You are on page 1of 13
3. LINGUISTICA E ENSINO DE LINGUAS' Lucia Maria Pinheiro Lobato 1 Palestra proferida no if Encontro Nacional de Estudos de Linguistica Literatura, em 1976, quando a autora era professora do Departamento de Linguistica e Filologia da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 4B Afirma-se frequentemente que a linguistica pode contribuir para a reno- vagao do ensino de linguas. Neste artigo, trataremos dessa questdo, com relacéo exclusivamente ao ensino de lingua materna, através de uma breve analise dos seguintes pontos: (i) De que modo e até onde pode a linguistica contribuir para a tarefa do aluno e do professor na pedagogia das linguas? (ii) Entre os modelos linguisticos existentes atualmente, haveria algum cuja aplicacao ajudaria a resolver os problemas do ensino e da aprendizagem de linguas? (iii) Consideragées sociolinguisticas na renovagao do ensino de linguas. {iv) Possibilidades reais de renovagao gramatical no Brasil a luz dos desenvolvimentos recentes da linguistica. Contribui¢gdo da linguistica para o ensino de linguas Entre os campos de aplicacao linguistica, encontra-se o ensino de linguas. Pressup6e-se, dai, que a linguistica contribui (ou pelo menos pode con- 44 LINGUISTICA £ ENSINO DE LINGUAS tribuir) de algum modo para a realizacao dos objetivos do ensino de uma lingua viva. Mas em que consiste essa contribui¢ao e quais os seus limites? Consiste, primariamente, na elaboragéo de uma anilise rigorosa da lingua em questo, a qual servira de base para 0 ensino, sem, no entanto, tomar 0 lugar de um manual preparado com fins pedagogicos. Em outras palavras, trata-se de uma contribuicao indireta, que nao pode servir de texto para uso em aula de lingua, podendo, entretanto, servir de fundamento para a elaboracao de tal manual. Essa é a contribuicao da linguistica tedrica ao ensino de linguas e, ao mesmo tempo, a aplica¢ao primaria da teoria linguistica, nesse campo. A que corresponde a contribuicao da linguistica aplicada propriamente dita? Antes de se dar uma resposta a essa pergunta, faz-se mister precisar que o linguista aplicado (aquele que aplica a linguistica a um campo determinado, no caso, 0 ensino de linguas) tem um estatuto intermedi- ario e dependente no processo geral do ensino de linguas. Isto é, nessa operacao total intervém varias autoridades, do governo até o professor, passando pelas autoridades educacionais regionais e locais, pelos diretores de faculdades e de escolas e pelos linguistas aplicados. Logo, as tarefas relativas ao ensino acham-se divididas entre essas varias autoridades. Ao linguista aplicado nao cabe, entao, por exemplo, decidir sobre que linguas serdo ensinadas nem sobre quem ensinard, onde serao ensinadas, que verbas serao dedicadas ao treinamento de professores ou a obtencao e elaboracao de material escolar, nem ainda por que serdo elas ensinadas. Mas cabe a ele encontrar as melhores soluc6es possiveis para os problemas de sua alcada, como, por exemplo, o que ensinar e como organizar esse ensino. A esse respeito, sera sua tarefa organizar a analise da lingua para uso em sala, de preferéncia com a ajuda de professores e pedagogos. Essa tarefa de analise com fins pedagdgicos processar-se-a em varias etapas, compreendendo a restricao da lingua a um dado dialeto e a um ou mais registros, a selecao dos fatos linguisticos a serem ensinados, a gradacao desse material selecionado para fins de ensino. LINGUISTICA E ENSIND DELINGUAS 45, Uma outra aplicagao da linguistica ao ensino reside na organizagao em material escolar do que foi selecionado. Aqui, estamos num nivel diferente de aplicacao, pois, embora a linguistica forneca principios para a descricdo e a selecao do que vai ser ensinado, ela nao oferece principios para sua organizacéo em material didatico. E a esse respeito que surge a questao de como apresentar os fatos da lingua ao estudante. Aqui, a tarefa do linguista aplicado é a de um auxiliar do professor, daqueles que treinam professores, e do autor de livros didaticos. Isso porque, em principio, dizer como a lingua deve ser ensinada é tarefa precipua dos professores e daqueles que treinam professores, e escrever livros didaticos sobre linguas éumaatividade especializada que s6 pode concernir em parte ao linguista. Modelos linguisticos e ensino de linguas A pesquisa sobre o aproveitamento do material selecionado em forma de material escolar, isto é, sobre a criagao de gramaticas pedagdgicas, tem sido feita sob a forma de discussao sobre a relacao entre os modelos linguisticos e as descri¢des pedagdgicas, de um lado, e sob a forma de estudos experimentais dos métodos de ensino, por outro. Vamos aqui dizer algumas palavras sobre a aplicabilidade dos modelos linguisticos ao ensino de lingua materna. A existéncia de um modelo linguistico que seja aplicavel ao ensino de linguas esta na dependéncia direta do fato de esse modelo satisfazer 0 primeiro objetivo do ensino de uma lingua viva. Admitido 0 fato de que esse objetivo seja capacitar os falantes a usarem a lingua de modo eficaz e adequado, esse modelo teria, entao, ao mesmo tempo, de possuir, entre outras, as seguintes caracteristicas: (i) Levar em conta 0 contexto linguistico e a situacao extralinguistica, © que quer dizer que, de um lado, esse modelo nao poderia se 46 | LINGUISTICA € ENSINO DE LINGUAS limitar ao nivel da frase, tendo de ir até ao nivel do texto ou do dialogo, e, de outro, teria de dar conta do uso apropriado dos enunciados, numa dada situagéo de comunicacao, de acordo com os objetivos visados, com o tema da conversa, com o canal de transmissao utilizado etc.; (ii) Tomar em consideragéo nao sé a fungao referencial da linguagem como também as fun¢ées emotiva, conativa, fatica, metalinguistica e poética;? (iii) Ser um modelo que dé conta das variagdes da lingua, sejam essas dialetais, sejam de registro. Essa condicao imposta ao modelo decorre dos seguintes fatos: (i) Possuir uma lingua nao significa exclusivamente ser capaz de construire compreender frases gramaticais: significa saber utilizar essas frases num dado contexto linguistico e numa dada situacao linguistica apropriada; (ii) Comunicar-se com outrem nao é exclusivamente transmitir ou pedir informagées sobre objetos ou acontecimentos dados (fun¢ao referencial): comunicar é também transmitir emocées, senti- mentos, julgamentos (fun¢ao emotiva), é usar a lingua para agir sobre o destinatdrio (fun¢ao conativa), para atrair a atencao do interlocutor, para verificar se o canal de comunicacao funciona (fungao fatica), para verificar se o interlocutor esta usando o mesmo cédigo (fun¢ao metalinguistica), para procurar dar melhor configuracao a mensagem (funcao poética); 2. Aabordagem das fungées da linguagem segue o modelo elaborado pelo linguista russo Roman Jakobson (1896-1982) (cf. JAKOBSON, 1995), [Nota das editoras] LINGUISTICA E ENSINO DELINGUAS 47, Nao existe lingua una e homogénea no territorio em que é fa- lada: toda lingua comporta variagées de varios tipos - dialetais (sociais, etarias, regionais etc.) e de registro (em fungao do grau de conhecimento entre falante-ouvinte, da modalidade falada- -escrita e da formalidade da situa¢ao). Acontece que, no entanto, nao existe até o momento um modelo que reuina essas trés caracteristicas, pois os modelos existentes nao sao modelos do emprego da lingua, sao modelos do sistema da lingua, res- tringindo-se a funcao referencial, considerando a frase como a unidade superior da descri¢ao gramatical e negligenciando as unidades superiores a frase, tais como 0 texto e 0 didlogo. Assim, vejamos: (i) Agramatica tradicional é uma gramatica da frase, que negligencia totalmente a situacao de comunicacao e apresenta a lingua como sendo pura e homogénea; (ii) O modelo estrutural representa um passo adiante na descri¢ao gramatical em relacao ao modelo tradicional: a lingua deixa de ser considerada como pura e homogénea, para ser compreendida como um complexo de variantes. No entanto, esse modelo, apesar de distinguir entre a langue e a parole,’ exclui da descrigao lin- 3. Os conceitos de langue e parole foram formulades originalmente por Ferdinand de Saussure, referindo-se, respectivamente, ao sistema linguistico (definido como homogéneo, coletivo e estatico) fala (definida como heterogénea, individual e dinamica). Conforme observado pela autora, nessa dicotomia, Saussure busca demonstrar que a langueé o objeto da lingulstica (cf. Curso de Linguis- tica Geral, 1916). Estudos subsequentes, notadamente no ambito da Sociolinguistica, questionam essa abordagem, postulando o conceito de heterogeneidade sistematica, em rela¢ao ao fendémeno da variagao linguistica, tomando por base os dados da lingua em uso. A abordagem gerativa, por sua vez, dispensa a dicotomia Jangue/parole, definindo lingua como uma propriedade da espécie humana, situada no cérebro/mente de cada individuo, o que permite reter a nogao de sistema estavel, postulada por Saussure, sem excluir o papel da lingua em uso para dar conta do fenémeno da variagao e mudanga linguistica (cf. CHOMSKY, 1986). [Nota das editoras] 48° | LINGUISTICA E ENSINO DE LINGUAS guistica os fatores ligados ao emprego individual da lingua como instrumento de comunicagéo numa dada comunidade. Desse modo, com a exclusao da fala do ambito da anilise, nao se leva em consideracao o emprego das diversas variantes linguisticas segundo as situacdes e descreve-se uma variante de lingua con- siderada neutra, homogénea, representativa, comum a todos os membros da comunidade. Continua-se a negligenciar, de modo geral, as unidades superiores a frase, com algumas excegdes. (iii) O modelo gerativo também tem a caracteristica de ser um modelo da frase, nao levando em conta nem o emprego dessas mesmas frases em situacgdes de comunica¢ao apropriadas nem o fato de a lingua nao ser una e de comportar variagées de diversos tipos. E claro que a exclusdo, do modelo, de niveis superiores ao da frase é perfeitamente explicavel: como descrever o que esta além do nivel da frase se o proprio nivel da frase ainda esta por ser totalmente analisado? Como vimos, a aplicabilidade de algum dos modelos existentes ao ensino de linguas so existiria se houvesse concordancia de objetivos entre ensino de linguas e modelo gramatical. Ora, se os modelos existentes visam a dar conta dos fatos da lingua no nivel da frase, negligenciando o emprego da lingua e o fato de ela comportar variagGes de diversos tipos, e se, por sua vez, 0 ensino de linguas visa capacitar o individuo a se expressar apropriadamente, na lingua ensinada, nas diversas situagdes de sua vida quotidiana e profissional, nao ha concordancia de objetivos. Oensino de linguas exige um modelo que analise as relagdes entre frases e, que, portanto, ultrapasse o nivel da frase; um modelo que leve em conta os fatos sociolinguisticos em jogo no uso da lingua. Enfim, uma gramatica pedagdégica tem necessariamente de ser uma gramatica da pragmatica do emprego de uma lingua. LINGUISTICA E ENSINO DELINGUAS | 49) Sociolinguistica e ensino de linguas Sendo a lingua um veiculo de comunicacao entre os membros de uma dada comunidade, é natural que se procure estuda-la em seu contexto social. A sociolinguistica procura exatamente estudar a lingua em seu uso por uma dada comunidade linguistica. Como o ensino também visa o emprego da lingua, hd necessariamente de se relacionar com a sociolinguistica e seus principios ao ensino de linguas, e em consequéncia, tem-se de levar em conta, no ensino de uma lingua, a varia¢ao linguistica no ambito de uma mesma comunidade linguistica. O comportamento linguistico varia em funcao de fatores sociais: (a) tipo de relacdo entre locutor-ouvinte; (b) tipo de situacao em que se encontram: em familia, na escola, no trabalho, na igreja etc,; (c) o assunto tratado. Em funcao desses fatores sociais, podem ser tratadas as variacdes no uso da lingua, ensinando-se o aluno a distinguir os diferentes usos da lingua segundo essas determinantes e, sobretudo, dando-se meios aos falantes de usar registros que nao possuam ainda. Por outro lado, a separacao do que é constante do que é variavel na fala da comunidade, e a diferenciacao do que é variacao social e do que é variacao individual ou estilistica, daraéo meios ao professor e ao linguista de trabalhar conjuntamente na analise dos erros dos alunos, através de uma interpretacao de tais erros em fungao da lingua padrao da qual eles se desviam. Finalmente, é necessario também levar em conta o fato de haver, em certas areas geograficas, contato entre linguas, como acontece no sul do Brasil. Deve-se considerar, a esse respeito, no caso de contato entre o portugués e outra lingua, o efeito dessa outra lingua sobre o comportamento linguistico e sociolinguistico dessas comunidades. Como ha uma convergéncia entre os interesses dos professores de lingua, dos linguistas e dos sociolinguistas, ¢ possivel que em breve veja- mos 0 campo da linguistica se alargar para abranger a andlise da lingua como instrumento da comunicac¢ao. Numa tarefa conjunta, aos linguistas e aos sociolinguistas cabe propor hipoteses e solugdes que permitam aos 50 | LINGUISTICA E ENSINO DE LINGUAS professores resolver da melhor maneira possivel os problemas ligados ao ensino e a aprendizagem do emprego apropriado da lingua, o que permitiria uma renovagao do ensino, através de uma nova orientacao e de uma elaboracao empirica dos novos cursos. Desse modo, a aplicacao da linguistica ao ensino de lingua nao se faria de modo dogmatico, mas de modo empirico e dialético. Renovacao gramatical no Brasil Mostramos as lacunas das teorias gramaticais com relacdo a uma aplicagao ao ensino de linguas e a necessidade de serem introduzidos nessas teorias a pragmatica do emprego da lingua e fatores sociolinguisticos durante muito tempo negligenciados no ensino. Observamos que, para 0 ensino, faz-se mister uma gramatica do texto e do discurso, que apresente as relacdes entre frases num texto e trate do uso real de frases em diferentes situacdes de comunicagao, ao passo que as teorias atuais sdo teorias da frase e do sistema linguistico. A necessidade de se alargar o escopo das atuais teorias e das analises utilizadas na elaboracao de material peda- gogico, para se incluir ai os dados que acabamos de mencionar, tem sido frequentemente apontada, por linguistas de diversas correntes. Como ja dissemos, o fato de teorias terem de se limitar a competéncia, negligen- ciando o desempenho, deve-se a uma necessidade natural e logica de se estudar primeiro aquela e depois esse. Com relacgao a outras linguas, tentativas tém sido feitas no sentido de se renovar o ensino com base em idéias linguisticas recentes. No Brasil, nao temos conhecimento de nenhuma tentativa no género. Uma renovacao que se baseasse numa analise completa de dados do portugués contemporaneo, sob uma dada abordagem, seria uma ilusao. Uma tal analise ainda nao existe, s6 existindo poucas andalises e assim mesmo de dados parciais da lingua. LINGUISTICA € ENSINO DELINGUAS | 51 O que se poderia e se deveria entao fazer no Brasil, com vistas a uma renovacao do ensino? Primeiramente, deveria haver uma maior colaboracdo entre professores e linguistas, a fim de que, de um lado, os problemas da aprendizagem do emprego da lingua fossem melhor equacionados e, de outro, se elaborasse em novas bases 0 ensino e se renovassem empiricamente Os novos cursos. Em segundo lugar, dessa colaboracao deveriam surgir novos materiais escolares, levando em conta 0 uso da lingua em diversas situacdes de comunicacao e contendo exercicios que também evidencias- sem as relacdes entre frases e 0 uso dessas frases em diferentes situacdes. Por outro lado, urge também que nao se ignore o fato de haver comunidades bilingues no Brasil, onde o portugués entra como lingua aprendida na escola. Caso se tente alfabetizar em portugués um aluno que nao fale essa lingua, o que acontecerd muito provavelmente (e é 0 que tem acontecido na realidade) é que esse aluno nao tera bom rendimento em sua aprendizagem e se sentir inferiorizado e com complexos que repercutirao em sua vida futura. O que se deveria fazer é alfabetizar em portugués 0 aluno, mas através do uso da lingua que ele conhece e aprendeu em casa. Desse modo, nao se estara desestimulando a aprendizagem nem se estara formando pessoas com vistas ao fracasso. Para tal, no entanto, seria necessario que se elaborassem descricées dessas linguas nao oficiais, tal como sao faladas na comunidade, e do portugués que esses falantes utilizam, pois, com certeza, nao é esse o portugués literario que se tenta ensinar nas escolas. Uma tal andlise é essencial para a andlise dos erros dos alunos de ascendéncia estrangeira. Acabamos de observar que se tenta ensinar nas escolas 0 portugués literario. Caberm aqui algumas palavras a esse respeito. Tem-se notado que o ensino da gramatica do portugués nas escolas brasileiras centra-se sobretudo no ensino que toma como exemplos oracées retiradas de textos literarios, o que parece conferir a esse ensino 0 objetivo principal de dar aos estudantes melhores condicées para compreenderem e apreciarem a literatura nacional e também a portuguesa. No entanto, 52. LINGUISTICA € ENSINO DE LINGUAS tomar esse objetivo como o fim em si do ensino da lingua materna é bastante questionavel. Nao que o ensino nao possa ter esse objetivo. Ele deve ter esse objetivo, mas entre outros. Esses outros objetivos do ensino da lingua seriam, de um lado, o de proporcionar aos falantes meios de usarem sua lingua de modo eficaz e apropriado ou adequado (e esse foi 0 objetivo que consideramos como o objetivo primeiro do ensino de lin- guas), e, de outro, o de fornecer a esses mesmos falantes conhecimentos sobre o funcionamento de sua lingua. Na pratica, no Brasil, parece que esses dois Ultimos objetivos tem sido negligenciados. Enfatiza-se o uso literario da lingua, em detrimento de outros usos, alids, usos de que os falantes teréo realmente necessidade em sua vida quotidiana. Nao que sejamos contrarios ao ensino de literatura nas escolas e faculdades. Somos contrarios ao seu ensino exclusivo. Esse estado de coisas é conhecido por todos e a constatacao de suas consequéncias faz parte do dia a dia dos professores de qualquer matéria nas Universidades brasileiras. Muitos alunos de nossas facul- dades nao conseguem expressar de modo claro as suas ideias, o que impede seu melhor desenvolvimento em outras mateérias, por exemplo, a propria linguistica, no caso de alunos dessa disciplina. Sera que nossas escolas nao conseguem ensinar o uso apropriado da lingua? Um pedido de transferéncia, por exemplo, é feito por universitarios em mais de um tratamento. Ora, requerimentos exigem o uso de um registro que nao é o literario, mas tampouco € 0 coloquial. E, seja dita essa verdade, muitos de nossos alunos nao dominam outro registro a nao ser o coloquial. Na tentativa de ensino do registro mais elevado, nosso ensino perde-se em seus propositos, nao conseguindo totalmente nem mesmo realizar seu objetivo implicito. No entanto, é claro que nossas faculdades de Letras nao sao respon- saveis por esse estado de coisas, nem tampouco, e muito menos, seus professores de portugués. O aluno ja entra na faculdade com deficiéncia em seus conhecimentos da lingua materna em outros registros que nao LINGUISTICA E ENSINO DE LINGUAS , 53 o coloquial. A falha, portanto, esta na base. Mas, para remedia-la, seriam necessarias providéncias de ordem nao-técnica, como melhor remune- ra¢ao aos professores, a fim de que, com classes menores, pudessem dar énfase ao ensino do uso da lingua. Esse objetivo - ensino do uso da lingua em diferentes registros - implica exercicios, e, para tanto, o professor tem de dispor de tempo para a correcao. Ora, nossos professores tem de ‘correr’ de uma escola para outra, muitos dando até mais de 40 horas de aula por semana. Dispdem eles, com essa carga de aula, de tempo para levar trabalhos de alunos para casa? Humanamente, essa tarefa € impossivel. Portanto, uma renovacao do ensino da lingua materna implica, antes de tudo, melhor remuneracao para os profissionais desse mesmo ensino. E légico que, entdo, essa melhor remuneracao implicaria maiores deveres por parte dos professores. Mas também é verdade que esses mesmos professores deixariam de ser professores frustrados, como © sao agora, para serem professores que veem o resultado de sua labuta. Todos admitem atualmente que 0 ensino nao pode mais ser pres- critivo, isto é, nao pode mais continuar considerando errado 0 uso que o falante faz de sua lingua, tentando substitui-lo por outro uso, mais “bem visto" pela sociedade. Admitidas as variagdes existentes no uso da lingua, o ensino tem de deixar de ser prescritivo para ser descritivo e produtivo. No ensino descritivo, mostrar-se-4 como a lingua funciona e dar-se-a ao aluno consciéncia do uso que ele prdprio faz de sua lingua; no produtivo, ensinar-se-do ao aluno variantes de sua lingua apropriadas a diversas situagdes, de modo que ele possa efetivamente usa-las de acordo com suas necessidades. Com esses dois tipos de ensino, procura-se atingir os objetivos do ensino de linguas a que ja nos referimos: 0 objetivo educacional de mostrar como funciona a lingua e 0 objetivo pragmatico de dar meios aos falantes de usar apropriadamente a sua lingua. O outro objetivo, o de capacitar o falante a apreciar a literatura, nao 6 mais do que uma decorréncia desses outros objetivos, pois, conhecendo bem sua lingua materna, o falante tem melhores condicées para compreender o 54 LINGUISTICA € ENSINO DE LINGUAS uso literdrio da lingua. Ai esta, pois, mais uma razao para se enfatizar o ensino pragmatico da lingua. Queremos agora terminar estas palavras dizendo que a linguistica nao tem receitas a oferecer. Aplicacdes pedagdgicas, ja prontas, da linguistica ao ensino de linguas nao existem e qualquer aplicacao possivel ao ensino de linguas é 0 resultado de longa reflexao e de um trabalho conjunto entre linguistas e professores. Extrair de uma teoria linguistica algumas de suas nogées basicas e usa-las isoladamente, fora do conjunto da teoria, nao é renovar o ensino de linguas: isso seria pura mistificagao.

You might also like