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A COBRA E O FOLCLORE SERTANEJO JOSA MAGALHAES No conceito dos gregos fol a serpente o ser mais representativo @o mundo inferior, Por forga desta preponderincla logrou projetar- ~Be eXtensa © penetrantemente na Mitologia onde vamos eneantra- -la, destacada, em rumerosas representagdes misticas. Ao lado disso, foi parte etn extraordinarlos aconteclmentos de viva repereussio no seio da humanidade. Demais, 0 reptar-se @ cobra, sem membros locomotores, com sin- gular desembarago, desereyendo curvas graciosas em progressio continua; o possuir olhos de estranho brilho, profunds agudezs ¢ poder fascinador; o preferir habitar, isolada, em escayaedes do solo; © despojar-se, periddicnmente, de sua camada epidérmica mais su- Perficial; a cireunstancia de viver traneada om rigoroso mutismo; @ crenca de sua longevidade, e, sobretudo, o veneno de acio letifera que excreta, foram, de certeza, as causas do tributo mundial pres- tado a éste préfugo réptil. Evento dos mais importantes, 0 primeiro a ser registado, foi, sem duvida, 0 ocorrido no Paraiso terrestre. A seducao da inocente Eva, promovida por uma ardilosa serpente. no Paraiso terrestre, alcanea extraordinaria e abrangedora reper- cussdo no espirito dos novos que passaram a povoar a terra, apds tao lendario acontecimento. Adguire éle notavel relévo, sobretudo por se colocar no bergo da humanidade, e, tanto mais por se considerar a arteirice da cobra a causa prima dos males que se difundiram pelo mundo. Esta procza confere-lhe as caracteristicas de scdugao ¢ astucig, Moisés, & frente dos Hebreus, através do deserto de Sinai, ergueu, no extremo de uma vara a figura de uma serpente com a cobica de 14 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA do ver o seu povo vulnerado com o veneno déstes répteis, al pulu- Jantes. O Cajado de Moisés exprime, destarte, protegio e defesa. Pre- sume-se que tal simbolo represente a primeira mengao da cobra como instrumento terapéutico. Admite-se que, primitivamente, fésse a cobra @ deusa da Medici- na. Posteriormente, uma serpente sagrada brindando a Esculapio com uma erva possessora da miraculosa fungéo curativa, féz, com isso, translerir a divina prerrogativa de curar a Imagem humanizada de Esculdpio. Surgiu, dai, o Baéculo de Esculdpio, que é o emblema uni- versal da Medicina figurado por uma cobra enroseada em um bastdo. Na mitologia grega eleva-se como simbolo de fertilidade e na cos- mogenia fenicia simboliza o poder procrlador. Havia ag serpentes sagradas, personiticadas pelas deusas-serpen- tes. Atena era uma delas. A deusa-serpente de Trica, cidade da Thes- salia, uma outra era de sobreassinalada fama, Existiam, de outra par- te, 08 bosques sagrados do culto serpentigero onde as serpentes sa- gradas viviam e se nutriam. Nos paises nérdico-germanicos a serpente era tida e havida como um animal sinistro, Em Delphos, a serpente de PYTHON exerceu a regalia de pres: tigioso simbolo da profeela. Moedas exumadas em Tiro exibiam efigie de cobra que, assim, significava riqueza publica, Em paredes de numerosas casas de Pompéia foram encontrados desenhos de serpentes que, tidas como bons espirites domésticos, re- presentavam emblema de defesa e proteedo domiciliar. Em sua honra até altares erguiam-se nessa cidade arqueolégica. Entre os faraés egipeios apresenta preponderantemente o poder pessoa]. Conta Aristéfanes que Plutus, 0 deus da riqueza, cego por capriche de Jupiter, recobrara a visio depois que duas serpentes Ihe Jamberam as palpebras. © tragico e espetacular suicidio de Cledpatra, apés o triste fim de Marco Anténio, delxando-se morder por uma cobra venenosa, pa- tenteou ao mundo um simbolo iniludivel de destruicao. Quando Merctirio, em misséo de paz, fora designado embalxador entre os deuses, Apolo — a divindade solar — conferiu-Ihe um ca- duceu constante de uma vara com duas serpentes enroseadas. O ca- duceu de Mercurio sobre ser nimcio de paz simboliza prosperidade e abundancia. Possuia, ainda, 0 condio de neutralizar o mau olhado dos deuses quando amuados. Tarasca era uma serpente de grandes proporgées, artificial e mal-ajambrada que, segundo Jodo Ribeiro, aparecia nas antigas proeissies. © singular privilégio que Ihe 6 inato e imanente de mudar a pele, anualmente, dé-Ihe a signifieagio de rejuveneseimento, ju- ventude e vida eterna. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 115 © culto supersticloso da cobra fixada na conseléncia das gera- ges sucessivas, ao través dos tempos, pelo prestigio imanente da tradicho oral, Dassou a integrar-se na estrutura do folelore, tomado, entretanto, de novos aspectos Imaginativos e fantaslosos. , pols, 0 que Se observa na opulenta contribuicéo da cobra no folelore ser- tanejo cearense, Vejamos. Quando vai a cobra beber agua deixa, & distancia, sobre uma félha séea, a sua bélsa de veneno. Se, acaso, de volta nio a en- contra, fica doida, atarantada, correndo desorientada para todos os lados, Se a cobra sente a necessidade imperiosa de desbarrigar os filhotes, caminha em linha reta e os vai soltando de um a um. Ao despojar-se do ultimo, volta por cima do rastro e val comendo todos 03 que encontra. Por isso, comenta o sertanejo, é que ndo ha muita cobra pelos matos. Alés, as cascavéis sio muito prolifieas, Certa vez, com um tire ¢ pauladas consecutivas matei uma de cujas entra- nhas retire! 32 filhotes De outra, assisti a0 desbarrigamento de 21 cobtinhas. Ninguém deve tocar com os dedos nos ovos de qualquer passaro que se encontrem no ninho porque a cobra os vem comer. Cuspindo-se néles, porém, evita~se que a cobra os coma. Dizem que quando a0 meio se corta uma eobta de duas cabecas ¢ se jogam as duas partes em sentido diferente, ainda nue distanctado, as extreml- dades se atraem ¢ se juntam Quando a cobra olha fixamente para um animal de pequeno porte, éste, inapelivelmente, se encaminha em direitura de sua béea. O Institute Butanta em vao procurou pro- var, experlmentalmente, a autenticidade déste conceto popular. A propésito, refere-so La Copdamine a uma grande cobra antibia que, segundo os indios, atraia, invencivelmente, pela respiracio, os animais que dela se aproximayam e os comia. Ndo se permite dor- mir 0 ofendido de cobra nas primetras 24 horas poraue, dermindo, © veneno se difunde com maior rapidez. © individuo mordide de co- bra nao deve ouvir comentarios sébre sua doenga porque terd, entao, sabita plora. Nenhuma mulher, notadamente em estado de gravidez, poderé aparecer a uma pessoa intoxicada pelo vencno offdico, pols as condigées da doente se agravarao imediatamente. Diz-se que se uma senhora menstruada passar por sdbre ums, cobra, esta motreri, Contou-me Arcelino Tavares, em Canindé, que se uma cobra picar ‘uma mulher menstruada, a cobra é que vem @ morrer. Z narrou-me ‘uum fato comprobatério, Maca de seu conhecimento, certo dia, muito de manhé, foi buscar um pote de agua na cacimba, onde uma jara- Taca a mordeu. Voltande a casa, o pai correu @ cacimba com o fito de matar a cobra. Em 14 chegando, jé a encontrou morta. E a mica que menstruada estava, nada sofreu. Por precaugao, ninguém deve atirar em cobra, pois, se por acaso, o projetil do corpo separa a car beca, esta voa e se vai clavar no atirador, causando-lhe morte ime- diata, Ao atirar-se em cobra, embora se no faea pontaria na eabeca, 0 tiro, quase sempre, nela atinge, por isso que o veneno atrai os graos de chumbo. Quando alguém atira numa cobra e a mata, 116 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA vira imediatamente o cano da espingarda para balxo, sen&o entorta € descalibra, Afirma-se que se o individuo mordido por uma cobra conseguir mata-la imediatamente e a conduzir até a sua casa, pen- durada de cabega para baixo, e présa & mao pela ponta da cauda, nada sofrera. Admite-se hayer uma espécie de cobra que mama tanto nas va- cas como nas mulheres que amamentam filhos reeém-nascidos. Seria ® cobra preta. Referem alguns vaqueiros que certas vacas boas de leile, de um cia para outro, sem motivo plausivel, secam os Uberes, Justificam éste fato como sendo a cobra preta que penetrando & noite no curral rouba-lhes o leite. Mutheres ha que, ao darem & luz, temem ao visita noturna da cobra que Jhes sugaria, durante 0 sono, © precioso leite do filhinho. Por {sso, precatadamente, fecham bem as portas e tapam os buracos que por acaso existam nas paredes a bem de prevenirem a penetragio da cobra. Acrescentam que a cobra, enquanto sorve o Ieite materno, a guisa de chupeta, poe a extremi- dade da cauda na béca da erianga a fim de néo acorda-la, pois, acor- dando-a, despertaria a mae. A cobra, destarte, evidenciaria agil ¢ sutil raciocinio. Admite-se haver uma reiacdo de idade entre a cascavel e o guizo da ponta do rabo. Se éste apéndice caudal contém, por exem- plo, 12 anéis engrazados uns a0s outros, significa ter a cobra éste numero de anos. Pesquisas j4 orientadas neste sentido ndo ofere- ceram eonfirmagio, © movimento rapido que a cobra executa ao plear uma présa nomela-se botc. Tanto que deita a peconha em sua vitima, num Atimo, tal fra um sistema de molas em acao, ela se retral e se queda numa postura de expectative, apta para uma segunda investida. Ga- rantem que o bote tem o aleance igual ao comprimento do corpo da cobra, 0 que néo é yeraz. Verifiquel, pessoalmente, que so a cabega € 0 pescogo entram em movimentac&o no referido ato. Dizem nue h& uma cascavel de quatro ventas que 6 a mais ve- nenosa. Pica o individuo e alca a cabeca para observar-lhe a queda fulminante, poucos passos mais adiante. Sustenta o sertancjo que o individuo picado desta espécie s6 0 Senhor So Bento poder resga- télo da morte. Pesquisas de observadores contradizem esta versio. A cobra, normaimente, mostra quatro orificlos no focinho, sendo dots das narinas e dols outros das fossetas lacrimais, Pondo-se sarro de cachimbo nas ventas de uma cobra venenosa ela se contrai tada e morreré dentro de poucos instantes, De igual asso, morreré, com a mesma pressure, Se morder uma vara de pi- mhiio bravo com que se lhe toque. So Bento, o fundador da ordem dos Beneditinos, ¢ o protetor dos ruricolas contra as cobras venenosas. Tem éle o poder de afu~ gentar e dominar as cobras venenosas. Toda a gente confta na pro- tego déste Santo. Conta-se que se, Por acaso, 4 noite, viajar alguém or um caminho e se, & sObitos, choeslhar em sua frente uma cas- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA ut eavel, com muita fé diz para ela — “Ksteja présa por ordem do Se- nhor Sao Bento, Nem para a frente, nem para tras, nem para wn lado, nem para outro.” Ao mesma tempo que isso vai dizendo, dé-se um né na fralda da camisa ou na ponta de um lengo. A cobra nao se moveré durante o tempo que persistir o n6, Desta mancira, no dia seguinte, 0 individuo volta ao mesmo sitlo e mata @ cobra ainda imobilizada, Também, em noites escuras, os viajores, de instante a instante, repetem quadrinhas como estas: Sdo Bento, dgua denta Jesus Cristo no altar As cobras déste caminho Ajastem que eu pou passar. Meu glorioso Séo Bento Confio em vosso poder, Livrai-me desta serpente Que ela quer me morder. Muitos sertanejos, ao deitarem-se @ nolte, ou pela manha, ao sairem para o campo, rezam um padre-nosso e uma ave-maria ao Senhor Sio Bento, rogando-Ihe que os livre de picada de cobra. & comum conduzirem, apensa ao pescogo, uma venera déste santo pro- tetor. Geralmente no dia de SAo Bento, 21 de marco, os camponeses ndo trabalham, Guardam, pois, 0 dia daquele que os protege contra as mordeduras de cobra. Acarne, @ banha, a pele e o guizo de cobra sdo substancias inte- srativas do formulario terapéutico do sertanejo. Quando se tem ferida braba, toma-se, diiriamente, wma colherinha de banha de cascavel. Um pedacinho de cobra coral embolaado e pésto ao pes- cogo, cura asma, Para ter¢ol nio ha coisa melhor do que colocar-se Sébre éle um fragmento de casca de cobra. Para dor de dentes fu- ma-se, em cachimbo de barro, um chocalho de cascavel pulverizado. Um chocaiho de cascavel préso ao pescoco, por cordao encarnado, aplaca as dores de ouvido. Cura-se retencio de urina amarrando um maraca em uma das pernas. Ainda para asma torra-se o crétalo da cascavel, de seguida Teduz a pé, e, com éste po se prepara ché que, com proveito, é ministrade por oeasléo dos acessos. Pode-se, tam- bém, aspira-lo pelo nariz como se fra rapé. Tem-se por hab!to, igual- mente, cozer 0 guizo e beber-se o caldo. Contou-me José Francisco ce Andrade, residente no municipio de Canindé, haver um filho que muito sofrera de asma. De principio, nada Ihe minorava os sofri- mentos. Um dia, Josias Gomes, morador om Jaen, ensinou caleinar um maracd de cascavel de que fizesse chad e ao menino desse-o a beber. A crianga que estava de quatro anos de idade, durante alguns dias, com regularidade, tal chd usou e, bem logo, logrow curar-se. 118 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA Hoje, anda nos 24 anos e nunca Jamals acometida fol de acesso de asma. Entre os sertanejos, tais quais os lavradores do Tirol, existe o formal conceito de que o consumo de earne de eobra, ao homem, Permite uma boa satide e 0 faz alcancar um estégio de vida muito alto. Assim é que o Dr. Alberto Tavares conhece um funcionério da R.V.C. que dizia haver-se curado de atroz reumatismo comendo pagoca de carne de cascavel. Conforme informagéo de J. de Figuei- redo Filho, Adio Apolingrio de Alencar, residente no Cariri, agredido de insidioso reumatismo e depois de buscar as luzes de 16 médicos, sem melhora satisfatéria, recorreu @ carne da cascavel. Gulosamente comeu 14 cobras com o que melhorou suficlentemente. O mesmo J. Figueiredo Filho adianta que “o padre Irineu Lima Verde, Professor da Faculdade de Filosofia do Crato, bom apreciador de pratos de cobra, é apologista da cascavel, como curativa e preventiva do reu- matismo”. No tocante A terapéutica da intoxicagéo ofidica o povo j& tem conhecimento de existir contra ela uma injeco eficaz. Nem sempre, porém, ésse recurso se encontra & mfo, de sorte que a terapéutica popular continua a ser utitlzada sem diserepAncta. Entre as popula~ 6es rurais vige o conceito de que a cachaga age contra o veneno, por forma que, bastantes vézes, é o primelro remédio que se ministra a um mordido de cobra, Diz-se mesmo que um bébado nfo morre em sendo mordido de cobra. B, a éste propésito, contou-me um serta~ nejo a seguinte historia tida como verossimi!: Um melado contumaz estéve a beber na Tua até alta noite. J sobretarde, botou-se para sua residéncia que ficava a certa distancia, De caminho, adregou cair justamente por cima de uma cascavel. A cobra passou a noite Picando 0 sujeito, Pela manhf seguinte fol encontrado ainda na mesma posture, arrojado sObre a cobra, todo mordido. E ndo mor- reu. E. P. Schmidt, conhectda autoridade sobre cobras e répteis, chegou & conclusio de que a aguardente que o individuo ingere nao combate o veneno, amofina-lhe, a0 contrario, as defesas organicas € esmorece a energia cardiaca, permitindo, destarte, que 0 toxico mais de facil tome posse do organismo. Informaram-me que, no sertio, toma-se a camisa suada de um trabalhador, espreme-se ¢ 0 suor colhido d4-se a beber & pessoa mor- dida de cobra, Afirma Nery Camelo que “no interior do Piaui, o cha das fezes humanas € aplicado para mordedura de jararaca”. Disse- -me um vaqueiro de Santa Quitérla que o melhor remédio contra a picada de cobra é matar a cobra, retirar-Ihe o figado e comé-lo cru, imedlatamente. A propésito, contou-me um agrieultor de Uru- buretama, que, certo dla, estava de parceria com um companhelro a limpar uns matos no rocado, quando, de inopino, uma cascavel monstra sacudiu-lhe um bote certeiro no dorso do pé direito, Com trés destemidas enxadadas, num Atimo, éie proprio matou o teme- Toso ofidio. Incontinent?, o seu companhelro de trabalho, com desem- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 119 baragada disposicdo, abriu a cascavel ¢ extraiu-Ihe o figado due o ofendido, all mesmo, o comeu, cru e insésso, Retirou-se para casa e no teve nem dor de cabeca. & bem aforado o vézo de beber-se leite, em abundancia, até repugnar. Allds, confere-se ao leite a prerrogativa de antitéxico. N&o se desadora, entretanto, a clara de évo bem batida & mistura com flhas de arruda. Muito insinuade 6 0 cha do couro de guaxinim. O seu aproveitamento se relaciona com uma lenda singela assaz Vivedoura entre as populacdes rurigenas. Conta-se que dois irmaos, muitos amigos, sairam de casa, certa manha, para uma cacada, JA sobretarde, apés de proveitosos disparos e quando encetavam o retérno & residéncla, aconteceu que, déles, um f6ra picado de cobra yenenosa. Nesta conjuntura, estugaram os passos de regresso, A breve trecho, porém, o ofendido desfalecera ¢ foi por terra. De mais @ mais agravava-se-the o estado de sate, Ao irmaéo e companheiro acorreu calcar-lhe a cabeca, & guisa de trayesseiro, com um bornal de couro de guaxinim que conduzia. Precipite, as energias evanes~ centes se revigoram. Puseram-se, entéo, de caminho. Boa distancia haviam calcurriado quando o acometeu segundo desmaio. Posto de névo em contato com o bornal, novamente se Incrementa de suas forgas. E foi assim que se velo a conhecer o mérito terapéutico do couro do guaxinim. Dai por que é éle hoje tao prezado, Referiu-me um vaqueiro do municipio de Canindé que o cha da raiz de qualquer arvore que, em Anguto reto, corte uma vereda, 6 bom para picada de cobra. Nesta receita, de par com a idéia de simpatia, ha um sim- bolo sobremanetra curioso: — é a ralz sinuosa, reptante, atravessando um caminho qual uma cobra. HA varios ch4s que se recomendam com muita insisténcia, entrr éles os das raizes do carro do santo, o do carogo do abacate e o xarope da casca queimada da castanha do caju. O cha do batatao ou cabeca-de-negro tem emprégo muito aforado. Além déstes remédlos originals e interessantes, muitos outros sAo aconselhados, tais como tomar garapa de rapadura até repug- nar, beber leite cru em abundancia até vomitar e comer melancia até srrotar. A agua da félna da bananeira, As colheradas, de hora em hore, ¢ Jargamente recomendada, Muitas pessoas referem-se ao ché das penas da nambu codorniz. Do alho faz-se cha, e, moido, aplica-se localmente, sébre a picada. Também come-se cebola até nao mais agiientar. Em relacéo ao alho e & cebola, refere Castiglioni que Dios- cor receitaya como remédios contra a mordedura de serpentes certo numero de ervas entre elas cebola e alho. Muito costumeiro é mer- gulhar ern querosene o érgio ofendido. Contou-me em Pedra Branca um vaquelro de Independéncia que, certa felta, foi mordido de uma cascavel no terreiro de sua casa. Sem nutacéo, tomou, imediatamente, de um tigho de fogo de sabid, e queimou, bem nueimado, no luger da mordida. E, em erédito déste arréjo pessoal, mostrou-me uma grande cicatriz, saliente ¢ irregular, no bordo externo do pé esquerdo. Informou-me um ruricola que um 120 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA seu sobrinho, ao meter 2 mao em um fojo de pred, uma caseavel fisgou-o na ponta do polegar esquerdo. O rapaz nado teve ditvida. Puxou a faea, pos-o dedo sdbre um téco © com um violento golpe eliminou a ponta do dedo ofendido. Muito acreditada 6, no sertdo, a Pedra-de-veado ou Pedra~de- cobra que, posta sébre a mordedura da serpente, ai adere facil- mente e se enegrece pela absorgio rapida do veneno inoculado, acarretando, destarte, a cura imediata do individuo. Segundo o tes- temunho dos sertanejos, 0 seu préstimo incontestavel. A pégina 19 de Aves de Arribagdo, de Anténio Sales, aparece o Pinheiro, curador de cobra, que vai curar o filho de um tal Severino com a Pedra-de- -veado. Tals pedras sio guardadas euldadosamente por seus possui- dores que as emprestam com muita satisfagdo, juando solicitadas para alguma cura. Tive varias oportunidades de examinar algumas delas, sem, todavia, identificar-Ihes a natureza, Nio sao uniformes. Variam na morfologia, na dimensao e na cér. Umas sao claras, outras escuras. Quase sempre apresentam superficie rugosa ou spera. Informaram-me que umas sSo feltas de chifre de veado e outras de osso poroso de quaiquer animal, Ninguém informa como se pode obter uma destas pedras, Conta Martius entretanto que os indios “cortam a armacio do yeado em pedacos quadrangulares, de uma polegada de comprimen- to, reduzem-no quase @ carvao e néles gotejam a banha que o jacaré segrega nas cnas bélsas situadas embaixo do pescoco, Os pedacos de chifre assim preparados so amarrados sdbre as mordeduras de cobra das nuais absorvem todo o veneno.” Comenta, ainda, que “éste remédio é levado em consideragao © tido como infalivel por muitas pessoas de descendéncia européla que o trazem sempre consigo”. © uso destas pedras nas mordeduras de cobra nao é privativo dos nossos sertanejos. B de origem mul remota e parece ter aplicacao universal, Sendo, vejamos. Afonso de Taunay, entre os trechas que transcreve de Gabriel Delon, médico e viajante francés, seiscentista. que passou mui rapidamente pelo Brasil] e que, mais demoradamente estéve nas Indias destaca o seguinte: “usa-se na India uma pedra que se diz encontrar na cabeca de algumas cobras, € por essa razio sio chamadas em portugués pedras-de-cobra. Aplica-se sobre a feri- da a que adere sem que seja necessarlo seguré-la, ¢ quando se acha embebida de tanto veneno quanto possa conter, cal por st. Pem-na, entao, dentro do ieite onde desearrega o que suga, e continua-se assim @ aplicd-la, até que n&o adira mais por si, 0 que indica nio hhayer mais perigo. Quando se deita tal pedra ao leite ai descarrega todo o veneno, e 0 leite parece cheio de imundicies ¢ de diversas céres. JA vi muitas vézes o efeito dessas pedras: encontram-se pou- cas boas e muitas, mal feitas sem eficiéncia alguma.” Releva acentuar que a informagao de Dellon, divergente no to- cante a génese da pedra, colncide justalinearmente com o procedi- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA WL mento do sertanejo que no leite nunea delxa de mergulhar 9 pedra apés a sua aplicacdo. De sua parte, acrescenta Artur Castiglioni, que na India Seten~ trional “muitos tém fé na chamada pedra-das-serpentes que parece tratar-se dum pedago de osso empojado de sangue cozido varias vézes, ao qual se atribuem propriedades absorventes tais, que podem extrair o veneno das feridas.” -No sertao ainda se combate a intoxicagho ofidica a poder de re- zas fortes, especificamente oficiadas por curadores de cobra profis- sionais, pessoas tidas por imuntzadas contra a intoxicante pegonha das cobras. Nupérrimo nao é éste conceito de curador de cobra vigente entre as populagdes rurigenas. Refere-se Plinio aos Marsos, habitantes de Chipre, que, sébre serem dotados de tal prerrogativa, fruiam o pri- vilégio de curar o individuo mordido de cobra 2 que tocassem ou deitassem um pouco de saliva. Os nossos homens, havidos por eura- dos, desfrutam as mesmas vantagens de curar os seus semelhantes ofendidos de cobra e se valem de processos mais ou menos consimiles. Em norma, @ cura se faz a poder de oragées fortes. As vézes, também, por mereé de um pouco de saliva do curador posta na béca do envenenado, por uma simples mirada sobre éle ou um breve tocar de dedos em seu corpo. Outras vézes, distante o curador, manda um objeto de seu uso pessoal que ha de pér-se em contato com o doente, ou, olhando no rumo da sua residéneia, ao longe, dirige-lhe uma oragao curativa. Conta Joio Nogueira, nfo sem acerada ponta de ironia, que “os curadores de cobra nao rezavam, Curavam por um poder misterioso que possuiam. Ficou célebre nos sertées de Sobral um certo Saldanha, cujo pader sdbre o veneno era superior ao de Séo Bento. Reza a tra- dig4o que, ja estando muito idoso e nao podendo mais atender a cha- mados para lugares distantes, mandava ao mordido a sua jaqueta, Se éste ainda estivesse vivo, bastava que lha pusessem sdbre o peito para operar-se a cura maravilhosa, De sorte que Saldanha conseguia com a sua jaqueta aquilo que o Instituto Butanté sé logrou obter depois de anos de muitos estudos, de muito laboratério, muita pacién- cia, muita quimica.” Leio em Gustavo Barroso — “Um individuo ¢ mordido de cobra. Corre um parente 4 casa do curandeiro levando o chapéu do enfé: mo, E, com aauéle objeto na mao, voltado para o lugar em que esta 0 doente, o feiticeiro reza em voz baixa. Juram que escapa.”” Assegura Luis da Camara Cascudo que “os curandeiros sertane- jos do Nordeste cospem na béca do animal mordido pela cobra e o salvam. Em Augusto Severo, Rio Grande do Norte, o negro Anténio Gambeu era famoso por essa especialidade.” Pedro Kimenes, residente em Iumirim, municipio de Urubureta- ma, 2 seu respeito, narrou-me o seguinte: — “As cobras tém muito médo de mim. Nao sei o que elas tém comigo. Quando me véern, cor- 122 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA Tem, Tenho cuspido na béca de muito bicho bruto e com isto ne nhum morre. Jd me disseram que eu sou curado de cobra, de nas- venga.” Acredita-se que a pessoa mascida em domingo é naturalmente curada de nascenca, Nao somente 0 homem goza da regalia da imunidade pessoal e da concessio neutralizadors, do veneno em seus semelhantes, Admi- te-se, também, a imunidade de certos antmais, que, assim, por igual, adquirem a capacidade de curar tanto os da sua espécie como os in- dividuos da espécie humana. Informou-me um vaqueiro de Tamboril que possuia um eachorro curado, Bastava lamber 0 ponto de inocu- lagdo do veneno para o ofendido restitult-se @ satide. Por isso, sua presenea era solicitada téda vez que havia um mordido de cobra na rodondeza da fazenda em que vivia. Referiu-me 0 Dr. Pompeu Sobrinho haver verificado em Quixe- ramobim 0 caso de um indlviduo que, picado de cobra, aguardava, para morder, a brida mandada vir de uma fazenda proxima e que era usada de um cavalo tido como curado de cobra. Os curadores de cobra, de presente, inda sio encontradicas no sertéo. Um déles, Emilio Marques da Silva, residente em Senador Pompeu, disse-me, uma vez, que “para mordida de cobra sé Deus ¢ um bom curador”. E, num tom de ineontida baséfia, acrescentou ser curado de nascenga e que curava com os olhos € 0 cuspe. Informam, ainda, os sertanejos que hé varios animais que mo- vem constante perseguleao as cobras, a penta de matd-las e comé- -las. O teti ou tejuacu, por exemplo, entra em luta renhida contra as cobras venenosas, chegando ao ponto de mata-las. Quando sucede, porém, ser picado por uma delas, desprega-se da pugna e flecha-se para um pé de batatiéo, de cuja batata come um naco, voltando & liga curado e imunizado. Dai o prestigio terapéutico do batatdo ou eabeca-de-negro entre os ruricolas. Assim imunizado o tejuagu acoi- ta a cobra com a cauda e a fere a dentadas até maté-la. O gamba ou jirlta enfrenta a cobra por meio da emisséo de um jato de urina que, possuindo cheiro nauseante, constitui arma de ataque e defesa. Quando a cobra se encontra sufocada com o mau cheiro da urina, a jirita avanca e a mata. As rapésas que, de regra, andam sempre acasaladas, quando encontram uma cobra perseguem-na com o re~ curso de uma tatica original. Uma delas, 4 pouca distancia, fica & espreita, A outra, astuclosamente, pée-se a correr 4 volta do teme- roso ofidio, Quando a rapésa, que cirenla, percebe que a cobra, de cabega erguida, esta fatigada de observa-la ne corrida circular, faz qualquer sinal pata a companheira que, entio sibitamente pula sobre a cobra ¢ a mata. Entre aves ¢ passaros as cobras encontram, igualmente, inimi- gos ferrenhos e constantes. A seriema ataca frontatmente qualquer cobra que lhe aparega. © cancio é um passaro associative, Anda sempre em bando salti- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA 128 tante de arvore em drvore. Quando o bando encontra uma cobra ha um grande alarme de gritos a seu tedor. Dao-Ihe hicadas traigociras ea matam, A caud, por sua vez, ndo dd tréguas as cobras. Abrindo uma das esas, & guisa de escudo, corre aos pulos & volta da cobra, ora por um lado, ora por outro, ferindo-a mortalmente com bicadas viotentas. Acrescenta-se nue, quando canta a caud, as cobras, me- drosas, recolhem-se aos seus esconderijos. A cobra mugurana néo Possui Yeneno, mas afirma-se que briga, mata e come as venenosas. Narra o prof. Bertarelli, em suctnta descrig&o, a luta a que assistiu no Instituto Butanta entre uma mugurana e wma jararaca.

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