitosa” com Hegel, vale lem- ‘brar que Marx opera uma critica s teorias politicas que com- ‘preendem de maneira cindida a relagao Estado/sociedade civil — cas, inclusive, de Hegel. A filosofia alema do direito e do Estado é a Unica historia alem& que se encontra al pari (ao nivel) do presente oficial moderno. Por isso 0 povo alemdo deve acrescentar também essa histéria imaginéria & situagdo existente e submeter & critica, nfo apenas 3410 essa situagio existente, mas também € ao mesmo tempo, sua prolongagio abstrata, {..] Ja como adverséria resoluta do modo anterior éa conscién- cia politica alemé, a critica da flosofia especulativa do direito orienta-se, nfo para si mesma, mas para farefas para cuja solu- 56 existe um meio: a prdxis fidem, ibidem) do dialético na pesquisa em educagdo E, numa passagem antolégica, na qual analisa as condi- (Ges revoluciondrias da Alemanha, nosso autor demonstra sua concepgzo, i época da elaboragao do texto, sobre a necessidade de “casar" a filosofia clissica alema (invertida) com 0 processo revolucionéti E serto que a arma da critica no pode substituir a critica das armas, que 0 poder material tem que ser derrocado pelo poder material, mas também a teoria transforma-se em poder material logo que se apodera das massas. A teoria é capaz de apoderar- se das massas quando argumenta e demonstra ad hominem, € argumenta e demonstra ad hominem quando se toma radical; ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, 0 proprio homem. A prova evidente do radicalismo da teoria alema, e portanto de sua energia pratica, consiste em saber partir da decidida superacio positiva da religido. A critica da religito leva a doutrina de que o homem é 0 ser supremo para o homem @, conseguentemente, ao imperativo categérico de derrubar to- des as relagdes nas quais o homem é um ser humilhado, subju- ‘gado, abandonado e desprezivel, relagdes que nao poderiamos reratar melhor do que com aquela exclamagao de um francés, ac saber da existéncia de um projeto de imposto sobre os cfes: “Fobres cies! Querem tratar-vos como se fosseis homer (idem, p. 151] Fniendida a relacdo entre a importéncia da teoria para 0 processo revolucionério — para a emancipagto humana -, Marx pprossegue a andlise para tomar claro quem poderia protagonizar esse movimento. Sobre que base social poderia ser desencadeada uma pritica politica revolucionéria, na Alemanha? Vale ressaltar ‘que emtora Marx esteja debrugado sobre a questo da Alemanha, sua andlise se pretende, nesse caso, universal. Em outras pala- vras, interessa-Ihe a apreenstio do movimento revoluciondrio de superagio da sociedade civil burguesa. ‘A questi do métdo na consttuigdo da teoria social de Mart. | 35 As revolugdes precisam, efetivamente, de um elemento passivo, de um fundamento material. Num povo, a teoria realiza-se somente na medida em que é a realizagdo de suas necessidades. Sendo assim, coresponderé 20 imenso divércio existente entre as exigéncias do pensamento alemio e as respostas da realidade alema 0 mesmo divércio existente entre a sociedade Civil e 0 Estado e consigo mesma? As necessidades tebricas serdo imediatamente necessidades priticas? Nao basta que 0 pensamento tenda para a realizagio; a prépria realidade deve tender para 0 pensamento.[..] [Prossegue ele] Porém, a Alemanha nao galgou simultaneamente com os povos modemos as fases intermediérias da emancipaglo politica, Nao chegou sequer, praticamente, as fases que teorica- ‘mente superou. Como podia, com um salto moral, elevar-se nl apenas sobre as suas préprias limitagdes, mas, simultaneamente, sobre as limitagdes dos povos modemos, sobre as limitagBes que na realidade devia sentir e aspirar como libertaydo de seus limi- ‘es reais? Uma revoluedo radical s6 pode ser a revolugao de ne~ cessidades radicais, cujos pressupostos e lugares de nascimento pparecem precisamentefaltar (idem, p. 152-153]. ‘Marx nao identifica, na realidade alema, ume classe que pu- desse conduzir 0 processo revolucionério. Antecipando os epi- sédios de 1848, Marx jd tem clareza de que ndo ha aspiragdes ‘emancipatérias que se possam debitar a burguesia. Para ele, ja std claro qual € 0 limite do horizonte da emarcipagao politi- ca, Faz-se necesséria a emancipagto humana e, no contexto da Alemanha, no identifica uma classe social que a possa conduzir. Tudo isso significa que uma revolugdo politica & impossivel na ‘Alemanha. Mas nto significa que, para Marx, qualquer revolu- lo seja impossivel nesse pais. [...] Também a subversfo que ‘vai amadurecendo na Alemanha pode ser vitoriosa, contanto que. ‘vd além da revolugdo politica (ourguesa), que a emancipagao politica desemboque na emancipacio humans. Mas de quem depende essa emancipagio? Marx responde: do proletariado [Luxécs, 2007, p. 178}. 36 | Ométodo di érico na pesquisa em educapao A iniciagao na economia politica — ‘0s Manuscritos de 1844* Como vimos, entre 1843 ¢ 1844, vérias e significativas foram as transformagdes ocorridas na trajetoria intelectual de Marx. Estamos diante de um autor que, nesse momento, jé se coloca como comunista, fala em revolugao, vincula as promes- sas emancipatdrias da filosofia classica as tarefas do proletariado revolucionério e que jé percebeu que a grande questi é o enten- dimento da sociedade civil burguesa. Influenciado, entdo, pela leitura do artigo de Engels - 20 qual jé nos referimos ~, Marx se dedicaré ao estuéo da economia politica, mais especificamente, ao estudo das obras de Smith € Ricardo. Desse rico perfodo de estudos, que, além da dedicagao a0 entendimento da economia politica, ainda foi marcado pelo con- tato direto com Engels’, foram conservados os cademos de ano- tagdes (0s Cadernos de Paris) e um conjunto de trés cadernos — 08 Manuscritos econdmico-filosdficos — nos quais encontramos, ‘numa parte, uma critica & economia politica e, em outra parte, ‘uma investigagao acerca da Fenomenologia do espirito de Hegel. ‘eles, Marx aprofunda o estimulo que Ihe proviera do genial sito de Engels publicado nos Anais Franco-Alemaes. Ele pre- ‘tende aplicar aos problemas da economia as ca‘egorias da dialé- ‘ica, tomada agora dialética materialista; ou, com palavras mais 3 Vilizamon, aqui, dues edigbes distintas: quando a refecncia ¢ ao chama- 4o Terceiro manuscrito, a edi¢o consultada foi aquela contd na colegio Os Pensadores (Séo Paulo, Abril Cultural, 1974. v. XXXV),traduzida por José Carlos Brunis jé quando a referéncia € ao extrato denominado “Tra- ‘atho alienado € propriedade priveda", que compte o chamado Primeiro ‘anuscrito, consultamos a edigto de 2004, da Boitempo, que foi traduzida por Jesus Ranieri. A fim de facilitar@leitura, a cada ciao, faremos a indi- {agdo editorial pela data, embora, talvea, ereferéncia és edigdes possa ser pereebida pela prépria numeragao das paginas das quais as citapSes foram retradas 9 Entre 28 de agosto ¢ 6 de setembro de 1844, Engels esteve em Paris para ‘encontrar se com Marx. Nesse encontro, inimeras idias foram debatidas e, tne elas, a proposta de esereverema uma obra juntos ~ 4 sagrada familia 1 fim de acertarem contas com as influéncias filoséfiea anteriores. ‘A questo do mérado na constitugao da teoria social de Mors: | 37 precisas, pretende descobrir na dialética real do ser econdmico as leis da vida humana, do desenvolvimento social dos homens, a fim de dac-lhes uma formulagao conceitual. Essa dialétca, por uum lado, revela as leis da sociedade capitalista e, com isso, 0 segredo do seu desenvolvimento histérico; e, por outro lado, ela indica a esséneia do socialismo, no mais como exigéncia ideal (20 modo dos ut6picos) e, sim, como resultado necessétio do de- seuivulvimento histérico da humanidade [LuxAcs, 2007, p. 180] O resultado de 1844 é uma obra de transi¢ao na qual se nota a imbricagdo entre Suas preocupagses filos6ficas e a critica da economia politica. Ea expressio, portanto, do conftonto en- tre as suas concepgses filoséficas e as elaboragdes da economia politica’ ‘A economia politica foi uma teoria que se desenvolveu, fundamentalmerte, na Inglaterra ~ mas no s6 nela ~ entre os séculos XVII e XVIII. Na segunda metade do século XVII, teve seu apogeu e até 1825/1830 sua vigéncia. Tem suas raizes no processo de génese, desenvolvimento e consolidagzo da ordem burguesa em sua luta contra o feudalismo. Os economistas politicos sto os observadores desse proces so, Ocuparam-se de entender esse novo tipo de sociedade funda- da numa nova forma de riqueza. Em sua maioria, eram defenso- res dessa nova organizagao social por a considerarem mais livre, _justa e igualitaria do que a ordem feudal problema investigative que se colocavam era o de enten- der a fonte de riqueza. Em outras palavras: o que fazia com que houvesse acréscimo de valor ao dinheiro empregado? Para res- ponder a essa questi, estudaram a produedo, as classes sociais € entenderam que 0 lucro era a remuneracdo pelo trabalho do capitalista, assim como o salério era a remuneragao pelo trabalho do operirio, As matérias-primas, as ferramentas e a fibrica (es- ago em que se realizava a produc) foram, por eles entendidos, como expressio da renda fundiaria. F, por fim, nessa dindmica produtiva, cabia 20 Estado o papel de legislar, de emitir moeda, € de criar o sistema tributio. 10 Oestudo de Mar seré abrangente, mas as mais sigificativas contribuigSes vitko de Adam Smith (1723-1790) e de David Ricardo (1772-1823). 38 | Omérodo dialético na pesquisa em edueagdo Esse problema investigativo nada mais € do que a compreen- sto da sociedade burguesa. Em outras palavras, a explicagao dessa preocupago investigativa fez com que surgisse a primeira forma de teoria social. Esses investigadores se interessavam por compreender 0 conjunto das relagdes sociais dessa nova ordem social, por um determinado ponto de vista — o da burguesia ~ € {sso nao diminui o valor de suas contribuigdes, que foram expres- sbes tedricas da burguesia em sua fase revolucionéria, 0s cléssicos da economia politica nao desejavam, com seus e3- tudos, constituir simplesmente uma disciplina cientifca entre coutras: almejavam compreender o modo de funcionamento da sociedade que estava nascendo das entranhas do mundo feudal; por isso, em suas mAos, a economia politica se erguia como fun- dante de uma teoria social, um elenco articulado de ideias que bbuscava oferecer uma visto do conjunto da vida social, E mais 0s clissicos ndo se colocavam como “cientistas puros", mas ti- rnham claros objetivos de intervengdo politica e social (Patto Nerro & Braz, 2006, p. 17] Os resultados de suas investigagGes foram fundementais para a compreensdo da sociedade que surgia, Entre as suas des- cobertas esti a teoria do valor-trabalho, ow seja, descobriram que o trabalho é a fonte de riqueza de uma sociedade. Se o trabalho é a fonte de toda riqueza, na ética dos econo mistas politicos cléssicos, todos ganharo se todos trabalharem. E como, a época, a geréncia e a propriedade da industria coinci- diam, o lucro era entendido como a remuneragio do “trabalho” do proprio capitalista Suas investigagGes ainda resultaram na descoberta de varias das categorias de funcionamento da sociedade: capital, lucro, tra- batho, juro, classes, mercado, propriedade privada, entre outras Fomeceram, ainda, uma explicagdo para a pauperizagdo que, se- gundo eles, resultava dos inconvenientes da emergéncia de uma nova sociedade, porém, no proceso de desenvolvimento dessa mesma sociedade, tal problematica seria superada. ‘Apesar dos avangos, suas elaboragdes traziam um gran- de problema: marcados pelas circunstancias histéricas de seu ‘tempo ~ nitidamente pelo jusnaturalismo -, as categorias, por eles descobertas, foram entendidas como “naturais”, “Eles as A questo do método na consttuipao da teoria social de Marx | 39 entenderam como categorias ¢ instituigées naturais que, uma vez descobertes pela razo humana e instauradas na vida social, permaneceriam etemnas ¢ invaridveis na sua estrutura fundamen- tal” (idem, p. 18). Essa limisago deve ser atribufda muito mais 4 consciéncia possivel da época do que @ um ato de falsidade intelectual. Em resumidas contas, a Economia Politica cldssica expressou 0 ‘dedrio da burguesia no periodo que esta classe estava na van- guarda das lutas sociais, conduzindo 0 processo revoluciondrio que destruiu o Antigo Regime ~e nto fi por outrarazao, aliés, que 0 filisofo hiingaro Georg Lukas (1885-1971) considerou- -a.a “maior e mais tipica ciéncia nova da sociedade burgues: {idem, ibidem) ‘Mas esse compromisso com a burguesia revoluciondria nfo 0s converteu em acriticos em relagdo & ordem burguesa nem li- mitou seu horizonte de andlise. Pelo contrério, o ponto de vista por eles assumido, naquele contexto, colocava-os em vantagem, pois eram representativos de anseios emancipadores da, entio, classe revolucionéria daquela época: a burguesia. Esse ndo sera mais 0 caso das elaboragdes da economia po- litica em seu periodo de crise a qual é coincidente com o periodo em que a burguesia rompe com o projeto da modernidade, Uma vez consolidada a ordem burguesa, nota-se que as promessas consignadas nas palavras de ordem da Revolugao Francesa — liberdade, igualdade ¢ fraternidade — so impossiveis de serem concretizadas para todos nos limites dessa ordem. Nesses limites, © miximo alcangavel é a emancipagio politica e nfo a emanci- ago humana, portanto a igualdade fica restrta ao marco juridi- co todos sto iguais perante a lei—e no atinge o fundamento da igualdade: a igualdade econdmico-social © proceso revolucionério capitaneado pela burguesia conduziu a uma nova forma de dominagao que foi rapidamente sentida por aqueles “de baixo”. Surge um novo antagonismo de ‘classe que converter a burguesia numa classe conservadora. Ela enunciara aos ideais emancipatérios — muitos dos quais por ela desenvolvidos. Aquela outra classe social que havia composto com a bur- ‘guesia, na Franga, 0 “Terceiro Estado”, 0 nascente proletariado, 40 | Ométodo dialético na pesquisa em educagto surgia como seu oponente histérico. O movimento ludista, segui- do do movimento cartista, ¢ 0 crescimento numérico das revoltas, e rebeliges protagonizadas por esta jovem classe social indica- vam o surgimento de um novo sujeito histérico revolucionsria, Essa atmosfera de rebelides chegou a seu momento de eferves- céncia com 0 processo revolucionario de 1848. ‘Do ponto de vista da produgdo cultural, esse perfodo marca 0 processo de decadéncia ideoldgica'’ da burguesia e, dessa for- ‘ma, os herdeiros do projeto da modernidade serio os proletarios. A crise da economia politica classica (entre 1825/1830 ¢ 1848) esti, portanto, vinculada a essa decadéncia ideoldgica. Desde ento, a economia politica dissolveu-se em duas perspectivas de desenvolvimento tedrico contraditérias entre si: aquela compremetida com os interesses da burguesia em sua fase conservadora, que fez surgir a economia"; ¢ outra herdeira dos ideais emancipatérios do projeto da modemnidade e, portanto, da economia politica classica, porém de um enfogue critico: trata-se da critica da economia politica. Marx foi o principal represen- tante dessa segunda perspectiva. Marx, em 1844, toma contato, entéo, com a evonomia poli ca, € 0 resultado de seus estudos foi consignado nos Manuscritos econdmico-filosdficos ou Manuseritos de 1844", Nesse material, 1 Lakdecs, em 1938, redige um ensaio, “Manx ¢ 0 problema da decadéneia ideoldgica”, no qual caracteriza esse perfodo ~ 0 da decadéncia ~ como fguele posterior as revolugées de 1848 quando a burguesia abandona to- os 0s elementos filosficos progressistas que cutrora hevia forjado. Trata- se do periodo em que a burguesia se converte em classe conservadora 20 se deffontar, pela primeira vez na hist6ria, com o movimento operirio socialist. Atsim, se, anteriormente, as elaboragSes tedricas e culturais da burguesia, em sua fese revolucionéria, haviam expressado elementos pro- aressistas, no pos-1848, as elaboragdes dos pensadores burgueses sero tio Ssomente tentativas de justificar o existente num claro processo de “deca cia ideologica™ (Luxscs, 1968). . 12. Uma diseipina especializada que abandonou as preocspagdes histéicas, sociais e polticas, a qual Marx chamou de economia vulgar (PAULO Nerro & Braz, 2006, p. 22) 13 Hg, também, quem os denomine Manuseritos de Paris. Aqui, utilzaremos ‘a denominagdo com a qual eles foram publicados: Manuscritos econdmico~ ‘filoséficos. Tal tilizagio visa, também, diferencié-los dos Cadernos de Paris que, algumas vezes, so confundides com os Mamiscritos. A denomi~ nago Manuscritos de Paris levou alguns estudiosos a essa confuséo. A questo do método na constiuigde da teria social de Marx | 41 Marx abordaré trés categorias da economia politica: a proprieda. de, 0 dinheito, e o trabalho. estudo demonstra, ainda, certa incompreensio de Marx em relagdo 20s economistas. Sua critica, assim, funda-se muito mais em elementos éticos do que num conhecimento aprofun- dado sobre aquilo que se dispunha a estudar. Tanto essa certa incompreensio quanto a critica fundada em elementos éticos po- dem ser verificadas nos capitulos destinados a andlise da proprie- dade e do diheiro. © mais importante dessa obra é 0 enfrentamento de Marx com a concepso de trabalho com a qual a economia politica operava, Para esse enfrentamento, Marx desenvolvera um con- Junto de determinagdes que apontam para a radical originalidade desse pensador. Tais determinagdes — retrabalhadas, articuladas ‘mediadas ~ reaparecerdo em obras maduras de Marx, tais como 08 Grundrisse (1857/1858) ¢ O capital (1867). Marx nega-se a pensar o trabalho ao modo da economia po- Iitica, Pensaré o trabalho de maneira mais ampla ¢ radical. Em outras palavras, Marx, nesse texto, opera uma antropologia radi- cal, pois coloca o homem como centro de sua andlise e o trabalho aparece como a “esséncia” do homem. economia politica percebeu que a esséncia da propriedade privada ¢ 0 trabalho, mas como produtor de valor numa ordem social em que o ser genérico do homem aparece em contradigo ‘com seu ser singular. Sob a aparéncia de um reconhecimento do homem, a economia politica, cujo principio é 0 trabalho, é muito mais a consequente negagao do homem, na medida em que ele préprio nao se encon- tra em uma tenséo exterior com a esséncia exterior da preprie- dade privada, mas sim se tornou a esséncia tensa de propriedade privads, O que antes era ser-exterior-a-si, exteriorizagao real do hhomem, converteu-se apenas no fato da exteriorizaglo, em es- tranhamento [Marx, 1974, p. 9-10). © homem é, aqui, compreendido como uma constante ten- so entre a sua singularidade e a sua generalidade. A perceyg0 de nossa singularidade deveu-se ao processo revolucionério em- preendido pela burguesia. Esta, ao derrubar a ordem feudal, eriou -88 condigdes para que os homens se percebessem como seres 42 | Ométode dialétco no pesquisa em educacdo ‘singulares, porém essa percepgio coloca 0 individuo em contflito ‘com 0 seu ser genérico. Marx, j4 na abertura do texto, coloca 0 ‘problema da generalidade burguesa ~ ela é a propria nezacdo do hhomem. Os seres humanos sto constituidos por essa singularidade imediata, mas s6 é possivel de ser transcendida na adequago a desenvolvimento genérico, Em decorréncia da alienagdo, essa nossa singularidade imediata fica carecida de mediagdes e, de tal forma, que nos aparece como uma singularidade dada (“natu- ral”), espontinea. Assim, de acordo com a elaborago marxiana, nilo nos percebemos como individuo social, nao nos percebemos Jigados a toda referéncia cultural de nossos horizontes histérico- -sociais. A consequéncia disso é nefasta, pois se ha hipertrofia da singularidade, o género acaba por se empobrecer. ‘A contradigdo entre individuo e género deve-se, portanto, a estruturago da sociedade civil burguesa em tomo da proprieda- de privada, Ela nos fez unilaterais e tornou a nossa atividade pro- dutiva consciente ~ 0 trabalho — um meio de subsisténcia. Ficam, assim, empobrecidos tanto as singularidades quanto 0 género. (O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza pro- cduz, quanto mais a sua produg4o aumenta em poder e extensto. 0 trabalhador se toma uma mercadoria to mais barata quanto mais mercadorias eria. Com a valorizagdo do mundo das coisas aumenta em proporgto direta a desvalorizagao do mundo dos homens. O trabalho no produz somente mercadorias; ele pro- duz.a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, ¢ isto na medida em que produz, de fato, mereadorias em geral [Manx, 2004, p. 80] Nos Manuscritos, Marx tematiza essa questo profunda- mente, Mas a tematizagao do trabalho transcende-o para o émbi- to da objetivagdo humana. Vejamos como isso se opera. O ser singular s6 se expressa singular ¢ genericamente na medida em que se objetiva. A condi¢do existencial humana é a condigao da objetivacdo dos seres singulares. Varias sto as ma- nifestagoes de objetivagdo humana: desde as mais “simples” & efemeras, tais como 0 gesto, 0 riso € 0 movimento; até as mais privilegiadas e duradouras, como o trabalho (a possibilidade A quesido do método na consttuicd da teoria social de Marx | 43 de criagto de um produto, de uma obra), a arte, a ciéncia e a literatura Essas objetivagdes constituem o acervo histérico-cultural da humanidade (do género) que, portanto, fica disponivel para. set apropriado pelos homens; para ser subjetivado pelos homens; para 0 “enriquecimento” das singularidades; para se tornar natu- reza humana, Problematizando a questio desse complexo género- -individuo, Marx oferece-nos uma de suas mais belas passagens. Fazendo a distingdo entre as formas de comunismo grosseiro € comunismo como superaedo positiva da propriedade privada (0 qual defende), Marx critica a compreenstio da mulher como pro- priedade coletiva e comum, presente no comunismo grosseiro: ‘Na relagao com a mulher, como presa e servidora da luxtiria co- letva, expressa-se ainfinita degradacSo na qual o homem existe para si mesmo, pois 0 segredo desta relaséo tem sua express80 inequivoca, decisiva, manifesta, desvelada, na relag3o do ho- ‘mem com 4 mulher €no modo de conceber a relaso imediata, natural e genérica, A relagio imediata, natural e necesséia do hhomem com 0 homem € & relagdo do homem com a mulher Nesta relagfo narural dos géneros, @relagho do homem com natureza imediatamente sua rlagio com 9 homem, do mesmo ‘modo que a relayfa com o homem é imedistamente sua relagSo com a netureza, sua propria destinagdo natural. Nesta relagd0 aparece, pos, de maneira sensvel, reduzida @ um fo vsivel, fem que medida e esséncia humana se converteu para 0 homem em natureza ou a natureza tomou-se a esséncia humana do ho- mem, A partir dessa relapao, pode-se julgar 0 grau de cultura dda homem em sua totlidade. Do cardter dessa relag2o deduz~ -se a medida em que o homem converteu-se em ser genérico, fem homem, ese aprendeu como tal; a relasa0 do homem com mulher é a relag4o mais natural do homem com o homem. Nela se mostra em que medida o comportamento natural do homem tornou-se humano ou em que medida a esséncia humana tomou- se para ele esséncia natura, em que medida a sua nanuresa humana tomou-se para ele natureza. Mostra-se, também, nesta relagio a extensio em que o carecimento do homem se tomow carecimento humaro, en que extensio 0 oatre homem enquanto hhomem convere-se para ele em carecimento; em que medida

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