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Estudos culturais em educagao: midia, arquitetura, brinquedo, biologi “jiteratura, cinema... / organizado por Marisa Vorraber Costa; Alfrec Veiga-Neto... [et al.]. -2.ed.— Porto Alegre: Editora da UFRGS, 200 Inclui referéncias. 1. Educagaio — Pedagogia. 2. Educagao — Estudos culturais — Ané ses. 3. Educaciio — Magistério — Politica cultural. 4. Estudos culturai Midia — Educagio. 5. Estudos culturais — Arquitetura. 6. Estudos cul rais — Literatura. 7, Estudos culturais — Educagao infantil — Brinque: 8. Estudos culturais — Biologia. 9, Estudos culturais — Cinema. I. Cos Marisa Vorraber. IT. Veiga-Neto, Alfredo. CDU 37.012(081.1 37.012(08 1.1 37.012(08 LL 37.012(081.1):72 37.012(08 L.1):79 1.4 37.012(08 1. 1):82 3 CIP-Brasil Dados Intern ! Nacionais de C: (Ana Lucia Wagner — 36) ‘atalogacao na Publicaga CRB 10/1 396) logagao na Publicagao ISBN 85-7025-748-| Capitulo 2 fichel Foucault e os Estudos Culturais Alfredo Veiga-Neto Como 0 proprio titulo sugere, meu objetivo neste capitulo ¢ discu- tir algumas possibilidades de aproximag4o entre 0 pensamento de Mi- chel Foucault ¢ o campo que se estabeleceu ha trés décadas sob a de- nominagao de Estudos Culturais. Trata-se, como logo veremos, de um empreendimento nao muito simples mas cujo resultado espero ser de alguma utilidade. Assim, uma preocupagao que me norteou desde 0 inicio foi a de fazer um texto ao mesmo tempo acessivel — aos leitores ¢ leitoras que, mesmo minimamente, ja travaram algum contato com pelo menos um dos dois lados: ou Michel Foucault ou os Estudos Culturais — ¢ util para aquelas pessoas que, centradas cm um ou outro lado, queiram explorar 0 que 0 outro lado pode thes sugerir ou tem a hes oferecer. E mesmo se esse ndo for o interesse dos meus Icitores ¢ leitoras, espero que este tex- to possa servir como mais um comentario acerca das caracteristicas ge- Tals € comuns que se encontram tanto na obra foucaultiana quanto nos Estudos Culturais. Dificuldade e produtividade Fazer aproximagées e tentar conectar autores ¢ campos do conhe- Cimento que nao se situam numa mesma matriz de pensamento, eee mesmo paradigma, pode ser produtivo tanto para aprofundar 0 Ga ir mento que se tem sobre cada um deles, quanto para retirar, dessas ap! ais © 37 Michel Foucault e os Estudos Cultur aneiras de ver, descrever, pr ‘oblematizar, compreen- 5, novas ma de dar sentidos ao mundo. Mas, por outro lado, tais apro- ximagdes € conexdes envolvem um custo que muitas vezes é excessivo a ponto de comprometer IIT emediavelmente essas tentativas. Isso costu- ma ser tao mais ev idente quanto mais distantes, Ou mesmo “antag6ni- cas”, so as perspectivas que se tenta aproximar. Algumas vezes, nossas tentativas de conexdo chegam a ser desani- madoras; esse ¢ 0 caso, principalmente, quando os autores ou os campos. em questo nao seguem uma mesma matriz disciplinar Outras vezes, a dificuldade parece maior ainda; esse é0 caso quando, independentemente do partilhamento de qualquer paradigma, pelo menos um dos autores ou dos campos nao tem 0 compromusso de organizar um sistema de pensa- mento proprio, de seguir uma doutrina gnoseoldgica, e nem mesmo de ser fiel a alguma “estabilidade epistemoldgica” ao longo de sua propria produgao intelectual. Penso que se tem na filosofia de Michel Foucault um excelente exem- plo desse ultimo caso. De fato, como “combinar” (com outras perspecti- vas) a perspectiva de um autor que nunca quis ser modelo ou fundador de uma discursividade, de um autor que recusou, até para si mesmo, as no- ces de autor e obra? (Eribon, 1990; Miranda e Cascais, 1992). Na medi- da em que cle queria que cada um de seus livros fosse nado mais do que um objeto-evento — que cada livro “desaparecesse. enfim, sem que aquele a quem aconteceu escrevé-lo pudesse, alguma vez, reivindicar 0 direito de ser seu senhor, de impor 0 que queria dizer, ou dizer 0 que o livro devia Sash can calc Some probiomien Hiateet enna c : ca. E isso parece to mais dificil quando se constata que a filosofia de Foucault, afastando-se da tra- digao sistematica, identifica-se muito mais com aquela postura filosofica que Rorty (1998) denomina edificante — a saber, uma postura que quer “manter 0 espaco aberto para a sensagdo de admiragao que os eee dem por vezes causar — admiragao por haver algo de novo debaixo dk ‘ sol, algo que nao é uma representagao exata do que ja ali estava, algo lo (pelo menos no momento) nao pode ser explicado e que mal pode ser pe : les- crito” (Rorty, 1998, p.286). Na esteira de Nietzsche, o que Foucault faz é desenvolver uma filosofia da préica que nos pode ser itil “como um ine. trumento, uma tatica, um coquetel Molotov, fogos de artificio a serem — bonizados depois do uso” (Foucault, 1975, citado por Simons, 1995, p.93). ximagoe' der e analisar € 38 © Estudos Culturais em educagio Ao reconhecer Foucault como um edificante, um pos-estruturalista 1 Ora, na medida em que a condi¢ao pds-moder- na? implica a dissolugdo das metanarrativas, a fragmentagao ¢ o aban- dono dos ismos, as conexées entre Foucault e outros autores ou perspec- tivas — mesmo que também sejam pos-modernos — nao sao triviais. Em suma, se operar com a perspectiva foucaultiana ja apresenta, por si so, algumas dificuldades, as tentativas de aproximagao entre ela e outros campos de saberes revelam obstaculos consideraveis. Isso ¢ tao mais problematico na medida em que também o campo dos Estudos Cul- turais caracteriza-se por nado ser — e n4o querer ser — um campo homo- géneo € disciplinar. Mas nao € so isso; “os Estudos Culturais [também] nao sao simplesmente interdisciplinares: eles sao freqiientemente, como outros tém dito, ativa ¢ agressivamente antidisciplinares — uma carac- teristica que, mais ou menos, assegura uma relacdo permanentemente desconfortavel com as disciplinas académicas” (Nelson, Treichler e Gros- sberg, 1995, p.8). ‘Além do carater nio-disciplinar — ou talvez, pos-disciplinar —, 0 campo dos Estudos Culturais passou, a0 longo dos seus mais de trinta anos de existéncia, por diferentes influéncias epistemologicas e politi- cas: socialismos, marxismos, cstruturalismo, pos-estruturalismo, etc. Isso ais tenham se submetido nao- ‘stou situando-o como nao significa, porcm, que os Estudos Cultur problematicamente a essas influcncias; assim, por exemplo, mesmo as vertentes mais comprometidas com o marxismo nao reduziram a esfera da cultura a esfera econdmica.* Sob 0 ponto de vista metodologico, os Estudos Culturais dividem- se em duas amplas tendéncias: uma esta mais voltada a ctnografia — principalmente no que concerne ao estudo de populagées urbanas ¢ dos chamados grupos minoritarios —: a outra, 4s analises textuais — envol- enham, na perspectiva desconhecer as discussdes acerca do discussdo dessas questdes cada uma de Rouanet (1989) ¢ Veiga-Neto xonomia filoséfica” nao t ‘Ainda que essas operagdes de “ta: deste texto, muito sentido, ndo ha como (des)enquadramento de Foucault. Para uma feita a seu modo ¢ com resultados antagénicos —, Vs (1995, 19964) Por motivos de ordem pritica, n demo (¢ pés-modernismo) como express Para uma andlise acerca das influéncias McRobbie (1995). este texto estou usando pés-estruturalismo © pds-mo- Jes equivalentes. dos marxismos nos Estudos Culturais, vide dos Culturais ¢ 39 Michel Foucault ¢ os Bs icacdo de massas ¢ da literatura pro- vidas mais com 0 estudo da ince aap tal dispersio nao i duzida por e para as classes populares. Cor > interesse: questdes de raga tasse, observam-se também diferentes focos de i e etnia, de género, etc. ~ A E claro que se, de um lado, os Estudos as ese) heterogéneo, de outro lado eles nao so tudo ou qua nhs iat , como disse Tony Bennett, trata-se de um campo que reune uma gama bastante dispersa de posigées teéricas € politicas, as quais, nado importa quao amplamente divergentes possam ser sob outros aspectos, partilham um compromisso de examinar praticas culturais do ponto de vista de seu envolvimento com, ¢ no interior de, relagdes de poder” (em Nelson, Trei- chler e Grossberg, 1995, p.11). Porque a cultura esta imbricada indisso- luvelmente com relagées de poder, derivam dessas relagdes de poder a significacdo do que é relevante culturalmente para cada grupo. Isso sig- nifica, entdo, uma desnaturalizacio da cultura, isso é, significa que, para os Estudos Culturais, nao ha sentido dizer que a espécie humana é uma especie cultural sem dizer que a cultura e o Proprio processo de signifi- ca-la ¢ um artefato social submetido a permanentes tensdes e conflitos de poder. Ao salientar o papel do poder — ou talvez g colocar 0 poder no centro das significagdes ¢ id struir uma Ponte com e ‘© mais adiante Antes, quero fazer mais alguns comentarios gerais acerca da aes > aprox 7 tre ambos Proximacao en. f rario de nos senti i : Ao contrario d sentirmos desencorajados frente as dificulda- des decorrentes da dispersao de Foucault e dos Estudos Cul : ciso ter em conta que tal dispersao pode ter um lado Fi i : Produtivo, O ua por um lado dificulta, por outro lado pode facilitay Se a prépri que cla de um sistema unificador significa uma abertura de Pensamen See A fs Pr Cl Ses casos teremos entao. a nosso favor, a Possibilidade de a 0, nes~ mente as “porgdes” de pensamento que nos forem, digamos tts Fercial comprometer muito as demais “porgécs”. De modo Mverso, 6 facil « tender que quanto mais cstruturado ¢ amarrado um Conjunto de concen. tos e relagdes, mais dificil sera mexer em algum ponto sem comprome. ter os demais, sem desorganizar o conjunto. De um modo geral, ae quanto mais estruturado e coeso um pensamento, mais ele tem de = © pensamento de Foucault. Voltarei a essa questa 40 @ Estudos Culturais em educag tomado no seu todo; quanto mais fragmentario ele for, mais ele pode ser tomado de modo parcial. Voltando a Rorty, podemos colocar Os sistema- ticos no primeiro caso, ¢, nO segundo, os edificantes E nesse segundo caso que se situa Foucault: tendo-se 0 cuidado de manter mais ou menos intactos alguns elementos que atravessam o pensamento do filésofo ~ como as questées da contingéncia, da fa- pricagao do sujeito, da auséncia dos a priori kantianos, da telag&o ima- nente entre poder e saber, do ethos critico (para citar alguns) — pode- se fazer dele um uso mais livre e principalmente parcial, sem “com- prometer” o restante. Tais liberdade e parcialidade nao significam dar um tratamento menos rigoroso ao pensamento do filosofo; é preciso ter clara a distin¢do que existe entre rigor ¢ exatiddo. Lembro que nao ha uma correlagdo necessaria entre essas duas caracteristicas. Assim, mes- mo quando se discute um ndo-sistematico, ndo se pode pensar que es- tamos num jogo de vale-tudo; afinal cada enunciado ndo esta solto no mundo, mas esta ligado a — e mais ou menos validado por — outros enunciados, numa série discursiva que institui um regime de verdade, fora do qual nada tem sentido. Nesse ponto, recorro ao comentario que Ewald (1993, p.26) faz acerca do “uso” de Foucault: Nada de imposig6es, uma possibilidade entre outras; certamente que nao mais verdadcira que as outras, mas talvez mais pertinente, mais eficaz, mais produtiva... E é isso que importa: nao produzir algo de verdadeiro, no sen- tido de definitivo, absoluto, peremptorio, mas dar ‘pegas’ ou “bocados’, verdades modestas, novos relances, estranhos, que nao implicam em si- lencio de estupefagdo ou um burburinho de comentarios, mas que sejam utilizaveis por outros como as chaves de uma caixa de ferramentas. A metafora da ferramenta é bastante util, pois permite estabelecer uma distingdo entre usos que me parecem apropriados e outros usos, mais Problematicos. Mas, na medida em que de alguns anos para ca tem au- mentado consideravelmente o niimero de pesquisas ¢ textos que vem se Valendo das contribuigdes de Foucault — para descrever, analisar ¢ pro- pematiar as praticas sociais e as rapidas transformagoes que estdio ovo da aa mundo —, qualquer tentativa de fazer um inventario ex 7 m: Suilo que eu considero acertos e desacertos dos usos do filosofo, p IS sucinto que fosse, excederia 0 espago ¢ o proposito deste texto. jtucais ¢ 41 Michel Foucault e os Estudos C Desse modo, limitar-me-cl tdo somente a comentar 0 quao Problema eg me parece simplesmente agregar Foucault algumas vezes, apenas de passagem, superficialmente — a analises que sao desenvolvidas Se. gundo perspectivas CuJos fundamentos ou principios gerais sao atg mes. mo opostos ao pensamento do fildsofo. A situagao fica muito problems. tica quando essa agregagdo se da a partir de aspectos que estio na bac. da perspectiva foucaultiana ¢ que sao justamente contraditorios as pre. tensdes desses autores.’ Em outros casos. mesmo nao havendo um com. promisso completo com o pensamento de Foucault, ou Se}a. mesmo que se utilizem apenas “porgde: * desse pensamento, nao se observam pro- blemas maiores quando alguns langam mao do filosofo — com maior ou menor “intensidade” — para suas proprias investigagoes.* E tendo em mente essas dificuldades. limitagdes, vantagens e des- vantagens que pretendo discutir, neste texto, algumas das aproximagées que considero possiveis ¢ uiteis entre Michel Foucault e os Estudos Cultu- rais. Ao invés de desenvolver a discussao num plano mais filosofico ¢ ge- ral, ou mesmo num nivel ideoldgico,” minha estratégia seguira o caminho de tomar algumas questdes em toro das quais me parece possivel ¢ inte- ressante tentar estabelecer algumas pontes entre ambos e. a partir dessas ‘Temos bons exemplos desse “uso agregado” do pensamento de Foucault em varios au- tores que analisam a Educagao ¢ a escola moderna, Ora sio alguns (poucos, & verdade) iar ¢ Punir, elementos ¢ vocabulano para descrever ou prescrever, contraditoriamente, agdes pedagogicas que seriam nec mente confor madoras e disciplinadoras. Ora sao autores da vertente critica (mais numerosos) fazendo uso do pensamento do filésofo para, também contraditoriamente, levar adiante suas res pectivas tentativas de aleancar uma razao ¢ liberdade definitivas, de consumar o suposto destino teleol6gico da histéria, de implementar uma agao docente progressista € cons entizadora, ete. Desse Ultimo caso, temos exemplos em alguns trabalhos de Peter McLé ren, Henri Giroux, Michael Apple, Jennifer Gore, Frank Pignatelli. Isso tudo, sem cllar Outros “usos” que me parecem ainda mais problematicos, como aqueles que ou psicole- gizam. ou engessam. ou transcendentalizam o pensamento de Foucault Considerando também a pesquisa educacional, temos bons exemplos desse uso que me parece apropriado, coerente — em Thomas Popkewitz, Julia Varela, Fernando Alva- re7-Uiria, Mariano Narodowski, Jorge Larrosa, Nikolas Rose, Tan Hunter, Colin Gordon. Graham Burchell : : “ Refiro-me, aqui, aqueles estudos que conferem um rétulo a perspectiva foucaultiana para simplificd-la ¢, a partir dai, estabelecer um a priori ¢ descarti-la de qualquer poss bilidade de aproximagao produtiva ou racional com os Estudos Culturais. Para exem- plos e maiores detalhes, vide Billig (1997), Thomas (1997), Carey (1997) conservadores buscando, em 17, 42 © Estudos Cultrais em educagio "sy 4 quest0es. ir discutindo — talvez Meio fragmentariamente alguns dos pontos em que eles se aproximam ¢€ outros em que eles se afastam Tendo em vista que cu ¢ talvez boa parte de meus leitores ¢ minhas |eitoras temos nossos intcresses voltados para o campo da Educagao, as ques- toes que escolhi esto, direta ou indiretamente, relacionadas com a escola com politicas educacionais e com a pratica ¢ teorizagao pedagégicas , Crises e criticas E facil constatar que vivemos, neste fim de milénio, num mundo que ébastante diferente daquele idealizado — ¢ em parte até mesmo realizado — pelos arquitetos do Huminismo. Os ideais de uma Bildung — pela qual se conduziriam os bons selvagens a um estado de maioridade, donos de sua raz4o, por obra de uma pedagogia e de uma escolarizagao racionais — mostraram-se, depois de mais de dois séculos, inatingiveis, tanto em ter- mos globais quanto em termos locais. Como se nao bastassem as grandes guerras mundiais, passamos a viver num mundo em que a ameaga at6mi- ca geral coexiste com as tragédias generalizadas por centenas de contlitos étnicos, religiosos, econdmicos. Paradoxalmente, enquanto se da o nota- vel avango da ciéncia ¢ da tecnologia, bilhdes de pessoas sao cada vez mais excluidas dos beneficios desses avangos. E mesmo aqueles muitos milhoes que se beneficiam diretamente do progresso tecnologico estao sendo co- locados diariamente frente aos impasses ¢ perigos gerados pelo proprio Progresso: ora é a crescente poluigdo, contaminagao ¢ degradagao ambi- entails, ora é o esgotamento desse ou daquele recurso natural, ora ¢ 0 sur gimento de novas e devastadoras doengas ou 0 recrudescimento de outras : sm por Mais antigas, Vivemos num mundo estranho, em que muitos morrem po to muitos mais morrem Comerem demais ou desequilibradamente, enquan Simplesmente por nfo terem 0 que comer. Esse inventario sombrio poderia se estend blemas que parecem estar aumentando — tals Com) coerce Prego, a miséria endémica, a corrupgao. as intolerdncias (sexistas, a 2a feit grandes 810sas, étnicas, politicas), o estresse, @ violéncia e a feiura od Cidades — forneccriam um variado e imenso material para i er bastante: varios pro- como a crise do desem- Michel Foucault ¢ os Estudos Culturais @ 43 te. Mas esse nao ¢ 0 objetivo do meu ee eam 2 oo hGo quero pa- _ Isso tudo sem considerar que uma boa parte daquilo que chamamos de crise, que comes : mo one ~ crise, ¢, na ver. dade, um conjunto de mudangas ¢ ilturais que tém Como resultado 0 es. tabelecimento de novas percepgdes sobre a realidade e novas Praticas sociais. Fenémenos como a compressdo espaco-temporal’ ( Harvey, 1996: Jameson, 1996) e a fantasmagoria® (Giddens, 1991) — para ci- tar apenas dois — esto atingindo em cheio nossos aparatos PSiquicos ¢ cognitivos. de modo a mudar radicalmente nossa “estabilidade interna” e nose s maneiras de perceber e significar 0 cotidiano. Sao fendmenos que puxam as velhas e boas ancoras que nos mantinham mais estaveis (e, conseqiientemente, presos...) a episteme de fundo da modernidade e aqui me refiro a tudo isso — que, afinal, todos conhecemos — € para salientar 0 quao longe estamos dos ideais do Iluminismo e, com isso. lembrar que podemos compreender o mundo atual como uma nao consecugdo do projeto moderno, como o resultado de um fracasso de nossos esforgos — algo que poderia ser assim expresso: “o projeto era bom, nos é que no estamos sabendo executa-lo”. Para nos, professores e professoras, essa questo coloca-se de ma- neira crucial, na medida em que esta no amago do projeto educacional da modernidade fazer da escola 0 locus privilegiado para a consecugao dos ideais do Iluminismo. Como esclarece Silva (1995, p.245), recer alarmista a educagao escolarizada e pitblica sintetiza, de certa forma, as idéias e os ideais da Modernidade e do Tluminismo,. Ela corporifica as idéias de pro- gresso constante através da razao e da ciéncia, de crenga nas potenciali- dades de desenvolvimento de um sujeito auténomo e livre, de universalis- mo, de emancipagiio e libertagiio politica e social, de autonomia ¢ liber eed ampliagao oespaco piblico através da cidadania, de nivelamento dos ae hereditarios, de mobilidade social. A escola estd no centro ae ic justiga, igualdade e distributividade do projeto moderno de ade € politica. Ela no apenas resume esses principios, propdsitos Com essa expressio, 4a principalmente pela ne) (1998) tefere-se a sintese do tempo e do espago engendra- “Com essa expresso, Gah nolo da informagio e das telecomunivaydes ssiio, Giddens (196 : ausentes sas (1991, p.27) refere-se a penetragao de lugares remotos € “O que estrutura o local nao iv I'd mplesmente o que esta pre- em moc ~ Taig 7 onte, cm se e as versde : principale sarente o ergajamento Mesmo om suas versées majg recen, ost sem Mpreenadas com as concepgocs pos-estruturalistas ue s¢ ss ¢ mais 1 gna ale AAG sté 7 5 tes c " au Ja continuidade ¢ da telcologia da historia, os Estudos Culty. despedem de so. ao mesmo tempo, um campo de conhecimentos ¢ de militancig es : mateo com Foucault: muito embora seja bastante comum ue eee foucaultiana as ferramentas para tao Somente tw = . ee c entender determinadas praticas ¢ configuracdes So- 7 ee ao fazer isso fica-se diante da possibilidade de se arti- cular algum novo arranjo, diferente daquele que estava sob escrutinig Em ambos os casos, esta presente uma clara inconformidade, uma atitu- de explicita contra as condigdes do presente ou, no minimo, desconfia- da dessas condigées. Mas tanto 0 engajamento do pensamento de Foucault, quanto o dos Estudos Culturais — em suas versées mais pés-estruturalistas — tem Pouco ver com, por exemplo, o engajamento do marxismo (pelo menos, do cha- mado marxismo “tradicional”), Como a hipercritica dirige-se a um mun- do que ¢ sempre contingente, nao ha como saber, antecipadamente, onde se quer chegar. Para Foucault ¢ para essas versdes dos Estudos Culturais, nao ha um modelo a priori de mundo, uma metanarrativa a nos guiar. Nesse “280. Para dar um “passo engajado” o rumo nao é determinado a partir de uma suposta estrutura de fundo ou de um final-feliz a ser atingido: cada conde adit Pelo exame das condigdes historicas (passadas)« das mune pag eee (presentes), todas clas condigdes que sao deste oa ambigiidade Soe dificuldades praticas e, principalmente, a &, a0 mesmo tempo ne 12 respeito a autoconfianga da hipercritica “ nao contraditoriamente —, arrogante e humi ~ Porque procura dar conta, sozinha, da problematica com a ; Na ausénc, 4 auséncia de um outro mundo ou de uma estrutura de indo que n SUE NOs guiariam, estamos deixados a nés mesmos, neste mundo e, claro, aqui, o carg 2 > AQUI, o caratey lalista, nai er materialista, ng “platdnico © ndo-idealista des an 48 © Estudos Culturais em ed presos a cle, temos de descobrir ng maneiras de nos moviment: a porque Iembrou-se que endeu Panes historico € necessario de agora e 5" porque apre- ele, a virt le da modéstia’ (Nietzsche, 1996b. 1) pon ante e, com tamos “irremediavelmente” dentro ae P.71): porque sabe que es- i zi daquilo que ex por mais que se faca, nao ha como sai que examinamos e que, tein, 1979, § 309) iF Para sempre da garrafa (Wittgens- ; ectiva foucaultiana, sdo possiveis ¢ arecem- me promissoras as tentativas de articula-los entre si ata pe a howe estudos sobre as relagées entre a escola e a assim chamada crise moderna. Uma tal articula¢ao poderia ter por objetivo, para citar um exemplo, examinar alguns dos regimes de verdade que tomama relacdo escola-crise como centro de uma discursividade e, a partir dai — combinando ferramentas da anilise foucaultiana do discurso com os avangos da vertente etnografica dos Estudos Culturais — empreender uma desconstrugio desses regimes. Afinando 0 foco desse exemplo, sugiro que as investigagdes que os Estudos Culturais tém realizado acerca das relagées entre multiculturalismo e escolarizagao — uma questao particularmente importante nesse cenario de crise — teriam a ganhar ao incorporar elementos da arqueologia ¢ da genealogia foucaultianas. Indo no mesmo sentido, as investigagdes acerca dos mecanismos discursivos pelos quais determinados saberes — inventados por um grupo social hegemdnico — passam “naturalmente” a incorporar um curriculo — e, por causa disso, passam a ser vistos como saberes universais —. s6 tém a ganhar quando se combinam elementos foucaultianos e os insights dos Estudos Culturais. Os resultados de estudos dessa natureza teriam uma importancia também ““pratica”, na medida em que permitiriam até mesmo algumas “intervenes” sobre as praticas (discursivas € nao-discursivas) que sc educacional. metiforas que se tornaram das quai 0 si s quais se esqueceu que 0 ‘ " ns aa das que perderam sua efigie agora so ‘entram em consi: ‘moe As verdades sao ilusd ‘Smo moedas” (Nietzsche, 1996a, p57) gastas e sem forga sensiv deragdo como metal, nao mais ¢ Michel Foucault e os Estudos Culturais ¢ 49 O sujetto ¢ metanarrativas que referi na segao anterior, talvez a te pensamento pedagogico moderng seja = que. das Entre a tenha deixado suas marcas no la de um sujetto transcendental que ocupa 0 centro tan onais quanto das andlises que sc fazem sobre essag ition 1 (1995, p.40-41), “a idéia do que é uma pessoa, oy oe ou um sujcito. historica © culturalmente contingents, embora a Nos, nati, onde uma determinada cultura © nela constituidos, nos Parega Cvidents « quase “natural” esse modo tao peculiar” de entendermos a nds Mesmog’ ‘A rigor, o entendimento que © pensamento moderno tem acerca do SUjeity representa a culminancia de concep¢des bem mais remotas — que yém - bretudo da filosofia platénica e da tradigao hebraica — e que foram retoma. das pelo cristianismo e, mais tarde, pelo Humanismo ¢ pelo Idealismo Aje. mao ¢ seus respectivos desdobramentos. Como resultado, 0 sujeito passoua ser visto como uma unidade racional que ocupa 0 centro dos processos go. ciais: mas, dado que a sua racionalidade nao estaria completada, faz-se ne- cessario um processo pedagégico que o tire da menoridade € o transforme num dono de sua propria consciéncia e um agente de sua propria historia Nesse ponto, quero apontar duas quest6es acerca do sujeito moder- no. Em primeiro lugar, como nos explica Williams (1976), a concepgao moderna de sujeito condensa dois significados complementares: 0 su- jeito é entendido tanto como uma unidade indivisivel — que tem num “eu profund sua esséncia de sujeito —, quanto como uma entidade que é Unica, singular e que o diferencia de qualquer outro sujeito. Em segundo lugar, uma questdo que as vezes passa desapercebida ¢ a de que esses dois significados complementares de sujeito estao dupla e intrinse- camente conectados 4 modernidade, na medida em que ela, tornando-0s uma “realidade discursiva”, ao mesmo tempo se dedica a torna-los um@ “realidade concreta”.!? Ja que nos fal praticas educact Como diz Larrosa a Com essas expresses nao estou assumindo nem uma distingdo entre 0 “discursive” ¢ © “concreto” ¢ nem mesmo uma “realidade” que estaria fora daquilo que pensamosdr zemos sobre ela. Afinal, “ao falarmos sobre as coisas, nds as constituimos. Em outras Palavras, os enunciados fazem mais do que uma representagdo do mundo, eles prod" wedade ene” (Meiga-Neto, 1996b, p.27). Meu objetivo é apenas apontar que a mode izou uma concepgao de sujeito € tentou realizar essa concepgao. 50 © Estudos Culturais em educacio ‘Ao dar as costas a metanarrativa do sujeito moderno, o pensamento pos-modemo opera © descentramento do sujeito, ou seja, remove do centro dos processos sociais — €, conseqiientemente, das analises que se fazem desses processos — 0 sujcito ali colocado pelas filosofias da consciéncia; com isso, elide-se 0 sujeito transcendental, que passa a ser visto como uma vencdio iluminista € nado como uma sua descoberta. Ao invés de derivar as ptaticas social econémicas, culturais, politicas, etc. a partir do sujeito, a questao pass 1 derivar o sujeito a partir dessas praticas. Assim, por exem- plo, ao contrario de ver o sujeito como um fazedor da historia, o historicis- mo radical vai perguntar como a historia constrdi diferentes sujeitos em di- ferentes épocas. Ou, como um outro exemplo, ao contrario de entender a Pedagogia como um conjunto de técnicas e procedimentos capazes de “de- senvolver” 0 sujeito desde sempre presente — pelo menos em poténcia — emcada um de nds, o pensamento pos-moderno vé a Pedagogia como um con- junto de praticas discursivas que se encarrega, antes de mais nada, de instituir © proprio sujeito de que fala. E por tudo isso que, para o pos-modemo, adqui- re importéncia escrutinar as diferentes tecnologias do eu, ou seja, maneiras € caminhos pelos quais cada um se torna o sujeito que € (Foucault, 1991). Como nos mostrou Elias (1989), a questao nao é propriamente fazer uma negagaio abstrata e our court do sujeito. A questo ndo é “pér em du- vida a autenticidade da autoexperiéncia que encontra sua manifestagao na idéia do homem como Homo clausus em suas miiltiplas variantes” (Elias. 1989, p.36), sendo é saber se a autoexperiéncia “pode servir de ponto de partida fidedigno para a tarefa de conseguir uma compreensdo objetiva dos homens” (Elias, 1989, p.36). Também para Elias, 0 sujeito no € 0 ponto de partida, mas é 0 ponto de chegada. E esse entendimento do sujeito é tio mais radical na medida em que, diferentemente, por exemp lo, do materia- lismo dialético ou do materialismo historico, ele nao conta com qualquer das Werden herdado do Idealismo, seja ele pensado como imanente a dia- \ética ou imanente a uma suposta natureza da historia. Nos tiltimos anos cresceu bastante a quantidade de investigagOes que, tomando a escola como o /ocus privile; ado para a construgao do projeto moderno, procura examinar as praticas qu ai se desenvolvem cujo objetivo éa fabricagaio do sujeito desse projeto."* E dificil exagerar a contribuigao in uuguesa; Foucault (1989), Varela e Alvarez-Uria © Cito como exemplos, em lingua port aa oad Veiga-Neto (1995, 1996a), Popkewitz (1992), Varela (1996), Larrosa (1995, 1998), (1994), Silva (1995). UFRGS oe prouinreca sevOniAL‘se edbinghg’” C's 7S . a ao dizer que 0 objetivo de de Foucault para essa questo. ° Alosofo for jaeres pelos quais. on we seu trabalho foi “criar uma historia dos diferentes ” naa : cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos” € ee x I ; ‘ 31) Como todos sabemos, as priticas escolares — como © eae, a vigilancia, 0 exame, a autonarrativa, etc. — inserem-se me nosis de subjetivagaio. Por isso, essas praticas nao séio tomadas, nos estudos foucaul- tianos, como algo repressivo cujo resultado seria 0 constrangimento sobre uma suposta natureza humana que seria, per se, livre. Ao contrario, tais pra- ticas so vistas como produtivas:"" elas se instauraram para nos tornarem sujeitos modernos, cidadaos de uma sociedade disciplinar e, por isso mesmo, capazes de seu autogoverno. Ao fazerem isso, tais praticas fazem da escola uma das condigdes de possibilidade da modernidade. Ao dizermos que sem a escola moderna nao teriamos 0 sujeito moderno, concluimos que sem ela também nao haveria a modernidade Mas isso é assim nao porque a escola “aperfeigoou” um sujeito natural a Ponto de torna-lo civilizado ¢ moderno. Isso é assim porque as proprias praticas escolares — conectadas aos saberes especificos que se agrupa- tam sob a denominacdo de Pedagogia Moderna — participaram e parti- cipam da invengdo desse construto que € 0 sujeito moderno. Um ponto ram —e quais séo — os efeitos que tal escolha produziu nos ultimos dois séculos? E justamente ao tentarmos dar respostas a essas Perguntas que ye- mos 0 quanto uma.aproximacao entre 0 pensamento de Miche] Foucault € os Estudos Culturais pode contribuir Para descrevermos ¢ compreen- dermos melhor nosso mundo de hoje. Nao se trata, simplesmente, de fa- zer uma historia do pensamento europeu e de seus desdobramentos uni- versalizantes; isso é importante, mas é preciso ir mais longe. Basta pen- sarmos acerca de quem eram 0s arquitetos da modermidade — brancos. machos, eurocéntricos, colonialistas, burgueses, eventualmente cristdog Javra nao implica um juizo de valor, mas {#o somente dizer que “produz algu. sta palavra M4 ma coisa srais em educagio 52 © Estudos Cu (ou de formaga orista), Mustrados, ete, — para que nos demos conta das marcas que “s mprimiram ao modelo de Sujcito que impuseram ao mundo como natural, necessario e universal, Se por um lado, aquela imposi¢do significou uma ruptura com o autoritarismo aristocratico e 0 absolutismo. por outro lado, serviu para tornar hegemonico um conjun- to de novas praticas sociais. ccondmicas e culturais cujos desdobramen- tos se estenderam em nivel planetario persistem até ho} a de dominagao. exploracao e ¢ compéem a endéncia da modernidade Chegamos, aqui. a quest6es que estao no centro dos interesses dos Estudos Culturais, Seja na sua vertente mais voltada a etnografia, seja naquela mais voltada as analises textuais, os Estudos Culturais ja esta- beleceram solidos avangos na compreensdo dos novos jogos de poder pelos quai estabelecem identidades, significados sociais e culturais e pelos quais estamos. ao que tudo indica, sendo cada vez mais governa- dos. De fato. como nos mostrou Hall (1997), nao apenas a imaginada e desejada unidade moderna — do espago social, do sujeito, do conheci- mento. da cultura, etc. — esta cada vez mais fragmentada, como tam- bem. justamente por causa dessa fragmentagdo, os Estudos Culturais se apresentam como um campo capaz de articular disciplinas tradicionais como a Sociologia ¢ a Psicologia, atenuando suas tradicionais frontei- ras, do que quase sempre resulta uma maior poténcia analitica ¢ estraté- gica. E esse carater articulador que faz dos Estudos Culturais um campo avesso ao reducionismo epistemoldgico. Centrar nossas analises nos fe- nomenos culturais nao implica reduzir tudo a cultura; significa, sim, as- sumir que “a cultura € uma das condigées constitutivas de existéncia de toda pratica social, que toda pratica social tem uma dimensao cultural. Nao que nao haja nada além do discurso, mas que toda pratica social rem 0 seu carater discursivo” (Hall, 1997, p.33). Ou, como dizem Frow Mornis (1997, p.345), entender a cultura como “todo o meio de vida de um grupo social estruturado através da representagao e do poder. Nao € um dominio isolado de jogos de distingdo social e de “bom gosto’. E uma rede de representagoes — textos, imagens. conversas, codigos de con- duta ¢ as estruturas narrativas que os organizam — que molda cada as- Pecto da vida social Mesmo correndo o risco da redundancia, vale fazer aqui um breve Paréntese: nao estou dizendo que na Modernidade havia uma unidade — do espago social, do sujeito, do conhecimento, da cultura, ete. — € log Michel Foucault e os Estudos Culturais ¢ 53 que essa unidade agora esta sendo ee a © Thumin am e que a Modernidade se articulou na by criou essa imagem ¢ que eee ane eee dade, de modo que acabamos percebendo a realica - © unitarig Estudos como os de Said ( 1990) podem nos Say F COMO UM exe, plo do que estou dizendo: ao invés de cstudar ° ipa a do que so se pensa e se diz no Ocidente. esse autor estu wee Ma 1SMO Como yy invengao do Ocidente. No mesmo sentido vai uquerque (1999 ao examinar a génese da regio nordestina do Brasil. nos mostra ques Nordeste é uma inven¢ao recente em nossa historia. Esses estudos ng se encaixam bem em cada uma das disciplinas tradicionais: nem na Sociolo. gia, nem na Antropologia, nem na Politicologia, nem na Anilise Literarig, etc.; mas, ao mesmo tempo, encalxam-se bem em todas clas. Além disso, cles assumem as narrativas européias e brasileiras, fosse para descobriruma suposta esséncia do Oriente ou da orientalidade, do Nordeste ou da nor. destinidade, fosse para averiguar se tais narrativas cram verdadeiras oy falsas, no sentido de representar bem ou mal uma suposta realidade — 9 Oriente como um Outro, o Nordeste como o Outro —- que estaria 4 espera dessa representag4o. O que interessou a Said foi procurar “os estilos, fi- guras de linguagem, cenarios, mecanismos narrativos, circunstancias his- toricas € sociais [na enunciagao dos discursos sobre o Oriente] ¢ nao a cor- regdo da representagao, nem a sua fidelidade a algum grande original” (Said, 1990, p.32). O que interessou a Albuquerque foi “entender alguns caminhos por meio dos quais se produziu, no ambito da cultura brasileira, © Nordeste” (Albuquerque, 1999, p.23). Isso significou, para ele, proceder a “analise da superficie dos textos, sua exterioridade com relagéo ao que descreve™ (p.32). ou seja, ler os textos ndo como documentos, mas como monumentos.'* Para Albuquerque, isso significou ). que, romper com as transparéncias dos espacos ¢ das linguagens, [pensar] a espacialidades como actimulo de camadas discursivas ¢ de praticas socl- ais, {trabalhar] nessa regido em que linguagem (discurso) ¢ espago (obie- ‘o historico) se encontram, em que a historia destrdi as determinagoes 1! 1s . 4 p Ao explicar 0 seu método arqueoldgico, Foucault (1987, p.159) diz. que a leitura a queolbgica “nao trata o discurso como documento, como signo de outra coisa. |) ®! se dirige ao discurso em seu volume prdprio, na qualidade de monumento. Nao se tal@ de uma disciplina interpretativa: ndo busca um “outro discurso” mais oculto” 54 © Estudos Culturais em educagao turais. em que 0 tempo da ao espaco sua maleabilidade, sua variabilida- de, seu valor explicativo €, mais ainda, seu calor e efeitos de verdade hu- manos.” (Albuquerque, 1999, p.23) A questdo que se coloca, entdo, é perguntar como fica a escola, agora que sabemos que 0 sujeito moderno nao é uma descoberta do Ilu- minismo mas, sim, uma sua invengdo, isso é, uma sua idealizacao que, a rigor, nunca existiu, nem nunca existira naqueles termos de uma unidade universal e estavel. Essa questao admite muitos desdobramentos. Pode-se perguntar acerca do futuro (“concreto”) da escola, enquanto Instituicdo destinada a fabricar um sujeito ficticio. Pode-se perguntar sobre como reorientar a escola para que:¢la, assumindo o carater fragmentario do sujeito, repro- grame sua agenda no sentido de desempenhar novos papéis num mundo mutante e em crise. Pode-se perguntar acerca de que novos Ppapcis sio esses, principalmente no que se refere a participagdo da escola na cons- tituigao de identidades culturais localizadas — para tomar um polo — ou de uma suposta identidade nacional — para tomar outro polo. Pode- se perguntar sobre as novas orientagdes metodolégicas para a pesquisa, decorrentes do descentramento do sujeito. ‘Todas essas questdes so importantes ¢ urgentes; todas elas parecem estar na medida certa do que nos pode oferecer uma articulagdo entre Fou- cault e os Estudos Culturais. Ao eventual argumento de que a arqueolo- gia, a genealogia ¢ a ética foucaultianas trataram do sujeito pensado pela modernidade — ¢ nao trataram desse sujeito descentrado e miultiplo —. podemos responder que é justamente por isso que o pensamento do filé- sofo nos é util, Em primeiro lugar, na medida em que seu pensamento, se- guindo Nietzsche, assume a contingéncia do sujeito moderno, ele assume 4 contingéncia in totum do sujeito, de um sujeito em qualquer tempo. Em Segundo lugar, na medida em que ele nos oferece trés “métodos” para ana- lisarmos como se deu (c se da) a fabricag4o desse sujeito moderno, nos Podemos assumir a tarefa de usa-los como fogos de artificio para ir adian- te, combinando-o com outros campos ¢ inventando novas manetras de ana- lisar a subjetivagdo fragmentaria pos-moderna. A fragmentagao do sujeito aponta para a necessidade de exami- narmos os processos pelos quais se formam e se alteram os fragmentos em cada um de nés € como eles se relacionam entre si ¢ com os frag- Michel Foucault e os Estudos Culturais * 55 se de processos em que estao sempre envoy de poder, ou seja. relagdes que procuram impor determing x no outros quaisquer). E como resultado degsos a se estabelecem as identidades. Mesmo reconhecendy que noe = jdentidade é um conceito marcadamente EscorTegadig ¢ “4, inte, 7 a a at mencional” (Ferguson & Golding, 1997, p.xxv 1), vejamos, de um ulti-dum 7 o m do um tanto esquematico ¢ segundo a perspectiva que importa parg modo Is A discussdo que segue também 5 la se estabelece este texto, como ¢) ' isso qu serve como um exemplo da possivel articulagdo entre alguns aspectos do pensamento de Foucault — como discurso € sujeito — ¢ aie conceitos tomados dos Estudos Culturais — como identidade, interpe. mentos dos outros. Trata~ das relagdes dos significados lagdo ¢ cultura . Como ponto de partida, lembro uma das ligdes que apreendemos da virada lingiiistica: os significados ndo existem soltos no mundo. a espera de serem descobertos ¢ formalizados lingiiisticamente. Enquanto coisa deste mundo, 0 significado nao preexiste a sua cnunciagao. Ele so existea partir do momento em que foi enunciado, passando a fazer parte de um ou mais discursos. Por sua vez, os discursos nado séo combinagées de pala- vras que representariam as coisas do mundo. Eles nao sao “conjuntos de signos (elementos significantes que remetem a contetidos ou a represen- tages). mas praticas que formam sistematicamente os objetos de que fa- lam. Certamente os discursos so feitos de signos; mas 0 que eles fazemé mais que utilizar esses signos para designar coisas. E esse mais que 0s tor na irredutiveis a lingua ¢ ao ato de fala’ (Foucault, 1987, p.56) Os discursos podem ser entendidos como historias!” que, enca- as entre Si, se complementam, se completam, aes cea eee nos como regimes de verdade.'* Um regime uido por séries discursivas, familias cujos enunciados —_—— Para ima diseusso acerca das prineipais concepgies de identidade —a concepeio 4? sui ta, iolégien € do pos-moderno—, vide Hall (1998). “ reende 5 as" (Lyotard, 1993, psy nt Sozinhos, apreendem-se alojados em pequenas hi **A Virada ling tice parcou devon # entender que “os discursos nao sio nem a external Por isso, € preciso “abandonar « Para os pensame: Mentos, € ver as frases ¢ : 40 mundo” (p.288) frases como estando mais ligadas as outras frases 40 4" isto 56 8 Barua, studos Cult turais em edi lucagio

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