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Teoria Geral do Poder Constituinte. As Constituicées do Brasil e a Constituigao da 6.2 Republica Pinto FERRena Professor de Direito Constitucional ¢ Ex-Diretor 4a Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco. Direvor da Faculdade de Direito de Caruaru. Ex-Senador. Mem- bro da Academia Brasileira de Letras ‘Juridicas I — Conceito do poder constituinte © poder constituinte 6 o poder de criar uma Constituicgéo. A sua nota caracteristica basica é a mudanca originéria baésica da ordem juridica fundamental e suprema do Estado. Entre extremos, opostos, discute-se, porém, a amplitude do conceite do poder constituinte. Pretendem diversos mestres, como Scamrrr, Heniar, Recaséns Sicuzs, Cari FRIEDRICH, Bart! e DuEz, que a sua esséncia esta na capacidade de formagéo origi- naria do direito, ou seja, 6 um poder de criar a Constituicio. Ja outros estudiosos, como Waren Dopp, Keisex, Hauriou e Rui Baxsosa, opinam por uma defini¢éo mais ampla, vendo no poder constituinte a capacidade de criagdo e mudanga da Constituicao. Stcues, na sua obra O Poder Constituinte e na sua exposic&o Teoria do Poder Constituinte, afirma: “A producio originaria do direito implica o que se chama poder constituinte.” Argumenta que nem toda substituigéo ou reforma da Constituicéo representa pto- duedo originaria do direito, nem, portanto, inaugura um novo sis- tema juridico, nem tampouco determina uma solucio de continui- dade com referéncia A ordem anterior. Uma Constituig#o pode ser modificada ou substituida normalmente, legalmente, quer dizer, seguindo para tanto o processo de reforma previsto explicita ou tacitamente na Constituicéo anterior, i. e., a que se modifica ou R, Inf, tegisl. Brasitio 0, 22 u. 87 jul./aet. 1965 139 substitui. Entéo em nada se rompe a continuidade da vida juridica, posto que ao interior cimento constituctonal se superpée um outro, nele alicercado. Da sorte que a validez da nova Constitnicgéo nfo representa algo primario, nfio é algo radicatmente origin4rio, nao é algo de uma esséncia nova, mas deriva da Constitui¢géio prece- dente, que serve de fundamento a nova. Essa doutrina, por ser alema de procedéncia, fundamenta-se em Schmitt, na sua Verfassungslehre,. ao combater Zwzia, e HILDESHELMER, Scusors: “ especialmente inexato caracterizar como poder constituinte, ou pouvoir constituant, a faculdade, atribuida e regulada sobre a base de uma lei constitucional de mudar, i. ¢., de revisar determinagdes legal-constitucionais. Também a faculdade de reformar ou revisar leis consti- tucionais (p. ex., segundo: o art, 76 da Constituicgéo de Weimar) é, como toda faculdade ¢onstituctonal, uma com- peténcia legalmente regulada, ou limitada em principio. Nao pode ultrapassar o marco da regulagio legal-consti- tucional em que descansa.” Contra essa tendéncia, elicam armas mestres de igual saber, integrando, outrossim, na esséncia do poder constituinte a capaci- dade de reforma constitucional. Dizemno Econ Zweic, RUt Barposa, Watter Dopp, Kzissn, esté tiltimo assim se expressando na Teoria Geral do Direito e do Estado (1945, p. 259): “Se o Estado é criado de uma maneira democratica, a primeira Constituigéo origina-se numa assembiéia constl- tuinte, que os franceses chamam une constituante. Algu- mas vezes uma certa mudanga (change) na Constituigao est fora da ‘competéncle do érgao legislativo regular ins- tituido pela Constituicao, reservando-se para tal uma constituinte., um Grgéo especial apenas competente para as emendas constitucionais.” Em suma, pode-se entender como poder constituinte o poder de criagéo originéria. da Constitutc#o, reservando-se 0 nome do poder de emendabilidade 4 Constituigéo a competéncia para modi- ficé-la segundo as regras estabelecidas pela propria Constituicao. TI — SIEYES e a doutrina do poder constituinte A elaboragao geral da teoria do poder constituinte nasceu, na cultura européia, com Srtvés, pensador e reyolucionario francés do século XVII. A concepgio da soberania nacional acrisolou-se na época, e coube a Suéyks bosquejar a distingdo entre o pouvoir cons- tituant, que reside sempre no povo, e 68 pouvoirs constitués, neces- sitando derivar sua existéncia e competéncia do poder constituinte. a0 R. Unf. ieoisl, Brecilia ©, 22m. G7 ful./vet, 1908 Scumrrr, nos estudos Die Diktatur e Verjassungslehre, observa uma analogia metafisica entre essa doutrina e a filosofia pantefsta de Spinoza, na equivaléncia ideal entre potestas constituens e na- tura naturans, ou entre potestas constituta e natura naturata. Entretanto, com a secularizacéo do pensamento humano, a ciéncia sé propés a separar da teologia politica a nova doutrina positiva do poder constituinte, onde descansam todas as faculdades e compe- téncias constituidas e atribuidas & Constituicao. Justamente Stévés é um dos representantes dessa seculariza- gao do mundo (Entzauberung der Welt), a que se referem Max ‘Wesrr, Howard BECKER, TOENNIES, MALINOWSK!I, SHOTWELL DURK- mam, atribuinde o poder constituinte ao povo, & propria comuni- dade social, com a doutrina do pouvoir constituant da nacdo. Til — As Constituigées do Brasil e seu formalismo As Constituigées brasileiras como as Constituigées latino- americanas 3&0 elaboradas como reflexos de modelos estrangeiros. £ a regra genérica. Geralmente os paises em desenvolvimento ten- dem a imitar modelos estrangeiros no campo do direito, costumes e no comportamento sociai, A Constituig&o do Império de 1824 refletiu o modelo parlamen- tarista franco-britanico, com um certo artificialismo, pela predo- minancia da vontade do Imperador frente & Assembléia Geral. A Constituigéo de 1891 é um reflexo da Constituigéo norte-americana de 1787, instaurando a repiblica federativa e o presidencialismo, mas que degenerou na hegemonia da Unido sobre os Estados com- ponentes da Federaciio e na hipertrofia do poder da Repdblica. As Constituigées de 1934 e 1946 combinam a influéncia norte- americana do presidencialismo e um certo contetdo social inspirado na Constituigao alema de Weimar de 1919. As cartas politicas de 1937 e 1967 séo modelos autoritérlos de hipertrofia do cutivo € aniquilamento das lHberdades individuais, representando os modelos autoritérios da Europa. As Constituigdes do Pais tém, ademais, uma moldura formal, havendo sempre um contraste entre o texto da lei e a sua realizagao. FAcil é legislar, dificil é executar a lei. Geralmente sic modificadas ao sabor de revises ou emendas, mesmo contrariando o aspecto formal que devem seguir tais emendas. Por isto a nossa democracta tem sido uma democracia sem povo, em que a vontade da maloria tem sido menosprezada pela concentracéo de poder nas méos de elites dominantes. Elas procuram descer a detalhes para meihor garantia das liberdades e direitos, porém, setn nenhum resultado pratico, por forga de sucessivas alteragGes da ordem constitucional ou uso exor- R. Inf, legisl, Brasilia a. 22 n, G7 jul./ape. 1985 141 bitante de medidas de emergéncia, como 0 estado de sitio e outras técnicas de salvaguardas constitucionais, que se voltam contra a democracia. IV — A Assembléia Constituinte do Império J& houve varias assembléias constituintes no Brasil, come- gendo no século XIX. O Principe Regente D. Pedro, num posiciona- mento tipicamente revolucionario, convocou a almejada assembléia pelo decreto de 3 de junho de 1822, antes mesmo da proclamagaio ncia. Era a revolugaéo & vista, desvinculando o Brasil- onan da metrépole portuguesa. Airevoiugao explodiu logo depois & margem do riacho Ipiranga, em Sao Paulo, quando D. Pedro arrancou do chapéu o Lago distintivo e cardcteristico de sua propria nacionalidade. O dia 3 de maio de 1823 foi a data escolhida para a abertura da Assembléia Naclonal Constituinte, que se reuniu com 90 depu- tados constituintes, no prédio da Cadeia, Velha, no Rio de Janeiro. O projeto da Assembléia Constituinte desagradou o Imperador, voluntarioso e inteligente, audacioso e tenaz, estouvado e libertino ao mesmo tempo. no que diferia de D. Jo&io VI, modesto, bonachiio e irresoluto. O projeto de Constituigaéo diminufa os poderes do Im- perador, pois nao the atribuia o uso do Poder Moderador de dissol- ver a Camara dos Deputados. A Assembléia Constituinte nfo recuou e entao o Imperador dissolveu a Constituinte pelo decreto de 12 de novembro de 1823. A Assembléia Constituinte foi dissolvida de fato as 13 horas, do dia 12 de novembro de 1823, com o deereto fundamentando a dissolugéo porque “perjurara ao seu ‘solene juramento de salvar o Brasil”. O Imperador, irénico, sarcéstico e ferino, ainda mandou dizer que as tropes que cercavam o' ediffelo da Assembléia eram para defendé-la de quaisquer insultos, prometendo editar um novo projete de Constituicéa “duplicadamente mais liberal” do que o arquiteturado pela Assembléia Constituinte dissolvida pela forga. Vinte e quatro horas depois de tal dissolugéo, foi editado o de- creto criando o Consetho de Estado, a fim de elaborar 0 projeto de Constituicado, com 10 conselheiros. Cinco baianos: o barao de Santo Amaro. Pereira da Cunha e J. J. Carneiro de Campos, bem como os Miristros Carvalho e ‘Melo e Clemente Ferreira Franca; trés mi- neiros: Maciel da Costa, Nogueira da Gama e Silvério Mendonga. A sagacidade dos baianas era tao viva quanto a dos trés minelros, dotados de refinada mineiridade, fazendo uma turma compacta, @ que Se agregaram os cariocas Mariano José Pereira da Fonseca e Francisco Vilela Barbosa. Carneiro de Campas € tido como o redator principal, mas n&o o unico do projeto, 142 R. Inf, degisl, Brasilia a. 22 n, 87 jul./eet. 1995 A Comisséo de 10 membros, encarregada de redigir o projeto, aproveitou sobretudo o texto elaborado por Martim Francisco, o jurista dos Andradas, que a policia descobriu quando varejou a loja magénica Apostolado, ¢ que se aproveitou de trés fontes principais: a Constituicao francesa e a da Noruega, acrescidas de pensamento de Benjamim Constant sobre o Poder Moderador. Este foi idéia de Martim Francisco, contrariando José Bonifacio, e que a Comissio dos 10 consagrou, acrescentando novas idéias e fortalecendo o Poder Moderador e o Poder Executivo. Afinal, a 25 de marco de 1824 foi outorgada a 1# Constituigio do Brasil. A hipertrofia do Poder Moderador foi assinalada por Nabuco de Aratijo, Saraiva, ¢ muitos outros politicos do 2° Reinado, © poder pessoal do Imperador, que Saraiva chamou de poder dita- torial, equivalente ou quase ao caudiihismo latino-americano. V — O Congresso Constituinte du 1* Republica Proclamada a Reptiblica em 1889, bem como a Federagéo, pelo Decreto n? 78-B, de 21-12-1889, foi convocado 0 Congresso Consti- tuinte para reunir-se a 15-11-1890, um ano depois. O nome dado foi o de Congresso Constituinte. Uma Comissfio de cinco membros reconhecidamente republi- canos foi nomeada para elaborar o novo projeto, composta de Joaquim Saldanha Marinha (presidente), Américo Brasiliense de Almeida Melo (vice-presidente), Anténio Luis dos Santos Werneck, Francisco Rangel Pestana e José Anténio Pereira de Magalhies Castro. A Comissao apresentou um anteprojeto tinico, de sua responsa- bilidade nominal, que o governo encaminhou ao Congresso (Decre- tos n? 510, de 22-68-1890, e n? 914-A, de 23-10-1890), tendo assim cumprido a sta missio em cerca de 6 meses. Contudo, inicialmente ndo howve acordo, pois Brasiliense, Magalhaes de Castro e Werneck, este em conjunto com Rangel Pestana, ofereceram esbogos diferen- tes, dois esbocos assim, mas finalmente concordaram todos em um 86 anteprojeto, Rui Barsosa retocou 0 projeto, todos influenciados pelo modelo norte-americano de Constituigéo de 1787. A 15 de novembro de 1890 foi instalado o Congresso Constituin- te, elegendo Prudente de Moraes como seu Presidente, sendo eleita uma Comissao de 21 membros, dé maneira que cada Estado desse um membro, para unificar o parecer sobre o projeto encaminhado pelo Governo Provisério. Trés meses apenas duraram os trabalhos, 2 @ 24 de fevereiro de 1891, foi promulgads @ nova Constituigéio da Reptiblica dos Estados Unidos do Brasil. R. Ink. Joghsl, Grositia @. 22 m. 87 ful-/eat. 1985 143 VI —— A Revolugdo de outubro de 1930 e a Assembléia Constituinte de 1933-34 A Revolugao de outubro de 1980 daria margem a convocagao da nova assembléia constituinte com o nome de Assembiéia Na- cional Constituinte. A Repiiblica brasileira, feita numa madrugada, com o passeio ceivico e marciat de 1889, mostrou. uma conjugacao proveitose do tilintar das espadas com a oratéria flamejante dos grandes tri- ‘unos como Rut e Joaé po Parrociwio, e deveria ser 0 que foi: fe- cunda, inquieta, tonteante no desequilibrid dos poderes, na hipertre- fia do Executivo, no entrechocar-se de suas antiteses sucessivas, 0 liberalismo e o autoritarismo, este consagrado pelo estado de sitio 2 intervencao federal, num jogo fascinante de espirais invertidas. J& 0 novo direito constitucional brasileiro apareceu a partir de 1934, com a influéncie da Constituigéo alemé de Weimar, com- binada com o passado histérico do presidencialismo de inspiracéo americana, anteclpado pela Revolugéo vatguists. Nao teve eco o revisionismo de Rui Barbosa, apéstolo da paz e da solidariedade humana. O iiltimo presidente da época, Washington Luis, teimoso, leal, intransigente, personalidade afirmative ¢ dominante, consagrou © modelo cldssico do presidencialismo levado ao seu exagero, e, 30 mesmo tempo, precursor da sua decadéncia. Getilio Vargas com calma sorridente, engalanou a Republica de bombachas, e duvidando da ilusio metafisica da soberania do povo, encastelou-se no Catete entre rodadas de chimarrio, ponchos vistosos, russilhonas e rosetas de esporas de prata, e mais tarde acelerou uma marcha ruidosa para o nacionalismo e o trabalhis- mo, como um heréi de legenda sempre relembrado. Getilio Vargas, com sagacidade felina, custou a convocar a Assembiéia, Constituinte, baixando a 14-6- 1932 0 Decreto n? 21.402, fixando o dia 3 de malo para a realizag&o das eleigdes 4 Assembiéia Nacional Constituinte e criando uma comissiio para elaborar o projeto da futura Constituigiio. Logo depois sobreveio a Revolucao paulista e, s6 vencida esta, 0 novo Decreto de n? 22.400, de 19 de novembro de 1932, designou uma Comissio que, além do Presi- dente, foi composta dos seguintes membros, em numero de 14, a saber: José Américo, Osvaldo Aranhs, Anténio Carlos, Agenor de Roure, Joéo Mangabeira, Carlos Meximilianp, Prudente de Moraes, Artur Ribeiro, Assis Brasil, Gdis Monteiro, Oliveira Viana, Castro Nunes, Temistecles Brandao Cavalcanti. Ao todo, 14 membros, com o Presidente da Comissio, chamada Comissio do Itamarati, pois se reunia no Palacio do Itamarati. 144 R. inf, legist. Wresilia o. 22 n, 87 jut./eer. 1965 © presidente da Comisso era 0 gaticho Antunes Maciel, Minis- tro da Justica, que tinha atribuicées para designar substituto, e 0 fez, designando Atranio de Melo Franco. A Comisséo do Itamarati apresentava conviccées diferentes dos seus membros. Ao lado do nacionalismo militarista de Géis Mon- teiro, desconfiado do liberalismo e da democracia cléssica, o mes- tre Oliveira Viana se inclinava para modelos sociologicamente au- toritérios e aristocraticos; Jo&o Mangabeira aduzia uma inclinagao liberal e socializante como herdeiro dileto de Rui Barbosa, enquan- to José Américo e Osvaldo Aranha balangavam o seu ideario entre 0 pensamento da justica social e os novos modelos autoritérios do Ocidente. Anténio Carlos e Melo Franco representavam um centro de equilibrio e convergéncia. Como se vé, a fina flor do pensamento constitucional do Brasil, em que se alinhavam duas tendéncins opostas: as conviccées socio- logicamente autoritdrias de Oliveira Viana e a dialética sedutora de Joao Mangabeira, ao mesmo tempo liberal com Rui Barbosa e esquerdista & maneira socialista, defrontando-se destarte as duas correntes — a corrente democratica e a corrente autoritaria. Dai surgiu a Constituigdo de 1934, a matriz das novas Cons- tituig6es brasileiras, especialmente a de 1946. O novo direito constitucional brasileiro teve por conseguinte & sua matriz na Comissao Constitucional que Afranio de Melo Franco, na época, presidiu com sabedoria e inteligéncia, A redag&éo do texto da Constituigao relativa a organizacéo dos Estados e Municipios ficou com Temistocles Brandao Caval- canti, a organizacéo financeira com Agenor de Roure, a defesa nacional com Géis Monteiro, a ordem econdmica e social com Qs- valdo Aranha, os direitos e garantias individuais com Joao Man- gabeira, como seu inquieto talento renovador, devendo-se-lhe 0 instituto do mandado de seguranga elevado 3 nivel constitucional. A Constituicéo, promulgada em 16-7-1934, durow pouco, trés anos apenas, espezinhada pelo golpe de Estado de 10 de novembro de 1937. VII — O Estado Novo As ondas ideolégicas turbilhonantes do fascismo e do bolche- vismo intimidaram a Reptiblica, e a nacio acolneu o complot palaciano de 1937 com resignagéo e passividade. Entoou-se 0 De profundis do liberalismo, numa Hlosofia politica influenciada por uma Alemanha mais wagneriana do que goethiana. Getilio Vargas, com a sua tatica dilatéria, tinha, porém, em sua personalidade carismatica uma amabilidade felina, pronto a mostrar as garras ao primeiro confronto e contestacao. R. Inf, legisl, Brosilig v.22 m, GY jul./sat. 1985 143, ‘Desde entéo as Constituicées do Pafs tém tido uma inclinacfio ora autoritéria, ora liberal, de acordo com os momentos histéricos. A histéria compraz-se em um jogo de antiteses. O contraste & empolgante, com a feicho periédica imanente as leis histéricas, O Estado Novo instalado em 1937 resultou de um complot palaciano, com inclinagio fascistizante, aniquilando as liberdades democréticas e os direitos individuais. O golpe traidor foi desfe- chado, e sem reagio, com um ambiente nacional de passividade e de resignacao. Os golpistas do Estado Novo agiram sem a minima possibilidade de insucesso, apoiados por um Congresso subserviente e jpristas escrupulosos, impressionados pelas doutrinas antidemo- craticas. Francisco Campos, jurista de conhecidos talentos, foi o autor passionel da nova carta politica inspirada nos moldes autorité- Ties europeus, na Constituigéo polaca e nos modelos paramussoli- nico e hitleresco do fascismo europeu vitorioso, A Constituicéo jurada em 1934 foi traida, sem risco para seus autores, a democracia sendo relegada para o museu de antigii- dade e confinados ios seus lideres,| Nenhuma assembléia constituinte elaborou a dita carta magna de 1937, nem foi ratificada por referendum popular. A Reptblica estava morta, o Estado Novo Rascente € adolescente envelheceu logo, provocando a desordem financeira, uma corrupgéo desola- dora, sem grandeza histérica. VIIL — 4 queda da ditadura, a Constituinte de 1945 e a Revolugdo de 1964 Com a queda do Estado Novo 6 convocada a derradeira Assem- bléia Constituinte. A deposic&o do chefe do governo, Ctetilio Var- gas, ¢ 0 fim da ditadura ocorreram a 29-10-1945, transmitindo-se © poder ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Linhares. As ovas eleicGes presidenciais foram realizadas a 2-12-1945, ena mesma data também se realizaram as elei¢des para a Assem- biéia Constituinte, que se instalou isolenemente em 5-2-1946, pro- mulgada a nova Constituicio em 18-9-1946, retomando o fio da tradi¢ao interrompida bruscamente em 1937. Fol esta a 4% Assembléia Constituinte convocada para norma- Vizar a vida politica do Pats, trazendo A Nacéo uma Constituicgo liberal, democrético-social moderna, com tracos razofveis de equi- lbrio federative, harmonia de poderes, mas sem ter conseguido vesolver a armadura colonial de economia reflexa, que sempre desgastou ¢ enfraqueceu a democracia politica. 146 R. Inf, legisl. Brovilia @. 22 n, O7 jul./set, 1985 Fatos historicos altamente negativos concorreram para a queda da Reptblica de 1946: a desastrosa rentincia de Janio Qua~ iros, a posse ameacada de Goulart, a deteriorac&o do poder civil, @ crise econémica (endividamento externo e inflagiio), daf o golpe militar de 1964, sem possibilidade de convocagfio de uma Assem- bléia Constituinte. Houve uma triplice crise: crise do direito, crise de homens, crise de fatos. © movimento de 1964 revogou a Constituigéo de 1946, pre- valecendo a técnica dos atos institucionais, atos complementares, decretos-leis e normas de excecado. Houve até a singularidade de decretos secretos, como é 0 De- creto n? 69.534, de 11-11-1971 (DOU, de 11-11-1971), quando o governo baixou decretos-leis autorizando a Executivo a promulgar decretos secretos, cujos textos nao seriam divulgados em nenhu- ma publicacdo oficial. Apurou-se a existéncia de 10 decretos secre- tos, que apenas tiveram seus ntimeros publieados, desde 1971. Oscar Psprosa Horva (Veja, 24-11-1971) comentou: “A meu ver, o Decreto n? 69.534 constitui uma singularidade no direito brasileiro. Nao sei como se obedeceré a uma lei, a um decreto, a um regulamento que todas devem ignorar”. © governo encaminhou o projeto da nova Constituicdo ao Congresso, projeto que foi votado em tempo recorde, representando & nova Constituigéo de 24-1-1967 0 enfraquecimento do federalis- mo ou a sua crise agénica, com a hipertrofia do centralismo da Unido em desproveito dos Estados-Membros e dos Municipios, a hipertrofia do Executivo e a invasdo das competéncias do Legisla- tivo pelo Executivo. Tal tendéncia autoritaria foi consolidada pela Emenda Cons- titucional n° 1, de 17-10-1969, criando uma ordem juridica centra- lizante, autoritéria, antiliberai e mesmo arbitraria. O governo do presidente Figueiredo teve o mérito de pér fim a tal periodo, comecando a normelizar a ordem juridico-constitu- cional. IX — Normas e requisitos da nova Assembléia Constituinte A opinio pablica nacional clama pela convocagéo de uma Assembiéia, Nacional Constituinte, ou um Congresso Nacional Cons- tituinte. Toda a sociedade civil clama por esta reivindicac&o, Mas resta definir e precisar as suas normas e critérios de convocagéo. Quem convoca a Assembléia Constituinte? Qual 0 perfodo de duragéo da Assembléia Constituinte? R. Inf, fwpiel. Grovilia a. 22 w. OF jul.foet. 1905 147 Como convocar a Assembléia Constituinte sem a rupture com. o atual regime vigente desde 1964? ‘Como compatibilizar a convocagéio da Assembiéia Constituinte com o funcionamento do atual Cangresso Nacional? X — Poder constituinte e reforma da Constituigdo O poder constituinte é mais geralmente entendido como poder de elaborar uma Constituigio, Ao lado deste funciona também o poder de reforma constitucional pelo qual o Congresso fica inves- tido da tuncdo de reforma constitucional com a poder de emenda. No Brasil a Constituigdo de 1967 atribui.ao Congresso o poder de emendabilidade ao texto constitucional, segundo formas prescri- tas na Constituigéa, exceto quanto a possibilidade de reforma da Reptiblica e da Federagiio. A meihor solucdéo no momento é a convocagao de uma Assem- pbiéia Constituinte, apés a revogacdo de determinadas leis de exce- céo, principalmente a lei de seguranca nacional, permitindo-se ampla liberdade de discussiio, eleigao e voto, A mudanca da Cons- titulg&o pelo proprio Congreso, inchuindo representantes sem au- tenticidade, e que néo foram eleitos para tal fim, nfo concede & ‘Nagdio 0 direito de determinar o seu proprio destino mediante uma Assembléia Nacional Constituinte. O atual Congresso néo esté legi- timado filosoficamente para elaborar ump nova Constituigéo. © Congresso Constituinte, depois de promulgada a Constitui- gao, poder&é transformar-se em Congressa normal, ou entéo far- se-iam duas eleigées; uma para o Cangresso Constituinte e outra para o Congresso desdobrado no seu Senado e na Camara dos Depu- tados, eleigdes que podiam ser feitas no mesmo dia, intervalando de um ano a instalaggo do segundo so primeiro. oO overno poderla incumbir ainda a uma comissdo de juristas e cient ais a tarefa de elaborar um anteprojeto de Cons- tituigdo, que seria enviado A Assembléia Constituinte, como ocor- reu em 1891 e 1933. XI — O poder constituinte e a convocagdo da Assembiéia Cons- tituinte A teoria do poder constituinte, com rafzes na filosofia politica grega e romana, foi sistematicamente elaborada por Stévis duren- fe a Revolucso francesa. Ela distingulu a potestas constituens, que pertenceria ao povo e 4 naciio, e a potestas constituta (os Poderes constitufdos:. Legislativo, Executivo, Judiclario e Mode- rador, quando este existe). Atuaimente distingue-se: 0 poder constituinte origindrio, que & 0 tinico = legitimar uma nova Constituigio, que decorre, pela 148 . Int, legial, Granilia @, 22 6. 67 jul./eet, 1985 sua propria compreensio juridica e histérica, do fato consumado de uma revolucio, © poder de emenda a Constituigéo, ou poder de emendabill- dade, reforma, reviséo constitucional, ou poder constituinte deri- vado, secunddrio, limitado dentro dos moldes da Constituigféo a ser emendada, é atribufdo ao Congresso, por vezes sujeito a refe- rendum constitucional. Os Poderes constituidos: Legislative, Executivo, Judiciério, instituidos pelo poder constituinte originario. A convocagio da. Assembléia, Constituinte, pedida pela opinido publica, consagra a ruptura formal do atual regime. Contudo, nao houve nenhuma revolugéo, mas uma transicao pacifica e sem violéncia. A convocagio de assembléla constituinte tem de enfrentar o problema do mandato de determinados par- Jementares a extinguir-se e eleitos pelo voto popular e direto, ferin- do os seus direitos adquiridos ao mandato parlamentar, visto que uma revolugéo nao respeita direitos politicos presumidamente adquiridos, No processo de convocacfio da Assembléia Nacional Constituin- te, seria vidvel estabelecer-se o seguinte roteiro: 1°) Uma emenda a atual Constituigéo, por iniciativa do pré- prio Congresso, autorizando o Presidente da Republica a convo- car a Assembléia Constituinte. 29) O ato convocatério da Assembléia Constituinte decretado pelo Chefe do Governo, com o apoio anterior do Congresso e ja devidamente respaldado por amplo movimento da opiniao pllblica, 3°) A fixagio do prazo mdximo de duracéo dos trabalhos da Constituinte, que seria de 6 meses, para a conclusao de suas ativi- dades e promulgacdo da nova Canstituigao. 49) Antes das elei¢des para os membros componentes da As- sembiéia Constituinte, seriam revogadas as leis de excegio que ainda hoje existem no Pais. 5°) Simultaneamente com a convocatéria da Assembléia. Cons- tituinte, 0 governo nomearia uma comisséo de 35 membros, espe- cialmente juristas e cientistas sociais, para elaborar um antepro- jeto de Constituigéo a ser submetido a apreciacfo da Assembitia Constituinte, como aconteceu anteriormente. 6%) A Assembléia Constituinte, ao término dos seus trabalhos, transformar-se-ia em Congresso Nacional, sendo considerados como Senadores os trés candidatos mais votados em cada Estado. R Inf, legit. Brasilia a. 22 m. 87 jul./eat. 1965 149 XIi — A Constituigdo e a realidade social A Assembiéia Constituinte e a nova Constituigéo dela resul- tante é apenas um passo inicial, pols néio vem isoladamente resol- ver os graves problemas nacionais. Contudo tal passo é importante, pois devolve ao povo o poder de comando e de decisao politica. A histéria polftica brasileira 6 a histéria das lutas de duas elites, uma elite liberal e uma elite conservadora, ambas com em- briaguez pelo poder. O povo sempre ficou 4 margem. A nossa demo- cracia tem sido uma falsa democracia, uma democracia sem povo. Antes era o voto dos defuntos, hoje € o voto comprado. As revo- lugées no Brasil sao feitas por elites ou oligarquias para desmon- tar uma corrupgao e instalar outra corrupgac maior. Para que a constituinte néo venha a ser mais um momento infeliz de trustrac&io! popular, as forgas populares e os intelectuais devem assumir 0 debate das condig6es, requisitos e formas da Cons- tituinte e do modelo constitucional. As correlacdes de formas e os fatores do poder (a que alude Lasaariz) ndo sao imutdveis, mas as ideologias também transformam o mundo, permitindo a luta eo alcance de um novo regime, uma nova vida institucional e néo um novo caos institucional. Max afirmou na sua XI tese sobre FEUERBACH: “Os filésofos nao tém feito até aqui senfo interpretar ° mundo de diferentes maneiras, trata-se agora de trans- ormé-lo.” O direlto constitucional nunca se erguera além da estrutura econémica e cultural da sociedade. Urge, assim, a luta contra o capital estrangeiro espoliativo e mal administrado no Pais, provocando o grave endividamento externo (quase US$ 100 bilhdes mais os juros extensivos), a infla- &o, 0 desemprego, a elevactio do custo de vida. & indispensével a mudanca da armadura colonial de nossa economia, acompanha- da da reforma agraria, tributéria, orgamentaria, moral, educativa, bastando olhar neste tiltime caso o triste caos presente da Univer- sidade brasileira. # ainda necessaéria a preservacio dos valores éticos do comportamento humano, pois sem educacdo nao sobre- vive a democracia. Na verdade a histéria sempre tem um sentido pendular, va- riando entre o autoritarismo e 0 liberalismo, entendidos ambos na sua acepcio genérica, mais concretamente, democracia versus ditadura, Normalmente uma pretende corrigir os defeitos sociais que atribul & outra. Nao hé duvida, contudo, que a vocacéo do mundo é para a democracia, restando' complementar a democracia politica pela democracia econémica. 150 ® 22 9. 87 jul./ee, 1985 4 uma falsa e uma verdadeira democracia, Esta wtima deve yespeitar a vontade do povo e o direito das minorias politicas, fundamentando a soberania politica na soberania econdmica, e mantendo intacta, erecta e vertical a soberania do povo, XII — A Constituigéo da 64 Repiblica A nova Constituigdo da, 64 Reptiblica deve buscar uma lei fun- damentat visando o bem-estar da pessoa humana, a liberdade e a democracia, o pluralismo ideolégico, o desenvolvimento e a paz. No anteprojeto da Constituicdo apresentado no Congresso de Direito Constitucional, realizado em 1984 pela Faculdade de Direi- to do Recife, abandonou-se 0 modelo tradicional, agrupando os artigos comecando pela estrutura do Estado Federal e tomando-se rota diferente, acentuando o primado da pessoa humana sobre a maquina do Estado, Q seu Preambulo foi explicito em proclamar as intengdes do legislador constitucional com um novo pacto social de linha demo- cratica e socializante. O titulo Preliminar convalida tais medidas que robustecem a forga do pacto politico, © Titulo I refere-se ao Territério e configuragiio geografica e territorial do Pais, herdado dos antepassados, pata ser transmitido & geracao do porvir. O Titulo II refere-se ao poyo, fonte originaria da soberania nacional, em diversos e sucessivos capitules com principios gerais norteadores da nacionalidade, dos direitos e garantias individuais, Gireitos politicos, Partidos Politicos, a familia, a educacdéo e a cultura, a ordem econémica e social, esta disciplinando as medidas Ge controle do capital estrangeiro, inflacio, politica agrdria, esta- tuto dos trabalhadores, socializacao. Segue-se-Ihe o Titulo ITT, alusivo 4 organizacéo nacional, dis- criminando as competénclas da Unido, dos Estados-Membros e dos Municipios, dentro de uma estrutura de federalismo equilibrado e de defesa dos Municipios, como as escolas publicas da liberdade, O Titulo IV alude ao sistema tributdério e & compensac&o de financas, numa distribuigéio mais eqilitativa das zeceitas tributé- rigs, permitindo a retomada do desenvolvimento e o prestigio tanto dos Estados como dos Municfpios. O Titulo V trata da organizacio do poder politico, da estru- tura e do funcionamento do governo federal, os trés poderes, Legis- lativo, Executivo e Judiciirio, buscando fortalecer 0 Congresso ¢ 0 Poder Judiclario, sem prejuizo do Executivo forte, eleitos direta- mente pelo povo, permitindo a criagéo de lideres carismaticos, R. Inf. tegist. Brasilia «. 22 a. 87 jul./eet. 1985 13 O Titulo VI trata dos colabaradoras da organizacao politica (as forcas armadas, o Ministério piblico, a burocracia, 0 Con- selho Nacional Econédmico e Cultural, a comissiéo permanente do Congresso Nacional, o Tribunal de Juigamento Politico). O Titulo VIE disciptina as medidas de reforma do Executivo, em momentos de crise, com 0 estado de sitio. © Titulo VEIL enumera decisées pragmiticas visando estabe- lecer uma ideologia do desenvolvimento nacional, acabando com 0 estado permanente de colonizagao econémica do Pais, para con- validar a auténtica soberania nacional, fundamentada na eman- clpagéo econémica e na cultura. Enfim o Titulo IX abrange as disposicées finals, dualizadas em disposigées gerais e disposicdes transitérias, como recomenda a boa técnica legislativa. XIV — Conclusées 1, © poder constituinte ¢ 0 poder de criagio de uma Cons- tituigéo. 2, © regime constitucional é 0 equilibrio entre o poder, a ordem ¢ a liberdade, estabelecido pela Constituigéo como a sintese de forcas sociais convergentes, o sisterna de harmonia dos inte- resses humanos em conflito. 8. Aconvocacdo de uma Assembléia Constituinte consagra a Tuptura formal do velho regime. 4, A histéria politica brasileira revela a hipertrofia do Poder Executivo, que é preciso corrigir, com o reforgo dos poderes do Gongresso, a autonomia mais vigorosa e a intangibilidade do Poder Judiciario. 5. A convocaciio de uma Assembiéia Constituinte ¢ de vital importancia, como um novo consenso social, porém € de grande valor o contetido da instituigao e a sua execugao, a fim de evitar frustragdo do povo. 6. © contetido econdmico da Constituicfio deve buscar o desenvolvimento e a progressiva eliminagéo das distingdes de classe entre os homens. 7. O direito politico no se eleva acima das condigées econ6- micas da sociedade, mas as ideologias so também for¢as soctais, que modificam a histéria. 8. A democracia repousa no voto direto popular, secreto, uni- versal, com @ pluralidade ideolégica dos partidos e com uma linha socializante: Liberdade sem socialismo, de fato, liberdade nao é, Socialismo sem liberdade, realmente socialismo nao pode ser. 137 W. fof. legisl, Brasilia o, 22 9. 87 jul./eet. 1985

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