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INTRODUGAO (Os jogos sio em niimero vatialissimo e de miltiplos tipos: jogos de sociedade, de destreza, de azar, jogos de ar livre, de paciéncia, de construcio, etc. Apesar desta quaseinfinda diver- sidade, e'com uma notivel constincia, a palavra «ogo» evoca poor igual as ideias de facilidade, risco ou habilidade. Acima de tudo, contribui infalivelmente para uma atmosfera de des- contracglo ou de diversio. Acalma e diverte. Evoca uma acti- vidade sem escolhos mas também sem consequéncias na vida real, Opie-se ao caricter sério desta iltima ¢, por isso, vé-se qualificada de frfvola, Por outro lado, opBe-se a0 trabalho, tal como © tempo perdido se ope ao tempo bem empregue. Com efeito, 0 jogo nio produz nada — nem bens nem obras. E essencialmente estéril A cada novo lance, e mesmo que est- vessem a jogar toda a sua vida, os jogadores voltam a estar 2 zero e nas mesmas condigSes do inicio. Os jogos a dinheiro, apostas ou lotarias, nio sio excepgio. Nao criam riqueza, ‘movimentam-na. Esta gratuidade fundamental do jogo & precisamente a caracterfstica que mais o desacredita, E também ela que possibilita que nos entreguemos a0 jogo com indiferenca, assim como o mantém isolado das actividades fecundas. Assim, desde © primeiro instants, cada um de nés se convence de que 0 jogo rio passa de uma fantasia agradével e de uma vit distracga0, quaisquer que sejam o cuidado que nele se ponka, as faculda- des que nele se mobilizem, o rigor que ele exija. Eo que se nota na seguinte frase de Chateaubriand: «A geometria espe culativa, como as demais cincia, tem 0s seus jogos, as suas inutilidades.» estas condigSes, parece tanto mais significativo que his toriadores eminentes, apés aprofundados inquérites, © psicé- logos excrupulosos, apés repetidas e sistemiticas observacdes, tenham pretendido fazer do espltito de jogo uma das molas principais do desenvolvimento das mais altas manifestagSes 9 culturais em cada sociedade ¢ da edueagio moral e do pro- gresso intelectual dos individuos. O contraste entre uma acti- Vidade menos, considerada negligenciével © os importantes resultados que fequentemente abonam a seu favor, abala dema- «@ tal verosimilhanga ao ponto de nos perguntarmos se no se tratari de algum paradoxo, mais engenhoso do que fun- damentado, ‘Antes de examinar as teses ou as conjecturas dos panegi- ristas do jogo, perece-me «itil analisar as nogoes implcitas na ‘deia de jogo tal como surgem nos diferentes empregos da pala- ‘ra, para além do seu significado préprio, ao ser utilizada enquanto metéfora. Se o jogo & verdadeiramente, a mola pri- mordial da civilizagio, € impossivel que os seus segundos sen- tidos nio se revelem também instrutivos. Em primeiro lugar, numa das suas mais correntes acep- ‘des, e também das mais préximas do seu verdadeiro signifi- ado, 0 termo «jogo» designa no somente a actividade especifica que nomeia, mas também a totalidade das imagens, simbolos ou instrumentos necessérios a essa mesma actividade ou ao funcionamento de um conjunto complexo. Assim, fala- -se de jogos de cartas: o conjunto das cartas; de jogos de xadrez: © conjunto das pecas indispensdveis para jogar tas jogos. Con- juntos completos e numeréveis: um elemento a mais ou a menos € 0 jogo torna-se impossfvel ou viciado, a ndo ser que a adigio ou a retirada de um ou de virios elementos seja previamente ‘anunciada e corresponda a uma intengio precisa. Desta forma, € usado 0 joker no jogo de cartas ou uma pega extrt 0 caso do xadrez para restabelecer o equilibrio entre dois jogadores de diferente forga. E da mesma forma se falaré de um jogo de orgio: 0 conjunto dos tubos e dos teclados, ou de um jogo de velas: 0 aparelho completo das diferentes velas duma embar- aco, Esta nocio de totalidade fechada, completa ¢ imutivel de inicio, concebida para funcionar sem outra intervengio exte- rior que néo seja a energia que lhe dé o movimento, constitu decerto uma preciosa inovacio num mundo essencialmente em ‘mudanga, cujos dados sio praticamente infinitos e, por outro lado, se transformam sem cessar. ‘A palavra «ogo» designa ainda o estilo dum intéxprete, sisico ou comediante, isto 6, as caracteristicas originais que se distinguem doutras formas de tocar um instrumento ou de desempenhar tum papel. Preso a0 texto ou a partitura, o intér- 10 prete no deixa de ser livre, dentro de uma certa margem, para ‘manifestar « sua personalidade através de inimitéveis cambian- tes € variagdes. ‘© termo «jogo» combina, entio, em si as ideias de limi- tes, liberdade ¢ invengio. Num registo préxim, exprime uma notivel combinagao onde se Item conjuntamente 08 conceitos de sorte e de destreza, dos recursos recebidos do azar ou da sorte e da mais ou menos arguta inteligéncia que as pde em pritica e que trata de tirar delas © maximo proveito. Expres- ses como ter bom jogo correspondem ao primeiro dos senti- dos, outras como jogar pelo seguro ou jogar com trunfos, remetem para o segundo. Outras ainda, como mostrar 0 jogo ou, inver- samente, dissimular o jogo, referem-se inextticavelmente a ambos: vantagens & partida ¢ um delinear astuto duma sapiente cestratégia © conceito de risco vem imediatamente complicar os dados j& de si confusos: a avaliagio dos recursos dispontveis © 0 efleulo das eventualidades previstas fazem-se de sibito acompanhar duma outra especulagio, uma espécie de aposta ue supe uma comparagio entre 0 isco aceite ¢ o resultado previsto. Daf decorrem expresses como por em jogo, jogar forte, jogar as sobras, jogar a sua carreira, jogar a sua vida, ou ainda a constatagio de que sai mais cara a mecha do que © sebo, ou sea, que o maior dos ganhos que se possa esperar do jogo seré sempre inferior ao prego da luz que o ilumina. © jogo, aparece novamente como uma nogdo parti- cularmente complexa que associa um estado de facto, uma car- tada favoravel ou deplordvel, onde 0 acaso é soberano ¢ onde © jogador recebe, por fortuna ou por desgraga, sem nada poder fazer, a uma aptidao para tirar 0 melhor partido dos seus desi- guais recursos. Estes, delapidados pela negligéncia, 36 serio frutificados por um eflculo sagiz, por uma escolha entre a pru- déncia e a audicia que assim colabora com uma segunda coor- denada, isto é em que medida o jogador se dispde @ apostar ais no que Ihe escapa do que naquilo que controla. ‘Todo o jogo € um sistema de regras que definem 0 que €€ 0 que nio é do jogo, ou seja, 0 permitido e o proibido. Estas convengGes sio simultaneamente arbitririas, imperativas ¢ inapeliveis. Nao podem ser violadas sob nenhum pretesta, pois, se assim for, o jogo acaba imediatamente ¢ & destrufdo por esse facto. Porque a tinica coisa que faz impor a regra & uw 4 vontade de jogat, ou seja, a vontade de a respeitar. Ou se {faz 0 jogo ou nao se faz. Mas fazer 0 jogo & algo que se diz bastantes vezes fora de situagées de jogo, em variados actos € trocas a0s quais se tenta estender as convengées implicitas que se assemelham as dos jogos. E conveniente a submissio as regras precisamente porque o parceiro desleal nio é punido por nenhuma sancio oficial. Ao deixar de jogar, reconquista, pura e simplesmente, 0 estado natural e de novo tornou posst- vel nio sé exigit e cobrar mais do que é devido, mas também as artimanhas ou as réplicas proibidas, que as convengdes tinham justamente por objecto banir, conforme 0 acordo ‘comum. O que se designa por jogo surge, desta vez, como um. conjunto de restrigdes voluntérias, acetes de bom grado e que cestabelecem uma ordem estivel, por vezes uma legislagio técita num universo sem lei. Finalmente a palavra jogo, apela para uma ideia de ampli- tude, de facilidade de movimentos, uma liberdade itil mas nio excessiva, quando se fala de jogo de uma engrenagem ou quando se diz que um navio joga a sua ancora. Esta ampli- tude torna possivel uma indispensével mobilidade. E 0 jogo que subsiste entre os diversos elementos que permite 0 fun- cionamento de um mecanisma. Por outro lado, esse jogo niio deve ser exagerado pois a méquina enlouqueceria. Destafeita, este espaco cuidadosamente contado impede 0 bloqueio © 0 desajuste. Jogo significa, portanto, a liberdade que deve per- ‘manecer no seio do proprio rigos, para que este ultimo adquira ou conserve a sua eficécia. Além do mais, todo o mecanismo, pode ser considerado como uma espécie de jogo numa outra acepgio do termo, que 0 diciondrio precisa da seguinte forma: «eAcgo regular e combinada de diversas partes duma maquina.» Uma maquina, de facto, é um puzzle de pegas concebidas para se adaptarem umes as outras © para funcionar em harmonia. Mas, no interior deste jogo, todo ele exactidio, intervém, dando-the vida, um jogo de outro tipo. O primeiro € combi- nagio exacta,relojoaria perfeita, 0 segundo é elasticidade e mar- ‘gem de movimentos. Sio estas as variadas e ricas acepges que mostram em que medida, no 0 jogo em si, mas as disposigdes psicolégicas que cle traduz e fomenta, podem efectivamente constituir impor- tantes factores civilizacionais. Globalmente, estes diferentes sen- tidos implicam nogées de totalidade, regra e liberdade. Um 2 deles associa a existéncia de limites a faculdade de inventar dentro desses limites. Um outro inicia-se entre os recursos her- dados da sorte € a arte de alcancar a vitéria, socorrendo-se apenas dos recursos intimos, inaienveis, que dependem exclu- sivamente do zelo e da obstinagio individual. Um terceiro © eflculo a0 risco. Um outro ainda convida a conceber leis imperiosas ¢ simultaneamente sem outra sangio para além da sua propria destruiglo, ou preconiza a conveniéncia em man- ter alguma lacuna ou disponibilidade no seio da mais rigorosa das economias. Hi casos em que os limites se esfumam, em que a regra se dissolve e hi outros em que, pelo contriio, a liberdade € a invenglo estio prestes desaparecer. Mas 0 jogo si ‘que os dois pélos subsistem e que hé uma relagio que se man- tém entre um e o outro. Prope e difunde estruturas abstrac- tas, imagens de locais fechados ¢ reservados, onde podem ser levadas a cabo concorténcias ideais. Essas estruturas, essas con- corréncias sio, igualmente, modelos para as instituigbes e para 0s comportamentos individuais. Nao sio segura e directamente aplicdveis a um real sempre problemético, equivoco, emaranhado ¢ variado onde os interesses e as paixdes nio se deixam facil- ‘mente dominar mas onde a violéncia e traigio sio moeda cor- tente. Contudo, os modelos sugeridos pelos jogos constituem também antecipagdes do universo regrado que devers substi- tuir a anarquia natural. Esta é reduzida ao seu essencial, a argumentagio de um Huizinga quando faz derivar do espirito de jogo a maioria das instituigdes que comandam as sociedades e das disciplinas que contribuem para a sua gléria. O direito insere-se, incontesta- velmente, nesta categoria: o cédigo enuncia a regra do jogo social, a jurisprudéncia estende-a aos casos ltigiosos e a ins- trugio dos processos define a sucessio © a regularidade das jogadas. So tomadas precaugSes para que tudo se passe com a clareza, a precisio, a pureza e a imparcialidade de um jogo. Os debates sio conduzidos © 0 julgamento tem lugar num recinto de justiga, segundo um cerimonial invariével, que no deixa de lembrar,respectivamente, 0 espago consagrado 20 jogo (campo fechado, pista ow arena, tabuleiro de damas ou de xadrea), a barreira absoluta que o deve separar do espaco res- tante, enquanto durar a partida ov a audiéncia e, finalmente, 0 caricter inflexfvel ¢ essencialmente formal das regras em vigor B Em politica, no intervalo dos golpes de forca (onde jd no se faz 0 jogo), existe mesmo assim uma regra de alternincia auc lev ao pode, © em conde semelhates, os prtidot ‘opostos. A equipa que governa — e que faz correctamente 0 ‘seu jogo, isto & de acordo com as disposigdes estabelecidas € sem abusar das vantagens que Ihe advém do exereicio momen- tineo do poder — exerce este tiltimo sem o utilizar para ani- quilar o adversério ou para Ihe retirar toda a hipétese de Ihe suceder pelos mecanismos legais. Se assim nio fosse, a porta estaria aberta & conspiragio e & revolta, Tado se resumiria, a partir de entio, a uma brutal prova de forgas que nio seria atenuada por frégeis convengSes, precisamente as mesmas que visavam alargar & Iuta politica as leis clara, imparciais e incon- testiveis das rivalidades contidas. © mesmo se passa no dominio da estética. Em pintura, as regras da. perspectiva sto, em grande parte, convensGes. Engendram hébitos que, por fim, as fazem parecer naturais. Para a misica as leis da harmonia, para a arte dos versos, as leis da prosédia e da métrica, qualquer outra forma de coer- fo, unidade ou cinone para @ escultura, a coreografia ¢ 0 tea- tro, todas constituem igualmente legislagdes diversas, mais ou menos explicitas ou detalhadas, que limitam ¢, a0 mesmo tempo, orientam o criador. Sao uma espécie de regras do jogo ue ele joga. Além disso, criam um estilo comum e identificé- vel em que se conciliam e equilibram a disparidade do gosto, 1 provagio da dificuldade técnica e os caprichos do génio, Estas regras tém algo de arbitririo e quem as achar estranhas ou incé- modas tem autorizacio para as recusar e pintar sem perspec- tiva, escrever sem rima nem ritmo, compor fora das normas esablecids, Asim, jf of ein joa, ma im « cont bir para a destruicio do jogo, pois neste as regras existem ape- tes em fungdo do respelto qoe por elas se em. Neghlas & estar simultaneamente a esbogar os futuros critérios de uma nova perfeisio, de um novo jogo cujo cédigo ainda vago acabard por tornar-se, por sua vez, tirinico, domesticard a audacia e nova- mente proibiri o sacrilégio da fantasia. Toda e qualquer rup- tura que quebre uma proibigio acreditada esboga jé um outro sistema, que no é menos exacto nem menos gratuito, ‘Nem sequer a guerra é o dominio da violéncia pura, mas tende a ser 0 da violéncia regulamentada, As convengSes limi- tam as hostilidades no tempo ¢ no espaco. Iniciam-se por uma 4 declarasio que especifica solenemente 0 dia ea hora em que © novo estado de coisas entraré em vigor. E termina pela asi natura de um ermisticio ou de um acto de rendigio cuja fina- lidade também é bem especificada. Outras restriges tratam de excluir do teatro de guerra as populagSes civis, as cidades abertas, tentam proibir 0 uso de certas armas, garantem o tra- tamento dos feridos e dos prisioneiros. Nas épocas da guerra apelidada de eortés» até a estratégia cra convencionada. Os ataques e contra-ataques deduziam-se e articulavam-se como combinagGes de fracassos e acontecia os te6ricos considerarem no ser necessério 0 combate para a obtengio da vitbria. As aguerras deste tipo assemelhevam-se claramente a uma espécie de jogo: assassino, destruidor, mas regulamentado, Por estes exemplos apercebemo-nos de uma espécie de marca ou de influéncia do principio do jogo ou, pelo menos, de uma convergéncia com as suas ambigées proprias. Por af se podert seguir o préprio progresso da civilizaglo na medida fem que esta consiste na passagem de um universo rude a um uuniverso administrado, assente num sistema coerente e equi- librado, quer de direitos e deveres, quer de privilégios e res- ponsabilidades. O jogo inspira ou confirma este equilfbrio. Proporciona continuamente a imagem de um meio puro, aut6- nomo, onde a regra, respeitada voluntariamente por todos, no favorece nem lesa ninguém. Constitui um ilhéu de claridade ¢ de perfeigio, ainda que seja sempre {nfimo e precirio, revo- sével e auto-extinguivel. Mas esta duracio fugaz, e essa exten- sio tara, que deixam de fora as coisas importantes, valem, pelo menos, como modelo. Os jogos de competigio conduzem ao desporto, os jogos de imitacio e de ilusio prefiguram as religides do especticulo. Os jogos de azar e de combinagio estiveram na origem de varios desenvolvimentos das mateméticas, do cilculo de pro balidades & topologia. E assaz evidente: o panorama de fecun- didade cultural dos jogos nio deixa de ser impressionante. ‘A sua contribuiglo 0 nivel do individuo no é menor. Os psi- cBlogos reconhecem-lhes um papel vital na histéria da auto- -afirmagio da ctianga e na formacio da sua personalidade. Jogos de forga, de destreza, de céleulo sio exercicio e diver- sii, Tornam 0 corpo mais vigoroso, mais décil e mais resis- tente, a vista mais aguda, o tacto mais subtil, o espirito mais metddico e mais engenhoso. Cada jogo reforga e estimula qual- b quer capacidade fisica ou intelectual. Através do prazer e da obstinagio, torna fécil 0 que inicialmente era diffel ou exte- ruante. ‘Ao contririo do que frequentemente se afirma, 0 jogo niio € aprendizagem para o trabalho. Sé aparentemente antecipa as actividades do adulto. O rapaz que brinca com o cavalinho ou 1 locomotiva nio se prepara, de forma alguma, para vir a ser cavaleiro ou mecinico, nem a rapariga que confecciona em supostos pratos alimentos ficticios condimentados com ilusé- rias especiarias, se prepara para vir a ser cozinheira. O jogo rio prepara para uma profissio definida; introduz o indivi- duo na vida, no seu todo, aumentando-the as capacidades para ultrapassar os obstéculos ou para fazer face as dificuldades. E absurdo, e na realidade nio leva a nada, langar o mais longe possivel uma argola ou um disco de metal, ou apanhar e atirar incessantemente uma bola com tuma raqueta. Mas € vantajoso ter misculos potentes e reflexos répidos. O jogo supée, sem dévida, a vontade de ganher, pela uti- lizagio plena dos recursos e pela exclusio das jogadas proi das. Mas exige mais: € preciso ser cortés para com o adversétio, darlhe confianca, por principio, e combaté-o sem animosidade. E preciso ainda aceitar antecipadamente uma eventual derrota, ‘azar ou a fatalidade, admitir a derrota sem e6lera nem deses- pero. Quem se zanga ou lamenta cai logo em descrédito. Com feito, uma vez que toda a nova jogada surge como um princt pio absolute, nada esté perdido, eo jogador, em vez de se recti rminar ou desanimar, tem oportunidade de redobrar de esforyos. (© jogo convida-nos ¢ habitue-nos a que escutemos esta lig de autodominio ¢ a alargar @ sua pritica ao eonjunto das relagGes e das vicissitudes humanas em que a concorréncia dei- xou de ser desinteressada e a fatalidade, circunscrita. Seme- Thante desapego em relagio aos resultados da acgio, ainda que aparente e por consolidar, nfo é virtude menot. Sem diivida ‘que este dominio é mais fécil em situagio de jogo onde é em certa medida, de rigor e onde o amor-proprio parece ter-se com- prometido de antemio em honrar as respectivas obrigacies. ‘Todavia, o jogo mobiliza as diversas vantagens que cada pes- soa pode ter recebido do acaso, 0 seu melhor zelo, a implacé- vel e inaliendvel sorte, a audécia de arriscar e a prudéncia de calcular, a capacidade de conjugar estas diferentes espécies de jogo, que também o € e em termos superiores, de uma mais 16 ampla complexidade, visto ser a arte de associar de forma vitil ts forgas indiferentemente dispostas. De certo modo, nada mais do que 0 jogo exige atenglo, inteligéncia e resisténcia nervosa. Estd provado que ele conduz o individuo a um estado, digs mos, de efervescéncia, que depois de concluido, atingido ‘extremo, como por milagre, através de acgio ou da resistencia, ‘© deixa sem energia nem maleabilidade. Também af 0 desa- ego & digno de apreco. Assim como aceitar perder tudo, sor- indo diante de um lance de dados ou de uma carta virada. Hé que ter também em linha de conta os jogos de vert: em € 0 delicioso arrepio que se apossa do jogador ao ser pro- ferida a fatal «as apostas estio feitas». Este antincio pée fim | discrigio do seu livre arbitrio e torna inapeldvel o veredicto que s6 poderia evitar se nao jogasse. Alguns atribuem, para- doxalmente talvez, um valor de formagio moral este profundo ddesassossego deliberadamente aceite. Sentit 0 prazet do pinico, ‘expor-se-lhe de livre vontade para tentar nio ser vitimado por cle, ter diante dos olhos a imagem da perda, sabé-la inevitével f encontrar como tinica safda a possibilidade de simular indi- ferenga, como diz Platio para uma outra aposta, um belo petigo, que vale a pena corret : ‘Loyola preconizava que era preciso agir contando apenas consigo mesmo, como se Deus nio existisse, mas na recorda- fo constante de que tudo dependia da sua vontade. O jogo ho € escola menos ardua. Ordena a0 jogador que no des- cure nada, com vista ao triunfo, mantendo com este as devidas distincias. O que foi ganho pode ser perdido, aids, esté mesmo ddestinado a ser perdido. A forma como se vence é mais impor- tante do que a vitéria em si, em todo o caso, mais importante do que a aposta. Accitar a derrota como simples contratempo, 1 vitéria sem embriaguez nem vaidade, essa distanciagio, essa derradeira contengio no que se res propria acgio é a Tei do jogo. Considerar a realidade como um jogo, ganhar mais terreno a certos costumes sociais que fazem recuar a mesqui- nhez, cobiga e 0 édio, € praticar um acto de civilizagio, Esta apologia do espitito de jogo faz apelo a uma paliné- dia que selienta resumidamente as suas fraquezas 08 seus 0s. O jogo é uma actividade de luxo que supée 0 écio. Quem tem fome nao joga. Em segundo lugar, como nio se € obri- gado a jogar, ¢ como o jogo se apoia no prdprio prazer que suscita, fica A mercé do tédio, da saciedade ou de uma mera "7 alteragio de humor. Por outro lado, esti condenado a nio fun dar nem produzir nada, pois faz parte da sua esséncia anular 60s seus proprios resultados, enquanto 0 trabalho ¢ a ciéncia capitalizam 0s seus e, muito ou pouco, transformam 0 mundo, ‘Além do mais, ele fomenta, & usta do seu contesdo, um supers: ticioso respeito pela forma, que pode até tomar-se manfaco, uma vez que nele se fundem o gosto pela etiqueta, pelo ponto de honra ou pela casuistica, eas subtilezas da burocracia e do procedimento judicial. Por tltimo, o jogo escolhe as suas pr prias dificuldades, isola-as do seu contexto e digamos que as irealiza. Quer estejam resolvidas ou nao, a tinica consequén: cia @ satisfagdo ou a decepgio, igualmente ideais. Se nos habi tuarmos a essa benignidade, iludir-nos-emos em relagio & dureza das verdadeiras provas, jé que ela s6 costuma ter em consideragio os dados perdidos e irremedifveis, entre os quais a escolha é necessariamente abstracta. Numa palavra, 0 jogo assenta indubitavelmente no prazer de vencer 0 obsticulo, mas uum obsticulo arbitrério, quase ficticio, feito a medida do joga dor ¢ por ele aceite. ‘A realidade nio tem estas atengdes, E neste aspecto que reside 0 principal defeito do jogo. Mas é:the naturalmente essencial e, sem ele, o jogo ficaria tam- bém desprovide da sua fecundidede SECUNDUM SECUNDATUM.

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