Professional Documents
Culture Documents
Camila Vilela de Holanda
Camila Vilela de Holanda
PUC-SP
São Paulo
2019
Camila Vilela de Holanda
São Paulo
2019
BANCA EXAMINADORA
__________________________________
__________________________________
__________________________________
Agradeço à CAPES pelo incentivo a esta Pesquisa e pela bolsa de estudos
concedida que me permitiu concluí-la.
À Celina, minha sobrinha que nasceu e viveu precocemente, com a pressa dos
que sabem que a vida é agora, embora haja tantos depois. E tantos
reencontros nesses depois. Que brincou de entrelaçar-se nos tempos de
delicadezas, rompeu com a cronologia e, sem dizer nada, me ensinou que uma
mulher não desiste nunca. Que a mulher é ânsia pela vida, pelo amor, é volição
de si, é inexplicável e é subversão da lógica. Uma mulher é, sobretudo,
coragem. Obrigada, meu Pequeno Milagre, por nos ter deixado a todos nós
íntegros e inteiros na capacidade de amar. Você nunca foi miudinha; sempre foi
do tamanho imensurável e desmedido do amor e, portanto, imensa.
AGRADECIMENTOS
À Deus, por não ter me deixado desistir e me dar certezas nos meus momentos
de dúvida.
À Professora Lilian Corrêa que, com imensa ternura e grandeza, abraçou tanto
Pesquisa quanto Pesquisadora. Que me fez acreditar em um mundo de muitos
‘sim’. Que me emocionou profundamente em cada passo de novos caminhos.
Obrigada.
Aos meus colegas da PUC-SP, uns loucos que acreditam em literatura tanto
quanto eu: vocês são enormes, são os maiores presentes que eu recebi neste
grato processo. Sem vocês, nada seria possível. Meus grandes companheiros
e incentivadores em todos os momentos desse percurso, dessa jornada que
não termina, sobretudo nas madrugadas insones de redação de trabalhos e
nas pausas de corredores e cafés. Vocês foram lindos comigo.
A Paulo Freire, com quem tenho a enorme felicidade de sorrir quando me caem
umas lágrimas bestas no rosto. Por estarmos juntos na crença de uma
educação que liberta. Ele é uma certeza. Obrigada por ainda ser luz. Obrigada
por ecoar na minha vida.
Obrigada.
Não sou a das águas vista
nem a dos homens amada;
nem a que sonhava o artista
em cujas mãos fui formada.
Talvez em pensar que existia
vá sendo eu mesmo enganada.
Quando o tempo em seu abraço
quebra meu corpo, e tem pena,
quanto mais me despedaço
mais fico inteira e serena.
Por meu dom divino faço
tudo a que Deus me condena.
Da virtude de estar quieta
componho meu movimento.
Por indireta e direta,
perturbo estrelas e vento.
Sou a passagem da seta
e a seta, – em cada momento.
Não digas aos que encontrares
que fui conhecida tua.
Quando houve nos largos mares
desenho certo de rua?
E de teres visto luares,
que ousarás contar da lua?
(MEIRELES, Cecília. Canção 2).
HOLANDA, Camila Vilela. Desmundo, de Ana Miranda: A (des)leitura de um
Brasil pela voz ficcional da mulher. Dissertação de Mestrado. Programa de
Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2019, 128p.
RESUMO
ABSTRACT
The present research aims to analyze the Brazilian writer Ana Miranda’s novel
Desmundo (1996), by the means of the female characters’ voices, especially
the protagonist’s one – a young woman called Oribela. Written in the form of a
diary, the literary work embraces the narrative of a girl who lands in Brazil in
1555, coming from Portugal in a ship, due to the order of the Queen. Oribela
faces the paradoxes between the reality of having been educated in a
Portuguese convent and the savagery of a country with no identity, morality nor
even been a nation. This research proposes to search the ways, on giving voice
to a female character – who has traditionally been excluded from the official
accounts of our History – Ana Miranda is able to develop a critical reading of the
contemporary reality under the lens of the Historical Novel as theoritized by
György Lukács, the Linda Hutcheon’s Historiographic Metafiction and Mary Del
Priore historical role of women in colonial Brazil.
INTRODUÇÃO.................................................................................................. 13
Introdução
INTRODUÇÃO
Capítulo I
CAPÍTULO I
das obras literárias. Este ser subjetivo que narra – sob a liberdade ficcional do
poeta – as convulsões sociais de sua época, sujeito que não se encaixa no
mundo à sua volta, que se incomoda, que não cabe nos espaços previamente
delimitados de pertencimento, que não consegue ser parte inteira de um todo,
que se inquieta igualmente com movimento e inércia, que ignora o modus
operandi de uma sociedade, que não se encaixa, que está constantemente em
crise e que lança sobre o cosmos uma visão particular dos fatos históricos que
vivencia,
Lukács, na esteira de Hegel, entende que o romance é a epopeia da
burguesia, desprovida, porém, da antiga grandeza, pois agora o
poeta não mais pode ser o cantor de uma comunidade, já que a
sociedade de que faz parte está dividida em classes que se
antagonizam a partir de interesses divergentes. (…) Do romance está
banido o mito e, por extensão, o maravilhoso. A matéria narrada é
restrita ao universo da experiência humana, e isto sem dúvida
facilitou o aproveitamento da matéria de extração histórica (BASTOS,
2003, p.14).
Para ele, somos o resultado direto dos processos históricos a que fomos
submetidos, os quais têm papel fundamental no pensamento do indivíduo. E,
se é o sujeito do romance a representação literária e ficcional do homem
comum de seu tempo, com este sujeito ficcional não poderia ser diferente. O
crítico acrescenta:
Nessa representação magnificamente realista do presente incluem-se
acontecimentos significativos da época que, no enredo, estão ligados
aos destinos dos homens figurados. (…) Fielding até possui certa
consciência dessa práxis, desse processo de concretização do
romance em direção à apreensão da particularidade dos homens e
dos eventos figurados. Ele chama a si mesmo, como escritor, de
historiador da sociedade burguesa (LUKÁCS, 2011, p.34-35).
ódio estranhável que têm uns aos outros (NÓBREGA apud LEITE,
1955, p.48).
Oribela, todavia, ao narrar o que vê, bem como suas percepções dos
conflitos entre portugueses e índios, não se coloca a favor nem contra
ninguém; se preocupa em apenas relatar a realidade à sua volta, no que se
pode concluir, com a leitura dos excertos acima, uma corroboração com a
teoria de Lukács ao mostrar uma heroína de caráter mediano, retrato ficcional
da mulher comum de seu tempo, que tinha quase nenhuma voz ou poder para
intervir em seu meio, além de pouca liberdade ou acesso ao conhecimento
sistematizado para opinar. O silêncio era uma roupagem constantemente
exigida pela organização social, e a ousadia à mínima demonstração de
sabedoria era freqüentemente paga com castigos impostos pela mesma
sociedade.
Esse emudecimento externo, entretanto, não coibia a nossa protagonista
de um aguçado senso de observação, que era, quase sempre, verbalizado
como um profundo fluxo de consciência nas páginas de seu diário. Na urgência
de relatar o novo mundo do qual agora tomara parte — fosse para absorvê-lo,
fosse pela necessidade humana da palavra — Oribela mergulhava em si para
experimentar tudo que estava fora e que lhe era, então, inédito.
Nas primeiras páginas do romance, por exemplo, é possível perceber
como Ana Miranda faz uso de longas orações, quase sem respiros, pausas ou
pontuações ortográficas, para demonstrar a necessidade latente e imediata do
relato e o estado de ânimos no qual se encontrava Oribela. E, certamente, para
aumentar ainda mais no leitor a sensação de fluxo de consciência.
Usado como recurso literário por diversos autores — James Joyce,
Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Virginia Woolf e Simone de Beauvoir,
para citar alguns — quando quiseram expor ao leitor a melancolia ou a
imprescindibilidade da fala sem interrupções, o fluxo de consciência é,
reconhecidamente, um método ficcional:
Walter Scott, nunca mais atingida, evidencia pela forma como ele
apresenta as qualidades individuais de suas personagens históricas
centrais que estas realmente reúnem em si os lados mais marcantes,
tanto positivos quanto negativos, de determinado movimento
(LUKÁCS, 2011, p.56-57).
marido, que a ajudou no parto do único filho e que lhe dava ânimo diário e
coragem para atribuir um ângulo mais positivo para a virada de sua vida –, a
narradora passa a perceber a nudez como uma consequência natural do calor
no hemisfério sul, desatrelado inteiramente da culpa cristã imposta ao corpo
feminino:
Aprendi a me desnudar, no quarto, após o banho, que havia um
frescor sobre a pele e se entranhando nela, uma luva de vento, um
véu de seda fria, que a roupagem abafava e incendiava. E ria ela. E
ria. Bom era viver numa casa sem homem a ordenar. (…) Eu pintava
o rosto de urucum, comia do prato das naturais e me desnudava nos
dias quentes, deixava os chicos chuparem meus peitos, dançava, de
modo que dona Branca veio baixar umas regras, antes que virasse eu
uma bárbara da selva e me metesse a comer de carne humana
(MIRANDA, 1996, p.126-127).
perder-se em termos críticos por oferecer somente uma voz, a mesma de quem
sempre contou oficialmente a única versão dos fatos e que acaba por excluir
todos os outros personagens que também a viveram e foram dela parte.
Pois, se somos mesmo – em concordância com a estética hegeliana-
marxista adotada por György Lukács e os apontamentos da pesquisa de Mary
Del Priore – o resultado direto dos processos históricos aos quais fomos
submetidos e aos quais sobrevivemos, pode-se inferir então que, quinhentos
anos depois, a narrativa ficcional de Oribela (que reconstruiu historicamente um
Desmundo chamado Brasil) ainda espelha a realidade de muitas brasileiras
contemporâneas em suas sagas reais e lutas diárias por um lugar ao sol.
Mais que isso, a autora usa a fala de Oribela para implicar um diálogo
silencioso com os poderes patriarcais e religiosos vigentes em sua época.
Miranda dá a voz à Oribela mas, por meio da protagonista, se ouvem também
os discursos de opressores e oprimidos que reconstroem – ficcionalmente – a
história brasileira. A estudiosa aponta ainda outros fatores que vão abrindo
espaço para novas propostas e teorias crítico-literárias do conceito de romance
histórico contemporâneo, formuladas e repensadas a partir do romance
histórico de Lukács.
Alguns dos traços ressaltados pela pesquisadora são: a subordinação da
reprodução mimética do período histórico à apresentação de idéias filosóficas,
a impossibilidade de conhecer tanto a verdade histórica quanto a realidade, a
distorção consciente da história - por omissões, anacronismos ou exageros –, a
ficcionalização de personagens históricos conhecidos, a presença da
metaficção ou de comentários do narrador, o uso da intertextualidade, a
variedade – dos temas abordados, das personagens e das formas –, e que a
obra traga uma ação que aconteceu numa época anterior ao seu autor, sendo
que a distância cronológica é dos itens que merece considerável atenção,
42
Capítulo II
CAPÍTULO II
E não foi isso que fez Ana Miranda em sua obra? Ainda que aclare que o
seu compromisso é, sobretudo, com o discurso poético, a autora cria seu
enredo baseada em extensa pesquisa histórica – que pode ser encontrada no
próprio livro – que, literariamente, se entrelaça ao discurso de Del Priore acima
transposto. Oribela, expatriada de sua terra pelo poder político, desembarcou
no Brasil para se casar – servindo aos sacramentos e dogmas católicos –, parir
48
Em seu propósito, o bispo nos abençoou com as mãos e nos fez dizer
promessa de fidelidade, salvou-nos com uma cruz, com mostras e
sinais de fé. Mandou cada mulher dar a mão a seu homem. Os
esposos têm poder sobre as esposas e suas filhas, mas que não
tenham para si que lhes pertençam as filhas como mulheres, nem as
mulheres dos vizinhos como suas e nunca usar delas, a terem
respeito às filhas das vizinhas e às filhas das filhas, que as chamem
todas de filhas e nessa conta as tenham e não pecar de luxúria, nem
os pecados conhecidos. Ali todos eram filhos de Deus, fiéis cordeiros
do papa debaixo de cujos pés estavam submetidas todas as coroas
que governavam a terra, acima dele só Deus, que lhe dera sagrado
cetro de papismo e os reis infiéis seriam esmagados nas trilhas de
seu calcanhar, que os vassalos não ousassem boquejar nem
alevantar as vozes para nenhum padre de Deus, as insígnias em
suas mãos significavam justiça e misericórdia, o que devia reinar
naquele canto. Que ajuntassem os da mão direita com as da mão
esquerda, fossem em suas vidas, jaezados de caridade, pasmados
da majestade do matrimônio divino. A fazer filhos abençoados de
alvura na pele (MIRANDA, 1996, p. 73).
Em seu decorrer, o romance nos expõe a culpa das brancas sobre seus
corpos em oposição às índias, que lidavam com a nudez de outra maneira.
Entretanto, como toda nudez tende a ser castigada, essas mesmas índias eram
vítimas dos frequentes abusos sexuais dos homens brancos que se serviam
delas e dos que, da mesma tribo, as vendiam como escravas. Em um primeiro
50
Bugres da terra vendiam suas fêmeas nuas, mas assim que veio um
padre da Companhia na rua as esconderam, não dos outros padres.
Por meus brios e horrores, não despreguei os olhares das naturais,
sem defeitos de natureza que lhes pudessem pôr e os cabelos da
cabeça como se forrados de martas, não pude deixar de levar o olhar
a suas vergonhas em cima, como embaixo, sabendo ser assim
também eu, era como fora eu a desnudada, a ver em um espelho.
Nunca fora dito haver mulheres assim, nem pudera inventar em
minhas ignorâncias. Que nunca houvera mulher nenhuma nesta terra.
Quem então há de parir naquelas terras? Os machos, por ordem de
Deus. (…) E se as havia, mulheres naturais, até eram graciosas em
seus despudores, florescidas, feito aves, de pés embicados para
dentro como duas naus a abalroar e fedendo igualmente aos machos,
por um tipo de óleo que se esfregavam, semelhando a podre, a
estrume, a gruta e de quem diziam dar uma febre muito maligna se as
fodessem nos dias de lua, quando lhes havia sob os cabelos uns
cornos pequenos. E vi um extravagante dentre eles, a se encostar
numa libidinosa que lhe fez inchar a parte, tanto que parecia um bruto
(MIRANDA, 1996, p. 39).
cela, fosse a uma cova para ser enterrada viva não estaria eu tão
cara de coruja, com nojo muito verdadeiro e suspiros verdadeiros.
(…) Pensava eu estar indo prisioneira por cuspir no rosto de um
principal, era de chorar, mas antes queria ser presa e açoitada do que
casar com aquele (MIRANDA, 1996, p. 55-58).
que com as índias essa tensão poderia ser iminente, já que os índios se
rebelaram antes pela condição de libertos embora, evidentemente, muitos
tenham sido capturados e escravizados à semelhança dos negros.
A leitura do relato acima citado de Oribela suscita, portanto, o
questionamento de como podem ter se dado os primeiros contatos entre as
mulheres brancas e as índias, já que pelos livros de História oficiais essas
relações são estabelecidas como se só existisse o gênero masculino: o branco
opressor, o negro escravizado e o índio injustiçado. As relações femininas
expostas pelos relatos oficiais eram as estabelecidas entre as brancas e as
negras e, ainda assim, superficialmente, posto que as citações se referem
basicamente a suas condições de senhoras e mucamas, não havendo,
portanto, o aprofundamento necessário para um retrato histórico acurado.
Apontamos também que as índias – mulheres – foram igualmente excluídas
desses relatos oficiais, aumentando, então, a nossa ignorância quanto à vida
feminina na Colônia.
É importante lembrar que, em Hutcheon, a metaficção historiográfica
enquanto procedimento estabelece uma ordem totalizante para, em seguida,
contestá-la com sua provisoriedade, intertextualidade e fragmentação radicais.
Isto posto, não é nada absurdo afirmar que esse método de leitura pode ser
usado para ampliar as possibilidades de entendimento de Desmundo.
Ao primeiro contato, parece um romance de difícil compreensão pela
escolha da linguagem, que traz os usos arcaicos da língua portuguesa; depois,
a pluralidade de vozes transcritas em diário parecem questionar a própria
forma. O uso constante de intertextualidades, de ideias esquecidas
propositadamente nas entrelinhas e as referências históricas requerem, sem
dúvida, um olhar mais atento de quem o lê. Quando compreendido, ao menos
parcialmente, a autorreflexão é inevitável.
A esse respeito, o poeta e crítico literário Ezra Pound (2006) fez uma
interessante análise: para ele, o autor dispõe de três recursos para
potencializar a linguagem: a fanopeia, a melopeia e a logopeia. A primeira
refere-se à projeção do objeto – fixo ou em movimento – na imaginação visual.
Na melopeia, há a produção de correlações emocionais pelo som e pelo ritmo
da fala (bastante observada, por exemplo, na poesia). E, por fim, o que aqui
nos interessa, a logopeia, que é compreendida como a produção dos efeitos
57
que seu rosto gelado asseverou. (…) Tinha ela muitos olhos, de mãe,
de abadessa, de falcão, os olhos de inquirir o mais fundo, em seu
calado modo via por dentro das almas, como fosse uma sibila e devia
de saber ver nas panelas de água, nas pedras de cristal. Sabia
feitiços? Que lhe fora outorgado um poder do céu e da terra e podia
olhar para os raios do sol sem cegar suas vistas, sua alma se
desfazia do corpo e avoava pelos céus até a cidade, cada noite, a
visitar a irmã, ou até o reino, onde bailava nas festas ou via do lado
da rainha os autos e sabia do que se passava nas câmaras do rei,
onde se decidiam as guerras e as moedas, os destinos das armadas
e tudo o mais. Sabia ela fazer partos, rezas, sabia cuidar das
deleitações do corpo, sabia dizer quando era anjo que se tornou
carne, ou diabo em corpo de mulher, que a ouvisse eu, era de bom
entendimento, bom conhecimento do evangelho, sabia prosar com as
cegonhas e com as vacas tinha parte, tirar as quenturas do estômago
de mulher e tirar de mulher a sensualidade (MIRANDA, 1996, p.97-
99).
Então podemos ler que a narrativa é tão importante que, ainda que se
restrinja ao olhar do narrador, condiciona à atribuição de sentido. Mais do que
isso, ela é capaz de corroer e desestruturar noções por nós apreendidas como
“verdades absolutas”. É esta narrativa, pois, que confere o caráter contestador
à metaficção de Linda Hutcheon. Ainda que sejam distintos os meios de análise
e observação entre esta e György Lukács, encontramos aqui mais um ponto de
convergência teórica: o poder inquestionável do narrador na inferência de
verossimilhança ao romance. Mesmo que aí se levantem questionamentos
quanto à subjetividade do narrador, aquele que lê um romance sabe tratar-se
de um discurso literário e, portanto, a ideologia – recusada por Lukács – é
irrelevante, visto ser o sujeito do romance, por excelência, um ser subjetivo,
intrinsecamente ligado às crises possíveis da natureza humana. E sob sua
ótica, ele irá narrá-la.
Em nossa protagonista, pode-se observar a crise do sujeito expatriado, o
medo do abandono do marido em oposição ao desejo veemente de livrar-se
dele (sendo o tipo comum de sua época, a moça reconhece a necessidade da
vida masculina para validar a sua no ambiente em que vive), a contradição
entre o que foi criada para ser e o que era de verdade em sua natureza íntima,
a dificuldade intangível de submeter-se e encaixar-se a uma vida que lhe fora
designada (é a excêntrica periférica da História personificada literariamente,
afinal), o não-pertencimento ao Brasil versus o não mais caber em Portugal
(modificada irrevogavelmente que fora pelo desmundo), a cristã que foge ao
dogma dos sacramentos eclesiásticos por si própria juramentados, o
reconhecimento de sua “fragilidade mulheril” e as constantes desobediências
que acarretavam castigos, a vulnerabilidade implícita e a rebeldia.
63
criada sob preceitos cristãos; a mãe que tem uma filha com o filho; a
homossexual forçada à prostituição pelo marido; e a mulher que foge do
convento para se casar e acaba por ser assassinada.
Nenhuma mulher, nesta obra, apresenta o comportamento desejável
socialmente para os paradigmas do Brasil Colônia. Segundo Del Priore (2009,
p.24), estes padrões foram estabelecidos por meio das decisões tomadas pela
Igreja, formando, assim, um discurso normatizador quanto às funções do corpo,
dos gestos e dos hábitos. As prerrogativas desse discurso serviriam, pois,
como modelos de condutas individuais, sendo os comportamentos femininos
ligados a tabus e autoconstrangimentos jamais experimentados nem mesmo na
Idade Média. Esse adestramento feminino era parte do plano civilizatório e foi
feito a serviço da colonização portuguesa, que encontrou outro pilar no
discurso normativo médico, este reforçando o dogmatismo católico ao reafirmar
que a função do corpo da mulher era a procriação; a todo o resto, a danação
da luxúria e do pecado.
Retomando o romance, reiteramos, nenhuma das personagens seguiu
os conselhos de Dona Brites de Albuquerque ao descrever o bom
comportamento, tanto desejável quanto cabível à boa esposa:
Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem
deve jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais deixar os
cabelos soltos, mas atados, seja em turvante, seja trançado, não
morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é
desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as
bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar os
ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação,
nem punho cerrado, que ameaça. Tampouco a mão torcer, que é
despeito. Nem pá pá pá nem lati lará. Nem lengalengas nem
conversa com vizinho, seja ele quem for, ou cigano, nem jogos nem
danças de rua, nem olhar cão preto que pode ser o chifrudo, Deus te
chame lá que ninguém te chama cá, temperar legume com sal, não
apagar luz que alumia morto nem deitar as águas fora que é de
judaísmo, não pedir favores nem pôr os olhos no vizinho nem o corpo
na cama de outro, tem o esposo direito de acusar, para provar
inocência a esposa deve lavrar a mão num ferro de arado em brasa.
Açoite e língua furada àquela que arrenegar. Os esposos devem dar
panos às mulheres, mas só nas festas reais, se lhes oferecer o
mercador um bom preço, que eles não façam obra alguma desde o
sol posto até o sol saído e dia de domingo e a viver, segundo o
capricho dos homens. Aqui do rei. E disse eu. Ora, hei, hei, não é
melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou,
olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira
nem folha de figueira (MIRANDA, 1996, p.67).
65
Capítulo III
CAPÍTULO III
1
Reiterando assim Mary Del Priore, para quem as mulheres se uniam e abafavam seus
conflitos quando confrontadas com questões ligadas majoritariamente à elas - tais quais a
maternidade ou abusos variados - e na ausência equacional do homem.
70
2
Para ler relato completo, ir à página 173 de Desmundo (1996).
72
Ah, Deus, que esculpiste meu destino numa tora em brasa, que mais
me pode esperar por ser eu tão má e desconcertadora das vidas
alheias? Não pude eu sair do leito sentindo as penas do meu pecado
em meu ventre, num tipo de mal lunático, que vinha quando saía a
lua, a ver eu candeinhas diante dos olhos, parecendo enferma, a só
ter no escuro de dentro de mim a visão do Ximeno e o desejo dele
(…) um grande pecado, tão mau que devia eu de dar suplício ao
corpo, minhas unhas afiei na parede e raspei a minha pele dela
tirando sangue numas trilhas infernais, sem lágrimas ou gemidos, a
pagar com minha dor a dele (…) ilusão da língua, toques de mão,
união de corações, a nos saírem pela boca resplendores de fogo e
vivia eu disso, sacramentada ao Ximeno (MIRANDA, 1996, p. 187).
desgraça e até mesmo cogita o suicídio motivada pelos infortúnios de uma vida
pouco venturosa, é na memória do Mouro que Oribela encontra abrigo. Sua
narrativa retoma a intertextualidade com os contos-de-fadas, a alegria do
sonhar, usa as palavras sol e fogo para simbolizar a esperança presente nas
últimas páginas do romance e as atribui a pessoa de Ximeno; quase como uma
possibilidade de final feliz idêntica a de Princesas em histórias infantis, que
vencem os desatinos dos vilões e são, finalmente, recompensadas:
(…) Cha cha cha, disse a Velha, depressa, lavar na água salgada as
panelas, tirar os panos do secador, lançar a ourina pelo bordo,
trançar o cabelo, o que fosse necessário (…) Que o Diabo estava
solto, o padre girava a chave, batia palmas, logo, já já, para dentro,
descansai pois descansarão. Fizemos tudo trigosas, fomos avante,
tornamos atrás, fugindo de Satanás, correndo da língua da Parva que
sempre nos avistava e gritava. Almas enganadas, mancebas de
danados apetites, putinhas contritas, lá vai a macha, lá vai a velha
parida, lá vai a freira fodida, lá vai a virgem destapada, vão açoitar
com vosso amor os cornos desse país e mais coisas de tal tormento,
aquela entre os lobos. Blasfema das mulheres, dos padres, da
Virgem Maria e de Deus. E gritou o padre. Vade retro! Arrenego!
Deus perdoe tua boca esmerdada e te meta arreios (MIRANDA,
1996, p. 14).
3
Narra Oribela, à página 51 de Desmundo (1996): “(…) Havia umas vozes dentro de mim, que
eu não queria ouvir”.
76
(…) Tinham as vacas os mais tristes olhares, eram tão boas que se
contentavam com ervas naturais, até umas ramas espinhentas e das
pessoas se afeiçoavam, feito cães, mesmo dos que lhes cortavam os
chifres para fazer botões e se deixavam levar. Eram aquelas vacas e
touros pacífico gado do Cabo. As fêmeas vacas davam bezerros
todos os anos, desde novilhas e mesmo as velhas seguiam parindo
até a morte, umas pretas e lisas que pareciam vidradas no resplendor
e brandura e outras de muita virtude, que eram leves e duras, vacas
como que umas órfãs da rainha, oh que trabalhos tinham aqui por
nossos pecados, obrigadas a mísera vida cumprindo uma sentença,
vacas do céu, desconfiadas, cada uma a penar por si, sem tempo,
cha cha cha, samicas doudejais vós? cha cha cha demoninhadas, de
olhos tão marejados, senhoras, que cada momento de hora são mil
anos de tristura (MIRANDA, 1996, p.101).
(…) Mas nem dobrou minha alma em joelhos, nem desvendou meu
coração em seus traços. Guarda tuas misérias como secretas, do que
te não arrependerás. Mais língua, mais dor. Tudo vem em seu tempo
e os nabos pelo Advento. Nem és dom Diniz, que fez tudo o quanto
quis. E me fez beijar uma cruz. (…) Fui calada. Ruim do calar é que
mais se pensa, mais se alembra e mais se ouve o outro e não a si
(MIRANDA, 1996, p.59-85).
vir explícita ou oculta por elementos que deixam pistas e que instigam o leitor a
descobri-la.
O diário de Oribela aparece desse segundo modo; porém, pode-se
concluir que, pela data histórica do naufrágio da nau que levava o Bispo
Sardinha de volta ao reino – e, dentro dela, tanto a Velha degredada quanto
Francisco de Albuquerque, marido e algoz de nossa heroína –, sabe-se que o
romance tem uma média de duração de um ano: Oribela desembarca em 1555,
e a nau fracassa no intento de retorno à Metrópole em 16 de junho de 1556,
nos mares do hoje estado de Alagoas. Vale lembrar que tanto o Bispo Dom
Pedro Fernandes de Sardinha quanto os outros 90 viajantes embarcados na
nau foram devorados pelos índios Caeté, no que, posteriormente, se tornou o
Manifesto Antropofágico.
Dividido em 10 capítulos narrados em primeira pessoa (A Chegada - 21
relatos, A Terra - 18 relatos, O Casamento - 24 relatos, O Fogo - 25 relatos, A
Fuga - 7 relatos, O Desmundo - 20 relatos, A Guerra - 17 relatos, O Mouro - 27
relatos, O Filho - 15 relatos e O Fim - 5 relatos) e com um total de 213 páginas,
o diário traz narrativas que se supõem tão cronológicas quanto
complementares. O título de cada um desses capítulos já dá uma idéia – ou um
brevíssimo resumo – do que nele será exposto, além de terem ilustração da
mesma autora da obra, Ana Miranda. Os desenhos são híbridos de seres
mitológicos com as transformações pelas quais passa Oribela.
Primeiro, cruzando os mares, chega sereia. Sedutora, com sua pele
branca que contrastava na remota e tupiniquim paisagem, dos homens. Em A
Fuga, a sereia ganha asas para voar ao longe. Já em A Guerra, percebe-se um
cruzamento entre uma vaca e um bode, a metáfora da mulher que tem a
demonização feminina preconizada pela Igreja; não por acaso, é aqui que
Oribela tem a sua fuga mais significativa. Em O Mouro, um ser que igualmente
atravessou os mares e cruzou os céus do mundo com sua cauda de sereia,
sexual, sedutor e alado. As asas da liberdade do homem, o amor que libertou
Oribela. Em O Filho, vemos uma sereia com chifres de bode e tetas de vaca,
ambas metáforas poderosas ao longo do romance e, muito provavelmente,
simbolizando o adultério e a paternidade da criança4. Ao fim, torna-se a árvore
4
Como acusara (previra?) Dona Branca de Albuquerque na página 198 de Desmundo (1996): (…) E que
o filho que trazia eu era um bastardo chifrudo que ia nascer com os cabelos ruços.
80
O diário íntimo, que parece tão livre de forma, tão dócil aos
movimentos da vida e capaz de todas as liberdades já que
pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si mesmo,
acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe convém, na
ordem e na desordem que se quiser, é submetido a urna cláusula
aparentemente leve, mas perigosa: deve respeitar o calendário. Esse
é o pacto que ele assina. (…) Escrever um diário íntimo é colocar-se
momentaneamente sob a proteção dos dias comuns, colocar a escrita
sob essa proteção, e é também proteger-se da escrita, submetendo-a
à regularidade feliz que nos comprometemos a não ameaçar. O que
se escreve se enraíza então, quer se queira, quer não, no cotidiano e
na perspectiva que o cotidiano delimita (BLANCHOT, 2005, p.270).
Madre em seus aposentos cercada por suas nove criadas – e foi pai de um
filho seu: José, conhecido como ‘Menino de Palhav ’ e, mais tarde, inquisidor
geral. As indiscrições do rei escandalizavam igualmente sua corte e seus
súditos, mas jamais fora repreendido por um ou por outro. Madre Paula morreu
trinta e cinco anos após o nobre - aos sessenta e sete anos de idade –, vivendo
durante todos este tempo no exílio do Convento das Odivelas e recebendo
herança do rei, porém mantendo relações com os fidalgos que ainda se
aproximavam dela.
É sabido que nem sempre os motivos que faziam muitas mulheres se
enclausurarem em conventos e demais estâncias religiosas se tratavam de um
chamamento ou aptidão para exercer e perpetuar a palavra de Deus na terra.
Às vezes era a única maneira de sobreviver à imposição da família, à pobreza
– pois, à época, só os filhos homens tinham direito à herança –, à solidão de
quem não se casou e constituiu família e, em aspecto menos visado
atualmente, a busca por liberdade. Sim, a antítese é verdadeira: inúmeras
mulheres portuguesas – sobretudo a partir de 1700 – buscaram na clausura
religiosa a liberdade que a vida lhes negou. Mais ainda porque, à época, os
conventos gozavam da falta de observância moral dos dogmas católicos e
estavam à mercê das vontades e libertinagem sexuais da nobreza, ainda mais
em se tratando do já citado Dom João V.
Os conventos eram tão liberados na época desse reinado (tratamos aqui
do século XVIII), que a fuga da fidalga D. Mariana Josefa, filha dos condes de
Tarouca, virou notória: em 1728 a moça escapou da severa vigilância dos pais
e, protegida pelo conde de Alvor e pelo próprio rei, fugiu no meio da noite para
o mosteiro das carmelitas calçadas de Carnide.
Trazendo a voz ficcional feminina ao retrato histórico do dogmatismo
religioso que se estendeu por anos em Portugal e eclodiu no escândalo de
freiras grávidas no século XVII, Ana Miranda assim descreve a vida prévia da
Velha, personagem que habitava um convento, era tida como sábia por Oribela
e que veio ao Brasil para pagar por seus pecados ao acompanhar as
mancebas na nau e prepará-las para a vida na Colônia:
Era esposa de Deus. (…) Mas não no convento. Ali era o do melhor.
(…) Pois vinham homens provar das mesas de doces, maçapão,
folhado de amêndoas e de sais (…) Enviavam às irmãs, em troca de
favores do corpo e da alma, que se deleitavam elas ali em liberdades
85
Não à toa, é justamente neste mesmo século XVII, anterior à fuga das
fidalgas, que se observa um enorme número de freiras grávidas, tanto em
Portugal quanto no resto da Europa, como exposto acima. Diziam elas,
comumente, estarem grávidas de Deus; a Inquisição, entretanto, ao tomar
conhecimento do fato, não perdoava e as queimava na fogueira, seguindo a
sua prática de perseguição. E assim, novamente, observamos a narrativa –
permeada de culpa no concernente ao próprio corpo e resiliência completa
diante dos castigos – de nossa personagem ao descobrir-se ela mesma
grávida:
(…) Com várias astúcias conseguira a Velha iludir a barriga, mas o
suposto crescera tanto que viera a abadessa num exame rigoroso,
descobrindo ser a verdade o que de mal se pensava. Seria filho de
Deus? Negara a Velha, por honesta, que pudera inventar ser como
Maria, mãe de Deus, mas o pecado seria maior. A sentença dissera
que, por mostrar arrependimento de suas culpas e não constar em o
sobredito pecado coisa que ajudasse o demônio, nem que com ele
tivesse pacto, tácito ou expresso, a condenaram à privação de cargo,
de voz ativa ou passiva, para que perpetuamente não pudesse mais
servir à religião. Que lhe tirassem o seu véu preto e que fosse ela
encerrada em cárcere num convento dos arrabaldes, para cumprir
penitências, jejuns e prostrações. Ficara sem permissão de comungar
e que não fosse àgrade ou à portaria nem escrevesse cartas nem
mandasse recados nem os recebesse e que os sobejos de sua
comida se não pudessem misturar com os das outras freiras. Dissera
eu. Mas que severidade, se outras irmãs pariram e vivem em tantos
conventos? E dissera ela. Foi a mulher do pai que assim ordenou e
era aquela mulher uma sombra poderosa. A Velha cumpria a
penitência com humildade quando o que fora causa da maternidade,
pai, dela se compadecera e a livrara das penas, desde que fosse
embora do reino. (…) Mesmo em tanta idade, de quase quarenta
anos, velha nos confins da vida, teria que enfrentar uma travessia,
desde que não morresse. Mereço eu, dissera. A honra a Deus devida,
86
dera ela às coisas terrais e mais a seu corpo, que menos merecia,
com pouca reverência estava nos santos lugares e tantas vezes
tomara o nome em vão, despendera dias em prazeres, o corpo obrara
a fazer o que se não defende (MIRANDA, 1996, p.88-89).
se relacionou com homens e que veio ao Brasil degredada por ter engravidado
de um nobre. Ela pode ser considerada, portanto, como mais um índice literário
da mulher oprimida pelos poderes patriarcais de seu tempo por ter subvertido
uma ordem e rompido com o que era esperado.
Outro papel que assume a personagem é o de retratar o que acontecia a
mulheres consideradas ‘sábias' para além dos padrões desejáveis pelo
universo eclesiástico, ainda que ela própria fosse parte integrante desse
cosmos religioso. Há sempre uma espécie de crise permeando a Velha;
também ela não cabe em lugar algum, também ela é um sujeito expatriado que
está no limiar entre o que é de verdade e aquilo que foi educada para ser.
Subversiva por excelência, encontramos nela a freira que engravida –
não fica claro se as relações sexuais com o nobre (pai biológico da criança)
foram consensuais ou impostas – e é também a religiosa que, por ser sábia,
necessita ser exorcizada. Mulher inteligente não podia ser coisa de Deus. E, só
aí, transcendeu os dogmas desejáveis a uma cristã, mesmo sendo ela mesma
parte do sistema clerical.
Sobretudo, também nela se encontra a convergência teórica entre o que
antes parecia díspar: é o tipo de Lukács e a periférica de Hutcheon em uma
trajetória – guardadas as devidas particularidades – como a de Oribela. Não
está exposto, reiteramos, se a relação estabelecida com o nobre foi forçosa ou
voluntária, porém é evidente que ela foi enviada ao Brasil porque não tinha
como – por sua posição socialmente inferior – lutar contra a nobreza e
permanecer em seu país a contragosto do poder do Estado. Uma freira,
grávida. Nada menos que de um nobre. Toda a construção da personagem de
Ana Miranda é a contradição em si. Toda ela é a danação do pecado e da
sabedoria em uma mulher, a possuída pela malignidade como exposto por Del
Priore anteriormente, embora fosse também um eco da perpetuação da voz
divina. Todo paradoxo de pertencer a um sistema, ser dele sumariamente
excluída e viver, ainda, sob seu dogma: o castigo por saber, e que fosse
retirado à força – ou por coerção espiritual – essa sabedoria.
88
5
Entretanto, para clareza completa do leitor acerca da personagem e das circunstâncias às
quais estava submetida, recomendamos a leitura íntegra dos relatos no Diário de Oribela às
páginas 110, 132 e 133.
89
mal e ficando ao fim deitado numa cama feito morto, espumara tanto
na boca que dali saíra o espírito maligno da Velha, ficando esta boa
de um dia ao outro. (…) E que mais lhe queriam tapar a boca por
defender que amancebadas pudessem entrar na igreja e ver missa,
mesmo as nuas. E disse ela. Eu ladrarei quanto puder. Escrevia
cartas e mandava ao rei, que jamais respondera. Tornasse à cidade o
6
padre Gago , teria ela suas penas suspensas (MIRANDA, 1996,
p.110-133).
6
O padre Manoel da Nóbrega era conhecido como ‘o Gago’ nos hospitais onde instaurou a
prática de exorcismo. Chegou ao Brasil em 29 de março de 1549 - após a recusa de Simão
Rodrigues, que preferiu ficar em Portugal - depois de quase dois meses de viagem em uma
comitiva de seis navios e mil pessoas. Ele nunca mais retornou à Europa.
90
E então Oribela lhe contou. Não podia ela com a dor da amiga, embora
pudesse suportar o castigo ao amante talvez por que se o culpasse pelo
adultério e pela luxúria. A mulher solidária a outra mulher nos desterros de um
Brasil. A mulher amparo da outra nas solidões e silêncios impostos pelos
homens. A mulher que sacrifica o ideal de amor pelo leal da amizade. A mulher
que se vê liberta na ausência masculina e na presença da confidente, ideia
continuamente exposta na obra.
E a Velha, degredada para não ser morta, morre na nau naufragada do
Bispo Sardinha que retornava ao reino. Sua morte, por si só, já deixa claro
mais um índice literário de oposição: embarca na nau para sobreviver e se
afoga na ânsia por libertar-se, posto que agora julgara ter-se já expiado da
indiscrição de seu pecado. Todavia, a sua culpa maior era ser mulher; por isso,
o castigo perpétuo e sem salvação.
7
Para o pensador grego Hipócrates, o sete era um número virtuoso, que mantém a vida em
movimento e influencia os anjos.
93
Os sete nomes das sete moças (dona Isobel, dona Pollonia, dona
Urraca, as irmãs dona Tareja e dona Bernardinha, além, é claro, de Oribela)
vão sendo apresentados ao longo do romance, mas é em O fogo que
conhecemos seus passados, nos tornamos mais íntimos de algumas delas e
das suas respectivas representações literárias. Indício interessante e que
reforça nossa ideia da alteridade entre Oribela e a Parva (exposta no item 3.1.
deste capítulo), é que nossa protagonista não revela o nome da sétima
manceba ao longo de todo o seu diário: sabemos que dona Giralda (também
8
Na mitologia grega, Cassandra e seu irmão Heleno tiveram seus ouvidos lambidos por
serpentes quando crianças enquanto brincavam no Templo de Apolo e, por causa disso,
podiam escutar as vozes dos deuses. Já crescida, Apolo apaixonou-se por ela e lhe ensinou os
dons da profecia. Cassandra, porém, se recusou a dormir com ele. Sua negação em ser
amante de Apolo resultou em vingança e ele a amaldiçoou, fazendo com que ninguém
acreditasse nas previsões por ela proferidas. Ela prevê a destruição de Tróia pela guerra e
avisa a família e a população, mas é considerada louca por todos. Aqui, lê-se também uma
intertextualidade com Ilíada, de Homero e nota-se mais um índice simbólico da serpente do
conhecimento. Para além, o significado bíblico do nome é da mulher que auxilia, protege e
brilha sobre os homens.
95
notícias à Oribela dos destinos das mancebas e de como vivia cada uma
depois do casamento: Pollonia, que agora estava grávida, aceitara sua sina de
de bom grado e estivera sempre a juntar cabedais, ou seja, a acumular
riquezas e bens materiais.
A ambição da personagem pode ser justificada pelo medo da escassez –
que estivera presente durante toda a sua vida no reino – ou tenha sido usada
como característica por Ana Miranda como um signo de contraponto e
comparação para aumentar, na visão do leitor, a desgraça das outras moças.
Ela fora recompensada pelos homens do poder pelo seu silêncio. Também
nela, consta a possibilidade do paradoxo entre ser criada sob o preceito cristão
da humildade e agora, fora do mosteiro e em mundo aberto, personificar o
pecado capital da avareza9.
Sabemos que há vezes em que personagens, sem sequer uma única
fala na obra, despertam índices de leitura igualmente importantes para sua
compreensão. Portanto, aqui propomos uma suspensão temporária da ordem
em que citamos os nomes das mancebas logo acima e, antes de seguir com a
nossa análise das moças que desembarcaram no desterro e estiveram
presentes em momentos-chave do romance, gostaríamos de relembrar as
companheiras de Oribela que nem chegaram a embarcar na famigerada nau.
A primeira delas que inserimos nesse contexto é Sabina, que morreu ao
ser estuprada por salteadores na fuga que arquitetou do mosteiro, para buscar
um rico casamento. Nela, podemos ler novamente a necessidade do
matrimônio para validar a existência da mulher desamparada pelas
circunstâncias da vida e a violência a que essa mesma mulher era exposta ao
correr mundo para realizar o que acreditava ser seu desejo. Sabina, moça
judia, subvertia a lógica por viver sob uma religião diferente da que nascera e
por renegá-la posteriormente com a fuga. Irmã de dona Urraca, sua morte
impactou a trajetória da personagem, sendo Urraca a primeira escolhida para
vir ao Brasil e, com isso, levantando a suspeita de que a viagem além-mar era
o castigo do degredo ao invés da promessa de final feliz.
9
Por embasar-se somente em possibilidades, é considerado o mais tolo e fútil dos pecados.
Sua principal característica é o apego excessivo aos bens materiais e ao dinheiro, o que acaba
por afastar o pecador avaro do convívio com Deus.
97
10
As mais comuns são manchas, bolhas e feridas sobre a pele, além de ambas serem
causadas por bactérias.
11
Para leitura do relato 10, ir à página 90 de Desmundo.
98
como o já citado impetigo12. Não é difícil, portanto, após uma leitura crítica das
entrelinhas e um conhecimento prévio de história, concluir e propor que a
personagem possa ter morrido desta patologia – dada a libertinagem sexual
dos mosteiros previamente exposta neste trabalho – que assolava
repentinamente a Europa do século XVI e condenava à morte ao menor sinal
de contágio.13 Além disso, insistimos, o impetigo não mata e, ainda que o
doente não se trate, a infecção normalmente desaparece espontaneamente em
mais ou menos três semanas.
Propomos a leitura da seguinte passagem do romance para demonstrar
as relações carnais pouquíssimo sagradas que foram estabelecidas entre os
então bastiões do clero e as moças internas em mosteiros. Embasamos, assim,
a nossa assertiva da plausibilidade de uma morte distinta da que foi alegada e
que vitimou a jovem Giralda muito antes do embarque:
12
A principal forma de transmissão deste mal está ligado ao contato direto com as feridas e à
falta de higiene. É importante que se reitere, portanto, que não aparece no romance nenhuma
outra personagem que tenha padecido da doença, descartando, assim, o contágio por toque
direto ou por ambiente.
13
À época, ainda não havia nenhuma forma de resistência à doença. Os primeiros tratamentos
surgiram apenas no século XX.
99
criticamente que o convívio social nas estâncias religiosas poderia ser algo
extremamente profano – como já ficou implicado em outras passagens de
Desmundo –, ela é exatamente o resultado de uma educação pouco sagrada.
E então, de novo, Lukács (1936) aparece na representação da personagem
como sendo fruto do processo histórico e do meio a que está submetida.
Observemos a crítica explícita – porém em censura velada reservada à
intimidade seu diário – de Oribela à Tareja em três momentos. Um quando
compara a si mesma e às outras mancebas a aves enjauladas e privadas de
suas liberdades. A este, seguimos com a passagem de quando a Velha Fada-
Madrinha dá a cada moça uma prenda em ocasião de seus casamentos, e
mais um, quando a Velha a informa dos destinos das suas companheiras de
viagem depois de seus respectivos matrimônios:
(…) Dizia meu pai. Que besta tu és e de asas, feito uma galinha que
quer avoar e não pode. Assim eram as mancebas, fossem umas
aves. Seria a dona Tareja uma ema, porque o corpo é grande e
pesado, seria eu um açor bravo que tem que comer as coisas ruins
do mundo, seria a Velha um galo que anuncia a luz e as outras órfãs
umas pombas, que vão onde mandam, haja sombra, em suas
desvairadas propriedades, que em lugar de cantar gemem e têm a
alma fiel e simples, sem amargura nem sanha nem queixume e se
beijam muito amiúde, gostam de estar juntas feito pombas e se
eriçam aos falcões, enquanto eu, como açor bravo, dou meu coração
a comer. (…) Uma pequena roda engastada em um brinco de ouro e
um anel de prata fina que não cabia em dedo nenhum de Tareja, que
o pendurou ao pescoço num cordel. (…) De Tareja, que hipócrita se
fazia de santa em rebuços negros e rezas em joelhos, em nome de
toda virtude (MIRANDA, 1996, p.57-134).
14
Também conhecido como o pecado capital da soberba. Para São Tomás de Aquino, era um
pecado tão grande que deveria ser tratado em separado de todos os outros e, por isso,
merecer vigilância especial.
100
15
Nosso trabalho propõe uma ligação entre a personagem desse romance e Felipa de Sousa,
portuguesa que veio ao Brasil depois de ter enviuvado no Algarve. Aqui, em 1591, foi
denunciada e condenada pela Inquisição Portuguesa do Santo Ofício a Salvador por ‘práticas
nefandas’, confessou seu lesbianismo e teve mais seis mulheres envolvidas em seu caso. Com
ela, sete. Por sua transgressão, em 1592 foi punida com a severidade do açoite e do degredo
perpétuo. Ouviu sua sentença na Igreja da Sé com uma vela acesa nas mãos enquanto vestia
uma roupa de linho cru, marca pública dos hereges. Depois foi atada ao pelourinho, chicoteada
e expulsa da então capitania. Para conhecer mais a fundo o caso de Felipa de Sousa,
sugerimos a leitura da pesquisa do antropólogo Luiz Mott (O Lesbianismo no Brasil. Porto
Alegre; Mercado Aberto, 1987).
102
16
Domenada do mais do nunca do nada, Sabistisanto, anto, anto e
mais cantos a se lavar com cebolas. As órfãs tinham seus destinos
selados e me doía de dona Bernardinha, que gostava de afetos e de
roubar uns brincos e as bocas das moças em beijos. Espreitavam
muitas armadilhas a nós. (…) Quis eu saber de que vinha uma grita
de machos na porta da casa de dona Bernardinha. O perro do esposo
dela fazia servir sua mulher por dinheiro, que se fez uma espera na
frente da vivenda e dela se ouviam os gritos, deles os risos, uns
davam por isso uma moeda, outros um pedaço de uma qualquer
coisa, não havendo ali um padre que pusesse fim a tal desmando.
(…) Entrando eu, estava ela em um quarto muito feio e sujo, sem
nada que fosse para deitar que não umas esteiras de naturais, ela
nua da cinta para baixo, a camisa salpicada de sangue, com uma
ladainha muito sentida a maldizer seus cruéis algozes, que a rigorosa
justiça de Deus se fora nas águas, nos ventos e disse eu, não
maldizer de Deus que era pecado com castigo de raio, de trovão, de
morte e aquela miserável padecente com assaz de lágrimas me
abraçou, aquele tempo todo estivera como morta. Consola-me a vista
de tua presença. Se requeria eu justiça lhe fizera meu esposo, em
não sendo o dela e que marcava vingança perpétua, ainda se havia
de ver. Sempre farto de vinho nas noites cometia ele a ela com seu
membro viril que entrava no vaso traseiro dela e instigado da carne
tinha ali polução, contra a vontade dela, a qual com medo consentia.
Com isso encostou a cabeça no meu colo sem mais nenhuma
palavra, sinalou uma pouca d'água e a tomou. Disse querer ir embora
deste país e tornar ao seu (MIRANDA, 1996, p. 134-152).
16
Segundo as crenças portuguesas, essas palavras eram usadas como formas de vencer os
espíritos que traziam perturbações e patologias diversas. Elas conferiam poder de cura do
bem sobre o mal por ser costume acreditar que nem todas as doenças tinham causas naturais
e algumas se tratavam de possessão por espíritos maléficos. A terapêutica contra as moléstias
e enfermidades consistiam, à época, tanto em fórmulas alopáticas quanto na oralização e
oração dessas palavras, que eram proferidas contra as bruxas na ilha de São Miguel para
suprimir seus poderes malignos. Novamente, então, a ideia da mulher feiticeira e da
necessidade do exorcismo.
17
Um dos raros momentos em que Oribela sente algo próximo de ternura pelo marido, foi
quando este atendeu a seu pedido de intervir pela amiga e salvá-la momentaneamente da
loucura do esposo.
18
Para Oribela e Bernardinha, a única maneira de que fossem respeitadas e conseguissem
embarcar na nau de retorno ao reino, era se disfarçadas de homens: cabelos curtos, roupas,
chapéus e botas. (MIRANDA, 1996, p. 152).
103
19
Desmundo (1996), página 57.
104
20
Do autor português Augusto Carlos Teixeira de Aragão, Diabruras, santidades e prophecias
(1894) cita Maimont como sinônimo para o demônio. Para ele, bruxas e feiticeiras se reuniam
para invocar e celebrar o diabo com esse nome em troca de poder. Eram essas mulheres
desprovidas de Deus e servas encantadas do que Aragão coloca como o ‘monarcha infernal'. A
obra está ligada aos estudos da Inquisição católica portuguesa, retrata em detalhes os
supostos rituais das bruxas e aqui nos serve como uma intertextualidade com o discurso
dogmático religioso, o simbolismo da mulher pecadora e mais uma referência à própria arte
literária portuguesa.
21
Em passagem da obra de Teixeira de Aragão: (…) A velocidade com que viajam n’essas
noites é egual á do relampago. As reuniões ordinárias, dizem, são á meia noite das sextas
feiras, em certas encruzilhadas, ou nas margens dos rios onde se costumam banhar. Ahi tem
logar a orgia do sabbat, com danças phantasticas e canticos soturnos, terminando o
pandemonio pela ceia distribuida pelo diabo de cauda recurva, sendo o guisado favorito
composto de sapos, cobras e aranhas, temperado com sangue de ratos e cágado macho.
Contam os que teem avistado de longe esta tetrica festa que entre sombras mysteriosas se
nota o luzir dos pyrillampos, produzindo o panorama uma tremura assustadora com um arrepio
que chega á medula dos ossos. (ARAGÃO, 1894, p. 23).
105
De dona Urraca se dizia por detrás terem sido seus pais judios, uma
gente de fazer violas d'arco, que sabia muito lindamente tanger, a
menina. Houvera no tempo do rei dom Manuel uma paz, finda pelo
22
casamento de Sua Alteza e pelos brados do povo, que havia muito
23
ódio contra os judeus vindos de Castela , como eram os avós de
dona Urraca, por onzenarem. No mosteiro pregavam contra dona
Urraca e ela ouvia em lágrimas, assassina de Jesus, filha de gente
sem rei nem terra, que alevantavam os preços das coisas, era seu
povo causa da peste e da fome que matava os cristãos por os
cristãos mercadejarem as suas janelas e que tinham os judios contas
com Deus e escrituras falsas desdo começo do mundo, que
adoravam uma bezerra de metal e a ela sangravam seus filhos em
gratidão por Deus que os tirara do cativeiro do faraó e se pareciam
24
aos bestiais mouros , adoravam também as rãs e os galos. E
mandavam dona Urraca comer barata, cuspiam em seu rosto, faziam
o sinal-da-cruz no peito depois que ela passava e não pisavam em
sua sombra, que era pecado e lhe formavam nas fuças cruz com os
dedos, puxavam seus cabelos, o que fazia a dona Urraca chorar e
não havendo ninguém para a consolar, ela dizia. É esta a virtude que
os teus deuses ensinam? Pediram à madre que dona Urraca não
usasse vestidos ricos e só trajes por que fosse conhecida, lhe
tomassem os sapatos, não andasse em qualquer parte do mosteiro
para não se misturar com cristãs, morasse aguizada numa cela, nem
fosse amiga de pessoa alguma, lhe arrancassem os livros que tinha,
coisas escritas por blasfemos. Para atender aos continuados
clamores mandara madre Jacinta separar das mancebas a dona
Urraca. (…) Passou dona Urraca a viver entre as enfermas por saber
untar com óleos e qualquer remédio de consolação (MIRANDA, 1996,
p.91).
22
O reinado de Dom Manuel é tido como um símbolo de prosperidade e progresso econômico
em Portugal, pois com ele o país observou uma significativa expansão marítima de seu império
através das descobertas dos caminhos das Índias, do Brasil e das Molucas. Por isso, houve um
enorme saldo positivo em seu comércio, ainda mais no de especiarias. Uma das cláusulas do
contrato de seu casamento com Dona Maria de Aragão - sua segunda esposa -, entretanto, o
obrigava a solicitar ao papa a instauração da Inquisição em Portugal, em 1515. O rei resistiu,
mas acabou por cumprir a cláusula.
23
No concernente à política religiosa de Dom Manuel, observou-se em Portugal um grande
investimento na construção de igrejas, mosteiros e evangelização das novas colônias. No
começo de seu reinado, havia tolerância religiosa e ele chegou a libertar o povo judeu que vivia
em situação de escravidão, pois estavam fugindo das perseguições em Castela. A justificativa
para tal tolerância consiste no fato de que o capital financeiro e intelectual dos judeus eram de
suma importância para a expansão mercantil portuguesa. Com a chegada da Inquisição,
resultados mais violentos: conversões religiosas forçadas, sobretudo dos judeus, que foram
obrigados a delegar a educação de seus filhos à famílias cristãs.
24
Assinado em 30 de novembro de 1496, seu contrato de casamento com a primeira esposa,
Isabel de Aragão, previa a expulsão do reino dos povos considerados infiéis. Neste caso, os
mouros e os judeus.
107
(…) De dona Urraca que vivia trancada em sua morada sem que lhe
pusessem as vistas de dia, lhe ouviam a viola d'arco, mas
murmuravam na cidade que se vertia ela de noite numa alimária e
assustava os vizinhos, a assoprar fogo, se dizia até em juramento, do
que a Velha pouco acreditava (MIRANDA, 1996, p.134).
25
torço d'amores dormo , pela porta aberta vi que era a dona Urraca,
fiquei a escutar, com as gentes que escutavam, tão tristes música
que parecia se derramar do coração em rosinhas orvalhadas, ai, ai,
quanta melodia, umas lavandeiras com suas trouxas de roupas à
barrela, ai morenicas las pretas, também pararam pela música, o que
ia eu fazer de minha vida? Na casa das gentias soube que a Velha
partira com o bispo, o que ia eu fazer de minha vida? Muito fiquei ao
pé da igreja assentada numa espera de não sei o que, de que o sol
se fosse, a noite se fosse, o tempo, a vida, numa contemplação de
pensamento, os olhos perdidos na fonte e nas apartações por
convinhável mesura a esfriar da quentura e a memória dos males e
pecados (MIRANDA, 1996, p.210).
Em nome do rei, que governava a terra por graça e vontade dos céus
que a ele fizera eu agravo, eram apresentadas as culpas, diziam ser
eu culpada no pecado da gula, que não tinha feito abstinência, devia
eu pagar isso com a minha língua, no que vinha um algoz e me
cortava a língua, disse o juiz que era eu culpada na sensualidade,
devia pagar com meus seios, no que o outro algoz veio a os mamar e
depois de tomar um leite vermelho os cortou e comeu. Fora eu tíbia
no amor a Deus e avarenta no dar esmolas, pelo que havia de pagar
com meus dedos, veio um outro algoz a cortar os ditos das mãos e
dos pés. E como pecara de inveja, tive que pagar com minhas
orelhas e doze bofetadas no rosto. O pecado da soberba era preciso
pagar com o que restava de meus pés sangrados sem dedos, no que
me cortaram os pés, ficando eu estendida. E porque pecara ao falar
muito em prejuízo do próximo, paguei com meus cabelos da cabeça,
que logo ali os tosquiou um homem com uma tesoura na mão,
jogando cada cacho num fogo. Por ser culpada de ladra de moedas
alheias e nisso gastar minha vida com ofensa grave do alto Senhor
25
Mais uma intertextualidade literária e referência à obra do dramaturgo português Gil Vicente,
esta presente no Livro II, Comédias: Comédia de Rubena (1521).
110
26
Daí o costume de se ter uma escultura feita à imagem feminina a bordo, sendo mais comum
que estivesse alocada na proa. Ironicamente, atribuía-se sorte ao objeto por acreditar que ele
111
lógica impetuosa: foi a nau que trouxe embalada em suas ondas a má-sorte do
naufrágio e da desventura à suas passageiras.
tinha o poder de serenar os mares, acalmar as tempestades e guiar o navio para longe dos
desastres e naufrágios.
27
Pe-maenduar, do tupi, lembrai-vos vós. A tradução é do Padre Luiz Figueira e pode ser
encontrada em sua obra Arte da grammatica da lingua do Brasil.
112
primeiro alijada do convívio com seu povo por causa das guerras entre as
tribos que compunham a mesma nação28 e, posteriormente, escravizada por
Francisco de Albuquerque:
(…) Era de um gentio muito antigo que fora lançado fora da sua terra
das vizinhanças do mar por outro gentio seu contrário que descera do
sertão pela fama da fartura da riba do mar e seus pais e avós
perderam as terras que tinham senhoreado muitos anos e lhes
destruíram as aldeias, roças, matando os que lhes faziam rosto, sem
perdoar a ninguém, em frontaria com os contrários numa crua guerra,
onde se comiam uns aos outros, os que cativavam ficavam escravos
dos vencedores, numas batalhas navais, ciladas por entre as ilhas,
grande mortandade e se comiam e se faziam escravos, até chegar o
tempo dos portugueses. O-îo-akypûer-i, um trás outro, trás de um o
29
outro, mokõî, mokõ'-mokõî. Tinga (MIRANDA, 1996, p.119).
28
Um dos maiores povos indígenas, os Tupinambás eram formados por diversas tribos que
guerreavam entre si em batalhas quase sempre sangrentas e motivadas por vingança. Os
cativos eram frequentemente devorados em ritos antropofágicos. Há várias descrições desses
costumes nas cartas jesuíticas.
29
Já no primeiro relato, Temericô, em tupi, conta a Oribela como eram capturados os povos
indígenas: O-îo-akypûer-i, mokõî, mokõ-mokõî. Tinga, um atrás do outro, nas costas do outro,
dois, coisa branca. As palavras podem ser encontradas em tradução de Ana Miranda, em
Desmundo (1996), e também à página 51 na obra de Luiz Figueira, previamente referenciada.
116
(…) Uma sociedade se define não só por sua atitude diante do futuro
como também diante do passado: suas lembranças não são menos
reveladoras que seus projetos. (…) Não temos uma idéia clara do que
fomos. E, o que é mais grave: não queremos tê-la. Vivemos entre o
mito e a negação, idolatramos certos períodos, nos esquecemos de
outros. Esses esquecimentos são significativos; há uma censura
histórica, bem como uma censura psíquica. Nossa história é um texto
cheio de trechos escritos com tinta preta e outros escritos com tinta
invisível. (…) A nossa história como uma ininterrupta evolução
progressiva; ao destacar excessivamente a continuidade do processo
histórico, acaba omitindo rupturas e diferenças (PAZ, 2017, p.19).
30
Desmundo (1996), página 120.
119
Considerações Finais
CONSIDERAÇÕES FINAIS
um novo quadro, bastante diferente dos tradicionais óleo sobre tela que
retratavam índios curiosos e grandes conquistadores portugueses à beira mar
e selva adentro. Ana Miranda sabe disso. E o faz, para nosso deleite literário e
instrução do saber.
Que fiquemos, pois, com a idéia urgente de que a Literatura pode ir – e
vai – além. De que é, sobretudo, a forma artística e material do instrumento do
pensar e do refletir sobre o que fomos, sobre o que somos e sobre o que
poderemos ser se ousarmos enxergar o mundo sob uma nova perspectiva mais
abrangente, mais crítica e consciente; há verdade nas mentiras, Vargas Llosa
já nos disse.
Embora tenha um fim essa dissertação – que aqui se apresenta –, a
pesquisa não poderá tê-lo. É ela o começo de um longo caminho. Ela é,
também, ambiciosa em sua modéstia. Sabemos que conhecemos o todo
apenas em pequenas partes, fragmentadas pelas escolhas e recortes que
tivemos que fazer nesse trabalho. É preciso que continuemos refletindo e
buscando instrumentos que nos embasem e nos possibilitem fazer uma leitura
crítica da realidade para entender a origem do nosso contemporâneo, que,
embora apresente avanços sociais bastante significativos, segue tão sofrido
para quem está à margem, para os nossos heróis e heroínas, tão excêntricos
quanto periféricos. E anônimos.
Temos que ter o compromisso de conhecer a nossa História na tentativa
de mudar o presente, que sangra, em hojes. É preciso que se escute todos
aqueles a quem a voz foi negada. E que continua, de certa forma, silenciada.
Somos um país de aindas. Deveríamos ser um de bastas. A educação, como a
compreendemos, é poderoso auxílio na tentativa de reparações e construções
de futuros menos violentos. A educação, como acreditava Paulo Freire, é
libertadora e nos iguala.
Encontramos, por meio da Arte, algumas das respostas que
buscávamos em nossos objetivos. Respaldadas por estudos de grandes
pensadores que souberam teorizar e explicitar a grandeza da literatura nas
suas múltiplas possibilidades de instrumentalização, tentamos trazer uma
pesquisa coerente, que apresentasse uma nova possibilidade de convergência
teórica entre o que antes era, aparentemente, divergência e disparidade. Um
estudo coeso que fizesse jus à importância do tema e que pudesse contribuir
124
REFERÊNCIAS
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
ECO, Umberto. Postscript to The Name of the Rose. 5. Ed. Trad. William
Weaver. Londres: Everyman’s Library, 2006.