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LUCIA LOBATO Linguistica e ensino de linguas Eloisa N. Silva Pilati Rozana Reigota Naves Helena Guerra Vicente Heloisa Maria M. Lima-Salles (Organizadoras) COLECAO LUCIA LOBATO VOLUME 2 EDITORA el UnB Equipe editorial Getente de produgao editorial | Daniela Alves dos Santos Bezerra Editoracao eletronica ; Gabriel Menezes Revisao Eloisa N. Silva Pilati Rozana Reigota Naves Helena Guerra Vicente £ Heloisa Maria M.L. Salles £ Copyright © 2015 by Editora Universidade de Brasilia ! Direitos exclusivos para esta edicdo: Editora Universidade de Brasilia SCS, quadra 2, blaco C, n® 78, edificio OK. 2° andar, CEP 70302-907, Brasilia, OF Telefone: (61) 3035-4200 # Fax (61) 3035-4230 Site: wweditora.unbbr Email: contatoeditora@unb.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicac3o poderé ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizac3o por escrite da Editora. Ficha catalografica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia TV61— boshato, huis Lingufstica ¢ ensina de lings “Leia Fbato : Hoist N. Sola Pil fetal | orzanizadocis. Brasilia alitora Unwverscade de Beanslia, 015 Sp. 2t em, (Coley Lucia Lobate 9.2) Inclui bibliogratia, ISBN 978.88 |. Linguistics 2 Linguas~ Ensino, 3, Forimagi ae praessones. + Auisigde de fi ua | Titulo. HL Serie passes sess sc snsosnaatsasinasensmensseonsssaeaned IP 1F¥31 1 Gasssadseasseatsnstsastsaet Impresso no Brasil 1. O QUE O PROFESSOR DA EDUCAGAO BASICA DEVE SABER DE LINGUISTICA' Lucia Maria Pinheiro Lobato 1 Palestra proferida em 13 de dezembro de 2003, em que a autora integrou a mesa-redonda intitulada A Linguistica eo Professor de Ensino Bdsico, realizada na 2* Reunido Regional da Sociedade Brasileira para 0 Progresso da Ciéncia (SBP), em Fortaleza - CE Introdugao O objetivo deste trabalho é refletir sobre a interface da linguistica com a Educacao Basica. E ponto pacifico que um dos legados da linguistica de grande utilida- de para o contexto escolar é a visao nao-preconceituosa sobre linguas e variedades de linguas. Esse foi um legado da linguistica estrutural que se consolidou com os desenvolvimentos subsequentes da linguistica, sobre- tudo a sociolinguistica variacionista. Essa visao nao-preconceituosa derivou naturalmente da perspectiva da lingua como estrutura, dai que o carater nao-normativo da linguistica se opds frontalmente a atitude de preconceito linguistico que existia até entao. Exemplos de preconceito linguistico sao 0 conceito de lingua primitiva (i.e., a ideia de que a povos de cultura dita ‘primitiva’ correspondem linguas igualmente ‘primitivas’), a valoragao de certas variedades de lingua ou registros de lingua em detrimento de outras variedades e registros, e assim por diante. Acho que ninguém hoje contestaria que o estudante que vai ser professor de ensino basico deve receber uma formacao que 0 torne isento de preconceitos ou, pelo menos, o sensibilize contra preconceitos linguisticos e o norteie para saber como reagir diante de situagdes de variacao dialetal dentro de sua sala de aula. Mas nao é sobre esse tipo de fato que quero me deter hoje. Quero me concentrar numa outra questao - a questao de ser, ou ndo, necessario 16 —_LINGUISTICAE ENSINO DE LINGUAS que o professor de ensino basico tome conhecimento do contetido de certas anilises linguisticas mais recentes e de maior consenso, e seja infor- mado sobre questées linguisticas gerais, como, por exemplo, diferentes concepcées de linguagem. Em palavras mais gerais: O que o professor de ensino basico tem de saber e o que nao precisa saber sobre analises linguisticas especificas e sobre questdes gerais em debate? Trazer esse tipo de questao para debate se justifica por duas razdes, De um lado, porque ha uma grande defasagem entre 0 conhecimento sobre estrutura linguistica acumulado nas Universidades, nos centros de pesquisa, e o conhecimento gramatical veiculado nas gramaticas escolares. De outro lado, porque qualquer exigéncia sobre contetido a ser introduzida na formacao dos professores tem de ser muito bem medida, a fim de que nao se queira transformar em linguista todo professor de lingua do ensino basico. Meu objetivo aqui é apresentar o problema, esperando que suscite discussdes. Acho que essa questo é real e tem de ser debatida num forum amplo, a fim de que qualquer mudanca seja fruto de um consenso. Isso é necessario porque a mudan¢a no modo como se trata lingua e gramatica seria total, caso viesse a ser colocada em pratica, nos moldes como estou pensando que deveria ser. O que é Gramatica? Inicialmente, por uma questao de clareza, é preciso distinguir dois con- ceitos de gramatica. Num certo sentido, gramatica é algo estatico - € um conjunto de descrigdes a respeito de uma lingua. E nesse sentido que a palavra é usada quando dizemos ‘a gramatica do Celso Cunha’, ‘a gramatica do Rocha Lima’. Cada uma dessas gramaticas tem suas propriedades especificas. A de Rocha Lima é tida em geral como a mais normativa das trés. A de Celso Cunha ja é nao-normativa, mas compartilha com a de Rocha Lima o (© QUE 0 PROFESSOR DA EDUCAGAO BASICA DEVE SABER DE LINGUISTICA | 17 carater taxiondmico, porque arrola fatos e regras de estrutura linguistica. Um exemplo disso é 0 capitulo dessas gramaticas sobre conjungées e tipos de orag6es. Sao apresentadas uma lista de conjuncdes coordenativas e subordinativas e uma lista de oragdes coordenadas e subordinadas. De qualquer modo, gramatica nesse sentido é um compéndio com descricdes de uma lingua. Num outro sentido, gramatica tem carater dinamico e corresponde a um construto mental, que cada membro da espécie humana desenvolve, desde que exposto a dados da lingua em questao, ja que se trata aqui de gramatica de uma lingua. Na minha fala vou restringir esse construto mais ainda — vou tratar mais especificamente de gramatica da lingua materna. Quando se comega a refletir sobre fatos de lingua, fica claro que os seres humanos nascem com uma estrutura mental organizada de tal modo que torna a aquisicao de lingua algo inevitavel, inexoravel. Podemos chamar essa estrutura mental inata de diferentes nomes. Muitos usam as express6es gramdtica universal, faculdade de linguagem ou dispositivo de aquisic¢ao de lingua.’ E em virtude dessa gramatica universal, dessa faculdade de linguagem, desse dispositivo de aquisicao de lingua, que todo membro da espécie humana é capaz de adquirir uma lingua, sem qualquer ensino, bastando para tanto a experiéncia do contato com a lingua nos primeiros anos de vida. Por mais que fiquem em contato com falantes de uma lingua natural e sejam treinados para falar, papagaios e chimpanzés nunca chegarao a desenvolver uma gramatica de lingua natural com sua propriedade mais caracteristica, a criatividade. A criati- vidade vem naturalmente com a aquisi¢ao da lingua: a crianca se torna capaz de produzir e entender enunciados inteiramente novos, que nunca 2. Asexpressées sd empregadas sob a otica gerativista. Como referéncia adicional, pode-se citar a obra seminal Aspects of the Theory of Syntax (CHOMSKY, 1965), e Knowledge of Language: Its nature, origin and use (CHOMKSY, 1986), esta iltima fundadora do modelo de Principios e Pardmetros Para uma sistematizacao dos fundamentos epistemolégicos, indicamos a obra traduzida para o portugues Novos Horizontes no Estudo da Linguagem e da Mente (CHOMSKY, trad. 2006). Para uma abordagem didatica, indicamos o Novo Manual de Sintaxe (MIOTO et ali, 2013). [Nota das editoras] 18 | LINGUISTICA € ENSINO DE LINGUAS tinha produzido ou ouvido antes. Uma dada lingua, qualquer que seja ela, éuma manifestacao da gramatica universal, da faculdade de linguagem. A explicagao para o uso criativo que os falantes/ouvintes fazem de sua lingua so pode estar em propriedades da estrutura mental inata que chamamos de faculdade de linguagem. Papagaios e chimpanzés nunca chegarao a desenvolver uma gramatica de lingua natural, e, em conse- quéncia, a aprender uma lingua natural, porque lhes falta a faculdade de linguagem. Em termos mais concretos, falta-Ihes a estrutura mental inata relativa a linguagem. Ao linguista tedrico cabe a tarefa de analisar linguas de modo comparativo, a fim de poder fornecer uma explicacao das propriedades da gramatica universal e do fato de haver variacao entre as linguas. Nesse momento, nao € isso o que me interessa. O que me interessa € 0 fato de haver, para todos nés que adquirimos uma lingua, uma gramatica internalizada, que compartilha propriedades da gramatica universal, mas que tem também propriedades especificas. Gramatica, nessa nova percepc¢ao, é algo dindmico capaz de explicar a criatividade, tipica das linguas naturais, e interno, pois corresponde ao desenvolvimento bioldgico de uma faculdade mental, a faculdade de linguagem (as vezes também chamada de gramatica universal), vista aqui como um 6rgao do cérebro. Em resumo, existem pelo menos dois conceitos de gramatica - segundo um deles, gramatica é algo estatico, externo ao individuo e taxiondmico; segundo o outro, gramatica é algo dinamico, interno ao individuo e com propriedades que explicam o carater criativo do uso das linguas naturais. No meu modo de ver as coisas, ¢ fundamental que o professor de lingua perceba essa diferenca e trabalhe em sala de aula com gramatica nessa ultima acepgao — como algo dinamico, interno ao individuo e com propriedades explicativas do carater criativo do uso das linguas naturais. 0 QUE 0 PROFESSOR DA EDUCAGAO BASICA DEVE SABER DE LINGUISTICA | 19 A escola como agente eliciador da aquisicao de novos estagios de conhecimento da lingua Se adotamos 0 conceito de gramatica como algo dinamico, interno ao individuo e dotado de propriedades que explicam a caracteristica criativa das linguas naturais, vemos que o aluno, de qualquer série, ja chega em sala de aula com uma gramatica adquirida, e com propriedades tais que lhe permitem o uso criativo da lingua. A escola nao vai, portanto, ensinar gramatica ao aluno, pois o aluno jd chega com uma gramdtica adquirida. O que, exatamente, vai ser ensinado ao aluno? O que pode o aluno ainda adquirir? Enfim, em sentido mais amplo, como pode essa nova percep¢ao do que seja gramatica levar a renovagao do ensino de lingua? O processo de aquisi¢ao de uma lingua é algo que acontece coma crianga, e nado algo que a crianca faz ou algo que fazem com ela. Como eu disse, nesse processo desenvolve-se no cérebro da crianca uma entidade bioldgica que faz parte do seu legado genético — a gramatica universal -, de acordo com propriedades especificas dos dados linguisticos a que ela ficou exposta. O processo de aquisi¢ao de lingua natural corresponde, entao, ao desenvolvimento de uma gramatica particular, tendo como pano de fundo a gramatica universal, mas a partir da exposi¢ao a dados de uma dada lingua. Assim, uma crianga nascida em Sao Paulo, mas em contato com dados do japonés, vai adquirir a gramatica do japonés, e uma crianga nascida na mesma cidade, mas em contato com dados do portugués do Brasil, vai adquirir a gramatica do portugués do Brasil. O primeiro ponto que quero salientar aqui, a esse respeito, 6 que a crianca adquire a gramatica de sua lingua sem ensino. Ela propria é dotada de um dispositivo de aquisicao de lingua, que permite o desenvolvimento da gramatica da lingua, em seu cérebro, a partir da faculdade de lingua- gem e da exposicao aos dados da lingua. Por que ndo fazer o mesmo no ensino de lingua? Aceitando essa postura, a escola tem de adotar a mesma metodologia do dispositivo de aquisi¢do de lingua: a mente do 20 _LINGUISTICA E ENSINO DE LINGUAS aluno simplesmente desenvolve os novos processos, a partir da expo- si¢do a dados que manifestam esses processos. Vou entaéo concluir que a primeira propriedade do ensino de lingua materna segundo as novas diretrizes dos Pardmetros Curriculares Nacionais deve ser a adocao do procedimento de descoberta. Isto é, em vez de ser taxionémico, o ensino deve levar a descoberta. Uma segunda caracteristica desse ensino deve ser a adocaéo da metodologia de eliciagdo. Na verdade, em principio o aluno adquiriria toda a informacao que se possa imaginar por ele préprio, sem precisar de eliciacao. Isto 6, 0 procedimento de descoberta a partir do contato com dados da lingua é muito poderoso e tem grande amplitude. Basta pensar em tudo o que Aristoteles descobriu, partindo somente da sua intuicéo. O problema de se usar 0 procedimento de descoberta, sem auxilio de metodologia adicional, é que o processo seria muito lento. E preciso, portanto, que seja usada também uma metodologia de eliciagao, ou seja, uma metodologia que direcione o aluno a tirar conclusGes e desenvolver seu conhecimento sobre a lingua.* Consideremos a questao da estrutura- ¢ao das oracdes e dos periodos. No caso das oracdes chamadas causais e explicativas, para ganhar tempo, é preciso que seja preparado material didatico bem direcionado, para que o préprio aluno tire suas conclus6es a respeito das distingdes que a lingua faz, em contraste com as distingdes que a gramatica taxionémica propée. Finalmente, uma terceira caracteristica do ensino gramatical é que deve usar uma técnica de resultados. Existe nas linguas uma relacdo entre forma e contetido, de tal modo que variacdes de forma levam a diferencas no contetido. A técnica de resultados consistiria em trabalhar com estru- 3. Oseguinte trecho dos Pardmetros Curriculares Nacionais evidencia a preocupacao com a falsa ideia de que o aprendiz constroi o conhecimento de forma espontaneista, ¢ ressalta o importante papel de mediador do professor: Para que essa mediagao [entre os elementos da triade aluno, objeto de conhecimento, e ensino] aconteca, o professor deverd planejar, implementar edirigir as atividades didéticas, com 0 objetivo de desencadear, apoiar e orientar 0 esforgo de acao e reflexao do aluno (Brasil, 2000, p. 29). [Nota das editoras] © QUE 0 PROFESSOR DA EDUCAGAO BASICA DEVE SABER DELINGUISTICA | 21 turas dando énfase ao fato de que a cada estrutura (quer morfoldgica, quer sintatica, e levando em conta o fator prosdédico) corresponde um certo resultado semantico. Com a técnica de resultados, o aluno verifica por si proprio que o ensino gramatical tem uma razao de ser, pois percebe que sentido obtém com tal ou qual estrutura. Ele entao se da conta de que esse tipo de estudo contribui para o seu dominio de estruturas e,em consequéncia, para 0 seu dominio do texto - que estruturas escolher, de acordo com o significado que quer obter. O grande desafio Os Pardémetros Curriculares Nacionais decretaram o fim do ensino gramatical tal qual é praticado atualmente no Brasil. No entanto, isso nao significa uma eliminagao do ensino gramatical.* A visao de gramatica no ensino gramatical atual é errnea, e é preciso, sim, a presenca da gramatica no ensino, mas sob uma nova percepcao. Caso se aceite essa posicao, tem de haver uma difusdo geral dessa mudanca de perspectiva sobre o que se entende por gramatica e ensino gramatical. Isto é, cada professor de ensino fundamental e médio tem de assimilar o conceito de gramatica como entidade bioldgica. Tem de haver também, em consequéncia, uma mudanca do conteudo programatico de cada nivel escolar, e uma preparacao do corpo docente de cada nivel escolar para essa mudanga. 4 Essa posicao, em defesa da reformulagao do ensino de gramatica, est colocada de forma bastante clara no texto dos PCNs: [A gramatical, ensinada de forma descontextualizada, tornou-se emblematica de um contetido estritamente escolar, do tipo que sé serve para ir bem na prova e passar de ano - uma prdtica pedagégica que vai da metalingua para a lingua por meio de exemplificacdo, exercicios de reconhecimento e memorizagdo de nomenclatura. Em funcdo disso, tem-se discutido se hd ou ndo necessidade de ensinar gramdtica. Mas essa é uma falsa questdo: a questdo verdadeira € para que e como ensind-la (Brasil, 2000, p. 39, grifos nossos}. Note-se, porém, que os PCNs nao. avan¢am em relacao a uma justificativa tedrica para esse questionamento. Diferentemente, em Lobato, existe um fundamento epistemolégico e tedrico na formulacao do conceito de lingua € gramatica, o qual deve orientar as decisées relativas 4 metodologia proposta para o ensino de lingua. [Nota das editoras) 22 | LINGUISTICA E ENSINO DE LINGUAS E evidente que acho que essa difusao do conceito de gramatica bioldgica e essa mudanga de contetido programatico sao necessarias. Acho, mais ainda, que cabe a Universidade formar o novo professor de lingua, um professor capaz de incorporar nas suas aulas os novos conhecimentos da linguistica tedrica. Esse é 0 nosso grande desafio: formar professores capazes de renovar 0 ensino de lingua, a luz da teoria gramatical moder- na. Isso significa que temos de redirecionar, também na Universidade, 0 modo como damos aula de lingua materna. Nessa tarefa, a meu ver, na Universidade tera de haver um trabalho conjunto entre os docentes de linguistica e docentes de lingua, para nao haver duplicidade de contetido. Qualquer que seja a particao de tarefas, certos fendmenos tém de ser estudados e difundidos sistematicamente. E preciso, antes de tudo, que os nossos alunos aprendam a fazer demonstragdes empiricas de que existe a faculdade de linguagem. Qualquer fenémeno linguistico pode servir de tema para a demonstracao. Pode- se escolher uma classe de palavras (substantivos, por exemplo), ou uma forma verbal (imperativo, por exemplo), ou um fenédmeno morfossintatico (concordancia, por exemplo), ou uma construgao sintatica (interrogativas com uso de pronome interrogativo, por exemplo). Qualquer fendmeno serve, porque para qualquer um existem excecées, e as excecdes podem ser usadas na construcdo de uma argumentacao com base na pobreza do estimulo: como a crianga chega a dominar 0 uso do fendmeno em questao, apesar das exce¢des, se nao houve ensino a respeito? Nesse tipo de argumentacao, a conclusao inevitavel é que existe uma faculdade de linguagem guiando a geracao de expressdes linguisticas. Isso porque, caso a crianga adquirisse a lingua por imitagao ou analogia, nado conseguiria evitar a geracao dos casos de construgao agramatical que tém relagéo analégica com os casos gramaticais. Ela nado conseguiria evitar, pois faria uma generalizacao indutiva a partir dos casos gramaticais. Como os casos agramaticais nao so gerados, sabemos que ha algo a mais, que ndo 0 processo de inducao, guiando o processo de aquisi¢ao de lingua. (0 QUE 0 PROFESSOR DA EDUCAGAG BASICA DEVE SABER DE LINGUISTICA | 23 Para dar mais concretude a discussao. consideremos 0 par de frases abaixo: (1) Joao acha que ele fala russo fluentemente. (2) Ele acha que Jodo fala russo fluentemente. Todos os falantes atribuem duas interpretacées a ‘ele’ em (1): ou ‘ele’ tem como antecedente ‘Joao’, ou se refere a uma pessoa nao identificada na frase. Isto é, ‘ele’ pode ter referéncia dependente da referéncia de ‘Joao’, ou pode ter referéncia livre. Em (2), no entanto, ‘ele’ so aceita a interpre- tagao de referéncia livre. Ora, ha uma interpretagao para o pronome ‘ele’ em (1) que deixa de existir em (2). Caso as criancas adquirissem a lingua por analogia, deveriam, por analogia de (2) com (1) atribuir a ‘ele’ duas interpretacdes em (2), exatamente como fazem em (1). Mas nao o fazem. Endo 0 fazem sem, no entanto, receber instru¢ao a esse respeito. Além do mais, esse tipo de fato nao é especifico ao portugués. Outras linguas fazem precisamente a mesma distingao. Tudo leva a crer, portanto, que estamos diante de um fenémeno que decorre da existéncia de uma faculdade de linguagem. A necessidade de os alunos aprenderem a fazer esse tipo de argumentagao é€ real, pois so se os nossos alunos se derem conta de que existe, de fato, a faculdade de linguagem, poderao se envolver com convicgaéo num projeto de renovacao do ensino. Os fatos de lingua a serem examinados sob um novo prisma sao inu- meros, e cito trés. O primeiro é a questao das relagdes gramaticais. Nocdes como sujeito e predicado, complemento e adjunto tém sido muito estuda- das, e seria salutar ter material didatico que incorporasse o conhecimento recente sobre esses temas. Nao tenho como me alongar sobre cada item aqui. Aponto, brevemente, o fato de os conceitos de sujeito e objeto serem universais, mas resistirem a uma definicao que cubra suas caracteristicas nas diferentes linguas. Por isso, apesar de integrarem a gramatica universal, tém de ser caracterizados na gramatica particular. Sobre os conceitos de 24 | LINGUISTICA € ENSINO DE LINGUAS argumento e adjunto, a literatura recente é rica e variada, e tem o que contribuir para uma explicagao mais didatica desses conceitos. O segundo tema que cito é 0 das classes de verbos. Vamos continuar falando de verbos transitivos e intransitivos, quando ja se sabe que existem ai, na verdade, trés, e nao duas classes? Isso porque os intransitivos correspondem a duas classes, a dos inergativos e a dos inacusativos. O terceiro fato que enumero é a classificagao das oracdes. Muito ja se sabe sobre os tipos oracionais, além da classificacao tradicional, e vale a pena rever essa questao. Finalmente, é preciso mudar a postura diante das andlises linguisticas. No caso de quest6es em aberto, é preciso abrir 0 jogo mostrando que nao se tem ainda uma resposta. Estaremos assim adotando uma postura cientifica, e isso € muito bom. Estou fazendo essas consideragées a respeito do ensino superior, € tomando por verdadeiro que a mudan¢a deve ocorrer a partir da Universi- dade. Para 0 ensino bdsico, acho que a mudanca total vai ocorrer paulatina- mente, a medida em que entrarem para o corpo docente professores que incorporaram as novas aquisigdes da linguistica. De qualquer modo, acho que a mudanca metodoldgica tem de ser imediata: em vez de se partir de definicées, partir de dados empiricos, com adogao do procedimento de descoberta, da metodologia de eliciagao e da técnica dos resultados. A questao, para o ensino fundamental e médio, é que a renovacdo em maior profundidade vai depender de uma atualizagao do corpo docente. Esse 6 um fato a ser aceito. No entanto, essa é somente uma tarefa a mais, parte do desafio geral. Por que nao abandonar totalmente o material gramatical? Defendi que o ensino gramatical taxiondmico tem de ser abandonado, mas que o ensino gramatical tem de permanecer, s6 que sob uma nova © QUE © PROFESSOR DA EDUCACAO BASICA DEVE SABER DELINGUISTICA | 25 perspectiva do que seja gramatica, e, em decorréncia, com novos mé- todos didaticos. Vou concluir mostrando algumas raz6es para nao se abandonar total- mente 0 ensino gramatical na escola. A primeira razao € 0 fato de ao texto eas atividades discursivas em geral subjazer a mesma gramatica abstrata que subjaz as palavras, aos sintagmas, as oracées e as frases. Nao pode ser diferente, pois, se assim o fosse, a mente humana estaria operando de modo antieconémico, com principios de tipo diferente para dominios diferentes do mesmo objeto. O natural é considerar que, para o mesmo. objeto, so usados os mesmos principios abstratos. No texto, sao usados principios que extrapolam o limite da sentenca, mas, certamente, ndo sao de natureza diferente dos principios do limite da sentenca. A diferenca, a meu ver, esta nas unidades com que a gramatica opera num e noutro dominio, e nao na natureza dos principios. Em segundo lugar, considero que nao se deve abandonar totalmente © material gramatical porque a explicitagao dos mecanismos de que as linguas fazem uso e de seu efeito semantico ajuda o aluno a ganhar tempo no seu processo de dominio das técnicas do texto e das atividades discur- sivas em geral. A escrita, por exemplo, tem caracteristicas muito peculiares, e aceita estruturas complexas muito mais facilmente do que a fala, por estar livre das limitagées de meméria que caracterizam o discurso oral. Nao vejo como seria possivel ter um ensino produtivo sem explicitacao de mecanismos estruturais. Aterceira razao é que, se usado adequadamente o método proposto - uso do procedimento de descoberta, da metodologia de eliciacdo e da técnica dos resultados -, o aluno vai chegar por si proprio a conclusao de que existe uma faculdade de linguagem e de que ele prdprio tem uma gramatica interna, bioldgica. A visao de lingua do aluno certamente mudara. Além disso, 0 ensino estara contribuindo para que cada aluno conhega um pouco mais da natureza humana. 26 | LINGUISTICA E ENSINO DE LINGUAS Casos de Divergéncia entre Analises Tradicionais e Analises Recentes Vou examinar trés casos de divergéncia entre analises da Gramatica Tradicional e analises mais recentes da Linguistica. Casos de Erro de Anilise Oprimeiro caso que vou apresentar é de erro de analise. Um caso exemplar €a analise do argumento sentencial que ocorre com o verbo parecer, em frases como (3): (3) a. Parece que Jodo é inteligente. b. Parece que vai chover. As oragdes que ocorrem depois de ‘parece’ em (3) - que Jodo é inteligente, que vai chover - sao tratadas como subjetivas pela Gramatica Tradicional e como objetivas diretas pelas analises linguisticas recentes. Ha evidéncias de que essas ora¢des sao efetivamente objeto direto, endo sujeito. Uma dessas evidéncias é 0 fato de que as frases em (3) aparecem com um sujeito pronominal manisfesto em linguas que nao tém sujeito pronominal nulo, como se vé em (4): (4) a.!l semble que Jean est intelligent. It seems that John is intelligent. b. Il semble qu'il va pleuvoir, It seems that it is going to rain. Uma outra evidéncia é 0 fato de a posi¢ao vazia antes de ‘parece’ (a posi¢do que é ocupada por i! em francés e it no inglés) poder ser ocupada (0 QUE 0 PROFESSOR DA EDUCAGAO BASICA DEVE SABER DE LINGUISTICA | 27 pelo sujeito manifesto da oragéo que segue parecer, como se vé nos pares em (5): (5) a. Jodo parece ser inteligente. b. Essa manteiga parece estar rancosa. c. Esse gato parece estar miando rouco. Uma terceira evidéncia é 0 fato de que, nesse tipo de exemplo em (5), 0 sujeito de ‘parece’ nos exemplos abaixo é sujeito sintatico desse verbo, mas nao é um argumento semantico do mesmo verbo - é, antes, um argumento semantico do predicado a direita de ‘parece’ (arqumento de ‘ser inteligente’ em (6a), de ‘estar rangosa’ em (6b) e de ‘estar miando rouco’ em (6c): (6) a. Joao parece [___ ser inteligente]. b. Essa manteiga parece [___ estar rangosal. c, Esse gato parece [___ estar miando rouco]. Se essa analise esta correta (como ja concluiram todos os linguistas que sobre ela se debrucaram), a andlise tradicional que é passada ano apés ano aos alunos esta errada. Sobre esse tipo de caso, eu propria nao tenho duvida: tem de haver uma mudanca nas nossas gramaticas escolares, para incorporar essa nova analise. Casos de Analises Aprofundadas Um caso diferente é 0 de andlises que a linguistica aprofundou. Nesse caso, esta a divisdo da Gramatica Tradicional dos verbos principais em dois grandes grupos - transitivos e intransitivos. Segundo a analise linguistica, em vez de uma divisdo bipartite, temos uma divisao tripartite. Isso porque 28 | LINGUISTICA E ENSINO DE LINGUAS os verbos intransitivos sao subdivididos em dois grupos - verbos inacu- sativos e verbos inergativos. Em que consiste a diferenga entre a visio tradicional e a visao mais recente? Que argumentos temos para dizer que ha uma divisao tripartite e nao bipartite? Primeiramente, consideremos o critério que a Gramatica Tradicional usa para chegar a uma divisdo bipartite. O critério é o numero de argu- mentos: um verbo transitivo tem dois argumentos (sujeito e complemento) e um intransitivo tem um Unico argumento (sujeito). O que a pesquisa recente identificou foi que, no caso de verbos intransitivos, o unico argu- mento que ocorre, e que sintaticamente é 0 sujeito, para certos verbos tem correspondéncia com o sujeito de verbos transitivos e para outros verbos tem correspondéncia com 0 objeto de verbos transitivos. Isso fica claro com alguns exemplos. Vamos considerar 0 uso de oracées reduzidas de participio. Se tentamos construir uma reduzida com verbo transitivo, vemos que sé 0 objeto pode estar presente, como em (7): (7) a. Maria lavou a louga. b. Lavada a louca, ... c. *Lavada Maria, ... Em (7c), s6 conseguimos interpretar Maria como 0 objeto e a oracao é agramatical exatamente porque nesse exemplo o sintagma Maria esta sendo interpretado como sujeito. Passando para o exame de verbos intran- sitivos, vemos que o argumento desses verbos se comporta efetivamente ora como 0 objeto de verbos transitivos, como os verbos de (8)-(10), e ora como 0 sujeito de verbos transitivos, como os verbos de (11)-(13): (8) a.O bebé nasceu. b. Nascido o bebé, ... © QUE 0 PROFESSOR DA EDUCACAO BASICA DEVE SABER DE LINGUISTICA | 29 (9) a. Marisa morreu. b. Morta Marisa, ... (10) a. A semente germinou. b. Germinada a semente, ... (11) a. O bebé solucgou. b. *Solucado o bebé, ... (12) a.O trem apitou. b. *Apitado o trem, ... (13) a. Luiza sorriu. b. *Sorrida Luiza, ... Para distinguir esses dois comportamentos, os verbos de (8)-(10) recebem uma denominacao diferente da dos verbos em (11)-(13): os verbos de (8)-(10) sao denominados inacusativos e os de (11)-(13), inergativos. Sobre esse tipo de caso, ja nao é tao Obvio que as nossas gramati- cas escolares tenham de incorpora-lo. Aqui a coisa fica um pouco mais complicada porque os fatos ja sao mais complexos. Mas ha problemas na nao-incorporacao. Primeiro, esta cada vez mais em uso essa distingao, de modo que quem nao a conhecer vai ter dificuldade no entendimento de estudos linguisticos (e nao estou falando de estudos escritos em ou- tras linguas ou estudos sobre linguas exdticas, ou, ainda, estudos muito especializados). Segundo, vai haver um momento em que a educacao escolar sobre lingua vai ter de introduzir esses conceitos. No momento, sao introduzidos nas Universidades, pelo menos nos centros onde se faz pesquisa, de modo que muitos alunos atuais, futuros professores de ensino basico, ja tem esse conhecimento. Até que ponto esta correta essa omissao de informacao? A questao pode ser resumida do seguinte modo: 30 | LINGUISTICA € ENSINO DE LINGUAS De um certo ponto de vista, omitir essa informacao é sonegar informacao. De outro ponto de vista, dar essa informacao pode ser considerado fazer analise linguistica, além dos propésitos do ensino escolar. Casos de Analises Confusas O.ultimo caso que vou considerar é 0 de andlises tradicionais que tem dado muita margem a discussdo exatamente por falta de exatidao e clareza. Situa-se ai a distingao entre oragdes causais e explicativas. Poderiamos levar todo um dia discutindo essa distingao, sem chegarmos a uma conclusao. Para esse tipo de caso, como vai ser necessaria uma revisdo da analise tradicional, mas acho que ainda vai levar algum tempo antes de termos chegado a uma publicagao que deixe clara a distingéo, o melhor que o professor pode fazer é deixar uma certa distancia entre ele prdprio e a Gramatica Tradicional. Isto é, o professor nao deve se comprometer com a analise tradicional: deve apontar a analise tradicional e deixar clara a confusdo que a ela subjaz.

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