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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Camila Vilela de Holanda

Desmundo, de Ana Miranda:

A (des)leitura de um Brasil pela voz ficcional da mulher

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

São Paulo
2019
Camila Vilela de Holanda

Desmundo, de Ana Miranda:

A (des)leitura de um Brasil pela voz ficcional da mulher

Dissertação apresentada à banca


examinadora do Programa de Estudos Pós-
graduados em Literatura e Crítica Literária
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Literatura e Crítica
Literária, sob a orientação da Profª. Dra.
Leila Cristina de Melo Darin

São Paulo

2019
BANCA EXAMINADORA

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__________________________________
Agradeço à CAPES pelo incentivo a esta Pesquisa e pela bolsa de estudos
concedida que me permitiu concluí-la.
À Celina, minha sobrinha que nasceu e viveu precocemente, com a pressa dos
que sabem que a vida é agora, embora haja tantos depois. E tantos
reencontros nesses depois. Que brincou de entrelaçar-se nos tempos de
delicadezas, rompeu com a cronologia e, sem dizer nada, me ensinou que uma
mulher não desiste nunca. Que a mulher é ânsia pela vida, pelo amor, é volição
de si, é inexplicável e é subversão da lógica. Uma mulher é, sobretudo,
coragem. Obrigada, meu Pequeno Milagre, por nos ter deixado a todos nós
íntegros e inteiros na capacidade de amar. Você nunca foi miudinha; sempre foi
do tamanho imensurável e desmedido do amor e, portanto, imensa.
AGRADECIMENTOS

À Deus, por não ter me deixado desistir e me dar certezas nos meus momentos
de dúvida.

À minha mãe, Rosana, a luz dos meus caminhos. Sempre encorajamento,


certeza de amor, apontar de horizontes, exemplo de força, inspiração,
integridade, entusiasmo acadêmico, compromisso com a educação e com o
infinito de possibilidades de uma Pesquisa. A mulher que me ensinou que os
livros são amigos leais e, com isso, escreveu as linhas da minha vida.

A todas as minhas Professoras do Programa de Pós-Graduação em Literatura


e Crítica Literária, pela generosidade e disponibilidade com a qual me
acolheram. Por terem me ajudado a pensar o mundo, a minha gratidão é
irrevogável. Sobretudo, à Leila Darin, por aceitar embarcar nessa nau comigo e
se aventurar por um Brasil (des)conhecido: pela calma, pelo alento, pela
paciência e pela sensibilidade nesse desbravar de oceanos. Vera Bastazin, por
ter me ensinado a ler de um jeito novo, de novo, uma vez mais, uma nova
alfabetização. Por ter me dado Oribela e, com ela, tanto. Muito. Beth Cardoso,
pela insistência de que eu podia ir além da minha zona de conforto, pela
confiança no meu trabalho, por descortinar meus olhos para novas
possibilidades literárias. Por ter feito de mim, um pouco mais. Diana Navas,
pelo carinho de todos os dias, pelas respostas, pelos convites a vivenciar a
literatura na prática, por ter abraçado o meu caos, por ter sorrido em
cumplicidade e ter me dado um pouco mais de forças quando eu achei que o
meu cansaço era maior que a minha vontade.

À Professora Lilian Corrêa que, com imensa ternura e grandeza, abraçou tanto
Pesquisa quanto Pesquisadora. Que me fez acreditar em um mundo de muitos
‘sim’. Que me emocionou profundamente em cada passo de novos caminhos.
Obrigada.

Aos meus colegas da PUC-SP, uns loucos que acreditam em literatura tanto
quanto eu: vocês são enormes, são os maiores presentes que eu recebi neste
grato processo. Sem vocês, nada seria possível. Meus grandes companheiros
e incentivadores em todos os momentos desse percurso, dessa jornada que
não termina, sobretudo nas madrugadas insones de redação de trabalhos e
nas pausas de corredores e cafés. Vocês foram lindos comigo.

À Ana Miranda que, por meio da Literatura, me devolveu e me ensinou a (re)ler


a minha própria História.

A Paulo Freire, com quem tenho a enorme felicidade de sorrir quando me caem
umas lágrimas bestas no rosto. Por estarmos juntos na crença de uma
educação que liberta. Ele é uma certeza. Obrigada por ainda ser luz. Obrigada
por ecoar na minha vida.

À PUC, que, corajosamente, resiste.

A CAPES, por ter acreditado na minha Pesquisa.

Obrigada.
Não sou a das águas vista
nem a dos homens amada;
nem a que sonhava o artista
em cujas mãos fui formada.
Talvez em pensar que existia
vá sendo eu mesmo enganada.
Quando o tempo em seu abraço
quebra meu corpo, e tem pena,
quanto mais me despedaço
mais fico inteira e serena.
Por meu dom divino faço
tudo a que Deus me condena.
Da virtude de estar quieta
componho meu movimento.
Por indireta e direta,
perturbo estrelas e vento.
Sou a passagem da seta
e a seta, – em cada momento.
Não digas aos que encontrares
que fui conhecida tua.
Quando houve nos largos mares
desenho certo de rua?
E de teres visto luares,
que ousarás contar da lua?
(MEIRELES, Cecília. Canção 2).
HOLANDA, Camila Vilela. Desmundo, de Ana Miranda: A (des)leitura de um
Brasil pela voz ficcional da mulher. Dissertação de Mestrado. Programa de
Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2019, 128p.

RESUMO

A presente pesquisa se propõe a analisar o romance Desmundo (1996), da


escritora brasileira Ana Miranda, por meio das vozes das personagens
femininas, sobretudo a da protagonista, Oribela. Escrita em forma de diário, a
obra traz a narrativa de uma jovem que, recém-desembarcada de uma nau a
mando da rainha de Portugal, em um Brasil do ano de 1555, confronta os
paradoxos entre a realidade de ter sido educada em um convento português e
a selvageria de um país sem identidade, moral e que não era, sequer, uma
nação. Esta pesquisa busca refletir de que maneira, ao dar a voz a uma
personagem feminina – tradicionalmente excluída dos relatos oficiais da nossa
história –, Ana Miranda consegue promover uma leitura crítica da realidade
contemporânea sob a ótica do Romance Histórico, como fundamentado por
György Lukács, da Metaficção Historiográfica abarcada por Linda Hutcheon e a
exposição histórica do papel da mulher no Brasil colonial, perpetrada por Mary
Del Priore.

Palavras-Chave: Romance Histórico Contemporâneo, Desmundo, Ana


Miranda, Metaficção Historiográfica, Voz Do Excluído.
HOLANDA, Camila Vilela. DESMUNDO, an Ana Miranda’s novel: The
(dis)reading of Brazil by the fictional voice of a woman. Dissertation of
Master degree in the Program of Postgraduate Studies in Literature and Literary
Criticism. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brazil, 2019,
128p.

ABSTRACT

The present research aims to analyze the Brazilian writer Ana Miranda’s novel
Desmundo (1996), by the means of the female characters’ voices, especially
the protagonist’s one – a young woman called Oribela. Written in the form of a
diary, the literary work embraces the narrative of a girl who lands in Brazil in
1555, coming from Portugal in a ship, due to the order of the Queen. Oribela
faces the paradoxes between the reality of having been educated in a
Portuguese convent and the savagery of a country with no identity, morality nor
even been a nation. This research proposes to search the ways, on giving voice
to a female character – who has traditionally been excluded from the official
accounts of our History – Ana Miranda is able to develop a critical reading of the
contemporary reality under the lens of the Historical Novel as theoritized by
György Lukács, the Linda Hutcheon’s Historiographic Metafiction and Mary Del
Priore historical role of women in colonial Brazil.

Keywords: Historical Contemporary Novel ; Desmundo ; Ana Miranda ;


Historiographic Metafiction ; Voice of the excluded.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................. 13

CAPÍTULO I - GYÖRGY LUKÁCS E A VOZ NO ROMANCE HISTÓRICO ... 22

1.1. Literatura ou História? Poeta ou historiador? ................................. 22

1.2. György Lukács e a voz no romance histórico ................................ 25

1.3. Desmundo, um romance histórico contemporâneo ........................ 38

CAPÍTULO II - A METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA E AS VOZES


SUBVERSIVAS ............................................................................................... 45

2.1. A Literatura: Ampliar de narrativas e possibilidades de leituras ..... 45

2.2. A Metaficcção Historiográfica e as vozes subversivas ................... 45

CAPÍTULO III – MULHERES QUE GRITAM .................................................. 67

3.1. Oribela, Oribelas ............................................................................ 67

3.2. Velha, a Sábia ................................................................................ 83

3.3. As mancebas, agouro da nau ........................................................ 91

3.4. Temericô, Pe-maenduar ............................................................... 111

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 120

REFERÊNCIAS ............................................................................................. 125


12

Introdução

“(…) Se ficaste prenhe, basta. Não tens freio na língua


nem chave na boca. E mais, estás tosquiada? Os cabelos
carcomidos. Nem se sabe se és fêmea ou se és macho. E
ainda as mãos e o que se pode ver de pele, escarificadas.
Não sei por que respeito o filho trouxe uma mulher tal,
tão contra o nosso jeito. E vais ficar? Ou te atiça ainda
o coração em fugas e grandes pecados? (…) Antes
morrer pelejando que consumida pelo tempo pouco a
pouco como uma vaca enferma. Sou saloia rebuçada,
também trago o meu mantel, mas só tiro a carapuça a
quem me tira o chapéu.”

(MIRANDA, 1996, p. 192)


13

INTRODUÇÃO

Um produto artístico permite sua análise por diversas perspectivas, e,


neste trabalho, o romance Desmundo (1996), de Ana Miranda, é o objeto de
arte a ser analisado pelo prisma que permeia a relação íntima entre História e
Literatura. O discurso histórico tem como principal foco a preocupação com o
real e busca a reconstrução do passado através da leitura de documentos
oficiais. Quando se pensa em discurso literário, entretanto, o comprometimento
é, sobretudo com a ficção e com a arte.
No romance-fonte aqui analisado, é possível perceber um imbricamento
entre esses dois discursos, posto que Ana Miranda fez uma vasta pesquisa nos
documentos oficiais do período colonial brasileiro para reconstrução ficcional
do Brasil, a fim de ambientar a vida de sua protagonista, Oribela.
Escrito em forma de diário, Desmundo, de Ana Miranda, se passa por
volta de 1555, apenas 55 anos depois da data histórica do "descobrimento" do
Brasil.
A obra é aberta por duas epígrafes que trazem o leitor para o mundo da
narradora e exibem a clara aproximação entre um texto literário e um
documento histórico oficial: a primeira é uma reprodução de uma poesia de
Fernando Pessoa, que reflete o destino de quem se lança - ou é lançado pela
força das circunstâncias e arbitrariedades do destino - ao desconhecido dos
mares, ao indefinido das noites largas, às distâncias continentais e ao abstrato;
dá a dimensão do que é ser carregado como uma poeira pelo vento na
imensidão de universos ainda não-percorridos. Aproximam, também, do
imaginário português extremamente ligado às conquistas territoriais. A segunda
epígrafe trata de um trecho da carta do Padre Manoel da Nóbrega, remetida ao
Rei de Portugal, D. João, requisitando o envio de mulheres brancas para a
recente colônia; o objetivo era casá-las com os primeiros colonizadores
portugueses que vieram se aventurar por estas terras (para que estes não
vivessem ‘em pecado’ com as índias, indicando assim mais um dogma tão
religioso quanto cultural e político) e é também um traço que aponta para as
dificuldades de se colonizar o imenso território que hoje se constitui Brasil.
14

Ainda no primeiro contato com o livro, chama atenção a escolha da


linguagem. Esta também serve como um elo entre a ficção e a história a ser
tratada: a opção pela escrita em português arcaico e os usos estruturais da
língua no século XVI também servem para situar o leitor no tempo cronológico
da obra.
O diário de Oribela - dividido em 10 partes narradas em primeira pessoa
(A Chegada - 21 relatos, A Terra - 18 relatos, O Casamento - 24 relatos, O
Fogo - 25 relatos, A Fuga - 7 relatos, O Desmundo - 20 relatos, A Guerra - 17
relatos, O Mouro - 27 relatos, O Filho - 15 relatos e O Fim - 5 relatos) traz a
força de uma personagem rebelde e contestadora, que se desconstrói e se
refaz ao longo da sua narrativa. Sua voz ecoa a brutalidade do local para o
qual foi enviada a contragosto, deslugar este no qual os valores morais e
religiosos praticados em Portugal não se aplicavam. O romance é permeado
por um forte discurso cristão, que tem por finalidade demonstrar a coerção
espiritual imposta à personagem através, sobretudo, da ideia de pecado e da
culpa.
A protagonista foi órfã de mãe no parto e de pai de desgosto. Criada sob
a égide moral e religiosa de um mosteiro português, foi obrigada a vir ao Brasil
para casar-se com alguém que jamais vira e que, portanto, não amava. Na
noite de núpcias foi estuprada pelo marido, que lhe tinha imensa posse e a
tratava como um objeto de uso pessoal, impondo-lhe inclusive as mais diversas
formas de castigos. Tentou fugir da casa, do casamento e de uma sina, falhou.
Ateou fogo aos próprios cabelos na mais desesperada tentativa de deixar de
ser quem era para conseguir a vitória através da fuga para outro lugar. Era
constantemente assombrada pelo choque entre tudo que aprendera em terras
além-mar e a nova realidade a que fora submetida; da nudez dos índios aos
abusos físicos e verbais, demonstrando aqui a crise do sujeito a que fora
exposta e a necessidade de se reinventar para sobreviver onde nunca coube,
tanto quanto já não era mais a mesma para caber em seu mundo de origem.
Apaixonou-se por um Mouro - e não por um cristão - e teve com ele um caso
extraconjugal. Presencia o conflito entre marido e amante. Engravida, e seu
filho é também fruto de tensão entre os dois homens.
Entendemos que a trajetória da narradora segue a ideia central de
Lukács de que o romance histórico retrata, sobretudo, a vida do homem de seu
15

tempo através de um viés ficcional e também o pensamento de Hutcheon, de


que a metaficção historiográfica propõe uma autorreflexão questionadora das
chamadas “verdades históricas”.
Oribela, a heroína e narradora de Desmundo, é a moça comum de sua
época: não tem direito sobre o próprio destino e, ao perder a figura masculina
que respondia por sua vida, é mandada para um convento para ser criada e,
assim, seguir o ciclo de opressão ao qual a maioria das mulheres era
submetida em seu tempo. Das mãos do pai às do marido. Na ausência de um
ou de outro, a terceira via se apresentava na forma da submissão religiosa.
E é através dos olhos dessa personagem que se compreende e se
enxerga, ao longo do romance de Ana Miranda, um pouco do Brasil
desconhecido; de um período da nossa formação enquanto país que está
excluído dos relatos tradicionais da nossa história, porque é reconstruído
ficcionalmente através da voz de uma mulher pobre e oprimida, e não mais um
eco do homem branco europeu que foi vencedor de guerras, senhor de muitas
conquistas e realizador de grandes feitos (semelhante, por exemplo, ao herói
da epopeia).
Com a narrativa de Oribela, é possível conceber quase que
imageticamente o retrato (para muitos, inédito) da mulher nos primeiros anos
da colonização brasileira. A partir do microcosmo e do destino de uma
personagem fictícia que busca encontrar o seu lugar, seu direito à vida e
exercer o seu papel em um pedaço de mundo sem leis que não a brutalidade
da força física, de noções eurocêntricas civilizatórias ainda em construção, em
que a presença feminina é quase nunca citada quando não-pertencente à
família real e oprimido pelos dogmas morais e religiosos cristãos. Um quadro,
sem dúvida, bastante diferente dos óleo sobre tela reproduzidos nos livros de
história oficiais com os quais fomos pedagogicamente educados e que
construíram - ao menos em tese - realisticamente o que conhecemos de e por
Brasil.
Um romance histórico contemporâneo que retrata uma protagonista
ficcional em 1555 levanta, através da força de seu foco narrativo, uma porção
de problemas reais que muitas das mulheres que conhecemos ainda são
obrigadas a encarar: a perda das escolhas sobre os próprios corpos, a culpa
severa da moral religiosa, os casamentos forçados, o comportamento
16

socialmente desejado e esperado, a violência emocional e todo tipo de abusos


físicos está, há algum tempo, esgotado das prateleiras das livrarias do país.
Não é de se espantar, mas de se celebrar: em tempos onde pouco se
reflete sobre o papel social e antropológico da mulher na construção histórica
de um Brasil multi-identitário e todos os problemas que ainda não superamos
desde a nossa formalização enquanto nação, a literatura nos devolve, sob a
voz da narradora Oribela e todos os desafios que esta teve de enfrentar na
Colônia reconstruída ficcionalmente o nosso direito à reflexão. Desafios estes,
aliás, que parecem ainda ecoar em nossa realidade quinhentos anos depois,
alçando assim a literatura ao posto de agente fomentador da discussão e da
desestabilização do discurso oficial da história.
A obra foi recentemente adotada nas maiores provas de ingresso às
universidades nacionais como uma espécie de auxílio na (re)construção
histórica ficcional de um Brasil e da oportunidade de escutar-se (ler-se) uma
voz quase nunca ouvida nos relatos oficiais; a feminina. Isso, que se fique
claro, na mesma década em que foi publicamente criticada a presença da
feminista francesa Simone de Beauvoir em questão do mesmo exame sob o
argumento de que esta era obsoleta, retrógrada e ultrapassada; de que já não
cabia na forma de ‘igualdade de gêneros' que o mundo do novo milênio havia -
supostamente - assumido. Não por acaso, a obra de Beauvoir trata da
construção do feminino. De como esta veio da castração social, e não da
natureza.
A narradora, jovem que foi enviada numa nau junto a outras moças com
destino ao Brasil - ou, aí, Desmundo - pela rainha de Portugal para casarem-se
com os primeiros colonos assina o romance-diário. O matrimônio, tal qual o
envio de mulheres brancas à nova colônia com o objetivo de que os homens
não vivessem em pecado com as índias nativas, foi uma solicitação do Padre
Manoel da Nóbrega prontamente atendida pelo reino; o que se pode entender
como um índice de que o discurso religioso e o poder vigente eram uníssonos
e com interesses mútuos, sendo que um fortalecia ao outro.
Pouca coisa mudou no cenário que se modernizou, como se vê numa
observação atenta da realidade política contemporânea; no país que hoje é
República, padres e pastores são deputados e senadores e, quando não
personificam os cargos, são ecos ouvidos na decisão de quem será. O ideal de
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um Estado Laico é pouco mais que utopia impressa em nossa Constituição


(1988), posto que a lei segue intimamente ligada aos dogmas religiosos e à
ética do discurso cristão.
Diante do exposto, aclaramos da seguinte forma os intentos desta
pesquisa que tem em sua metodologia o cunho qualitativo, bibliográfico e
descritivo, e que se utilizará do método analítico em seu desenvolvimento:
sendo do homem branco e vencedor das batalhas e conquistas - semelhante
ao herói da Epopeia - a voz ouvida no discurso histórico oficial brasileiro, como
Ana Miranda, ao recriar ficcionalmente um Brasil Colonial, subverte, corrompe
e propõe uma (des)leitura desse discurso através da narrativa de uma mulher?
Como a narrativa promove uma releitura do real por meio do discurso ficcional?
Em outras palavras, quais os efeitos de sentido promovidos por esta nova
leitura da História?
Para responder às questões acima expostas, nos valemos dos estudos
de outros pesquisadores que, através de um ou outro olhar, também buscaram
compreender a obra de Ana Miranda. O estado da arte de Desmundo (1996)
pode ser considerado amplo, sobretudo depois da adoção da obra pelo ENEM
e por demais formas de ingresso às Universidades brasileiras. Muitos trabalhos
acerca do romance de Miranda estão voltados à riqueza no detalhamento e no
cuidado com a reconstrução histórica do Brasil colonial pelo viés ficcional, com
estudos da teorização do romance histórico contemporâneo que trazem a voz
da mulher como protagonista e ainda com a adaptação cinematográfica de
Alain Fresnot (2002).
As abordagens das pesquisas são as mais diversas: o foco na
linguagem com alta potência poética da narrativa, a opção pela forma diário, a
importância de estudar o gênero e a presença do feminino. Os trabalhos
apresentam relevância no sentido de que ajudam a elucidar um Brasil que é
pouco conhecido, posto que é narrado por um personagem atípico dentro do
que pode ser considerado como a voz tradicional nos relatos oficiais.
Destacamos aqui, entretanto, dois estudos do campo literário que são
fundamentais na nossa análise de Desmundo (1996): a tese da pesquisadora
Mariléia Gärtner, Mulheres contando história de mulheres: o romance histórico
brasileiro contemporâneo de autoria feminina (2006) e o trabalho do professor
18

Antonio R. Esteves, O romance histórico brasileiro no final do século XX: quatro


leituras (2007).
Os trabalhos selecionados auxiliam sobretudo na fundamentação teórica
por sua vasta bibliografia e na discussão histórica desta pesquisa, pois é
possível perceber que há em cada um deles a preocupação de trazer os fatos
oficiais entrelaçados ao discurso literário. Gärtner (2006) discute a importância
da presença feminina e sua ascensão no gênero, além de trazer as teorias que
buscam elucidar os conceitos de romance histórico, romance histórico
contemporâneo e de metaficção historiográfica. Já Esteves (2007), que dedica
seus estudos acadêmicos ao romance histórico contemporâneo brasileiro,
apresenta novas possibilidades de leitura de Desmundo, sem descuidar dos
fatos históricos expostos pelo viés literário.
No campo da pesquisa histórica, entretanto, buscamos referências em
Mary Del Priore, cuja pesquisa apresenta uma rica imagem acerca das
condições da mulher no Brasil Colônia, sobretudo no referente a questões do
corpo e de mentalidade. Ainda que já se tenha discutido amplamente a
relação muitas vezes imbricada entre os discursos histórico e literário, pouco foi
dito sobre a importância de se pensar o viés ficcional como um instrumento
válido de leitura crítica da realidade contemporânea. Ao se refletir
conjuntamente as teorias de György Lukács e Linda Hutcheon com a
perspectiva histórica de Mary Del Priore dentro do romance de Ana Miranda é
possível perceber a importância de se enxergar a mulher como atuante na
construção social desde sempre.
A história oficial comumente relega ao ser feminino um papel de agente
passivo dentro da colonização brasileira, mas, através da proposta desta
pesquisa, pode-se compreender a corrupção e a subversão desse discurso. É
preciso ler o passado com um olhar menos inocente na tentativa de
compreender o lugar que (des)ocupamos hoje. Também pretende-se
significativo para os estudos literários porque, ao pensar as divergências e
convergências teóricas de sua fundamentação, traz a ideia de uma atualização
da leitura de Lukács ao colocar uma mulher enquanto protagonista de um
gênero que, para o crítico, era intrinsecamente ligado ao masculino.
Os nossos objetivos, portanto, são: buscar uma análise da subversão do
discurso da história oficial através dos ecos das vozes femininas ficcionais em
19

Desmundo, em especial de sua protagonista, Oribela. Para além, desejamos:


a) verificar, a partir da fundamentação teórica, a subversão do discurso oficial
notada em Desmundo; b) refletir, a partir dos conceitos de György Lukács em
‘Romance Histórico’, e de Linda Hutcheon em ‘Metaficção Historiográfica’, as
construções do feminino no romance de Ana Miranda e, finalmente, c) pensar a
importância da ‘Voz do Excluído’ na reconstrução histórica através da Literatura
como uma forma de ampliar o quadro da história oficial com que fomos
pedagogicamente educados.
Construímos os nossos objetivos a partir da hipótese de que Ana
Miranda propõe a (des)leitura da história oficial por meio da subversão do
discurso ao dar a voz às personagens femininas em sua obra, e de que a
literatura - através da opção pelo viés ficcional do ‘romance histórico’/ ‘romance
histórico contemporâneo’/ ‘romance-diário’ - pode servir como instrumento para
uma leitura crítica da realidade contemporânea ao expor, através do seu
enredo, as condições de vida das personagens mulheres num Brasil que ainda
nos é desconhecido. Através do microcosmo de Oribela, podemos
compreender os desafios enfrentados pelas primeiras mulheres que
desembarcaram no Brasil Colônia e perceber que muitas dessas questões por
elas confrontadas ainda não foram totalmente superadas por nós mesmos.
A demanda dessa pesquisa no sentido de conceituar o romance
histórico, será respondida com a teoria literária de György Lukács na obra O
romance histórico (1936). Com uma visão tanto hegeliana quanto marxista da
importância da história e da influência que esta exerce sobre o comportamento
humano e sobre a formação do sujeito contemporâneo, o pensador húngaro
pontua que somos o resultado direto dos processos históricos a que fomos
submetidos e que eles têm papel fundamental no pensamento do indivíduo.
Na tentativa de compreender como podemos questionar, refletir
criticamente e corromper o discurso oficial através da voz de personagens
fictícios, estaremos respaldados em Linda Hutcheon, com seu conceito de
metaficção historiográfica, presente em sua obra Poética do pós-modernismo:
História, teoria, ficção (1991). Para a pesquisadora, a literatura tem, também,
um compromisso de dar voz àqueles que foram excluídos dos relatos
tradicionais pelas relações de poder estabelecidas no decorrer da história; em
nosso objeto de estudo, essas vozes emergentes são as femininas.
20

Para apresentar os retratos históricos das mulheres no Brasil colônia -


sobretudo no concernente ao corpo, às condições femininas e à sexualidade -,
traremos as pesquisas de Mary Del Priore publicadas em Ao sul do corpo
(2009).
Em busca de maior clareza e organização, optamos por estruturar nossa
pesquisa em três capítulos. O primeiro, György Lukács e a voz no romance
histórico, apresenta o conceito de romance histórico com o qual trabalharemos,
bem como a perspectiva do crítico diante do gênero e sua convicção de que a
história é determinante na formação do homem. O segundo, A Metaficção
Historiográfica e as vozes subversivas, expõe a ótica de Linda Hutcheon
acerca do diálogo entre história e literatura e o quanto há de potencial dentro
do campo literário para pluralizar o discurso singular e oficial imposto pela
história, dando, sobretudo, voz a quem foi silenciado. No terceiro capítulo,
Mulheres que gritam, trazemos a análise das personagens femininas do
romance e o que podemos ler na subversão desses discursos. Nos propomos,
através dessas vozes ímpares, aprofundar nossos conhecimentos de
passagens históricas do Brasil Colônia, experimentar os desafios de suas
primeiras habitantes e a fazer uma crítica do que foi constatado ao longo da
redação deste trabalho. Assim, percebemos que as teorias auxiliam para
ampliar a leitura da obra, mas não podem, e não devem, reduzir as
possibilidades da arte. Assim concebemos Oribela: é a moça típica de Lukács,
que, modificada pelas circunstâncias de uma vida que não escolheu, se
transforma na heroína periférica de Hutcheon e, emudecida pelo patriarcalismo
do mundo aonde viveu, encontrou sua voz e sua liberdade no discurso poético
de seu diário. Compreendemos, portanto, a Literatura como um espaço de
liberdade e catarse, como um campo onde é conferida a opção da palavra a
quem foi brutalmente esquecido e excluído das narrativas históricas.
21

Capítulo I

Narra Oribela, a moça que, por circunstância e condição


histórica perdeu seu direito de ser senhora do próprio
destino e que, arbitrariamente, cruzou o Atlântico para
desembarcar em um Brasil de degredados, casar-se
forçosamente com um colono e assim garantir a
propagação da raça branca na Colônia ao mesmo tempo
em que fortalece o dogma religioso do sexo somente
dentro do casamento:

“(…) As mancebas, nenhuma de nós dormia, de boca


fechada, os ouvidos alongados, cada qual a pesar em
seu coração que dias viriam, que ventos assoprariam, o
que haveria ali, recolhidas aos pensamentos de nossa
fortuna, ocupando-os no sentimento das coisas que nos
mais doíam, numa quietação de pouco sono e medo das
nossas próprias imaginações, as quais nos faziam
desejar grandemente a chegada da manhã, porque tudo
quanto podíamos estender aos olhos era a pequena
ordem com que a desventura nos tinha cortado a vida.”
(MIRANDA, 1996, p. 21).
22

CAPÍTULO I

GYÖRGY LUKÁCS E A VOZ NO ROMANCE HISTÓRICO

1.1. Literatura ou História? Poeta ou historiador?

Longo e imbricado é o relacionamento estabelecido entre os campos


histórico e literário, embora tenha havido constante cisão entre eles dado o
surgimento de novas formas de pensar e analisar os estudos humanos. Ainda
que ambos contem, cada qual a seu modo, a história do Homem e os
processos a que foi submetido, e que sejam importantes instrumentos para
uma leitura e compreensão crítica da realidade e do mundo que nos cerca,
essa relação também é permeada por profundas diferenças. Enquanto a
História busca subjetivar o mínimo possível a sua narrativa, a liberdade
ficcional do poeta – como colocada pelo pesquisador Alcmeno Bastos –,
oriunda da Literatura, permite uma nova forma de se ler e, a partir de então,
analisar os fatos. Sem negar que o romance é criado, sobretudo, à luz da
verossimilhança, é essa liberdade de invenção propiciada pela arte a principal
distinção entre esses dois discursos.
No Século XIX, o mundo experimentava revoluções e tensões entre as
classes que resultariam em novas organizações sociais, matéria rica para o
campo literário: o romance histórico nascido à época forjou-se no hibridismo
entre romance – ficção, e portanto, criação – e História, passível da verificação
oficial de nomes, eventos, registros, datas e etc.
Para Bastos (2003),

O romance histórico, surgido no século XIX, também combinava


matéria de extração histórica e dados estritamente ficcionais,
recolocando o problema teórico dos limites entre história e ficção. A
modernidade contestou o modelo do romance histórico “clássico”,
romântico, especialmente quanto ao triunfalismo e ao distanciamento
temporal do narrador (p.11).

O surgimento do romance enquanto gênero acompanha as profundas


mudanças sociais de seu tempo. O Homem já não é, então, um ser coletivo,
posto que a ascensão da sociedade burguesa trouxe consigo o individualismo
e, então, o ser subjetivo que viria a ser o protagonista e, por vezes, narrador
23

das obras literárias. Este ser subjetivo que narra – sob a liberdade ficcional do
poeta – as convulsões sociais de sua época, sujeito que não se encaixa no
mundo à sua volta, que se incomoda, que não cabe nos espaços previamente
delimitados de pertencimento, que não consegue ser parte inteira de um todo,
que se inquieta igualmente com movimento e inércia, que ignora o modus
operandi de uma sociedade, que não se encaixa, que está constantemente em
crise e que lança sobre o cosmos uma visão particular dos fatos históricos que
vivencia,
Lukács, na esteira de Hegel, entende que o romance é a epopeia da
burguesia, desprovida, porém, da antiga grandeza, pois agora o
poeta não mais pode ser o cantor de uma comunidade, já que a
sociedade de que faz parte está dividida em classes que se
antagonizam a partir de interesses divergentes. (…) Do romance está
banido o mito e, por extensão, o maravilhoso. A matéria narrada é
restrita ao universo da experiência humana, e isto sem dúvida
facilitou o aproveitamento da matéria de extração histórica (BASTOS,
2003, p.14).

Porém, se tanto as relações simbióticas entre História e Literatura,


quanto o modo de analisá-las e apartá-las, foram modificadas ao longo dos
anos, é importante para os estudos literários que se definam conceitos e
teorias sob as quais se embasem as possibilidades de leitura de uma obra
ficcional. Neste estudo, adotamos a reflexão teórica do pesquisador Alcmeno
Bastos, que assim conceitua o romance histórico:

Postular para o romance histórico um conceito ancorado nos


seguintes pontos: a) a obrigatoriedade de a matéria narrada ser de
extração histórica; b) instauração de um efeito de historicidade,
mediante emprego de recursos ficcionais alternativos; c) existência de
vínculos de solidariedade entre a trajetória da personagem e a da
comunidade de que ela faz parte; d) presença, no nível da
textualidade, de marcas registradas de procedência histórica; e)
remoticidade da matéria narrada, a despeito da precariedade de sua
determinação cronológica; f) presença, explícita ou não, de um
epílogo a respeito da matéria narrada (2003, p.24).

Outra característica singular do pensamento de Bastos nos interessa


particularmente nesta pesquisa, que se trata da maneira pela qual ele percebe,
e que é igualmente relevante para a narrativa histórica, o cotidiano do homem
comum – presente, sobretudo, na obra literária – e os grandes e notáveis fatos
repercutidos nos livros de história, além de reiterar sua conceituação de
romance histórico:
24

E não apenas as batalhas sangrentas, os lances diplomáticos de


envergadura, as calamidades dizimadoras cabem na denominação,
mas também a jornada cinzenta e cotidiana do homem comum. (…)
Essa ficção histórica nossa contemporânea discrepa do modelo
romântico em muitos aspectos, tais como a ausência de triunfalismo,
a diferente perspectiva temporal do narrador, a explicitação de sua
natureza ficcional e conseqüente caráter autorreflexivo, intertextual.
(…) A ficcionalização de personagens históricos com apoio da
metaficção e da intertextualidade (BASTOS, 2003, p.19).

Quando refletimos conjuntamente as reflexões de Bastos ao romance-


fonte aqui analisado, é possível notar que Ana Miranda faz uso, em Desmundo
(1996), dos elementos acima apontados pelo crítico, como veremos com mais
profundidade e detalhes nos próximos capítulos.
A narrativa de Oribela, aberta por epígrafes históricas e poéticas, se dá
em paralelo à História do Brasil. E estar-ser esse Brasil desmundo afeta a
personagem de maneira irrevogável – a fim de sobreviver às circunstâncias
impostas por forças maiores que as suas, a protagonista muda sua conduta e
se reconstrói, provando assim que a História é definitiva na construção do
presente e da mentalidade do Homem de seu tempo, sendo este também o
sujeito do romance.
Interessante perceber como Ana Miranda faz uso recorrente, por
exemplo, da ficcionalização de personagens históricos (para citar, por ora, o
Padre Manoel da Nóbrega), e da intertextualidade com outros gêneros
(implicitamente com os contos-de-fadas tradicionais, além do uso explícito da
poesia em prosa) e romances. No que se pode, então, ler o hibridismo como
forte tendência na Literatura contemporânea. Este hibridismo é, também, a
mescla de gêneros que acaba por fugir à regra das teorias clássicas que exclui
o diálogo entre os gêneros literários e os discursos interdisciplinares que são
possíveis entre a Literatura e demais áreas de conhecimento humano.
Atendendo à apropriação do campo literário aos ecos da narrativa
histórica, portanto, pode-se, cada vez mais, propor uma leitura crítica da
realidade e convidar o leitor a uma autorreflexão das questões implícitas na
obra. O romance histórico, como proposto por Bastos, reafirma o potencial de
uma literatura para além da fruição, de uma literatura que cumpre, também,
certa função social. Assim, o entrelaçamento dos discursos histórico e literário
contribui para nossa observação crítica do mundo e toda a leitura que se possa
fazer dele.
25

1.2. György Lukács e a voz no romance histórico

Com uma visão tanto hegeliana quanto marxista da importância da


História e sua influência sobre o comportamento humano e a formação do
sujeito contemporâneo, Lukács assegura que

A particularidade dos homens ativos derivar da especificidade


histórica de seu tempo. (…) É uma clareza sobre a história como
processo, sobre a história como precondição concreta do presente.
(…) Assim, criam-se possibilidades concretas para que os homens
apreendam sua própria existência como algo historicamente
condicionado, vejam na história algo que determina profundamente
sua existência cotidiana, algo que lhes diz respeito diretamente
(LUKÁCS, 2011, p.33-40).

Para ele, somos o resultado direto dos processos históricos a que fomos
submetidos, os quais têm papel fundamental no pensamento do indivíduo. E,
se é o sujeito do romance a representação literária e ficcional do homem
comum de seu tempo, com este sujeito ficcional não poderia ser diferente. O
crítico acrescenta:
Nessa representação magnificamente realista do presente incluem-se
acontecimentos significativos da época que, no enredo, estão ligados
aos destinos dos homens figurados. (…) Fielding até possui certa
consciência dessa práxis, desse processo de concretização do
romance em direção à apreensão da particularidade dos homens e
dos eventos figurados. Ele chama a si mesmo, como escritor, de
historiador da sociedade burguesa (LUKÁCS, 2011, p.34-35).

Ao discorrer, por exemplo, ao que tange a necessidade de se olhar


para o passado glorioso em busca da compreensão dos motivos que levaram a
sua queda, ele afirma que a representação artística da História, na Alemanha,
era pressuposto para um renascimento cultural de um país em crise. E, que,
por causa disso, foi nesse país que a historização da arte emergiu
pioneiramente e com mais força, antes mesmo do que nos países então mais
estáveis, tanto política quanto economicamente do Ocidente.
Pensando o romance enquanto gênero, sabe-se que uma das suas
principais características é particularizar sensações, sentimentos, visões,
idéias, desejos, volições e a singularização do ser humano enquanto sujeito,
enquanto indivíduo. Se antes a Literatura – sobretudo a Poesia – prezava pela
universalização, com a ascensão da sociedade burguesa – marco do romance
enquanto gênero ascendente –, o foco passou a ser outro: do sujeito coletivo,
com raízes fincadas no pensamento de comunidade, o ser humano passou a
26

ser valorizado como unidade singular, como um “eu” distinto de todos os


outros.
Em Lukács, é possível perceber que o modo como cada sujeito
experimenta e vive a história de seu tempo e, sobretudo, a maneira pela qual
este opta por narrá-la, podem determinar a forma do romance histórico:

(…) Para darmos apenas um exemplo, basta ler as memórias juvenis


de Heine em O livro de Le Grand, em que ele retrata com vivacidade
o modo como a rápida mudança dos governos afetou o menino
Heine. Se a essa experiência vem unir-se o reconhecimento de que
tais revoluções ocorrem no mundo inteiro, fortalece-se
extraordinariamente o sentimento de que existe uma História, de que
essa história é um processo ininterrupto de mudanças e, por fim, de
que ela interfere diretamente na vida de cada indivíduo (LUKÁCS,
2011, p. 38).

Descartando a idéia de que a História seja um agente passivo na vida do


Homem, o teórico considera que seja de um pensamento extremamente
reacionário não atribuir a ela um papel de caráter transformador. Assim sendo,
as constantes lutas de classes e as rupturas comportamentais propostas pelas
revoluções servem, também, como molas propulsoras para um novo pensar,
como um trampolim para uma nova concepção e o estabelecimento de outros
paradigmas para a humanidade.
Em O romance histórico (1936), o autor realiza um levantamento
detalhado das mudanças nas estruturas sociais que abalaram a Europa —
berço do romance, e, com ele, do romance histórico —, e pontua como de
fundamental importância histórica na formação da consciência da humanidade
as sucessivas guerras e as Revoluções, sobretudo a Francesa e a de 1848
(ano da fuga do Rei Luís Filipe para a Inglaterra, da instauração da República
Francesa, dos conflitos emergentes entre a burguesia e o proletariado, da
polarização política que ganhava cada vez mais força e da publicação do
Manifesto Comunista, de Marx e Engels).
Neste cenário e sob esta argumentação como ponto principal de sua
teoria, ele coloca que o escritor escocês Walter Scott é, sem dúvida, o marco
do romance histórico e de uma nova expressão artística dentro da literatura:

Scott integra o grupo daqueles grandes escritores cuja profundidade


se expressa sobretudo em suas personagens, uma profundidade que
eles próprios com frequência não compreendem, porque surge do
domínio verdadeiramente realista do material, em conflito com suas
visões e preconceitos pessoais. (…) E Balzac ressalta, em sua crítica
27

a A Cartuxa de Parma, de Stendhal, os novos traços estéticos que o


romance de Walter Scott introduziu na literatura épica: o amplo retrato
dos costumes e das circunstâncias dos acontecimentos, o caráter
dramático da ação e, em estreita relação com isso, o novo e
importante papel do diálogo no romance (LUKÁCS, 2011, p. 46-47).

É este, pois, o sujeito do romance e que, a partir da nova estética de


Scott, torna-se observador da realidade histórica em que vive e na qual está
inserido. Um narrador das mudanças do seu tempo que é também, ao mesmo
tempo, o homem comum e mediano.
Complementando os principais traços do romance histórico delineados
por Scott, Lukács (2011) ressalta a ausência da fala do presente, a não-
abordagem direta das questões sociais deste presente (como, por exemplo, a
incisiva luta de classes), a resposta desses conflitos e questões históricas pelo
viés da figuração ficcional, a realidade histórica também através dessa mesma
figuração ficcional e a tendência fundamental da expressão da figuração dessa
ficção no modo como o autor tece a trama e escolhe a personagem principal.
Ana Miranda, em Desmundo (1996), optou por dar voz a uma mulher na
reconstrução ficcional do Brasil Colônia: Oribela, sua protagonista, não oferece
respostas aos conflitos ou julgamentos profundos de valores; ela narra,
simplesmente, o que vê e como o percebe a partir de sua perspectiva singular
– e o que ela enxerga é um Brasil também pouco conhecido. E, por meio de
seus olhos, notamos questões pouco levantadas em nossos livros didáticos
mas muito bem expostas na literatura que elege o romance histórico enquanto
registro escritural de uma obra. Pouco nos foi ensinado em relação ao papel e
os (des)lugares da mulher na Colônia — da índia nativa, da negra escravizada
e da branca degredada. Mas elas sempre estiveram lá. Aqui.
Embora sempre tenham estado aqui, são ilustres desconhecidas da
nossa História. Pouco se discute no ambiente escolar sobre as condições da
mulher — e das mulheres — no Brasil Colônia. Ao sul do corpo (2009), obra da
historiadora Mary Del Priore, contribui em muito com os mais recentes estudos
que buscam reconstruir a imagem que teria tido a mulher — essas mulheres,
plurais e heterogêneas — nos primeiros anos de Brasil, colaborando para que
tenhamos uma dimensão do histórico dentro da ficção de Ana Miranda sob o
aval teórico de Lukács:
28

Da mulher indígena herdava-se, neste momento, o espólio de


tradições que ela detinha na estrutura tribal. A mulher branca
contribuiu com modos de viver e morrer importados com a emigração
de Portugal, modos estes, muitas vezes, também trazidos de outras
terras, reelaborados na Metrópole e trasladados para o Brasil. As
sociedades africanas do tipo sudanês e banto, de onde saiu grande
parte do tráfico negreiro, legaram à vida colonial comportamentos e
mentalidades características do espaço que a mulher ocupava em
seu interior (DEL PRIORE, 2009, p. 21).

No gênero romance, reconhecemos que esteja elucidado que tanto o


narrador quanto a personagem principal ocupam uma posição de prestígio na
obra; é através do microcosmo de um desses olhares que o leitor tende a
enxergar a narrativa (e, possivelmente, a História) por um ou por outro viés,
justamente por esta narrativa que serão despertadas ou atribuídas questões de
empatia, de alteridade, de entendimento, de compreensão e até mesmo de
arrebatamentos.
Mas não é sempre que o herói ou a heroína de uma obra possui
posições claras ou apaixonadas, a favor ou contra as questões sociais que
ambientam o seu tempo. Em Scott, é ressaltado o equilíbrio ideológico de suas
personagens, validando assim a teoria de Lukács de que uma das principais
características do romance histórico é, de fato, a não abordagem pelo discurso
direto desses conflitos sociais através da tomada de posições, e sim pelo viés
ficcional:

Seu entendimento do problema do presente não é profundo o


suficiente para resolver essa questão dos processos de
marginalização. Por isso, ele desvia da temática e conserva, em sua
figuração, a grande objetividade histórica. (…) A grandeza de Scott
está em dar vida humana a tipos sociais históricos. Antes de Scott, os
traços humanos típicos, que se evidenciavam em grandes correntes
históricas, jamais haviam sido figurados com tal grandiosidade,
univocidade e concisão. E, acima de tudo, jamais essa tendência da
figuração havia sido trazida conscientemente para o centro da
representação da realidade. Isso também se aplica a seus heróis
medianos (LUKÁCS, 2011, p. 50-51).

Se nas formas mais tradicionais de romance, ou na epopeia, as


personagens apresentam características muito evidentes sobre suas
personalidades e são comumente polarizadas entre “boas” e “más”, além de
donas de grandes feitos, nos romances históricos de Walter Scott analisados
por Lukács isso fica um pouco mais subjetivo.
Por também (re)contar a História e se apropriar dos seus fatos, para
Lukács, o romancista histórico deve tomar o cuidado em não defender posições
29

ideológicas ou fazer apologias a esta ou àquela corrente social através de sua


narrativa; logo, suas personagens com frequência assumem um caráter
mediano – justamente pela discrição e ocultamento ideológico – e sempre no
sentido de retratar ficcionalmente o homem comum da época na qual se
ambienta a trama.
Tais traços também podem ser observados em Desmundo: Oribela, a
moça comum de sua época, reparava, assustada, o seu derredor. Vivia o
choque diário entre o que lhe fora ensinado na metrópole e a dura realidade da
colônia. Por anos de sua vida viveu a salvo da barbárie crua das guerras,
reclusa em um convento. Todavia, ao desembarcar no Brasil, testemunhou os
constantes conflitos entre o colonizador português e os índios nativos em suas
tentativas de resistência à colonização:

Queriam os homens das naus levar naturais cativos, para os


venderem e fazerem mostra pública, bem adornados, podiam ser
fêmeas ou machos. Uns cristãos se metiam em roupeta da
Companhia, iam às tribos saltear, diziam aos naturais que os iam
levar para a terra do mel, mandavam as mães seus filhos,
enganadas, que logo se viam embarcados eram os padres falsos
seus senhores e os metiam em porões com algemas no pescoço e os
vendiam como escravos. Outros fundeavam suas caravelas e faziam
anúncio de que traziam coisas para vender, enchiam as naus de
naturais da terra e logo assim vista a nau os metiam em algemas,
zarpavam fazendo deles escravos e os vendiam pelas capitanias da
costa do Brasil. Tribos faziam guerra entre si ou contra os cristãos e
conservavam os prisioneiros dando as mulheres da tribo para que
delas se servissem e que os nutrissem (…) (MIRANDA, 1996, p. 49).

Antes de retomar a discussão teórica a qual nos propomos, abrimos aqui


um parêntese e convidamos à leitura de um relato tratando das guerras
intertribais e dos conflitos constantes na Colônia. Assinada por Padre Manoel
da Nóbrega e datada de 10 de agosto de 1549, a narrativa histórica (e,
portanto, oficial) parece ter uma carga de subjetividade maior do que a ficcional
acima transcrita:
Têm guerra uns com os outros, uma geração contra outra geração, a
dez, e quinze, e vinte léguas de maneira que todos entre si estão
divididos. Se acontece que tomem alguns dos contrários na guerra
trazem-nos presos algum tempo e dão-lhes as suas filhas por
mulheres e para que os sirvam e guardem, e depois os matam e
comem, com grandes festas e com ajuntamento dos vizinhos que
vivem ao redor; e se destes tais ficam filhos, também os comem,
ainda que sejam seus sobrinhos e irmãos e as vezes as próprias
mães e dizem que só o pai tem parte nele e a mãe não tem nada.
Esta é a coisa mais abominável que entre esta gente há. Se matam
algum na guerra trazem-no em pedaços e poema-no ao fumo e
depois o comem com a mesma solenidade e festa, e tudo isto pelo
30

ódio estranhável que têm uns aos outros (NÓBREGA apud LEITE,
1955, p.48).

Oribela, todavia, ao narrar o que vê, bem como suas percepções dos
conflitos entre portugueses e índios, não se coloca a favor nem contra
ninguém; se preocupa em apenas relatar a realidade à sua volta, no que se
pode concluir, com a leitura dos excertos acima, uma corroboração com a
teoria de Lukács ao mostrar uma heroína de caráter mediano, retrato ficcional
da mulher comum de seu tempo, que tinha quase nenhuma voz ou poder para
intervir em seu meio, além de pouca liberdade ou acesso ao conhecimento
sistematizado para opinar. O silêncio era uma roupagem constantemente
exigida pela organização social, e a ousadia à mínima demonstração de
sabedoria era freqüentemente paga com castigos impostos pela mesma
sociedade.
Esse emudecimento externo, entretanto, não coibia a nossa protagonista
de um aguçado senso de observação, que era, quase sempre, verbalizado
como um profundo fluxo de consciência nas páginas de seu diário. Na urgência
de relatar o novo mundo do qual agora tomara parte — fosse para absorvê-lo,
fosse pela necessidade humana da palavra — Oribela mergulhava em si para
experimentar tudo que estava fora e que lhe era, então, inédito.
Nas primeiras páginas do romance, por exemplo, é possível perceber
como Ana Miranda faz uso de longas orações, quase sem respiros, pausas ou
pontuações ortográficas, para demonstrar a necessidade latente e imediata do
relato e o estado de ânimos no qual se encontrava Oribela. E, certamente, para
aumentar ainda mais no leitor a sensação de fluxo de consciência.
Usado como recurso literário por diversos autores — James Joyce,
Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Virginia Woolf e Simone de Beauvoir,
para citar alguns — quando quiseram expor ao leitor a melancolia ou a
imprescindibilidade da fala sem interrupções, o fluxo de consciência é,
reconhecidamente, um método ficcional:

Muito ligado ao problema do foco narrativo é a apresentação, na obra


ficcional, do chamado fluxo de consciência. (…) Poderíamos definir o
método como a apresentação idealmente exata, não analisada, do
que se passa na consciência de um ou mais personagens. (…) Para
exprimir a continuidade dos processos mentais, cuja representação
tem sido buscada por alguns ficcionistas. (…) O leitor é orientado
para os fatos externos, para a situação, ao mesmo tempo que é
usado um estilo que caracteriza o personagem, apresentando-se a
31

sequência não lógica dos seus pensamentos (CARVALHO, 2012, p.


57-62).

No caso de Desmundo, insistimos, sobretudo, na questão da pontuação


ortográfica previamente exposta — ou de sua ausência quase que completa —
e até mesmo da mistura de línguas na fala de Oribela (que vai das estruturas
arcaicas do Português ao Espanhol, passando até mesmo ao Latim) como um
item essencialmente relevante a ser observado neste momento do nosso
trabalho, pois ambos nos mostram o estado emocional no qual se encontrava a
protagonista – a confusão que permeia o seu relato, que, muitas vezes,
demanda uma releitura para ser mais bem compreendido, o medo constante
mesclado à expectativa de uma nova vida e o desconhecer das terras que
seriam, gostasse ela ou não, seu novo lar: o desmundo que se desenhava
como sua realidade. Para além, a necessidade humana da expressão, da fala e
a opção pela verborragia de quem, em contraste, passou toda a sua vida sendo
silenciada.
Em semelhança à narrativa ora emudecida ora verborrágica de Oribela
— sempre em acordo com seus ânimos e pouca tendência ideológica —,
Carvalho oferece breve análise de uma personagem de Tolstói em Guerra e
Paz, que nos ajuda a jogar luz sobre as convergências teóricas entre Lukács e
o foco narrativo que envolve, também, o fluxo de consciência:

Nesse livro, o famoso romancista apresenta uma pequena


camponesa que, ao descrever um conselho de guerra, o faz de
maneira ingênua, de acordo com a sua mentalidade, sem perceber a
verdadeira natureza dos fatos que se passam (CARVALHO, 2012,
p.40).

Voltando à teoria do crítico húngaro e à análise ficcional, os conceitos


antagônicos como certo e errado, e bem/bom e mal/mau ganham outras
tonalidades, e a ética da personagem – aqui compreendida como as atitudes
que podem ser esperadas desta ou daquela personagem dentro da sua
construção histórica, respeitando os limites da verossimilhança – passa a ser
muito mais importante do que determinado julgamento do valor moral de
alguma ação que ela venha a cometer no decorrer da obra:

Pois a própria apresentação ampla e multifacetada do ser da época


só pode chegar claramente à superfície mediante a figuração da vida
cotidiana do povo, das alegrias e das tristezas, das crises e das
desorientações dos homens medianos. (…) A genialidade histórica de
32

Walter Scott, nunca mais atingida, evidencia pela forma como ele
apresenta as qualidades individuais de suas personagens históricas
centrais que estas realmente reúnem em si os lados mais marcantes,
tanto positivos quanto negativos, de determinado movimento
(LUKÁCS, 2011, p.56-57).

Aliás, no romance histórico essa mesma ética da personagem acima


citada é justamente um dos princípios mais respeitados do gênero e dos mais
valorizados dentro da teoria. É inconcebível, para Lukács, que determinado
personagem não aja de acordo como supostamente teria agido um homem real
da época em que o romance se situa. O conjunto de comportamentos e
atitudes esperadas do sujeito é um dos pontos mais fortes a ser observado
dentro da obra – muito mais do que a descrição detalhada ou talvez exaustiva
de cenários e contextos históricos; se esta personagem não materializa essas
ações que são dela esperadas, o romance histórico perde em verossimilhança.
Ora, mas é claro, posto que se o crítico pensa a História como formadora do
caráter – e, logo, da ética – do Homem, ele busca trabalhar essa mesma
questão na ficção através da personagem.
A mentalidade histórica do momento em que vive cada um desses
personagens é determinante para as atitudes que esse há de tomar diante de
uma ou outra circunstância que lhe é imposta dentro do enredo. A postura
dessas personagens diante dos seus dilemas psicológicos confere maior grau
de verossimilhança ao romance histórico do que o detalhamento fidedigno de
fatos históricos (procedentes ou não, o que para Lukács não tem menor
importância). Insistimos, portanto, que é, sobretudo, na personagem que reside
a verdade histórica para o crítico.
Tanto acreditava na potência da voz narrativa no romance que, como
podemos observar nas considerações acerca do romance histórico da
pesquisadora Marilene Weinhardt, Lukács sequer considerava o romance
histórico um desmembramento ou subgênero do romance. Para ele, as
personagens resolviam seus conflitos como no gênero original, inclusive com a
carga subjetiva comumente atribuída ao narrador:

Lukács acentua que o romance histórico não é um gênero ou


subgênero, funcionalmente distinto do romance. Sua especificidade,
que é a de figurar a grandeza humana na história passada, deve
resolver-se nas características gerais da forma romanesca, o que
inclui também a possibilidade de apresentar as figuras históricas em
momentos historicamente decisivos. A arte do romancista
consiste em colocá-las na intriga de modo que essa situação decorra
33

da lógica interna das ações. (…) O bom romance histórico resulta da


compreensão do relacionamento entre o passado histórico e o tempo
presente (WEINHARDT, 1994, p. 51-52).

Pouco nos é ensinado, em termos pedagógicos, sobre o papel da mulher


nos primeiros anos de Brasil. Nos livros escolares, é quase como se ela nunca
tivesse existido ou desempenhado um papel na construção do país se não
fosse nobre ou integrante da família real. Talvez por isso o fascínio pelo relato
de Oribela: a história desafiada, corrompida e (re)contada por outra voz é
subversiva. Se não há espaço no discurso oficial que segue ecoado na voz
uníssona do homem branco, a ideia é acolhida pela Literatura, que abre espaço
aos marginalizados e aos ilustres desconhecidos.
É possível observar isso com certa nitidez quando György Lukács reflete
a respeito dos heróis dos romances de Walter Scott:

Para ele, autenticidade histórica significa a singularidade


temporalmente condicionada da vida psicológica, da moral, do
heroísmo, da capacidade de sacrifício, da perseverança etc. É isso
que, na autenticidade histórica de Walter Scott, é importante,
imperecível, e marca época na história da literatura. (…) Scott deixa
que as grandes qualidades humanas, assim como os vícios e as
limitações de seus heróis, brotem do solo histórico claramente
figurado do ser. Ele nos familiariza com as peculiaridades históricas
da vida psicológica de sua época não por meio da análise ou da
explicação psicológica de seus conteúdos mentais, mas pela ampla
figuração de seu ser, pela demonstração de como as idéias,
sentimentos e modos de agir crescem a partir desse solo (LUKÁCS,
2011, p.69-80).

É sob o prisma desta teoria, que une a ética da personagem à época na


qual transcorre o romance histórico como principal fonte de atribuição de
verossimilhança à obra, que será pensada a narrativa da trajetória da jovem
Oribela em Desmundo.
Vejamos, então, brevemente: o primeiro poder de sua vida, o pai, atribui
a ela todo tipo de culpa. O segundo poder, o religioso, a oprime espiritual e
fisicamente com a negação de seu corpo e de sua sexualidade. O terceiro, o
poder político, lhe designa uma vida em um mundo que não deseja. O quarto, o
marido que lhe fora imposto, é cruel e atroz nos castigos e abusos físicos
cometidos contra ela. O fator comum entre todos esses poderes é que são
todos são masculinos.
A escolha do diário ficcional como meio literário sob o qual foi elaborado
o romance de Miranda, privilegiando a voz da protagonista, seu entendimento
34

do mundo, suas possibilidades diante dos desafios, sua natureza, a psicologia


de uma moça que viveu no Século XVI, seus discursos (histórico, religioso e
poético) imbricados e a potência de sua narrativa reforçam e reiteram a
colocação do crítico:
Para fazer com que tempos há muito desaparecidos possam ser
revividos, ele teve de retratar da maneira mais ampla possível essa
correlação entre o homem e seu ambiente social. A inclusão do
elemento dramático no romance, a concentração dos
acontecimentos, a suma importância dos diálogos, isto é, do conflito
imediato entre concepções opostas que se manifestam na
conversação, têm íntima conexão com o empenho em figurar a
realidade histórica tal como de fato ocorreu, de um modo que seja
humanamente autêntico e a torne passível de ser vivenciada pelo
leitor de uma época posterior. (…) Walter Scott nunca subestimou tais
elementos pictóricos e descritivos. (…) Mas, para ele, a
caracterização histórica do espaço e do tempo, o ‘aqui e agora’
histórico, é algo muito mais profundo (LUKÁCS, 2011, p.58-59).

Miranda, ao buscar a extensa bibliografia nas páginas finais de seu


romance, dedicou-se a apreender o universo que relatava e as pessoas que ali
estavam, que aqui viveram. É possível compreender e ampliar a nossa própria
visão histórica de um Brasil pelas atitudes das personagens, seus anseios,
seus passados, motivações que as trouxeram até estas terras além-mar e pelo
medo implícito que sentiam do futuro em uma nação que não contava, ainda,
com amanhãs; um Brasil recém-descoberto que dependia inteira e
arbitrariamente dos desejos monárquicos e eclesiásticos impostos por força
física ou coerção espiritual. Lukács, nesse sentido, acredita que a
compreensão do momento histórico na vida humana acaba, também, por forçar
uma concentração dramática da composição épica.
Ainda pensando na linguagem e na força do relato de Oribela, aparente
em seus escritos, é perceptível que esta encontra-se continuamente ligada às
mudanças pelas quais a personagem passa até se transformar em um novo
sujeito, em um sujeito que teve de se reinventar para sobreviver: no início da
narrativa – assustada com o novo e temível hoje de sua vida – apresenta um
discurso religioso contundente e, por vezes, intertextualidade com os contos-
de-fadas:
Estava eu com os sapatos de Dona Isobel, uns macios de pele,
atados por fitas de veludo preto e os descalcei, levei-os ao homem
que abriu o véu, espreitou muito a minha face num segredo de seu
pensamento e perguntou se eu era órfã do mosteiro, murmurei que
sim e nada mais que isso, cheia de tanto amor próprio e tão sentida
feito erva viva que se arrufa e se quebranta com o mesmo ímpeto,
sem mais mimos nem afagos. Um pouco menos que ninguém, atada
35

nos atamentos de ser um dos famintos do mundo e nem presumia de


mim mais que dos outros e seu olhar triste com manseza e dulçura
me fez suspirar, nas partes em que se semeia e se granjeia o
sentimento, aquentada no meu frio, fartada na minha fome, em
frescos jardins. Ordenou ficasse com os sapatos, se me cabiam
deviam ser meus e em joelho os meteu aos meus pés. Suas mãos
tremiam, fosse embora bravo e destemido na sua maneira, o que lhe
fez grande oposição. (…) Deus ia mandar castigos, monções
contrárias, pragas, fechar a porta do céu, grande opróbio aos
cristãos. Haveria muito de correr sangue, como o cordeiro derramara,
ia a gente dali suar gotas de sangue aos vestidos, bater os dentes
num choro, estavam em pecado mortal, ia mandar o pai muitas setas
de fogo, gemidos, chamas de enxofre que nunca acabam de queimar,
tal que o ímpeto de um rio de lágrimas não poderia apagar. Aguardai,
aguardai (MIRANDA, 1996, p.28-50).

Após as transformações que sofre ao longo da obra, a mulher emerge


com a quebra da inocência pueril da menina. Mais rebelde e consciente de si,
surge carregada de uma linguagem mais madura: simultaneamente à narrativa
das circunstâncias históricas que a levaram a uma nova vida, Oribela é,
também, modificada por elas, alterando, assim, as suas posturas. A constante
entre as mudanças da personagem, porém, é a presença do discurso poético
que marca toda a obra de Miranda:

Estando todavia a noite deitada em toda a terra, em suas trevas


escuras e em todas as vistas as estrelas, as candeias apagadas, as
velas assopradas, era que o mundo se dizia mundo, o do suspirar,
namorar sonhos, minha alma viajava por nuvens pretas, pelas
moradas do zodíaco, meus olhares esvaneciam, as lágrimas saíam,
meu espírito mulheril andava pelos chavascais, portos, pelas Índias,
casas dos amores, pelos pecados, nas raivas moídas, no querer bem,
nos altares, das danças do vento nos campos das oliveiras, a
adivinhar no curso das estrelas e nesse escuro dos gritos em silêncio
corria a vida de falsidade como de verdade fosse, mais funda se fazia
em mim. (...) E disse eu, sem haver em meu coração uma suspeita ou
uma dor, como se o quisera ver morto e acabado, mas como se não
fosse eu a falar e sim a outra que vivia dentro de mim, a mais
entendida do mundo e das verdades, como que um meu anjo a me
querer tomar das garras do encantamento, da servidão ao feitiço, de
que dava prova a vasta trunfa avermelhada que lhe coroava a
cabeça, de má-fé, desatino, um pérfido todo ternura e inconstância,
seus olhos de um aveludado que inspiravam torrentes de poesia e
lábios de onde pareciam brotar perfumes, que dificilmente se lhe
podiam descobrir as manhas e o pacto, a quem não havia leviandade
que lhe resistisse, pelos recursos de que se valia. (...) Salve, mulher
abençoada, flor e fruto de germe erupit, flor suavíssima emictens
odores, fruto saborosíssimo e doce, flor cuja bonitas expellit
mesticiam, fruto cuja saciedade plena dá leite, bendita flor que de ti
ascende (MIRANDA, 1996, p.105-187).

Como se nota com a leitura dos excertos acima, ao contrário de ferir a


questão da verossimilhança literária e sua relação com o histórico, as palavras
de Oribela reiteram o que se é sabido do papel social da mulher na época: a
36

submissão aos poderes políticos, religiosos e masculinos, porém com a


habilidade de perceber e sentir o mundo a sua volta, resistindo como podia e
buscando o seu lugar. Novamente evocamos Del Priore (2009) no tocante à
retratação do real e embasamento de nossa assertiva:

Resistência ou renúncia, fervor e potência mediaram a relação das


populações femininas com a Igreja ou com os desígnios do Estado
português, explicitando-se em práticas sociais, discursos literários ou
reproduções do seu universo. É importante destacar que parte do
contigente feminino - a quem tanto o Estado quanto a Igreja
ultramarina se dirigiam, recomendando que se casasse e constituísse
famílias - chegava aos homens pelo caminho da exploração ou da
escravização, acentuando, assim, nas suas desigualdades, as
relações de gênero (DEL PRIORE, 2009, p.22).

A presença da forte religiosidade na fala de Oribela e a intertextualidade


que remete aos contos-de-fada iniciais vão sendo corroídos e substituídos por
novos valores que interioriza no desmundo em que agora habita. É esperado,
pela ética da personagem, que ela se choque com a nudez das índias –
chamadas por Miranda de Naturais – mas, aos poucos, quando passa a existir
nessa nova realidade e assimilar esse mundo que lhe foi imposto, começa a
conceber a nudez em menor grau de pudor cristão e com mais naturalidade.
Este é, portanto, mais um índice de leitura de que Oribela está, todo o tempo,
se descontruindo e reconstruindo para ter uma mínima chance de sobreviver
ao destino e às desventuras sobre as quais não tem controle algum. Ela vive,
sobrevive, se desconstrói, se reconstrói e se constrói.
Nos primeiros dias após o desembarque da nau portuguesa e com os
pés em terras brasileiras, ela não se despe sequer para se banhar, e relembra
o valor moral da nudez que absorveu ainda na mais tenra infância:

E quando fomos para as abluções, muito se espantaram as bugras,


que nos queriam desnudar e nos meter na água cálida, qui, si, si,
mela, mela, qui, hi hi hi, açã, açu, a nos querer tirar as forças ou
matar, jogando nossos corpos dentro de um bacio grande e nos
pedindo as camisas, paieu? paieu? Meu pai mandava turvar a água
do banho com leite para não ver o meu corpo de criança, uma vez
alevantei da gameleira e ele me castigou com tantas vergastadas que
verti sangue pela boca. Água nas mãos e na fuça, fidalga. Água, no
mais, puta (MIRANDA, 1996, p. 43).

Porém, depois da terna amizade e do convívio diário com a índia


Temericó – com quem conversava sobre o seu passado no reino, aprendia a
língua nativa, que lhe tratava as feridas da pele infligidas pelo sol e pelo
37

marido, que a ajudou no parto do único filho e que lhe dava ânimo diário e
coragem para atribuir um ângulo mais positivo para a virada de sua vida –, a
narradora passa a perceber a nudez como uma consequência natural do calor
no hemisfério sul, desatrelado inteiramente da culpa cristã imposta ao corpo
feminino:
Aprendi a me desnudar, no quarto, após o banho, que havia um
frescor sobre a pele e se entranhando nela, uma luva de vento, um
véu de seda fria, que a roupagem abafava e incendiava. E ria ela. E
ria. Bom era viver numa casa sem homem a ordenar. (…) Eu pintava
o rosto de urucum, comia do prato das naturais e me desnudava nos
dias quentes, deixava os chicos chuparem meus peitos, dançava, de
modo que dona Branca veio baixar umas regras, antes que virasse eu
uma bárbara da selva e me metesse a comer de carne humana
(MIRANDA, 1996, p.126-127).

Em Moisés (1997), a importância do olhar desse sujeito para a descrição


do mundo exterior e do seu íntimo é bastante clara:

i i nis a a and na a is a r s i a d ni ers e a r


du a is i r s i a n o mais entender, nem reformar, mas
conhecer o homem no seu ‘eu su err ne e r urar enri ue er
ei r es e u das r prias mazelas (MOISÉS, 1997, p.287).

E assim, pela voz de Oribela, vamos conhecendo mais a fundo a


mentalidade da mulher na Colônia, os desafios enfrentados por nossas
primeiras habitantes, os choques culturais a serem superados e as relações
estabelecidas com o microcosmo onde viviam.
Como já previamente visto em Lukács, a História serve para muito além
de um mero e simples pano de fundo na ambientação temporal de um
romance; ela assume o papel de um quase protagonista, tão influente quanto
onipresente na vida e nas decisões dos outros personagens na trama da qual é
parte indissociável:

A história é muito mais que roupagem e decoração; é ela que


determina de fato a vida, o pensamento, o modo de sentir e agir das
personagens. (…) Sem abandonar o quadro completo do espaço e do
tempo, da psicologia condicionada pela época e pelas classes
(LUKÁCS, 2011, p.91-93).

Ao se refletir sobre a teoria de Lukács em conjunto com a pesquisa


histórica de Del Priore, joga-se uma luz e sugere-se uma nova possibilidade de
leitura do romance de Miranda: é possível conceber uma crítica à realidade
contemporânea vinda, justamente, através do discurso ficcional. A Literatura
cumpre, assim, um papel muitas vezes delegado à História, mas que acaba por
38

perder-se em termos críticos por oferecer somente uma voz, a mesma de quem
sempre contou oficialmente a única versão dos fatos e que acaba por excluir
todos os outros personagens que também a viveram e foram dela parte.
Pois, se somos mesmo – em concordância com a estética hegeliana-
marxista adotada por György Lukács e os apontamentos da pesquisa de Mary
Del Priore – o resultado direto dos processos históricos aos quais fomos
submetidos e aos quais sobrevivemos, pode-se inferir então que, quinhentos
anos depois, a narrativa ficcional de Oribela (que reconstruiu historicamente um
Desmundo chamado Brasil) ainda espelha a realidade de muitas brasileiras
contemporâneas em suas sagas reais e lutas diárias por um lugar ao sol.

1.3. Desmundo, um romance histórico contemporâneo

Publicado em 1996 pela Companhia das Letras, o romance estruturado


como narrativa epistolar, de 213 páginas, da escritora brasileira Ana Miranda, é
rico em símbolos e referências históricas. E é, também, forte em discursos,
ainda que não diga nada abertamente a quem faz uma leitura inocente das
suas linhas: a riqueza da obra está, sobretudo, nas múltiplas interpretações e
imagens que ela é capaz de oferecer a quem o lê, para saborear algo mais que
fruição. Ela está sendo contada no silêncio das margens e entrelinhas, a quem
o percebe para além da estória contada. A quem pode ler ali a História. A
nossa. Uma que desconhecemos. E uma que precisamos descobrir para que
nos ajude a apreender fatos que nos auxiliem a nos entender enquanto nação,
as raízes da nossa identidade e a construção que Del Priore (2009) classifica
como um longo processo de domesticação e de adestramento das mulheres
coloniais e que culminou com os abusos e violências cometidos
indiscriminadamente até hoje.
Embora a teoria de Lukács seja de extrema importância tanto para a
compreensão quanto para a conceituação de romance histórico aqui discutido
– e de modo algum este trabalho tratará sua visão da importância da história na
formação do Homem como algo ultrapassado –, gostaríamos de agregar a esta
visão principal alguns novos conceitos que vêm sendo utilizados na tentativa de
39

melhor ler, entender e abarcar as exigências e particularidades dos romances


históricos produzidos no Século XX e XXI, como é o caso de Desmundo.
Se não uma revisão teórica do crítico, ousamos propor um acréscimo: o
reconhecimento da autoria feminina. Em A teoria do romance (1962), Lukács é
contundente ao tratar do romance como um gênero literário intrinsecamente
ligado ao masculino, à virilidade. Para ele, homens o escreviam. Em seu
estudo sobre o gênero, não cita obras de escritoras, mesmo que algumas
delas, à sua época, já fossem clássicas. E, assim, acaba por cometer a
injustiça histórica de negar a voz da mulher, que, como sabemos, é excluída
dos relatos. Uma das funções do romance histórico que aqui tratamos é a de,
justamente, contrapor e reparar a surdez para outras narrativas além das do
homem branco – vencedor das batalhas e conquistas – e a universalização de
sua ótica dos fatos.
Doutora em literatura, a pesquisadora Mariléia Gärtner, aprofunda a
discussão ao afirmar:

Portanto, avaliando o romance histórico de mulheres publicado


atualmente no Brasil, percebe-se que esse subgênero parece permitir
a autonomia da narrativa feminina, sendo responsável por rupturas
significativas quando possibilita que o olhar da mulher passe do
espaço privado ao público, do seu limite familiar em direção ao
acesso ao trabalho, aos estudos, à informação. Ou seja, sustenta a
liberação da representação feminina, valendo- se de um discurso
histórico universal mais aberto e, finalmente, mais dialógico
(GÄRTNER, 2006, p.71).

Reconhecemos que somos um país miscigenado. Recebemos, em


nossa formação identitária, múltiplas informações genéticas e
comportamentais. Somos o resultado direto de diferentes povos que aqui se
encontraram. De sociedades que tinham visões distintas e que habitavam
continentes diversos. É no mínimo um contrassenso – um delírio, para ir além –
propor uma visão totalizadora, vinda de um único ponto de vista, para
compreender a pluralidade da nossa colonização. É reconfortante pensar, mais
uma vez, que a Literatura desponta como um meio – que de outra forma nos
continua a ser negado – para ampliar o nosso conhecimento do mundo e a
nossa leitura crítica da realidade contemporânea enquanto fruto semeado pelos
processos da história.
Gärtner discute, em sua tese defendida há pouco mais de dez anos, a
necessidade de ampliar os horizontes característicos do romance histórico, e
40

busca no pesquisador Mario Miguel González (2005) o embasamento teórico


para aprofundar suas ideias. Dessa forma, para eles, o romance histórico
ultrapassa a encenação inocente do passado e o uso da História meramente
como pano de fundo. Uma obra, quando escrita sob este viés, se abre para a
possibilidade de uma leitura analítica do processo histórico em si, por meio do
imbricamento dos planos históricos e ficcionais, embora sem deixar de lado a
proposta de György Lukács sobre a importância do protagonista e do ser
humano tanto na literatura quanto na história:

Nos romances atuais, isso continua acontecendo, mas com uma


especificidade histórica muito mais abrangente: questionamentos e
reajustes conceituais como os de centralização, verdade,
originalidade, em vez da mera recuperação de um momento histórico.
O romance contemporâneo não é simplesmente a revificação do
passado, como algo imobilizado pela história, mas uma revisitação
que usa trajes e idéias do presente, pois, como diz Mário Miguel
González (2005), ‘o romance histórico é o gênero mais próximo de
fazer da literatura narrativa a história-não-oficial dos povos,
particularmente dos vencidos a quem a história habitualmente negou
voz (GÄRTNER, 2006, p.31).

A reflexão de Mariléia Gärtner, portanto, permite que Oribela, ainda que


represente ficcional da moça típica do seu tempo, traga em si, também, a voz
dissonante do questionamento em detrimento do silenciar histórico, e o fogo
que lhe arde, rebelde e inconformista. Que seja da moça calada e excluída dos
relatos tradicionais o grito que precisa ser ouvido para compreender os ecos do
passado e romper com as verdades absolutas das nossas heranças. Sobre
isso, a pesquisadora Maria Cristina Vieira (2000) pondera que:

O passado torna-se, então, não uma fonte de inspiração para uma


agradável evasão, mas pelo contrário, um tempo hetorodoxamente
revisitado, com um certo caráter perturbador, uma vez que se duvida
da possibilidade de acesso à verdade, pois a história é concebida
como um conjunto de verdades ou versões que se degladiam, sendo
a história oficial a versão vencedora sobre múltiplas outras que
poderiam ser tomadas em consideração (VIEIRA, 2000, p.127).

Aqui, Ana Miranda – ao dar a voz de um romance histórico


contemporâneo a uma narradora – aponta importantes reflexões sobretudo no
que escreveu nas entrelinhas: a opressão da mulher na construção de um
Brasil que ainda não tinha tomado a forma de nação, e a possibilidade de que
essas questões não tenham sido superadas na contemporaneidade, posto que
é factível que o leitor reconheça na trajetória de Oribela fatos ainda atuais,
41

reiterando, assim, György Lukács e sua visão hegeliana-marxista da função da


história na formação humana:

Entre divagar sobre o poder de Deus, do rei, do papa, sendo cada um


soberano, um da alma, um do corpo, um da fé, seus sacerdotes e
seus círios, fiquei. Que governavam nosso espírito em trabalho de
agonia, só na reverência havia salvação, uma triste hora antes que
anoitecesse tão pasmada estava eu, com tanto medo de ser
castigada, que que me atrevera a declarar com palavras mais nada
enquanto pensava no poder que movia meu ser infeliz, a alma em
despedaços e quem é que fazia a justiça desse mundo, se Deus tinha
orelhas tão grandes assim para meu ínfimo murmúrio. Fora eu
roubada de tudo quanto levava (…). E afinal viria a pena, conforme
requerimento de que se provavam alguns ruins indícios em minha
alma, que em minha defesa se contrariava coisa alguma, para que
com o castigo público emendasse minha vida. (…) Que gente somos?
Como andamos destarte? (…) Passara a ler um livro inteiro que
trouxera num baú, explicando a compreensão, história que se
compunha em verso, desculpando em ser a leitura tanta que pudesse
causar fastio e já a conhecia eu de longe pela voz, que fizera passar
o tempo, sem entender o sentido dos versos, mas acalentada pelo
cantar, pelo tratado das coisas de que eu não entenderia, da
compreensão das estrelas, do fim do oceano, do abismo, da língua
dos padres, como uma cega levada pelo vento (MIRANDA, 1996,
p.86).

Mais que isso, a autora usa a fala de Oribela para implicar um diálogo
silencioso com os poderes patriarcais e religiosos vigentes em sua época.
Miranda dá a voz à Oribela mas, por meio da protagonista, se ouvem também
os discursos de opressores e oprimidos que reconstroem – ficcionalmente – a
história brasileira. A estudiosa aponta ainda outros fatores que vão abrindo
espaço para novas propostas e teorias crítico-literárias do conceito de romance
histórico contemporâneo, formuladas e repensadas a partir do romance
histórico de Lukács.
Alguns dos traços ressaltados pela pesquisadora são: a subordinação da
reprodução mimética do período histórico à apresentação de idéias filosóficas,
a impossibilidade de conhecer tanto a verdade histórica quanto a realidade, a
distorção consciente da história - por omissões, anacronismos ou exageros –, a
ficcionalização de personagens históricos conhecidos, a presença da
metaficção ou de comentários do narrador, o uso da intertextualidade, a
variedade – dos temas abordados, das personagens e das formas –, e que a
obra traga uma ação que aconteceu numa época anterior ao seu autor, sendo
que a distância cronológica é dos itens que merece considerável atenção,
42

negando, assim, à narrativa testemunhal, um caráter histórico (GÄRTNER,


2006).
Das características acima elencadas por Gärtner, nesta pesquisa, nos
ateremos à questão da ficcionalização de personagens históricos conhecidos,
da presença da metaficção e do uso da intertextualidade, fatores esses que
interessam particularmente à nossa análise, posto que Desmundo faz uso de
boa parte deles ao longo de toda a sua narrativa, sobretudo pela presença de
ilustres figuras históricas, pelo diálogo constante com a História, ou pelos
intertextos que remetem aos contos-de-fadas tradicionais ou mesmo a outras
obras literárias e religiosas.
Tomemos como exemplo este relato altamente imagético do romance,
no qual Oribela descreve o choque da chegada, insinuando o tratamento
recebido pelas mulheres objetificadas como alvo de desejo sexual ao retratar o
olhar invasivo dos homens e usar de metáfora para tratar dos órgãos sexuais,
trazendo, também, referências históricas à chegada dos degredados para
construção da Colônia e a confrontação com os índios:

A beber da água fria da fonte, em suas pedrarias a refrescar os que


vinham ao desembarcadouro das gentes dos navios, à sombra das
árvores e dos nossos véus pretos ficamos, que o sol parecia morar
neste país, tanto que logo se fazia o primeiro raio da manhã já se via
a roda vermelha de seus mistérios, avistara eu do convés ao nos
acordar a Velha para o leite da cabra que tinha levado à nau um
morador da cidade. As conversações nunca tinham fim, no que se
ajuntaram pouco a pouco umas gentes do lugar, mal podia eu
repousar da vigília sobre nós, os homens seus olhos lançavam,
fôramos cargas de uma azêmola, boceta de marmelada, alguidar de
mel sendo eles pontas de arnelas, canas agudas, flechas de arcos,
espadas de pau tostado, lanças de arremesso, ferrões, açoites, feros
animais, uma cutilada, uma estocada, tomando a cosso para nos
possuir, o que lhes nascia de sua cobiça. Em suas mulas com poucos
alforjes e borsoletes, suspiravam mais por carne branca de cristãs do
que lobos por cordeiros. Gente natural da terra e do reino, num quieto
rumor de quem se ajunta, muito atentos, fêmeas, machos, os da terra
de cor vermelha, em camisas e sem barba segurando seus
machados de ferro ou ferramentas da lavoura ou remos, de pestanas
raspadas, cafres machos ou fêmeas, os machos armados de dar
temor e os demais portugueses, barbados, bragas, camisas rotas,
uns de botas, barretes, braguilhas sujas de tinta vermelha. Diziam
que eram aquela gente tanoeiros, carvoeiros, caldeireiros,
cavaqueiros, soldados, sangradores, pedreiros, ferreiros, calheiros,
pescadores, lavradores, eiros, ores, ores e tudo o mais necessário
para se fazer do mato uma cidade (MIRANDA, 1996, p.25).

Dessa forma, é possível perceber que o emprego na obra dos elementos


literários acima citados conduz o leitor atento a uma percepção mais crítica, a
43

um questionamento e, a partir daí, à subversão da ótica histórica que


apreendemos ao longo da formação escolar que omite a mulher de suas
passagens e dela pouco ou nada cita. Novamente, a Literatura se faz
instrumento para propagar uma versão mais ampla dos fatos, conferindo o som
da palavra escrita aos que não puderam se expressar pela crueza muda da
História.
O conceito de romance histórico contemporâneo como proposto por
Gärtner – após revisão cuidadosa na teoria de Lukács – mostra, também,
profundas ligações com o que Linda Hutcheon chamou de Metaficção
Historiográfica, como veremos a seguir e de maneira mais detalhada.
44

Capítulo II

Relata o silêncio de Oribela, no ardor dos seus desejos e


no fogo de sua rebeldia:

“(…) Disse Francisco de Albuquerque. Desterra da tua


mente teus segredos. A franqueza é nobre e a amizade é
a capa dos desamparados, mulher desassossegada. Diz
logo. Que fogo é este que te arça? Se tens amor deixado
em outras terras diz agora. E disse eu. Meu silêncio te
dirá o que meu coração em si cala. (...) Tentada dos
espíritos dos ventos, dos cabelos desgrenhados, dos
lírios de orvalho. Porque Deus, com seus juízos ocultos,
ordena as coisas muito suavemente. E o esperei, com a
faca na mão.”
(MIRANDA, 1996, p. 74-170)
45

CAPÍTULO II

A METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA E AS VOZES SUBVERSIVAS

2.1. A Literatura: ampliar de narrativas e possibilidades de leituras

Como já exposto anteriormente neste trabalho, o compromisso literário é


com a ficção, e não com uma recriação exata e detalhada de passagens e
cenários históricos.
Privilegiando a singularidade e a subjetividade do olhar de cada
personagem, a arte pode propor uma nova leitura do mundo, ou de velhos
fatos, que, repetidos à exaustão, entraram para os anais da História como
verdades absolutas, quando, na verdade, são também narrativas passíveis de
análises e questionamentos.
O discurso poético, entretanto, com a liberdade de criação e as doses de
imaginação que lhe são inatas, joga luz sobre outras possibilidades e
sensibiliza para os ecos de novas vozes.
Neste capítulo, propomos uma reflexão da teoria da pesquisadora Linda
Hutcheon, que, ao pensar a simbiótica estabelecida entre as narrativas
históricas e literárias mostra, também, como a segunda pode desestabilizar a
primeira ao compartilhar com o leitor as vozes subversivas esquecidas —
ignoradas? — pelos discursos oficiais.

2.2. A Metaficção Historiográfica e as vozes subversivas

Por muito tempo pertencentes à mesma árvore de conhecimentos


científicos, História e Literatura, em dado momento, foram separadas em ramos
distintos. Para Linda Hutcheon, entretanto, as duas áreas conservam
semelhanças entre si:

E as recentes leituras críticas da história e da ficção têm se


concentrado mais naquilo que as duas formas de escrita têm em
comum do que em suas diferenças. Considera-se que as duas obtêm
suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir de
46

qualquer verdade objetiva; as duas são identificadas como construtos


lingüísticos, altamente convencionalizadas em suas formas
narrativas, e nada transparentes em termos de linguagem ou de
estrutura; e parecem ser igualmente intertextuais, desenvolvendo os
textos do passado com sua própria textualidade complexa. Mas esses
também são os ensinamentos implícitos da metaficção historiográfica
(HUTCHEON, 1991, p.141).

Se o discurso histórico é praticamente o eco uníssono do homem


branco, a quem coube narrá-lo, o literário, por sua vez, dá ao autor a opção de
ampliar seu leque para dar voz àqueles que não foram ouvidos: os que foram
silenciados pelos poderes, pelos interesses, pela vida, pela religião ou por
circunstâncias diversas.
A Literatura ressoa para, talvez, reparar os erros surdos e mudos da
História, para nos apresentar um novo ponto de vista ao trazer novas vozes
aos fatos, para deixar falar os que foram calados. Ela se coloca como um
instrumento que permite aos excluídos contarem a sua versão. No caso do
Brasil, os negros africanos escravizados, os índios nativos destemidos e as
mulheres – negras, índias e brancas – oprimidas pela força brutal do processo
de colonização. Mas eles, todos eles, estavam lá. Aqui. E fomos privados dos
seus olhares e do som das suas palavras escritas.
Tomamos por oficial e real um discurso eufônico e, entretanto, sabemos
da impossibilidade do conhecimento da verdade absoluta na História. Temos a
noção precisa de que é, portanto, impossível verificar os fatos já passados.
Como, então, não questioná-los?
Voltando a sua análise para a relação simbiótica entre as duas
disciplinas – História e Literatura –, Hutcheon usa a obra Shame (1983), do
autor britânico de origem indiana Salman Rushdie, para discutir essa questão:

Mesmo assim, o paradoxo subsiste: em Shame, ficamos sabendo


que, quando o Paquistão foi formado, a história da Índia teve de ser
escrita a partir do passado paquistanês. Mas, quem realizou esse
trabalho? A história foi reescrita por imigrantes, em urdu e inglês, as
línguas importadas. Como diz o narrador, ele é forçado - pela história
- a escrever em inglês (HUTCHEON, 1991, p.145).

Particularidades acerca das colonizações à parte, é significativa a sua


reflexão porque podemos, a partir dela, pensar as próprias idiossincrasias na
narração de nossa história. Aquela, excludente, que nos foi ensinada como
uma verdade incontestável, como fato que não admite argumentos. Talvez as
principais semelhanças entre as narrativas históricas destas nações sejam,
47

justamente, o narrador e a língua européia na qual foi contada: em ambas ecoa


a voz do homem eurocêntrico, conquistador, vencedor das batalhas, que
sobreviveu à seleção natural e, portanto, dominou o discurso no idioma que lhe
convinha. Assim, insistimos: sendo ele o colonizador, sua verdade emergiria
sobre todas as outras e, então, o eco da singularidade em que está desenhada
a História.
Mas há, em nosso caso, também uma bonita subversão da própria
disciplina. Mary Del Priore, historiadora, focou os seus estudos na mulher; em
sua ampla pesquisa, buscou e encontrou respostas menos cômodas quanto às
condições que permeavam o feminino na época do Brasil colonial, e, com isso,
expôs um retrato pouco conhecido sobre as nossas primeiras habitantes e o
imaginário que as cercava. Em seu trabalho, ela apresenta índices científicos
de que a mulher veio para cumprir um papel designado – esposa e mãe – e
para vestir as carapuças da Igreja e do Estado, em suas relações
continuamente simbióticas e retroalimentares de fortalecimento de poderes.
Se ao patriarcalismo do colonizador interessava um calar de vozes
dissonantes e um uníssono quanto ao discurso que seria acatado e
reproduzido como oficial, Del Priore (2009) o desnuda e nos convida a ler uma
nova narrativa que, a rigor acadêmico, é, também, oficial:

Quero sublinhar que a condição feminina fabricava-se, então,


marcada pelo caráter exploratório da empresa portuguesa no Brasil,
do século XVI ao XVIII. O modelo escravista de exportação vincava
as relações de gênero. (…) Os objetivos da empreitada colonial
estimulavam os homens - padres, governantes, cientistas - a
estabelecerem um papel identificado com o esforço de colonização
para todas as mulheres indiscriminadamente. Este papel deveria não
só refletir a participação feminina na conquista ultramarina, mas
também a sua atividade na defesa do catolicismo contra a difusão da
Reforma protestante. Mais ainda, deveria espelhar a presença
feminina na consolidação de um projeto demográfico que
preenchesse os vazios da terra recém-descoberta (DEL PRIORE,
2009, p. 22).

E não foi isso que fez Ana Miranda em sua obra? Ainda que aclare que o
seu compromisso é, sobretudo, com o discurso poético, a autora cria seu
enredo baseada em extensa pesquisa histórica – que pode ser encontrada no
próprio livro – que, literariamente, se entrelaça ao discurso de Del Priore acima
transposto. Oribela, expatriada de sua terra pelo poder político, desembarcou
no Brasil para se casar – servindo aos sacramentos e dogmas católicos –, parir
48

filhos brancos no povoamento do Brasil e reforçar as posturas importadas das


civilizações europeias:

Em seu propósito, o bispo nos abençoou com as mãos e nos fez dizer
promessa de fidelidade, salvou-nos com uma cruz, com mostras e
sinais de fé. Mandou cada mulher dar a mão a seu homem. Os
esposos têm poder sobre as esposas e suas filhas, mas que não
tenham para si que lhes pertençam as filhas como mulheres, nem as
mulheres dos vizinhos como suas e nunca usar delas, a terem
respeito às filhas das vizinhas e às filhas das filhas, que as chamem
todas de filhas e nessa conta as tenham e não pecar de luxúria, nem
os pecados conhecidos. Ali todos eram filhos de Deus, fiéis cordeiros
do papa debaixo de cujos pés estavam submetidas todas as coroas
que governavam a terra, acima dele só Deus, que lhe dera sagrado
cetro de papismo e os reis infiéis seriam esmagados nas trilhas de
seu calcanhar, que os vassalos não ousassem boquejar nem
alevantar as vozes para nenhum padre de Deus, as insígnias em
suas mãos significavam justiça e misericórdia, o que devia reinar
naquele canto. Que ajuntassem os da mão direita com as da mão
esquerda, fossem em suas vidas, jaezados de caridade, pasmados
da majestade do matrimônio divino. A fazer filhos abençoados de
alvura na pele (MIRANDA, 1996, p. 73).

Após a leitura do excerto transcrito, retomamos a reflexão de Hutcheon,


ao afirmar que a ficção e a História também se encontram nos intertextos do
romance e depois deixam indefinidas as linhas de separação entre uma e
outra.
Vemos isso a todo tempo em Desmundo: sabemos, claramente, tratar-se
de uma obra literária – e, portanto, ficcional – mas é impossível escapar às
referências históricas lidas, muitas vezes, nas entrelinhas; outras, quando do
uso de personagens reais – o Bispo Sardinha, por exemplo – são notáveis e
explícitas. Não há em Ana Miranda, evidentemente, a vontade de reescrever a
história brasileira, mas sim de oferecer uma narrativa sob outro ponto de vista.
Como bem coloca Hutcheon (1991), um desmarginalizar literário por meio da
confrontação com o histórico. A ideia implícita de que cabe à Literatura acatar
outras vozes porque o seu compromisso é, sobretudo, com a arte e as
diferentes perspectivas, abrindo, dessa forma, o leque do discurso e ampliando
as possibilidades de uma leitura crítica (ficcional ou da própria realidade). Ouvir
novos sons não exclui o valor primordial da verossimilhança do romance, que
tem no realismo a sua raiz (WATT, 2010).
Outro estudioso que acata a visão hegeliana-marxista do poder da
História e seus resultados na formação humana é o romancista e crítico literário
Umberto Eco. Também citado por Hutcheon, o autor aponta que os romances
49

históricos são capazes de identificar no passado as causas para o presente e


igualmente aptos a investigar o processo pelo qual essas causas,
gradualmente, produziram seus efeitos. Dessa forma, o crítico literário acaba
por conferir mais um exemplo da relação entre estas disciplinas. E, nestas
relações, muitas vezes repousa a dificuldade em separá-las, posto que são
tênues os seus limites.
Mais uma vez, pode-se observar na colocação de Eco uma sintonia com
a obra de Ana Miranda de que aqui tratamos. Buscando embasamento em Del
Priore (2009):

Juíza da sexualidade masculina, a mulher era ainda estigmatizada


com a pecha da insaciabilidade. Seu sexo assemelhava-se a uma
voragem, um rodamoinho a sugar desejos e fraquezas masculinas.
Unindo, portanto, o horrendo e o fascinante, a atitude ameaçadora da
mulher obrigava o homem a adestrá-la. Seria impossível conviver
impunemente com tanto perigo, com tal demônio em forma de gente.
Considerada também um ‘diabo doméstico’, ela fora pintada na
literatura da época clássica como um poço de vícios digno dos filhos
das trevas: enganadora, melíflua, concupiscente, fétida, infecta,
gastadora, desbocada, esta mulher sem qualidades foi cantada em
prosa e verso no período sobre o qual discorre este trabalho (DEL
PRIORE, 2009, p. 33).

É constante esta mesma realidade, porém, agora, enredada na ficção de


Desmundo: narrada por uma mulher a quem fora designado o silêncio histórico
– a voz que a literatura empreendeu. Logo nas primeiras páginas do romance,
a presença de mulheres embarcadas em uma nau era um claro sinônimo de
mau agouro, como descrito por Oribela:

Na Senhora Inês, de velas rotas, muitas avarias, lançados os ferros a


canalha de marinheiros não esperou, tirou seus barretes e ao chão no
convés os perros gritaram desatinados, uns muito para rir, outros em
doidas lágrimas, com as mãos para o céu louvaram a Deus chegar
vivos, que não esperavam, em naus, mulheres são mau agouro, em
oceanos, fêmeas são baús cheios de pedras muito grandes e
pesados, sem serventia nem a ratos a não ser turbar as vistas,
nausear as tripas, alevantar as mãos em súplicas e trombetear por
causa alguma, só pelo prazer, feito os demos. E fôramos sete
mancebas, umas sete sombras negras alembrando os sete pecados.
Qué? (MIRANDA, 1996, p.14).

Em seu decorrer, o romance nos expõe a culpa das brancas sobre seus
corpos em oposição às índias, que lidavam com a nudez de outra maneira.
Entretanto, como toda nudez tende a ser castigada, essas mesmas índias eram
vítimas dos frequentes abusos sexuais dos homens brancos que se serviam
delas e dos que, da mesma tribo, as vendiam como escravas. Em um primeiro
50

momento, são as índias – não-cristãs – que trazem os chifres metafóricos


desses diabos encarnados em corpos femininos. Observemos mais uma
passagem do diário de Oribela:

Bugres da terra vendiam suas fêmeas nuas, mas assim que veio um
padre da Companhia na rua as esconderam, não dos outros padres.
Por meus brios e horrores, não despreguei os olhares das naturais,
sem defeitos de natureza que lhes pudessem pôr e os cabelos da
cabeça como se forrados de martas, não pude deixar de levar o olhar
a suas vergonhas em cima, como embaixo, sabendo ser assim
também eu, era como fora eu a desnudada, a ver em um espelho.
Nunca fora dito haver mulheres assim, nem pudera inventar em
minhas ignorâncias. Que nunca houvera mulher nenhuma nesta terra.
Quem então há de parir naquelas terras? Os machos, por ordem de
Deus. (…) E se as havia, mulheres naturais, até eram graciosas em
seus despudores, florescidas, feito aves, de pés embicados para
dentro como duas naus a abalroar e fedendo igualmente aos machos,
por um tipo de óleo que se esfregavam, semelhando a podre, a
estrume, a gruta e de quem diziam dar uma febre muito maligna se as
fodessem nos dias de lua, quando lhes havia sob os cabelos uns
cornos pequenos. E vi um extravagante dentre eles, a se encostar
numa libidinosa que lhe fez inchar a parte, tanto que parecia um bruto
(MIRANDA, 1996, p. 39).

A propósito do que se pode ler nas entrelinhas de Desmundo e que se


assemelha à passagem acima transcrita – tendo suas diferenças baseadas
sobretudo no subjetivismo de cada um dos narradores –, trazemos um excerto
de uma carta do Padre Manoel da Nóbrega (datada de agosto de 1549). A
carta foi escrita e enviada a Portugal no primeiro ano dos jesuítas entre os
povos nativos brasileiros, em seu trabalho de catequese:

E promete-lhes larga vida, e que as velhas se hão-de tornar moças, e


as filhas que as dêem a quem quiserem; e outras coisas semelhantes
lhes diz e promete com que os engana. De maneira que crêem haver
dentro da cabaça alguma coisa santa e divina, que lhes diz aquelas
coisas as quais crêem.De maneira que crêem haver dentro da cabaça
alguma coisa santa e divina, que lhes diz aquelas coisas as quais
crêem. E acabando de falar o feiticeiro, começam a tremer,
principalmente as mulheres, com grandes tremores em seu corpo,
que parecem endemoninhadas, como de certo o são, deitando-se em
terra e escumando pelas bocas; e nisto lhes persuade o feiticeiro, que
então lhes entra a santidade, e a quem isto não faz, têm-lho o mal. E
depois lhes oferecem muitas coisas (NÓBREGA apud LEITE, 1955,
p.62).

Triste é, pois, perceber que segue igualmente contemporâneo tanto o


retrato histórico de Del Priore quanto a ficção de Miranda – além, é claro, do
preconceito religioso explícito de Nóbrega –, tratando da condição da mulher
na Colônia. Ainda que mudem as personagens e se estendam os anos, somos
51

todos resultados de processos históricos aparentemente inacabáveis. Contudo,


cíclicos.
Ao expor seu pensamento acerca da metaficção historiográfica enquanto
método de leitura crítica em Poética do pós-modernismo, Linda Hutcheon
retoma o romance histórico pensado por György Lukács – e já previamente
exposto – no sentido de compará-los e estabelecer as três principais diferenças
entre as duas teorias, a saber: a atenção dada aos detalhes, a dimensão
atribuída por cada corrente às figuras históricas presentes no romance, e o
protagonista vivificado como um tipo para um e como o excêntrico periférico
para a outra. É este último traço distintivo que será o foco da presente
pesquisa, posto que o que interessa em nossa análise é o sujeito. Dessa
forma, Hutchenon afirma:

Portanto, o protagonista deveria ser um tipo, uma síntese do geral e


do particular, de 'todas as determinantes essenciais em termos
sociais e humanos'. A partir dessa definição, fica claro que os
protagonistas da metaficção historiográfica podem ser tudo, menos
tipos propriamente ditos: são os excêntricos, os marginalizados, as
figuras periféricas da história ficcional. (…) A metaficção
historiográfica adota uma ideologia pós-moderna de pluralidade e
reconhecimento da diferença; o 'tipo' tem poucas funções, exceto
como algo a ser atacado com ironia. Não existe nenhuma noção de
universalidade cultural (HUTCHEON, 1991, p.151).

As distinções teóricas entre Lukács e Hutcheon, no caso de Desmundo,


convergem e se complementam se observarmos a trajetória da protagonista
com um olhar mais meticuloso e cuidadoso, buscando indícios literários que
respaldem a nossa hipótese: Oribela é, como já discutido, tanto a moça típica
de seu tempo quanto um sujeito pertencente ao grupo singular dos
marginalizados pela História.
Vejamos: ao chegar ao Brasil, era o medo que nela fazia morada. O
silêncio imposto e acatado. A prática da coerção espiritual e da ignorância
científica como dogma eclesiástico era por nossa heroína respeitada. O horror
ao desconjuro, à excomunhão, ao pecado e a tudo o mais que não fosse
cristão. A moça pobre e comum de sua época, como todas as outras,
igualmente sujeita às forças patriarcais. O tipo mediano de Lukács. O romance
transcorre e Oribela já quebra o primeiro paradigma ao recusar o casamento,
cuspindo no rosto daquele que era o seu noivo destinado. O tempo jamais lhe é
generoso e, através dele, no transcorrer do romance, percebemos que o
52

desmundo desconstruiu Oribela: a rebeldia diante do casamento forçado, a


paixão pelo Mouro, a sexualidade revelada, a nudez não mais castigada, a
crueldade dos dias e o calor das noites a transformaram na protagonista que se
evidencia na teoria de Hutcheon.
Para reforçar nossa ideia, retomemos a passagem de seu casamento.
Quando, sem opção diante da arbitrariedade de ser arrancada de seu país e
expatriada para o Brasil para casar e povoar a Colônia com seus filhos brancos
– afinal, uma mulher não podia querer para si a autonomia diante da própria
vida –, ela encarna o tipo comum e mediano de Lukács. Ao desembarcar,
recusa o casamento. Como primeiro ato, cospe no rosto do noivo. Já pela
descrição do padre, se nota a rebeldia – o fogo recorrente – de Oribela, que
tem opiniões e, mais grave do que a recusa a um marido que não escolheu, era
a negação ao sobrinho do governador. Além, do valor de sua virgindade e de
que sua beleza valia o trabalho de domesticá-la. Sua suavidade mulheril. Por
sua transgressão, os castigos verbais e físicos impostos pelo padre, e a
retomada da ideia de que a mulher não podia ser uma coisa da feitura de Deus:

Pondo três vezes o joelho no chão rezou a Deus e agradeceu as


mulheres que chegavam nesta terra para ajudar nos trabalhos, para
fecundar, parir, assim como cristãs e guardar todo o cabedal. A
saudação fora até formosa nas palavras mas não sei se falsas. (…)
Qué? Vou-me. Aquele era sobrinho da mulher do governador, feito
fosse o sobrinho do irmão do rei, feito fosse fidalgo, quem só se
aconselha só se depena. Um senhor nesse ermo estrangeiro. Disse o
padre ser eu pura e virgem donzela criada em mosteiro de freiras, à
luz da absconsa, que podia passar a papinhas de pão relado, leite
fresco coado e uns alfinetinhos, de pele rosa bela e olhos
madressilva, ainda a florescer o corpo, de alma que se podia
amansar como se faz a um cavalo, se era defeituosa, deixasse a pão
e água que me ia alimpar, como me houvera ferrado para vender por
moura e ferro no pé. Valeria esta em ouro seu peso, que a pele
desliza, descem acetinados os cachos. E que não fazia mal ser eu
tão cheia de diversas opiniões e bravezas, minhas vistas eram tão
admiráveis quanto as estrelas do céu e saberia ele se fazer obedecer
com reverência e acatamento à sua humilde pessoa. (…) Reparasse
o homem na formosura de minha feição, na suavidade mulheril e
esquecesse da rebeldia, tudo o mais era infalível. O homem me veio
a mirar e no rosto lhe cuspi. Oh como és parva. Uma perdida! Decho
que praga, tão bom homem parece ele e tu uma frouxa, rabugenta,
pé-de-ferro, regateira baça, demoninhada, pardeus, forte birra é esta
que tomas contigo, ora vai-te, eramá, como te amofinas, mexeriqueira
e sonsa, que rosto de mau pesar para casarem contigo, tinhosa, que
cheiras a raposa, rasto de burra, torta defumada. E d'arrancada deu
com uma vara. Disse de mim o padre tantos males que hei vergonha
de os pensar em altas vozes, que eu era sem palavra, sem promessa
e sem coração. No sacrário me fez em joelhos rezar por perdão de
minha rebeldia, me deu pancadas nas mãos até ver sangue, que não
doeu tanto e foi murmurar mais castigos com outros padres. Tornei à
53

cela, fosse a uma cova para ser enterrada viva não estaria eu tão
cara de coruja, com nojo muito verdadeiro e suspiros verdadeiros.
(…) Pensava eu estar indo prisioneira por cuspir no rosto de um
principal, era de chorar, mas antes queria ser presa e açoitada do que
casar com aquele (MIRANDA, 1996, p. 55-58).

Após a passagem acima transcrita, à revelia, Oribela é convencida a


aceitar o destino, pela Velha e por outra personagem que representava o poder
político igualmente opressor: a mulher do governador, Dona Brites de
Albuquerque (irmã de sua futura sogra, Dona Branca). Assim se vê uma
convergência entre as teorias de Lukács e Hutcheon em Desmundo. Para
além, pode-se perceber, também, uma protagonista em crise: ela é o que tem
que ser, mas também o que é de fato. E essa alteridade é perceptível ao longo
de toda a obra. Oribela é de difícil definição porque é muitas. Porque se
desdobra, multifacetada.
Voltando ao romance, já casada, recusa-se à entrega total de si à
relação com Francisco de Albuquerque e à vida que não fora por ela planejada.
Ao contrário, personifica o inimaginável à mulher de seu tempo: foge. Por
várias vezes. E, em uma delas, comete o desatino de ir contra a sua formação
cristã: ao apaixonar-se por Ximeno Dias – um mouro – torna-se adúltera.
Pecados, muitos deles. Na ruptura dos padrões, torna-se a marginalizada
teorizada por Hutcheon; e essa postura dissonante é recorrente e facilmente
lida em sua trajetória. Muito interessante é observar como Oribela, em sua
jornada e crescimento pessoal, personifica literariamente duas correntes a
princípio divergentes. Mas a grandeza artística da literatura extrapola a teoria, e
Desmundo nos apresenta isso.
Chegamos, então, a um ponto de nosso estudo que se revela dos mais
desafiadores. Se em Lukács o romance histórico narrava o microcosmo do
homem típico de seu tempo sem içar bandeiras ideológicas, em Hutcheon
observamos um contraponto: ela sugere a autorreflexividade e a
conscientização da necessidade latente de questionar as versões assumidas
como verdadeiras pela História. As pesquisadoras Mirele Jacomel e Marisa
Silva, da Universidade Estadual de Maringá, assim expõem seu entendimento
da teoria de Linda Hutcheon:

O conceito de metaficção historiográfica, conforme discute Linda


Hutcheon (1991), tem por característica apropriar-se de personagens
e/ou acontecimentos históricos sob a ordem da problematização dos
54

fatos concebidos como 'verdadeiros'. Isto é, o que diferencia a


metaficção historiográfica de um romance histórico é a auto- reflexão
causada pelo questionamento das 'verdades históricas’. A literatura,
nessa perspectiva problematizadora da história, possui, sem dúvidas,
um esquema de referências ao passado. O resgate de um
acontecimento feito através da obra de arte sempre gera polêmica,
pois nessa ‘visita' ao passado podem-se descobrir 'verdades' até
então não reveladas, devido às relações de interesse e poder de
‘grupos’ conservadores (JACOMEL e SILVA, 2009, p.740).

A partir dessa reflexão, podemos aprofundar a elaboração da nossa: no


discurso oficial, não nos é aclarado que papel coube à mulher. É como se ela
não tivesse sido parte integrante e indissociável do período histórico a que aqui
nos referimos. A explicação passada é de que a mulher veio até terras
brasileiras sabe-se lá como ou porquê, e que teve aqui uma vida serena e sem
transtornos, personificadas na imagem de seres plácidos. Não conhecemos as
motivações e princípios desse deslocamento transatlântico da mulher branca;
como ela foi usada pela Igreja e pelo Estado para reafirmar seus poderes
eclesiásticos e sua expansão mercantil, na busca pela colonização da pele
branca em um Brasil originalmente de índios e, posteriormente, de negros
escravizados.
A partir do momento em que Oribela inicia a narrativa literária de sua
trajetória, somos confrontados com verdades históricas tão dolorosas quanto
possíveis: a mulher a quem foram negados os arreios do próprio destino se
torna, sobretudo, instrumento dos poderes patriarcais de seu tempo para
fortalecer dogmas religiosos e cumprir o papel de mãe e esposa. Arrancada de
seu lugar de origem e onde gostaria de ter permanecido, a personagem é
obrigada a viver uma vida que jamais escolheu: uma existência que significava
cumprir papéis que ela não escreveu.
O discurso histórico oficial, insistimos, atenua o sangue derramado e
retrata um processo de colonização relativamente tranquilo; mas, por meio da
leitura de Desmundo, somos alertados para a constante guerra entre brancos –
que recebiam armas poderosas enviadas pelo rei – e índios, que resistiam
como podiam ao aos saques e às apropriações, aos ataques a suas tribos e à
captura de sua gente. Esses mesmos livros oficiais excluem o discurso
feminino ou a presença da mulher como agente ativo na construção da nossa
história. A Literatura de Ana Miranda subverte e corrompe este discurso ao
romper o silêncio da mulher em face à narrativa de Oribela – e é sob este olhar
55

microscópico que se pode fazer a (des)leitura do discurso histórico oficial. Com


a corrupção literária do tradicionalismo narrativo histórico, podemos repensar e
conhecer um pouco do papel social ocupado pela mulher em um Brasil que
ainda não tinha identidade de nação.
De certo modo, pelo mesmo viés ficcional, podemos compreender um
pouco mais da (des)construção feminina neste Brasil contemporâneo: ao
observar a trajetória de Oribela, pode-se percebê-la muitas vezes como um
espelho do passado na mulher do presente, em suas dores e desafios.
Se fomos – todos nós – privados dessa narrativa histórica, temos a
possibilidade de nos voltar à Literatura para conhecê-la. Tendo em vista os
relatos ficcionais de Oribela, encontramos afinidades com a pesquisa posterior
de Del Priore – igualmente excluída dos livros de História a que tivemos acesso
em nossa vida escolar – e podemos questionar a leitura simplista da história
com a qual fomos pedagogicamente educados. Ressaltamos aqui, entretanto,
que ainda que seja simplista na exposição do que traz como fatos, essa leitura
foi bem pensada para servir a um fim e, por isso mesmo, omite o que não lhe
interessa, propositadamente. É plausível a percepção dos espaços e
(des)lugares que (des)ocupamos como realidades e consequências do próprio
processo de colonização a que fomos submetidos. Esta colocação de Del
Priore (2009) é parte imprescindível da reflexão que nos cabe discutir nesse
trabalho:
O território do feminino, como aqui será visto, sempre esteve longe de
ser um quadro de serenidade e mesmice, e mostrou-se ele também,
ao longo do período colonial, borbulhante de conflitos, diferenças e
complementaridades. Será, portanto, à luz deste múltiplo caráter
colonial, feito de heranças interculturais, das marcas do escravismo e,
sobretudo, do projeto normatizador da Metrópole, que irei abordar a
condição feminina (DEL PRIORE, 2009, p. 23).

Ao se fazer a leitura da página 142 de Desmundo, podemos observar


que esta é uma das únicas passagens em que se faz referência ao escravismo
da mulher negra. Em sua narrativa, Oribela pouco cita, aliás, a escravidão
africana de modo geral, posto que a prática havia começado recentemente e
não era grande o contingente de negros. A preocupação é mais voltada à
relação que estabeleceu com as índias. É interessante pensar que, à primeira
vista, não havia um confronto histórico a ser explorado com as negras porque
estas já vieram para a Colônia na condição da submissão escravista, enquanto
56

que com as índias essa tensão poderia ser iminente, já que os índios se
rebelaram antes pela condição de libertos embora, evidentemente, muitos
tenham sido capturados e escravizados à semelhança dos negros.
A leitura do relato acima citado de Oribela suscita, portanto, o
questionamento de como podem ter se dado os primeiros contatos entre as
mulheres brancas e as índias, já que pelos livros de História oficiais essas
relações são estabelecidas como se só existisse o gênero masculino: o branco
opressor, o negro escravizado e o índio injustiçado. As relações femininas
expostas pelos relatos oficiais eram as estabelecidas entre as brancas e as
negras e, ainda assim, superficialmente, posto que as citações se referem
basicamente a suas condições de senhoras e mucamas, não havendo,
portanto, o aprofundamento necessário para um retrato histórico acurado.
Apontamos também que as índias – mulheres – foram igualmente excluídas
desses relatos oficiais, aumentando, então, a nossa ignorância quanto à vida
feminina na Colônia.
É importante lembrar que, em Hutcheon, a metaficção historiográfica
enquanto procedimento estabelece uma ordem totalizante para, em seguida,
contestá-la com sua provisoriedade, intertextualidade e fragmentação radicais.
Isto posto, não é nada absurdo afirmar que esse método de leitura pode ser
usado para ampliar as possibilidades de entendimento de Desmundo.
Ao primeiro contato, parece um romance de difícil compreensão pela
escolha da linguagem, que traz os usos arcaicos da língua portuguesa; depois,
a pluralidade de vozes transcritas em diário parecem questionar a própria
forma. O uso constante de intertextualidades, de ideias esquecidas
propositadamente nas entrelinhas e as referências históricas requerem, sem
dúvida, um olhar mais atento de quem o lê. Quando compreendido, ao menos
parcialmente, a autorreflexão é inevitável.
A esse respeito, o poeta e crítico literário Ezra Pound (2006) fez uma
interessante análise: para ele, o autor dispõe de três recursos para
potencializar a linguagem: a fanopeia, a melopeia e a logopeia. A primeira
refere-se à projeção do objeto – fixo ou em movimento – na imaginação visual.
Na melopeia, há a produção de correlações emocionais pelo som e pelo ritmo
da fala (bastante observada, por exemplo, na poesia). E, por fim, o que aqui
nos interessa, a logopeia, que é compreendida como a produção dos efeitos
57

combinados da fanopeia e da melopeia e que acaba por estimular associações


intelectuais e emocionais que permanecem na consciência do receptor pelas
palavras e grupos de palavras quando bem empregados. Em nosso caso, a
reflexão que deixa o romance e que nos leva a contestar as “verdades
absolutas” da História – e o incômodo latente que pouco ou nada conhecemos
das nossas primeiras habitantes.
Para Hutcheon (1991):

Os romances pós-modernos levantam (…) diversas questões


específicas que merecem um estudo mais detalhado: questões que
giram em torno da natureza da identidade e da subjetividade: a
questão da referência e da representação; a natureza intertextual do
passado; e as implicações ideológicas do ato de escrever sobre a
história. (…) As metaficções historiográficas parecem privilegiar duas
formas de narração, que problematizam toda a noção de
subjetividade: os múltiplos pontos de vista ou um narrador
declaradamente onipotente. No entanto, não encontramos em
nenhuma dessas formas um indivíduo confiante em sua capacidade
de conhecer o passado com um mínimo de certeza. Isso não é uma
transcendência em relação à história, mas sim uma inserção
problematizada da subjetividade na história (HUTCHEON, 1991,
p.156).

A citação acima é bastante significativa no sentido de que, através dela,


podemos afirmar que Desmundo se apresenta em ambas as formas: ainda que
tenha Oribela como narradora onipotente – por tratar-se, afinal, de um
romance-diário – por meio de sua narrativa encontramos múltiplas vozes e,
com elas, os pontos de vista tão plurais acerca de um mesmo fato histórico (o
que não se pode, todavia, ser lido como polifonia, posto que essas vozes não
são igualmente protagonistas ou trazem a mesma força – a de Oribela,
invariavelmente, se sobressai entre as demais).
Por se tratar declaradamente de um sujeito, estamos, evidentemente,
lidando com a subjetividade: ela, aqui, é precisamente o que diferencia a
narrativa ficcional do discurso histórico oficial, embora a suposta imparcialidade
do segundo seja tão amplamente questionável quanto discutível.
Na colocação de Hutcheon, é possível, da mesma maneira, ler um
indicativo de convergência teórica com Gärtner (2006), quando esta numerou
em sua tese de doutorado alguns dos elementos literários do romance histórico
contemporâneo, os quais apresentamos no capítulo I do presente trabalho e
agora retomamos para embasar a nossa análise.
58

Na afinidade teórica entre as duas pesquisadoras, cujas propostas


dialogam, se sobressaem como recursos os intertextos, os quais, usados ao
longo do romance, intercalam os discursos ficcionais e históricos com objetivo
de incorporar o passado no texto contemporâneo. Para exemplificar
literariamente seu pensamento, Hutcheon pensa na obra A Maggot (1985), de
John Fowles. Em sua opinião, o romance britânico expõe diversas referências
e alusões ao drama do século XVIII e uma mistura constante entre real e
ficcional. Essa alternância e mescla entre os discursos históricos e literários é
um elemento destacado na teoria de Hutcheon.
Trazendo essa reflexão para Desmundo, podemos notar, além das
claras referências a textos históricos, um diálogo implícito com os contos-de-
fadas – indicando, assim, a sobreposição de gêneros como parte da proposta
dos romances contemporâneos –, com o discurso religioso em forma de
parábolas bíblicas e nas personagens do clero e, com menos frequência, com
a própria Literatura: o poético da autora se entrelaça a todos esses outros
elementos.
Tornemos como exemplo a intertextualidade com os contos-de-fadas: o
uso recorrente das personagens do imaginário das histórias infantis (o rei, a
rainha, a bruxa, o feiticeiro, a Princesa Mar etc.) e o uso da palavra reino,
designando algo além da nomenclatura histórica de Portugal, mas o ambiente
onde se desenvolvem muitos desses contos.
Gostaríamos, então, de propor a leitura de um dos excertos do romance,
no qual Oribela descreve Dona Branca de Albuquerque, mãe de Francisco, e
personagem subversiva a seu modo. A sogra era por ela vista como uma
Bruxa, sugerindo assim mais uma personagem dos contos infantis tradicionais
e, ao mesmo tempo, o reforçar da imagem negativa associada à mulher –
conhecedora dos mistérios, além do estigma da sensualidade como lascívia –
pelo dogma católico:

Acabadas as conversações fomos a uma mesa alumiada com círio de


igreja, onde havia uma mulher, os cabelos feito tições com a alvura
das cinzas, de mais idade que o rei, que no aspecto e na gravidade
de sua pessoa mostrava bem ser quem era, a qual vendo da maneira
que estava eu pasmada me mandou tomar lugar e disse. Comei
vossoutros. Partiu das comidas e serviu, mulher fria como se de neve
fora feita e assim mesmo alva, de olhos longos por nós, trespassada.
(…) Que de mim diziam, sem contento, que de mim arrazoavam em
sins e nãos, mais em nãos que em sins da parte dela, dona Branca,
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que seu rosto gelado asseverou. (…) Tinha ela muitos olhos, de mãe,
de abadessa, de falcão, os olhos de inquirir o mais fundo, em seu
calado modo via por dentro das almas, como fosse uma sibila e devia
de saber ver nas panelas de água, nas pedras de cristal. Sabia
feitiços? Que lhe fora outorgado um poder do céu e da terra e podia
olhar para os raios do sol sem cegar suas vistas, sua alma se
desfazia do corpo e avoava pelos céus até a cidade, cada noite, a
visitar a irmã, ou até o reino, onde bailava nas festas ou via do lado
da rainha os autos e sabia do que se passava nas câmaras do rei,
onde se decidiam as guerras e as moedas, os destinos das armadas
e tudo o mais. Sabia ela fazer partos, rezas, sabia cuidar das
deleitações do corpo, sabia dizer quando era anjo que se tornou
carne, ou diabo em corpo de mulher, que a ouvisse eu, era de bom
entendimento, bom conhecimento do evangelho, sabia prosar com as
cegonhas e com as vacas tinha parte, tirar as quenturas do estômago
de mulher e tirar de mulher a sensualidade (MIRANDA, 1996, p.97-
99).

Com menos frequência, porém sob a demanda de uma leitura atenta,


Desmundo traz uma intertextualidade com a própria ficção literária na narrativa
de Oribela. Exemplo do imbricamento contínuo dos discursos intertextuais
proposto por Hutcheon se dá quando a protagonista está sendo estuprada por
Estevão, um dos marinheiros que prometeu levá-la de volta a Portugal, em uma
de suas tentativas de fuga. Em seu desespero, ela clama por Santa Joana
Valdez, personagem usada pelo dramaturgo Gil Vicente em sua alegoria
dramática Auto da Barca do Inferno (1531):

Alembra? Trato feito, trato cumprido, que somos de honra e honestos


no fazer. Confiei em ti e aqui estou. Trouxe vossa mercê o ouro,
senhora? Estendi as moedas roubadas, mas meio, pois minhas eram
de direito, em parte, que sou esposa e as dei. Não soube por que ele
fez sinal. Senti uns passos e atrás na areia vinham dois marujos, com
seus barretes, em um modo de arremeter e saltei, corri com toda a
ligeireza de minhas pernas, mas logo me alcançaram, na areia
rasgaram a minha camisa e se lançaram sobre mim, se servindo um
como esposo, outro me agarrando as mãos. Por amor de Deus, não
me faças mal, eu pobre mulher te peço com lágrimas prostrada, que
não arranques tua força contra minha fraqueza porque sou mulher
que não me sei defender, nem sei mais que chorar diante de Deus a
sem razão, que há de castigar com justiça e com potência tão
espantosa os maus e te peço e te rogo, de minhas entranhas te
suplico, de que me serviu só que tapassem a boca com mãos
areadas, que eu mordia sem poder e todas as forças de meu
assombro e revolta se faziam poucas em frente ao poder deles, que o
segundo veio querer trabalhar sobre mim, cães, perros, malditos
cains, aieramá, santa Joana de Valdez (MIRANDA, 1996, p.111).

A passagem da página 121 também sugere referência ao clássico


americano A Letra Escarlate (1850), de Nathaniel Hawthorne: a inserção de
personagens indígenas, a constante opressão religiosa, o adultério, a
paternidade incerta de seu filho, a possível perda da guarda desse filho, a
60

solidariedade a outras mulheres e a marca da humilhação pública que


carregava uma mulher que tinha sua moral questionada pela vivência plena de
sua sexualidade, ou que fazia dela mercado.
A presença figurativa do Bispo Sardinha e a epígrafe de abertura da
obra trazem mais dois personagens igualmente reais – Padre Manoel da
Nóbrega e o Rei Dom João - e, por isso, apresentam-se como melhor exemplo
para ilustrar tanto a teoria de Lukács quanto a de Hutcheon sobre a
necessidade de figuras históricas para conferir verossimilhança a esse tipo de
romance, ainda que elas não protagonizem a obra. Aqui, também, são peças
no entrelaçamento entre as narrativas históricas e ficcionais.
Hutcheon (1991) continua a focar na importância do emprego da
intertextualidade em uma obra que pretende ser lida por meio da metaficção
historiográfica. Para tanto, considera:

A intertextualidade pós-moderna é uma manifestação formal de um


desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e
também de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo
contexto. (…) Não é uma tentativa de esvaziar ou de evitar a história.
Em vez disso, ele confronta diretamente o passado da literatura - e da
historiografia, pois ela também se origina de outros textos
(documentos). Ele usa e abusa desses ecos intertextuais, inserindo
as poderosas alusões de tais ecos e depois subvertendo esse poder
por meio de ironia (HUTCHEON, 1991, p.157).

O uso desse recurso nos ajuda, portanto, a compreender a dimensão da


História dentro da ficção. Trazê-la para o nosso contexto presente e, assim,
experimentá-la de modo mais íntimo e pessoal a partir da perspectiva de uma
personagem, e fazendo-se, então, mais interessante ainda pela capacidade
subversiva de seu discurso. Em nosso caso, a autora Ana Miranda subverte os
ecos históricos ao conferir o poder de sua narrativa a uma protagonista mulher.
Em vista disso, nos chega de maneira muito clara o questionamento das
“verdades absolutas” textualizadas pela história e, também, a possibilidade de
inquirir quanto ao axioma de neutralidade do narrador histórico.
Este questionamento e tomada de consciência resulta, pois, da
autorreflexividade enquanto fruto da inserção material de uma informação, o
repensar desta e, posteriormente, sua subversão (HUTCHEON, 1991).
Entretanto, é preciso que se diga: não há uma negação da verdade histórica,
apenas uma nova maneira de percebê-la e vivenciá-la ao nos submeter a um
novo olhar sobre a leitura, a uma voz subversiva. O questionamento sugerido
61

pela leitura ficcional é, então, uma marca imprescindível da metaficção


historiográfica. Assim, a pesquisadora segue seu raciocínio:

Mas a ideologia do pós-modernismo é paradoxal, pois depende


daquilo a que contesta e daí obtém seu poder. Ela não é
verdadeiramente radical, nem verdadeiramente oposicional. Mas isso
não significa que deixe de ter um peso crítico (HUTCHEON, 1991,
p.159).

A ideia acima transcrita é essencial para compreendermos que um dos


principais valores que se pode atribuir à narrativa metaficcional historiográfica –
diferentemente ao romance histórico – é, justamente, seu viés crítico. Não pelo
radicalismo, mas porque traz em si a força contestadora em sua natureza
literária e, assim sendo, recusa-se a servir de mera representação ou
reprodução ad infinitum do discurso histórico.
Em Desmundo, por exemplo, a voz subversiva da mulher enquanto
narradora oferece um novo ponto de vista que corrompe o discurso histórico
oficial e deixa, na mente do leitor, questionamentos e levantamentos críticos
não respondidos integralmente nos textos oficiais reproduzidos nos livros
didáticos de História. Permite e abrange a reflexão acerca do nosso próprio
passado, ao dar a voz narrativa a quem esteve tradicionalmente excluído.
Apresenta novos personagens: a índia, por exemplo, que pouco foi ouvida pelo
homem branco, o qual teceu as linhas da história colonizadora ganha, no
romance, uma voz e um retrato. Subversão e resistência.
Para Hutcheon (1991), os principais índices literários que caracterizam
as obras metaficcionais historiográficas por ela analisadas são: subjetividade,
intertextualidade, referência e ideologia. É de nosso interesse, nesse estudo,
perceber como Ana Miranda trabalhou esses traços dentro de Desmundo.
Dessa forma, acreditamos que todos eles estão presentes na narradora,
Oribela, como expusemos pela reprodução dos excertos da obra ao longo
desse capítulo.
A narrativa literária, aliás, é trabalhada minuciosamente por Linda
Hutcheon; para a pesquisadora, vários teóricos espelham-se na narrativa como
principal meio de ligação entre os elementos literários por ela expostos e
analisados, sendo essa mesma voz narratológica um método primordial para a
compreensão humana e coerência dos fatos. Um traduzir, um explicar da
História dentro da ficção, uma conferência de sentido e verossimilhança. Em
62

sua dimensão, portanto, a narrativa contestadora é capaz de enfraquecer as


noções estruturadoras impostas pela História, sendo igualmente estabelecidas
e subvertidas:
A metaficção historiográfica não consegue deixar de lidar com o
problema do status de seus ‘fatos' e da natureza de suas evidências,
seus documentos. E, obviamente, a questão que com isso se
relaciona é a de saber como se desenvolvem essas fontes
documentais: será que podem ser narradas com objetividade e
neutralidade? Ou será que a interpretação começa inevitavelmente
ao mesmo tempo que a narrativização? (…) E afirma, em termos
vigorosos, a especificidade e a particularidade do acontecimento
passado individual (HUTCHEON, 1991, p.161).

Então podemos ler que a narrativa é tão importante que, ainda que se
restrinja ao olhar do narrador, condiciona à atribuição de sentido. Mais do que
isso, ela é capaz de corroer e desestruturar noções por nós apreendidas como
“verdades absolutas”. É esta narrativa, pois, que confere o caráter contestador
à metaficção de Linda Hutcheon. Ainda que sejam distintos os meios de análise
e observação entre esta e György Lukács, encontramos aqui mais um ponto de
convergência teórica: o poder inquestionável do narrador na inferência de
verossimilhança ao romance. Mesmo que aí se levantem questionamentos
quanto à subjetividade do narrador, aquele que lê um romance sabe tratar-se
de um discurso literário e, portanto, a ideologia – recusada por Lukács – é
irrelevante, visto ser o sujeito do romance, por excelência, um ser subjetivo,
intrinsecamente ligado às crises possíveis da natureza humana. E sob sua
ótica, ele irá narrá-la.
Em nossa protagonista, pode-se observar a crise do sujeito expatriado, o
medo do abandono do marido em oposição ao desejo veemente de livrar-se
dele (sendo o tipo comum de sua época, a moça reconhece a necessidade da
vida masculina para validar a sua no ambiente em que vive), a contradição
entre o que foi criada para ser e o que era de verdade em sua natureza íntima,
a dificuldade intangível de submeter-se e encaixar-se a uma vida que lhe fora
designada (é a excêntrica periférica da História personificada literariamente,
afinal), o não-pertencimento ao Brasil versus o não mais caber em Portugal
(modificada irrevogavelmente que fora pelo desmundo), a cristã que foge ao
dogma dos sacramentos eclesiásticos por si própria juramentados, o
reconhecimento de sua “fragilidade mulheril” e as constantes desobediências
que acarretavam castigos, a vulnerabilidade implícita e a rebeldia.
63

Compartilhamos a seguinte passagem retirada da Parte 3, O casamento,


para embasar alguns dos dados que expusemos acima:

E me deu uma tristeza funda, repetida, sem remédio, feito doença


incurável, uma pobre à míngua. Não podia eu entender a fortuna?
Deus fora bom para mim, me salvava das garras da liberdade, que
era órfã largada no mundo, sem asas e agora coberta da caridade do
Senhor e seu amor aos pobres, tinha esposo, amparo, não entendia,
embora houvesse no fundo alguém em mim que entendesse, sempre
houvera em meu ser um outro ser, que eu nem via direito, mas sentia
e sempre o velara, como se apenas meu e mais entendedor, que não
queria eu competições e invejas de minhas compreensões, o que se
podia ver contra a Velha, não que pudesse eu me dizer como ela,
uma estrelada pelos conheceres do mundo, suposta na religião,
capaz de falar aos mais mestrados dos homens, acercada dos livros
e quem a houvesse de venerar tinha certeza, pelo benefício da
criação dos frutos que nela se produz a sabedoria. Não era eu tal
alteza, tal estatura, tal cabeça trilhada de luzes. Mas nem era eu a
que me mostrava dia após noite, nem sabia muito eu mesma nem
havia de saber ninguém mais. Nem que me tornassem pelo avesso.
Que meu vencimento no mundo era ser mistério. Vivia eu metida
dentro de mim para saber o fundo e para onde endereçavam meus
pensamentos e por que entradas vinham as palavras alheias, as boas
e as impuras, que rotas tomavam, alcançar minha verdade, meus
remansos, alturas, abrigos, saber como não entrarem em mim e me
descobrirem (MIRANDA, 1996, p.74).

À página 105, que está em O fogo – parte seguinte a O casamento na


organização cronológica de seu diário –, Oribela não reconhece como
verdadeira a vida que vem levando no Brasil, o simulacro de vida que lhe foi
imposto. Tampouco Portugal, seu lugar de origem, que, nas linhas de seu
diário, virou desrumo e lembranças de um “falso lume”.
Se o uso constante da oposição pode ser lido como instauração de crise
no sujeito, Ana Miranda apresenta uma gama de personagens femininas que
não cabem nos padrões. Ao contrário, subvertem-nos.
É justamente em O fogo que mais podemos ouvir as vozes subversivas
das personagens femininas – mais precisamente, onde a maioria das mulheres
são apresentadas enquanto personagens com passados e histórias de vida. E
não é por acaso. Nada, em Literatura, sabemos, é por acaso. A arte é sempre
intencional, mesmo quando o real deixa de ser. Isto posto, não causa espanto
a percepção de leitura de que todas as mulheres do romance, a seu modo,
subvertem a ordem que o ser feminino deveria seguir: a moça cristã criada em
convento que se rebela diante do seu destino e se apaixona por um mouro; a
freira que engravida do nobre e é degredada para não ser morta; a índia que
quer ser tão virgem quanto católica; a moça de família judia que acaba por ser
64

criada sob preceitos cristãos; a mãe que tem uma filha com o filho; a
homossexual forçada à prostituição pelo marido; e a mulher que foge do
convento para se casar e acaba por ser assassinada.
Nenhuma mulher, nesta obra, apresenta o comportamento desejável
socialmente para os paradigmas do Brasil Colônia. Segundo Del Priore (2009,
p.24), estes padrões foram estabelecidos por meio das decisões tomadas pela
Igreja, formando, assim, um discurso normatizador quanto às funções do corpo,
dos gestos e dos hábitos. As prerrogativas desse discurso serviriam, pois,
como modelos de condutas individuais, sendo os comportamentos femininos
ligados a tabus e autoconstrangimentos jamais experimentados nem mesmo na
Idade Média. Esse adestramento feminino era parte do plano civilizatório e foi
feito a serviço da colonização portuguesa, que encontrou outro pilar no
discurso normativo médico, este reforçando o dogmatismo católico ao reafirmar
que a função do corpo da mulher era a procriação; a todo o resto, a danação
da luxúria e do pecado.
Retomando o romance, reiteramos, nenhuma das personagens seguiu
os conselhos de Dona Brites de Albuquerque ao descrever o bom
comportamento, tanto desejável quanto cabível à boa esposa:

Ora ouvi, filhas minhas. Aquela que chamar de vadio seu homem
deve jurar que o disse em um acesso de cólera, nunca mais deixar os
cabelos soltos, mas atados, seja em turvante, seja trançado, não
morder o beiço, que é sinal de cólera, nem fungar com força, que é
desconfiança, nem afilar o nariz, que é desdém e nem encher as
bochechas de vento como a si dando realeza, nem alevantar os
ombros em indiferença e nem olhar para o céu que é recordação,
nem punho cerrado, que ameaça. Tampouco a mão torcer, que é
despeito. Nem pá pá pá nem lati lará. Nem lengalengas nem
conversa com vizinho, seja ele quem for, ou cigano, nem jogos nem
danças de rua, nem olhar cão preto que pode ser o chifrudo, Deus te
chame lá que ninguém te chama cá, temperar legume com sal, não
apagar luz que alumia morto nem deitar as águas fora que é de
judaísmo, não pedir favores nem pôr os olhos no vizinho nem o corpo
na cama de outro, tem o esposo direito de acusar, para provar
inocência a esposa deve lavrar a mão num ferro de arado em brasa.
Açoite e língua furada àquela que arrenegar. Os esposos devem dar
panos às mulheres, mas só nas festas reais, se lhes oferecer o
mercador um bom preço, que eles não façam obra alguma desde o
sol posto até o sol saído e dia de domingo e a viver, segundo o
capricho dos homens. Aqui do rei. E disse eu. Ora, hei, hei, não é
melhor morrer a ferro que viver com tantas cautelas? Ai, como sou,
olhasse a minha imperfeição, olhasse meu lugar, sem eira nem beira
nem folha de figueira (MIRANDA, 1996, p.67).
65

Para além dos usos literários, propomos o fogo como um poderoso


símbolo de libertação. Uma liberdade tão negada a Oribela, sucessivas vezes.
Em uma delas, Francisco de Albuquerque compara o mau uso da liberdade na
mulher como a espada na mão de uma criança (MIRANDA, 1996, p. 113). É na
busca de sua liberdade em suas tentativas de fuga, que é mais severamente
castigada quando cativa. Mas se das cinzas ressurgiu a fênix, do fogo
renasceu Oribela. Ao fogo atirou os cabelos cortados como os de homem para
tornar-se outra, uma nova, a que foge desesperadamente do estereótipo da
moça típica de seu tempo para transformar-se na voz dissonante da História.
Ao acordar surpresa com a partida do marido, Oribela ordena que seja ateado
fogo em tudo que lhe aprisionou por tanto tempo. Do fogo, novamente, o fim.
Para renascer, mais uma vez.
A simbologia é notória sobretudo porque do incêndio salva-se nada
senão a miniatura de uma caravela esculpida por Ximeno Dias que outrora a
depositara em suas mãos. A água. Outra vez mais, a imensidão infinita dos
mares. O cruzar de oceanos impossíveis. A lonjura de dois mundos paradoxais.
A distância abismal de suas possibilidades. O meio que a levaria de volta ao
seu reino, ao seu conto-de-fadas, ao Mendo Curvo onde se via princesa. A
porta aberta do infinito, mas, também, dos mistérios: o mar como a rota de fuga
e única opção de retorno à expansão de Portugal. Entretanto, depois do
casamento, Oribela é obrigada a seguir para sua nova casa, mais embrenhada
em terra e se distanciando cada vez mais do oceano (que aqui representa,
também, a sua antiga vida – no Brasil, a terra, a desterra, as raízes de uma
nova vida, o estar presa ao chão, o estar presa simplesmente).
Na próxima etapa deste trabalho, então, sob o fogo que arde,
convidamos à leitura da nossa análise literária da heroína Oribela, da Velha,
das mancebas embarcadas na nau e de Temericô.
66

Capítulo III

O diário de Oribela: pluralidade discursiva, espaço da


fala ininterrupta ou do direito sagrado ao silêncio, ao
mistério do ser muitas, à reflexão, à catarse, mulheres
que gritam e ecoam, e a liberdade de estar só consigo
mesma.

“(…) Não era eu tal alteza, tal estatura, tal cabeça


trilhada de luzes. Mas nem era eu a que me mostrava
dia após noite, nem sabia muito eu mesma nem havia
de saber ninguém mais. Nem que me tornassem pelo
avesso. Que meu vencimento no mundo era ser
mistério. Vivia eu metida dentro de mim para saber o
fundo e para onde endereçavam meus pensamentos e
por que entradas vinham as palavras alheias, as boas e
as impuras, que rotas tomavam, alcançar minha
verdade, meus remansos, alturas, abrigos, saber como
não entrarem em mim e me descobrirem."

(MIRANDA, 1996, p. 74)


67

CAPÍTULO III

MULHERES QUE GRITAM

No romance de Ana Miranda, falam as mulheres. E, ao calar, seguem


falando. Silêncio, em Literatura, às vezes é grito. É grito quando deixa
transparecer nas entrelinhas, sutis e dolorosas, as fissuras da História: os
abusos, o medo intermitente, as doutrinações, o escravismo, as
instrumentalizações e usos políticos e religiosos de seus corpos, os
apagamentos de seus desejos e o emergir de um ruído uníssono que fere ao
excluir tudo que discorda e foge à narrativa considerada oficial.
Assim é com as mulheres, de idéias tão diversas quanto suas etnias, na
História do Brasil. Para muitos, um mistério tanto quanto um incômodo. Em
Desmundo (1996), nota-se uma tentativa da autora de mostrar como seres
heterogêneos foram tratados como um bloco único – como se suas diferenças
não fossem, também, o próprio grito – pelo discurso oficial que apreendemos
nos nossos anos de formação escolar.
Nos ítens seguintes que compõem este capítulo, buscamos aprofundar a
nossa análise literária da protagonista, Oribela, e das personagens que
compõem seu mundo, pluralizam sua existência e ampliam os horizontes de
leitura em suas narrativas singulares. E nessas falas ficcionais urgentes
reconhecemos, também, traços de nossa História.

3.1. Oribela, Oribelas

Na epígrafe que elegemos para abrir este capítulo, lê-se um trecho do


diário literário de Oribela, na qual ela deixava claro que o seu vencimento no
mundo era ser mistério. E era. Com as palavras que imprimiu em seu diário e
em sua história, a protagonista decretou que ninguém a conheceria em sua
plenitude ou nas camadas impenetráveis de sua personalidade ora heróica, ora
dúbia.
68

Nosso esforço, nesta etapa do trabalho, é para conhecê-la no limite do


possível, respeitando seus mistérios poéticos e seus traços multifacetados de
mulher que luta, durante toda a sua trajetória, pela própria sobrevivência. E por
isso, muitas vezes, como a lua de fases, se esconde entre nuvens e no escuro
do céu. E lá, inatingível. E lá, desconhecida. E lá, longe do olhar de quem lê e,
teimosamente, se atreve a desvendar.
Antagonicamente, além do direito à voz da vida, Oribela buscou o
privilégio de silenciar ao mundo as próprias sensações e a verborragia consigo
mesma em seu calar ruidoso. Paralelos onde se lêem histórias abafadas e
narrativas que não foram varridas pela erosão bruta do tempo e seu passar
estrondoso dos anos.
De difícil leitura, a moça portuguesa que começou a miscigenar o que é
hoje o Brasil, é densa. É o equivalente literário à mulher que, ceifadas as
escolhas, busca possibilidades onde ninguém mais as enxerga. É a oprimida
que se enche de uma coragem até então desconhecida para arrebatar os
desafios da vida. De uma existência que, aliás, os poderes patriarcais que
regiam o mundo à sua volta nem permitiam que fosse inteiramente sua.
E é nesse desbravar de caminhos que se descobre a mulher. E que se
percebem faces de camaleão da personagem que queria ser todo mistério. O
discurso da moça acuada pelas armadilhas ganha ares de bravata. A culpa
com o corpo, tracejada pela fé cristã, vai desenhando novas curvas, quase que
mesmo pecaminosas, e os desvios do casamento forçado que a entregam à
paixão adúltera. O adultério, sim, a escolha. A sexualidade. A maternidade. Os
cabelos outrora esvoaçados por ventos e mares e tempestades foram atirados
ao fogo para forjar a liberdade.
Nas (entre) linhas de seu diário, Oribela revela e omite o que é e o que
talvez não seja. Ela se disfarça em multitudes e ecoa falas que tampouco são
suas. Muitas vezes, não compactua ou sequer age com o comportamento
atribuído à moça recatada que julgáramos que fosse. A menina criada em
conventos. Noutras vezes é ela tangente. É margem. É danação. E, em outras,
a oprimida é opressora: a ré é juíza, a “es ra a”, “es ra iza”, e ressoa o
mesmo discurso que a aprisiona.
A historiadora Mary Del Priore, previamente citada nesta pesquisa,
classifica como conflituosa as relações estabelecidas entre as mulheres de
69

diferentes etnias nos primeiros anos de Brasil. E através de Oribela, passando


necessariamente pela personagem, podemos observar exatamente isso: seu
relacionamento com as brancas portuguesas junto a ela embarcadas – à
exceção da judia Urraca – é descrito como um relacionamento entre iguais,
entre semelhantes, que se encontram na mesma posição de opressão e
análogas condições na dor de não terem nas mãos as rédeas dos próprios
destinos. Cabe aqui, entretanto, destacar apenas a distinção do tratamento
com a Velha, posto que esta personificava a figura até certo ponto maternal
pelo cuidado com as moças, e de autoridade por seu cargo no clero.
Com olhar mais atento, todavia, se nos propomos a uma análise das
relações entre Oribela e Temericô, por exemplo, lê-se uma protagonista que
tanto se coloca quanto se sente superior à índia. Ainda que lhe fosse a nativa
certo eixo de alívio em um Brasil de cruezas, Oribela por vezes a destrata e a
compara a um cachorro a seus pés (como veremos no ítem 3.4. deste
capítulo).
Já com às negras – que aparecem em apenas três referências em todo
o romance – que lhe abrigaram e acolheram em uma de suas tentativas de
fuga do marido1, a protagonista demonstra ter vínculos distantes muito
provavelmente ocasionados pelas diferenças raciais e sociais, que podem ser
observadas até hoje. Para uma sociedade que se reconhece como
miscigenada, ainda mantemos separados os papéis atribuídos a cada etnia
num retrato histórico fiel de nossa colonização.
Por meio de Oribela, em suas narrativas pontuadas ou fluxos de
consciência urgentes, se percebe que mulheres, em todas as suas
particularidades, eram tratadas apenas como uma massa de seres
homogêneos. Mulheres, iguais. Mas que, entre si, gritavam suas singularidades
e espelhavam a atuação do homem opressor ao estabelecer as suas relações
de poder. A protagonista, portanto, em suas oscilações, foge ao rigor da
personagem de um único comportamento eternamente heróico e irrepreensível.
Oribela é dúbia. É dúvida. Nada nela é óbvio ou infinitamente transparente.

1
Reiterando assim Mary Del Priore, para quem as mulheres se uniam e abafavam seus
conflitos quando confrontadas com questões ligadas majoritariamente à elas - tais quais a
maternidade ou abusos variados - e na ausência equacional do homem.
70

Nesse sentido ambíguo e variável, ela assume, em certo grau, distintos


papéis: a passiva vaca que fora criada para ser, tanto quanto a parva,
transformada a gosto do mundo, que se rebela contra os abusos perpetuados
do silêncio.
Em um primeiro momento, quando assiste e repete as ações do homem
opressor diante das índias e das negras, é a vaca. A que automatiza padrões,
a que não se reflete na outra. A que acata. A que não sabe quem é. A que
segue rumos traçados por outros para ela. Talvez porque assuma a faceta da
moça típica de seu tempo, como proposto por Lukács, ao se crer racionalmente
e religiosamente superior ante outras etnias. Talvez porque sua capacidade de
alteridade seja pouco abrangente e esbarre na aceitação somente do que lhe é
conhecido: ela pode apenas se colocar no lugar da branca cristã degredada
para se perceber enquanto sujeito e experimentar a dor alheia – em parte, sua
–, mas não consegue ou não se permite se colocar na pele da índia ou negra,
ambas seres inferiores à idéia eurocêntrica de “h e / mulher das
i i izações” com a qual fora educada.
Em outro instante, metamorfosea-se em parva. E aí, questiona e rompe
com os padrões restritivos, acolhe sob qualquer pena a outras pecadoras
(como descritos nos ítens 3.2. e 3.3. deste trabalho), se reconhece na
indiscrição alheia, perdoa demais heresias e profanações, e acata a
naturalidade do erro. É não mais sagrada, mas humana. E assim sendo, está,
portanto, à margem da conduta esperada.
Logo, ao mesmo tempo em que celebramos uma mulher colonial que
luta para explodir as jaulas que tanto a aprisionam quanto reduzem, capaz de
personificar um ser destemido, lamentamos a repetição do comportamento
masculino diante das outras; ação essa que espelha a realidade
contemporânea de muitas brasileiras.
Mas no diário ficcional de Oribela, não estão expostas unicamente as
relações complexas entre as mulheres que deram início a formação identitária
do Brasil. Em suas palavras, lê-se, também, a descoberta mística das paixões
e da sexualidade, e nossa protagonista, que tanto quis horizontes, encontrou o
amor na busca incansável pela liberdade. Naquele que, com ela, sonhou viver
sem amarras. Ele, que já tinha desbravado mundos e estrelas, que conhecia os
mistérios da noite e dos mares. Ele, que depositou em seu corpo muitos
71

encantos, em seu ventre um filho e, em suas mãos, a simbólica caravela que


acalentava e encorajava o maior dos seus desejos: o de ser. O de ser livre. O
de perder-se e encontrar-se além-mar. Diferente da poeira de Fernando
Pessoa na epígrafe que abre romance – que era levada ao sabor do vento –,
Oribela queria direcionar em si a vida que lhe foi tão sonegada.
No relacionamento de Oribela e Ximeno Dias, o Mouro, é significativo
que ele a tenha amado por sua sede de liberdade. Quanto mais Francisco de
Albuquerque a aprisionava e insistia na dominação, mais Ximeno Dias a
exaltava pela vontade de ser livre. Quando a encontrou na confusão das matas
fechadas, ela já não ostentava os cabelos longos que atraíam olhares e
cobiças tão próprias do “padrão de beleza” da mulher à época. Ao contrário, ela
estava fraca, suja, maltrapilha e machucada pelos obstáculos da fuga noturna.
Mas era o fogo da coragem o que ele vira em seus olhos. Ele, tampouco, anda
de acordo com os padrões do homem de seu tempo: apaixona-se não pela
promessa de dotes e seduções físicas, mas porque se deu conta da sua fuça
curiosa como a de um gato2 - quando era condenável o desejo de mais saber
na mulher – e a força de sua volição de ir além. De ir além das imposições, do
conformismo, da passividade e da falta de contestação (ainda que, muitas
vezes, fossem silenciosas as suas oralizações de revolta).
O encontro do Mouro com Oribela é um encontro de pedaços que não se
encaixaram totalmente em seu tempo, nos dias passados de sua época: ele,
por gosto, correu o mundo. Ela, por circunstância, desembarcou no desmundo.
E, no Brasil, a terra (des)encontrada “por acaso”, se acharam. Eles, também,
"por acaso”. Primeiro nos sapatinhos encantados de Dona Isobel, a morta que,
“por acaso” tinha os pés do mesmo tamanho que Oribela. E, depois, “por
acaso”, em seu intento de fuga, quando a amparou da vilania do (des)mundo.
É secular, aliás, o encontro de nações no Brasil; a nossa História e o
nosso povo, desde sempre, foram formados pelo encontro de pessoas que
convergem a um mesmo centro. Que traçam suas rotas de fuga das pestes e
das guerras. Curioso, todavia, é pensar que, ainda que caibam todos aqui,
neste imenso território brasileiro, a intolerância gerada por esses encontros de
diferentes etnias mais parecem choques e até hoje estão desenhados em

2
Para ler relato completo, ir à página 173 de Desmundo (1996).
72

nossas peles e em nossas convicções. Tristemente, em nossas enormes


dificuldades de conviver com o outro.
Mais um dado interessante e facilmente observado no diário de Oribela é
que o Mouro e o Filho, tão responsáveis pela transformação da personagem
em mulher – no concernente a suas condições de sexualidade e,
posteriormente, de maternidade – são os únicos homens a ganhar capítulos
assim intitulados em sua narrativa íntima. Isso é ainda mais relevante porque,
nesse sentido, o próprio marido foi ignorado. Assim, é possível interpretar que
Francisco de Albuquerque significava menos para ela na sua construção de ser
mulher; ele não era, nunca fora, uma escolha sua. Era uma imposição ainda
herdada de seu mundo de menina, quando não era, internamente, senhora de
si e de seus desejos. Quando era a moça conformada de Lukács, e não a
heroína insurgente de Hutcheon.
Para além da figuração de Francisco enquanto homem em Oribela fica
claro que, em meio à incerteza do leitor diante da ambiguidade sobre a
paternidade de seu filho – ela o via com os cabelos cor de mel, o marido o
enxergava ruivo (também uma referência à possibilidade do filho ser do Mouro)
– ela, não parecia se importar: Oribela sabia que o filho era dela e isso lhe
bastava. Quando quis decididamente feri-la em seu íntimo e marcá-la de
maneira irrevogável por sua indiferença, Francisco lhe rouba o bebê, mesmo
acreditando não ser ele o pai biológico.
Na relação com o Mouro, também a subversão da cristã Oribela. Não foi
um adultério apenas de sacramento, foi, também, uma traição religiosa. Entre
todos possíveis, foi a um mouro – e não a um cristão – a quem direcionou o
olhar e os caprichos do coração.
Eles estão, religiosamente, em pólos opostos. Ela é, agora, mais que
uma mulher adúltera. O termo infiel, aqui, assume duas posições. Para além,
ela sabia do ódio do marido aos mouros em geral. Teria sido, por isso, o seu
dúbio contentamento ao revelar sua traição e o nome do homem que lhe
escondera da selvageria do mundo e da fúria de Francisco? Ou, na contramão,
ela assume a infidelidade com certa resignação – novamente a opacidade em
Oribela – porque via nisto a expiação do pecado que cometera ao ceder à
tentação? Na fé cristã, pela confissão, a expiação.
73

Seja qual for a interpretação de suas intenções, a justificativa explícita


para tê-lo feito foi a de salvar a Velha das ameaças de castigos e abusos. De
um novo inferno em terra. Logo em seguida, entretanto, a culpa pela confissão
ao marido que, ela temia, seria paga com a vida do Mouro, e a marca
incontestável da gravidez:

Ah, Deus, que esculpiste meu destino numa tora em brasa, que mais
me pode esperar por ser eu tão má e desconcertadora das vidas
alheias? Não pude eu sair do leito sentindo as penas do meu pecado
em meu ventre, num tipo de mal lunático, que vinha quando saía a
lua, a ver eu candeinhas diante dos olhos, parecendo enferma, a só
ter no escuro de dentro de mim a visão do Ximeno e o desejo dele
(…) um grande pecado, tão mau que devia eu de dar suplício ao
corpo, minhas unhas afiei na parede e raspei a minha pele dela
tirando sangue numas trilhas infernais, sem lágrimas ou gemidos, a
pagar com minha dor a dele (…) ilusão da língua, toques de mão,
união de corações, a nos saírem pela boca resplendores de fogo e
vivia eu disso, sacramentada ao Ximeno (MIRANDA, 1996, p. 187).

Todavia, cabe aqui uma observação: desde a página 167 de Desmundo


(1996), Oribela passa a referir-se ao amante pelo nome, Ximeno. Talvez tenha
abandonado a alcunha de ‘Mouro' por esta ser uma espécie de elo de ligação
ao julgamento moral e ao pecado com os quais os católicos tratavam àqueles
que não comungavam de sua fé. Entretanto, aqui, ele é quem que se apieda de
Oribela e a ela destina dignidade. É justamente Ximeno, seu companheiro
escolhido, o único personagem do romance que a reconhece como uma
pessoa merecedora de direitos e desejos, e não apenas como alguém que
existe para cumprir os papéis de esposa e mãe.
Com ele, a protagonista descobre uma parte importante de ser mulher e
se apodera de sua sexualidade. Vai deixando para trás, encrostradas de
passado, as idéias tão tolas quanto rasas de menina e apreende
conhecimentos que, com ela, ele compartilha. Seus sonhos de futuros
enquanto luta pela sobrevivência em um presente. Ela, então, questiona seus
próprios saberes, se reconhece ignorante e, ao fazê-lo, cria-se um espaço para
que se transforme e renasça aos olhos do leitor. Despedaça-se e reinventa-se.
Depois de viver com Ximeno e ser novamente cativa pela maldade do
marido, Oribela é desesperança. Vai cumprindo seu destino, crescendo
enquanto personagem e vivendo em desventura. Observa o desmundo
desmanchar suas frágeis construções de utopias. E, ao fim, quando se vê em
74

desgraça e até mesmo cogita o suicídio motivada pelos infortúnios de uma vida
pouco venturosa, é na memória do Mouro que Oribela encontra abrigo. Sua
narrativa retoma a intertextualidade com os contos-de-fadas, a alegria do
sonhar, usa as palavras sol e fogo para simbolizar a esperança presente nas
últimas páginas do romance e as atribui a pessoa de Ximeno; quase como uma
possibilidade de final feliz idêntica a de Princesas em histórias infantis, que
vencem os desatinos dos vilões e são, finalmente, recompensadas:

Fácil era sair daqui, um cortezinho no punho, um deitar na água, um


pular do galho alto, cortar o vessadre que se põe ao açor, fio de seda
da memória, correia que fazem de couro de animalha morta (…) Que
esta é a nossa ventura neste mundo, estamos aqui para purgar a
alma, feito as corujas que matam as cobras, a nos fazer lanhar pelas
tristezas. Uxtix, uxte, xulo, cá! Por que me mandou Deus para tal fim?
Todo o meu mundo esvaneceu, estava eu endoidando, dormindo,
sonhando? Ouvi o choro de meu filho, virei e na porta, atravessado
pelos raios derradeiros do sol, os cabelos em fogo puro, estava o
Ximeno com uma trouxa de criança no colo. Hou ha (MIRANDA,
1996, p. 213).

Ainda que parte da jornada de Oribela no descobrir-se e assumir-se para


si como um ser esteja terminantemente traçada ao encontro com Ximeno Dias
e às vivências que experimentou no cotidiano com outras mulheres,
gostaríamos de ir além e de propor que era ela também outras. Múltiplas.
Plurais. Do infinito dos mares, da libertação do fogo, da vastidão das terras.
Das águas veio e para onde quis voltar. Do ardor renasceu. Na terra cresceu e,
ainda que a contragosto, criou raízes.
Nossa protagonista foi filha sem pais, mãe apartada do filho, instrumento
da Igreja e do Estado, e, enfim, amante. Oribela foi mulher; e mulher de muitas
faces que vão se delineando pouco a pouco. Em Desmundo (1996) a vemos
Parva tanto quanto Vaca. Coragem e medo. Palavras e silêncio. Opacidade.
Contrastes. Curvas e retas. Oposta. Frente, verso e avesso. Feitora e escrava
de si. Oribela era muitas. E, em cada uma destas únicas Oribelas, havia as
faces do estar e as faces do esconder.
Ao longo de toda a obra, Oribela narra, diversas vezes, que há outra
dentro dela. Uma mais sábia das coisas do mundo. Uma que não sente medo.
Uma louca que tem coragem de falar o que quer e as coisas da maneira clara
como vê. E fala, destemida, porque sabe-se louca, e, considerada mentalmente
incapaz, não há crédito nas palavras. Não há punição explícita por dizê-las. E é
75

ela, justamente ela, que, irascível e verborrágica, expõe os abusos cometidos


pelas diferenças abismais de gênero na (re)construção ficcional da Colônia.
Quando Oribela é a Parva, ela é a protagonista de Hutcheon. É a voz
dissonante3, a heroína marginalizada, a excêntrica. É a Parva que se veste de
homem e grita desaforos à moças de “bons costumes” e tradicionalismos afins:

(…) Cha cha cha, disse a Velha, depressa, lavar na água salgada as
panelas, tirar os panos do secador, lançar a ourina pelo bordo,
trançar o cabelo, o que fosse necessário (…) Que o Diabo estava
solto, o padre girava a chave, batia palmas, logo, já já, para dentro,
descansai pois descansarão. Fizemos tudo trigosas, fomos avante,
tornamos atrás, fugindo de Satanás, correndo da língua da Parva que
sempre nos avistava e gritava. Almas enganadas, mancebas de
danados apetites, putinhas contritas, lá vai a macha, lá vai a velha
parida, lá vai a freira fodida, lá vai a virgem destapada, vão açoitar
com vosso amor os cornos desse país e mais coisas de tal tormento,
aquela entre os lobos. Blasfema das mulheres, dos padres, da
Virgem Maria e de Deus. E gritou o padre. Vade retro! Arrenego!
Deus perdoe tua boca esmerdada e te meta arreios (MIRANDA,
1996, p. 14).

É a Parva, cujo nome não aparece enumerado na contagem das sete


mancebas embarcadas na nau, que está atrelada à Oribela, indissociável do
que ela é. É a Parva, desacreditada e demonizada, que, ao longo do romance,
fala das arbitrariedades patriarcais e da dor de ser mulher em um mundo criado
por e para homens e apenas coadjuvado pelo feminino. Paradoxalmente, só
fala sem medo de ser escutada porque está travestida em trajes masculinos. E
soa indigna da verdade aos ouvidos da sociedade do lugarejo porque é,
segundo a quem cabe julgá-la, tão louca quanto possuída:

Deitei sem poder dormir, despertada, desentendida, tentando


enxergar minha alma, tendo para mim que daquela vez não
escaparia. (…) Devia escapar, ir pelas brenhas até sei lá onde a
buscar uma nau que me acolhesse ou viver selvaticamente da caça
do mato, de algum manioque, de uns frutos até ir à vila dos ilhéus de
onde embarcasse no modo como estava eu em traje de homem, viver
nestes trajes, não era a Parva homem que vestia de mulher?
(MIRANDA, 1996, p.169).

Também é significativa a transcrição da passagem abaixo, na voz da


Parva, porque ela é a primeira a dizer as coisas que, posteriormente, Oribela
negou para si. Contra as quais Oribela se rebelou. O estar no desmundo. A
vida que não escolheu. O casamento que nunca quis. O cuspe no rosto de

3
Narra Oribela, à página 51 de Desmundo (1996): “(…) Havia umas vozes dentro de mim, que
eu não queria ouvir”.
76

Francisco dentro do sagrado da igreja. A dúvida sobre a própria sanidade,


retomada no fim da obra. A Parva narrou um destino que a outra face de
Oribela sabia ser imposição. E tampouco desejou para si e, contra ele,
personificou o resistir:

(…) De noite escutei a voz da Parva na rua. Estúpida, hideputa can,


que te mandem arrancar as ameIas, rota e triste, uma serpe por
mulher, puta nascida de mosca encharcada no mais imundo monturo
que se pode encontrar em pântanos e em masmorras, quem te deu
atrevimento para cuspir nas coisas de noivado e de Deus? E vens
com afrontas. Toque nos ouvidos de teu esposo a blasfêmia de tua
soberba, fiques maldita da terra que te sustentará e sem filho, amém.
Que o diabo haveis de ver. Língua ardida. Parecia que falava de mim.
Pouco fez, pouco faz. Nem quero mesmo filhos daqui. Que vida era a
tua? Que fazes acá, porquera? Que não quisera se casar? Não tens
padre ó madre e te deram de improviso uma vida, queres uma
desastrada vida, uma mulher tal bela como pura? O que quer, a
tristura? Tu estás fora de ti (MIRANDA, 1996, p.62).

Como já dito ao longo deste trabalho, o romance é rico em simbolismos,


alegorias e metáforas. Um constante exemplo de metáfora na narrativa é a
vaca. O animal aparece como sereno, triste, indefeso, resignado com as
certezas imutáveis do mundo, impassível, inalterado diante das circunstâncias,
e, sobretudo, como posse irrevogável dos donos dos pastos aonde se
alimentam. A vaca, como a mulher, nascia, vivia e morria para cumprir papéis a
ela previamente designados pelo homem. Nutrir de leite e de carne, parir,
acolher e calar:

Da casa se avistava o curral, as vacas deitadas ou tangidas para


distante das reses, os machos longe das fêmeas, os doentes longe
dos sãos, um mugir triste vindo daqueles lados, após o rio, uma ponte
de paus muito rude, que antes do romper da luz iam vacas das ilhas
tocadas por vaqueiros pela trilha servir leite às portas das vivendas
na cidade e nas fazendas dos caminhos e no paço do governador. Se
ficava velha uma vaca, sua gente a levava à cidade e a matavam e se
vendia pedaço por pedaço de carne ao que viesse comprar,
escolhendo o que queria, ficando uma ossada repugnante que
vinham umas aves rapinar, aos restos vinham pobres lazarentos
tomar caldos dessas podridões (MIRANDA, 1996, p.101).

Sua sogra, Dona Branca de Albuquerque, em dado momento do


romance, dizia que nome de vaca tinha Oribela. Francisco de Albuquerque, seu
marido, era vaqueiro. Vaqueiro, adicionava o Mouro, “em casa de fêmeas”. E
tratava como suas as mulheres ao redor; fossem da sua família portuguesa (a
mãe com quem teve uma filha), a mulher com quem – por intermédio da
77

esposa do governador, sua tia, sutilmente representando a força política –


forçou o matrimônio, ou as índias nativas de quem “se servia".
Não é inocente a metáfora, tampouco a colocação implícita do que ela
significa. Também não é estranho que se use essa palavra até hoje como uma
palavra de carga negativa para designar uma mulher de quem não se gosta ou
por quem não se tem respeito. Uma mulher que, sem verbos e opiniões, é
chamada de ‘vaca de Presépio’. É ela somente figuração, não tem peso nos
dias ou personifica a indiferença. Eterna coadjuvante da própria vida, quase
nunca sua. Pouco sabedora de si.
Quando a narradora compara a si mesma e as mancebas ao estado
passivo e vitimado das vacas, é ela, então, a moça típica de seu tempo e a
protagonista de Lukács:

(…) Tinham as vacas os mais tristes olhares, eram tão boas que se
contentavam com ervas naturais, até umas ramas espinhentas e das
pessoas se afeiçoavam, feito cães, mesmo dos que lhes cortavam os
chifres para fazer botões e se deixavam levar. Eram aquelas vacas e
touros pacífico gado do Cabo. As fêmeas vacas davam bezerros
todos os anos, desde novilhas e mesmo as velhas seguiam parindo
até a morte, umas pretas e lisas que pareciam vidradas no resplendor
e brandura e outras de muita virtude, que eram leves e duras, vacas
como que umas órfãs da rainha, oh que trabalhos tinham aqui por
nossos pecados, obrigadas a mísera vida cumprindo uma sentença,
vacas do céu, desconfiadas, cada uma a penar por si, sem tempo,
cha cha cha, samicas doudejais vós? cha cha cha demoninhadas, de
olhos tão marejados, senhoras, que cada momento de hora são mil
anos de tristura (MIRANDA, 1996, p.101).

E se o mundo cerceou sua liberdade única de existir, aonde Oribela


encontrou espaço para ser, como vamos insistindo, tão plural? No campo da
Literatura temos a resposta: em seu diário.
Embora não seja objetivo desta pesquisa uma análise profunda do diário
enquanto gênero literário, pensamos que seja relevante e enriquecedor pensá-
lo. E o é porque, não a toa, foi a forma de escrita criativa escolhida pela autora,
Ana Miranda, para dar voz a sua Oribela. Moça silenciada pelo discurso
religioso da igreja, pelos desejos arbitrários da monarquia portuguesa e pela
moral patriarcal vigente em seu tempo, a protagonista encontra na escrita de si
um campo de liberdade: ali, ecoa a profusão de vozes e silêncios ao seu redor,
o desmundo que explora a cada dia, as suas sensações diante do novo e os
seus pensamentos e desejos mais íntimos, sem a censura onipresente nos
seus dias pelos poderes que ditavam as regras condicionais de sua existência.
78

No diário, privilegia-se a voz de quem escreve. A personagem não é


apresentada por outro narrador – também ele construído e embasado com
julgamentos e preceitos internos na hora de falar sobre o outro – mas por si
mesma. Na escrita de si e no fluxo de consciência, a necessidade vital de
verbalizar e expor sem interrupções ou dissonância de uma voz contrária ou
externa. Em seu diário, Oribela podia falar por si – para si, em si, ouvir-se –
sem a opressão de quem regia o mundo como ela o conhecia. O diário é,
portanto, o espaço de si mesmo.
Mas o diário é, também, o direito ao silêncio, ao recolhimento em si, ao
estar só consigo mesmo, ao exercício da reflexão e à solidão das próprias
hipóteses. Oribela, para o mundo fora dela mesma, era mistério. Ainda que
tentassem lhe arrancar as palavras – muitas vezes sob penas físicas, como
Francisco de Albuquerque –, ela escolheu estar em si. No pacto ficcional
(LEJEUNE, 2008) que trava com o leitor, ela permite, pouco a pouco, página a
página, desconfiada e arisca, a desfolhagem e as descobertas:

(…) Mas nem dobrou minha alma em joelhos, nem desvendou meu
coração em seus traços. Guarda tuas misérias como secretas, do que
te não arrependerás. Mais língua, mais dor. Tudo vem em seu tempo
e os nabos pelo Advento. Nem és dom Diniz, que fez tudo o quanto
quis. E me fez beijar uma cruz. (…) Fui calada. Ruim do calar é que
mais se pensa, mais se alembra e mais se ouve o outro e não a si
(MIRANDA, 1996, p.59-85).

Para além do mistério de ser, esta escrita implica a possibilidade de uma


voz dissonante que, ao oferecer à História um novo ponto de vista, corrompe e
subverte os ecos absolutos; passa à margem do discurso oficial já que não tem
compromisso com a suposta imparcialidade histórica. Uma escrita
fundamentalmente formada pelas impressões da protagonista e que não busca
necessariamente retratar fatos com precisão e acuidade. Busca, sim, a riqueza
da visão íntima e pessoal das lentes com as quais Oribela enxergava e
apreendia os desafios do microcosmo que habitava. Ela é, por excelência, tão
subjetiva quanto o próprio romance; gênero este que se apropria de todos os
outros e torna-se tão híbrido quanto o desejo do autor direciona a criação.
Como forte característica da forma, entretanto, a redação de um diário
está ligada à cronologia, ao tempo, aos dias, ao cotidiano, e ao que queremos
guardar dele. A duração de um diário pessoal é imprecisa e varia de acordo
com a vontade de seu autor em escrever, contudo, no diário-romance, ela pode
79

vir explícita ou oculta por elementos que deixam pistas e que instigam o leitor a
descobri-la.
O diário de Oribela aparece desse segundo modo; porém, pode-se
concluir que, pela data histórica do naufrágio da nau que levava o Bispo
Sardinha de volta ao reino – e, dentro dela, tanto a Velha degredada quanto
Francisco de Albuquerque, marido e algoz de nossa heroína –, sabe-se que o
romance tem uma média de duração de um ano: Oribela desembarca em 1555,
e a nau fracassa no intento de retorno à Metrópole em 16 de junho de 1556,
nos mares do hoje estado de Alagoas. Vale lembrar que tanto o Bispo Dom
Pedro Fernandes de Sardinha quanto os outros 90 viajantes embarcados na
nau foram devorados pelos índios Caeté, no que, posteriormente, se tornou o
Manifesto Antropofágico.
Dividido em 10 capítulos narrados em primeira pessoa (A Chegada - 21
relatos, A Terra - 18 relatos, O Casamento - 24 relatos, O Fogo - 25 relatos, A
Fuga - 7 relatos, O Desmundo - 20 relatos, A Guerra - 17 relatos, O Mouro - 27
relatos, O Filho - 15 relatos e O Fim - 5 relatos) e com um total de 213 páginas,
o diário traz narrativas que se supõem tão cronológicas quanto
complementares. O título de cada um desses capítulos já dá uma idéia – ou um
brevíssimo resumo – do que nele será exposto, além de terem ilustração da
mesma autora da obra, Ana Miranda. Os desenhos são híbridos de seres
mitológicos com as transformações pelas quais passa Oribela.
Primeiro, cruzando os mares, chega sereia. Sedutora, com sua pele
branca que contrastava na remota e tupiniquim paisagem, dos homens. Em A
Fuga, a sereia ganha asas para voar ao longe. Já em A Guerra, percebe-se um
cruzamento entre uma vaca e um bode, a metáfora da mulher que tem a
demonização feminina preconizada pela Igreja; não por acaso, é aqui que
Oribela tem a sua fuga mais significativa. Em O Mouro, um ser que igualmente
atravessou os mares e cruzou os céus do mundo com sua cauda de sereia,
sexual, sedutor e alado. As asas da liberdade do homem, o amor que libertou
Oribela. Em O Filho, vemos uma sereia com chifres de bode e tetas de vaca,
ambas metáforas poderosas ao longo do romance e, muito provavelmente,
simbolizando o adultério e a paternidade da criança4. Ao fim, torna-se a árvore

4
Como acusara (previra?) Dona Branca de Albuquerque na página 198 de Desmundo (1996): (…) E que
o filho que trazia eu era um bastardo chifrudo que ia nascer com os cabelos ruços.
80

da vida e as raízes fincadas na terra do desmundo observando tudo ao seu


redor. Essas ilustrações, inclusive, ganham respaldo histórico. Segundo Del
Priore:
(…) Textos bíblicos e jurídicos davam caução à menoridade da
mulher, e a Igreja valia-se da eloqüência dos sermões - meios
eficazes de cristianização - para difundir a idéia da mulher-sereia, da
mulher-diaba, da mulher perigosa. A piedade mariológica, que tivera
penetrante alcance na vida colonial, colaborava para esvaziar ainda
mais qualquer conteúdo de sedução que se quisesse enxergar nas
mulheres. O modelo de feminilidade que vicejava era ditado pela
devoção a Nossa Senhora e correspondia a comportamentos
ascéticos, castos, pudibundos e severos (DEL PRIORE, 2009, p.33).

O diário de Oribela é a narrativa de seus dias no pedaço de terra que lhe


coube (des)ocupar. Desenhada e descrita com a liberdade que nos permite a
arte, muitas vezes maior que as possibilidades – reduzidas – da própria vida.
Em sua obra O livro por vir (1959), o ensaísta e escritor Maurice
Blanchot sugere que o diário é quase que um espaço catártico para quem o
assina:
(…) O interesse do diário é sua insignificância. Essa é sua inclinação,
sua lei. Escrever cada dia, sob a garantia desse dia e para lembrá-lo
a si mesmo, é uma maneira cômoda de escapar ao silêncio, como ao
que há de extremo na fala. Cada dia nos diz alguma coisa. Cada dia
anotado é um dia preservado. Dupla e vantajosa operação. Assim,
vivemos duas vezes. Assim, protegemo-nos do esquecimento e do
desespero de não ter nada a dizer. (…) Tenha se sentido de certa
maneira obrigada a voltar para junto de si, num diário tagarela em
que o 'Eu' se derrama e se consola, isso é significativo e perturbador.
O diário aparece aqui como uma proteção contra a loucura. (…) O
diário é a âncora que raspa o fundo do cotidiano e se agarra às
asperezas da vaidade. (…) O pequeno recurso contra a solidão que
ele garante (BLANCHOT, 2005, p.273-274).

E era justamente em seus escritos que se desvelava, para nós, Oribela.


As muitas Oribelas. Complexas, singulares, particulares, multifacetada. Em sua
palavra escrita, conhecíamos a personagem que não queria esquecer-se de
quem era, que narrava a Temericô seus dias passados em Portugal, o mundo
como antes conhecera – melhor dizendo, como lhe fora apresentado – as
vozes que transcrevia, a pluralidade dos discursos, o estar sozinha em terras
de ninguém, o derramamento de si e o transbordar de impressões.
A narrativa permite, ainda, que se perceba um sujeito em crise, um ‘eu'
que não pertence mais a nenhum dos mundos que conheceu. Não cabe em
sua origem e renega o seu ancorar em uma vida que veio por imposição, nunca
por escolha. Ali, a narradora se desnuda e expõe o prazer da sexualidade, as
81

desilusões com o fracasso sucessivo das suas fugas, as marcas e traumas


pelos abusos que a vitimaram, o inconformismo com o próprio destino, suas
desventuras e fantasias de menina, seus medos e descobertas de mulher. São
linhas que tratam das diferenças abismais entre a criação que recebeu no reino
português e a realidade brutal do pedaço de desterro no qual desembarcou.
Por meio dos seus relatos, se enxerga uma Oribela que sofre, que cresce, que
luta, e que não arrefece. Que insiste e, ainda que ferida, não esmorece.
O diário retoma, aqui, a função primeira que conhecemos ainda em
nossa infância: o cúmplice de segredos envolto pela magia do mistério, do
secreto, do que está inteiro em nosso íntimo e a salvo da curiosidade alheia. O
que pertence somente a nós mesmos, o nosso espaço indivisível e inabitado
com o outro. O diário de Oribela é o seu lugar no (des)lugar do Brasil. É nele
que ela se lembra de quem é e reflete sobre a pessoa em que está se tornando
devido às circunstâncias. Novamente citamos Blanchot (1959) e transcrevemos
aqui a bonita ponderação que fez a respeito do diário:

O diário íntimo, que parece tão livre de forma, tão dócil aos
movimentos da vida e capaz de todas as liberdades já que
pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si mesmo,
acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe convém, na
ordem e na desordem que se quiser, é submetido a urna cláusula
aparentemente leve, mas perigosa: deve respeitar o calendário. Esse
é o pacto que ele assina. (…) Escrever um diário íntimo é colocar-se
momentaneamente sob a proteção dos dias comuns, colocar a escrita
sob essa proteção, e é também proteger-se da escrita, submetendo-a
à regularidade feliz que nos comprometemos a não ameaçar. O que
se escreve se enraíza então, quer se queira, quer não, no cotidiano e
na perspectiva que o cotidiano delimita (BLANCHOT, 2005, p.270).

Blanchot (1959) vai além e considera que escrever um diário é salvar a


si mesmo da maldade alheia e do sufocar lento perpetrado pelos dias. Uma
maneira de manter-se vivo na passagem maçante das horas.
Conhecido estudioso de Maurice Blanchot, Michel Foucault (1974),
segue a mesma linha e trata das escritas de si em dois formatos: os diários e
as cartas. Em notável passagem, o filósofo coloca que escrever em um diário
é, também, uma forma de cuidado de si, de proteger a si mesmo, do recolher-
se em si, do atingir a si mesmo, do viver consigo mesmo, do bastar-se a si
mesmo. E de quê mais precisava nossa heroína senão de toda proteção que
lhe pudesse ser dedicada? Inclusive a de si mesma.
82

E, assim, podemos acompanhá-la em suas vivências, seus medos e


desejos, em seus ciclos tão íntimos – da menina que casou forçosamente ao
descobrir-se sexualmente mulher com um outro parceiro – e, posteriormente,
mãe. Uma Oribela que busca a si. E que descobre muitas de si mesma, criadas
e renascidas ao sabor dos ventos que tantas vezes foram furacões em sua
vida.
Depois de leituras atentas ao dito, ao não-dito e ao desdito nas linhas e
entrelinhas da obra, pode-se concluir que é difícil ser Oribela. Não pela prática
da alteridade através do literário, esta bastante palpável, mas pelo lugar que
(des)ocupa enquanto personagem central da nossa História. Oribela como
mulher, relegada a agente passivo na formação de um país, quando tão
ativamente atuou. Oribela como um ser de tantas faces, entre outros seres
também multifacetados, aonde repousam nossos primórdios. Através das ricas
descrições de seu desmundo – um Brasil-desterro tão virgem quanto cru – e
das suas desventuras, vamos tirando o véu uniforme das mulheres que
chegaram para construir, pioneiras, o que hoje chamamos de nação. Vamos
conhecendo suas impossibilidades e suas determinações.
É difícil ser Oribela, e não é. O é porque experimentamos a sua dor e
podemos nos reconhecer nela, nos apropriamos de sua trajetória porque
somos capazes de ler na sua narrativa ficcional situações recorrentes na vida
real; Oribela é contemporânea porque, em si, é o retrato de ontem travestido de
hojes e amanhãs. E, ao mesmo passo, não dói porque, com olhos
acostumados, talvez um pouco cínicos e muitas vezes resilientes, sabemos ser
essa a realidade assoladora e banalizada de muitas mulheres nesses Brasis de
aindas. Ainda é. Ainda é difícil. E não parece ser assim tão mais fácil com a
passagem cronológica do tempo que modifica espaços; ao contrário, quanto
mais se toma consciência das condições históricas as quais foram submetidas
essas mulheres, mais árduo e dolorido parece sê-las e ocupar os seus papéis.
É tão mais penoso colocar histórias em seus rostos. Muito mais por
reconhecimento dessa dor do que por aceitação.
Insistimos, é difícil ser Oribela. É difícil se reconhecer e se encontrar na
multiplicidade de si, aonde nos percebemos tantas e tão frágeis, tão capazes e
tão vulneráveis; aonde precisamos identificar ou mesmo discorrer sobre os
nossos comportamentos variáveis, que ora são oprimidos e ora são
83

opressores. Em um mundo que impõe singularidade, homogeneidade,


normativas e diretrizes de atuação social, é crise ser plural. E, entretanto,
assim o somos.
Se Oribela – impossibilitada de ser uma só pelas circunstâncias – foi
tantas, Desmundo, o romance que narra a sua vida é, sobretudo, desencaixe:
foge à leitura hermética e claustrofóbica de uma só corrente teórica, convida a
uma infinidade de interpretações e análises, desafia a crítica que busca
fórmulas prontas para compreender a totalidade de uma obra. Romance
contemporâneo que trata das nossas origens, diário histórico que parece
centrado em temas atuais, apresentando fechamento em aberto tracejando as
linhas da vida real (a leitura permite igualmente um final melancólico tanto
quanto um feliz), brincando com o hibridismo das formas e procedimentos
literários. E evoca ainda intertextos e metaficções, trata do passado temporal
falando no presente verbal e salta aos olhos para corromper e despertar as
vistas cansadas que enxergam, na dimensão brutal da História, somente os
óleo sobre tela reproduzidos exaustivamente nos livros pedagógicos que
acompanham nossos anos de formação.

3.2. Velha, a sábia

Além de serem ecos dos discursos um do outro e assim se fortalecerem


mutuamente, a Igreja e o Estado também construíram ao longo dos anos
relações profanas e bastante distantes do sagrado que propagavam. Talvez o
caso mais conhecido desse entrelaçamento literalmente íntimo que permeia a
nossa história seja o da freira portuguesa Paula Teresa da Silva e Almeida, a
Madre Paula. Nascida em 1718, decidiu ingressar no Convento de Odivelas
aos dezessete anos de idade e foi a mais famosa amante da nobreza: foi, a
seu tempo, paixão vitalícia de Dom João V e, anteriormente, de D. Francisco
de Portugal e Castro, conde de Vimioso. A relação entre o rei e a soror era tão
conhecida que quando alguém necessitava de algum favor do monarca,
recorria à religiosa como intermediadora. Para além, o nobre a cercou de luxos
dentro do próprio convento – o que acabou por gerar o Sumário de Vária
História (1872), documento de Ribeiro Guimarães que expôs como vivia a
84

Madre em seus aposentos cercada por suas nove criadas – e foi pai de um
filho seu: José, conhecido como ‘Menino de Palhav ’ e, mais tarde, inquisidor
geral. As indiscrições do rei escandalizavam igualmente sua corte e seus
súditos, mas jamais fora repreendido por um ou por outro. Madre Paula morreu
trinta e cinco anos após o nobre - aos sessenta e sete anos de idade –, vivendo
durante todos este tempo no exílio do Convento das Odivelas e recebendo
herança do rei, porém mantendo relações com os fidalgos que ainda se
aproximavam dela.
É sabido que nem sempre os motivos que faziam muitas mulheres se
enclausurarem em conventos e demais estâncias religiosas se tratavam de um
chamamento ou aptidão para exercer e perpetuar a palavra de Deus na terra.
Às vezes era a única maneira de sobreviver à imposição da família, à pobreza
– pois, à época, só os filhos homens tinham direito à herança –, à solidão de
quem não se casou e constituiu família e, em aspecto menos visado
atualmente, a busca por liberdade. Sim, a antítese é verdadeira: inúmeras
mulheres portuguesas – sobretudo a partir de 1700 – buscaram na clausura
religiosa a liberdade que a vida lhes negou. Mais ainda porque, à época, os
conventos gozavam da falta de observância moral dos dogmas católicos e
estavam à mercê das vontades e libertinagem sexuais da nobreza, ainda mais
em se tratando do já citado Dom João V.
Os conventos eram tão liberados na época desse reinado (tratamos aqui
do século XVIII), que a fuga da fidalga D. Mariana Josefa, filha dos condes de
Tarouca, virou notória: em 1728 a moça escapou da severa vigilância dos pais
e, protegida pelo conde de Alvor e pelo próprio rei, fugiu no meio da noite para
o mosteiro das carmelitas calçadas de Carnide.
Trazendo a voz ficcional feminina ao retrato histórico do dogmatismo
religioso que se estendeu por anos em Portugal e eclodiu no escândalo de
freiras grávidas no século XVII, Ana Miranda assim descreve a vida prévia da
Velha, personagem que habitava um convento, era tida como sábia por Oribela
e que veio ao Brasil para pagar por seus pecados ao acompanhar as
mancebas na nau e prepará-las para a vida na Colônia:

Era esposa de Deus. (…) Mas não no convento. Ali era o do melhor.
(…) Pois vinham homens provar das mesas de doces, maçapão,
folhado de amêndoas e de sais (…) Enviavam às irmãs, em troca de
favores do corpo e da alma, que se deleitavam elas ali em liberdades
85

de tudo o que houvesse, de amor, de poesia, vinho, uva, veludo,


espírito, uma sala de livros recoberta, onde se achava escrita toda a
sabedoria do mundo, em palavras e iluminuras, quadros de beleza,
de cenas, de países, de céus e infernos e música, umas violas,
pandeiros de fitas e fora mesmo um dia lá o rei a se banquetear no
convento, para ver um auto levado pelas noviças de rosto d'alfeni e
doces vozes, a comer Sua Alteza umas lebres, pernas de veados,
congos, lampreias, filhós de manteiga, frutas de urzes e ordenar de
seu dinheiro roupas de seda para as freiras e perfumadas águas da
Alimania e de mais longe, filtros de amor, arminhos aos regaços e
luzes para a noite completa, quantas luzes se quisessem nas celas,
nas salas, nos passadiços e escuros desvãos por se assim querer,
para encontros de homens e mulheres, conversas sem hora, sem
assunto, com a gente mais sabida e a mais lustrada, de tudo que já
se soube neste mundo, as mais estranhas lendas, a abismar, a
assombrar. (…) Olhos desvendados para se ver no mundo o que se
queira, os quebrantos, os jogos, as profecias, o prazer de saber um
pouco mais e mais e mais, do que se quiser, até mesmo a saber a cor
do Diabo, as crenças de Finisterra, as origens da vida e da morte.
Que tudo se pode averiguar (MIRANDA, 1996, p.87-88).

Não à toa, é justamente neste mesmo século XVII, anterior à fuga das
fidalgas, que se observa um enorme número de freiras grávidas, tanto em
Portugal quanto no resto da Europa, como exposto acima. Diziam elas,
comumente, estarem grávidas de Deus; a Inquisição, entretanto, ao tomar
conhecimento do fato, não perdoava e as queimava na fogueira, seguindo a
sua prática de perseguição. E assim, novamente, observamos a narrativa –
permeada de culpa no concernente ao próprio corpo e resiliência completa
diante dos castigos – de nossa personagem ao descobrir-se ela mesma
grávida:
(…) Com várias astúcias conseguira a Velha iludir a barriga, mas o
suposto crescera tanto que viera a abadessa num exame rigoroso,
descobrindo ser a verdade o que de mal se pensava. Seria filho de
Deus? Negara a Velha, por honesta, que pudera inventar ser como
Maria, mãe de Deus, mas o pecado seria maior. A sentença dissera
que, por mostrar arrependimento de suas culpas e não constar em o
sobredito pecado coisa que ajudasse o demônio, nem que com ele
tivesse pacto, tácito ou expresso, a condenaram à privação de cargo,
de voz ativa ou passiva, para que perpetuamente não pudesse mais
servir à religião. Que lhe tirassem o seu véu preto e que fosse ela
encerrada em cárcere num convento dos arrabaldes, para cumprir
penitências, jejuns e prostrações. Ficara sem permissão de comungar
e que não fosse àgrade ou à portaria nem escrevesse cartas nem
mandasse recados nem os recebesse e que os sobejos de sua
comida se não pudessem misturar com os das outras freiras. Dissera
eu. Mas que severidade, se outras irmãs pariram e vivem em tantos
conventos? E dissera ela. Foi a mulher do pai que assim ordenou e
era aquela mulher uma sombra poderosa. A Velha cumpria a
penitência com humildade quando o que fora causa da maternidade,
pai, dela se compadecera e a livrara das penas, desde que fosse
embora do reino. (…) Mesmo em tanta idade, de quase quarenta
anos, velha nos confins da vida, teria que enfrentar uma travessia,
desde que não morresse. Mereço eu, dissera. A honra a Deus devida,
86

dera ela às coisas terrais e mais a seu corpo, que menos merecia,
com pouca reverência estava nos santos lugares e tantas vezes
tomara o nome em vão, despendera dias em prazeres, o corpo obrara
a fazer o que se não defende (MIRANDA, 1996, p.88-89).

Um dos que se basearam na emergência dessas informações históricas


para construir parte de seu enredo literário foi José Saramago. Em Memorial do
Convento (1982), o escritor expõe de forma bastante irônica a perpetuação
dessas relações pouco sagradas entre as freiras e seus donos – que se viam
Deus na terra –, os reis:

(…) E também em pessoa os infantes meus manos e senhores


vossos, ajoelhai, ajoelhai lá, porque vai passando a custódia e eu vou
passando, Cristo vai dentro dela, dentro de mim a graça de ser rei na
terra, ganhará qual dos dois, o que for de carne para sentir, eu, rei e
varrasco, bem sabeis como as monjas são esposas do Senhor, é
uma verdade santa, pois a mim como a Senhor me recebem nas suas
camas, e é por ser eu o Senhor que gozam e suspiram segurando na
mão o rosário, carne mística, misturada, confundida, enquanto os
santos no oratório apuram o ouvido às ardentes palavras que debaixo
do sobrecéu murmuram, sobrecéu que sobre o céu está, este é o céu
e não há melhor, e o Crucificado deixa pender a cabeça para o
ombro, coitado, talvez dorido dos tormentos, talvez para melhor poder
ver Paula quando se despe, talvez ciumento de se ver roubado desta
esposa, flor de claustro perfumada de incenso, carne gloriosa, mas
enfim, depois eu saio e lá lhe fica, se emprenhou, o filho é meu, não
vale a pena anunciar outra vez, vêm aí atrás os cantores entoando
motetes e hinos sacros, e isso me está fazendo nascer uma ideia,
não há como os reis para as terem, as ideias, senão como reinariam,
virem as freiras de Odivelas cantar o Bendito ao quarto de Paula
quando estivermos deitados, antes, durante e depois, amen
(SARAMAGO, 2013, p.173).

Não se pode aqui asseverar que Miranda se valeu de mais uma


referência literária para construir sua personagem – posto que o romance
histórico de Saramago se situa no início do século XVIII e o dela em 1555 –
mas a autora certamente sabia dessas verdades históricas que tratavam da
corrupção religiosa e que se fizeram conhecer mais pela literatura do que pelo
discurso histórico oficial, posto que este esteve sempre preocupado em velar
as verdades mais inconvenientes que pudessem corroer sua narrativa heróica
ou jogar sombra de dúvida nas certezas que se diziam superiores a quaisquer
suspeitas. E, portanto, há, presente no romance, o diálogo entre o real e o
ficcional tão importante para Linda Hutcheon em sua teoria.
Fato é – a personagem de Desmundo que aqui estamos tratando, a
Velha, aparece pela primeira vez na página 24 e vai contando sua história
pelas linhas de Oribela. Torna-se então conhecido que ela habitava o mosteiro,
87

se relacionou com homens e que veio ao Brasil degredada por ter engravidado
de um nobre. Ela pode ser considerada, portanto, como mais um índice literário
da mulher oprimida pelos poderes patriarcais de seu tempo por ter subvertido
uma ordem e rompido com o que era esperado.
Outro papel que assume a personagem é o de retratar o que acontecia a
mulheres consideradas ‘sábias' para além dos padrões desejáveis pelo
universo eclesiástico, ainda que ela própria fosse parte integrante desse
cosmos religioso. Há sempre uma espécie de crise permeando a Velha;
também ela não cabe em lugar algum, também ela é um sujeito expatriado que
está no limiar entre o que é de verdade e aquilo que foi educada para ser.
Subversiva por excelência, encontramos nela a freira que engravida –
não fica claro se as relações sexuais com o nobre (pai biológico da criança)
foram consensuais ou impostas – e é também a religiosa que, por ser sábia,
necessita ser exorcizada. Mulher inteligente não podia ser coisa de Deus. E, só
aí, transcendeu os dogmas desejáveis a uma cristã, mesmo sendo ela mesma
parte do sistema clerical.
Sobretudo, também nela se encontra a convergência teórica entre o que
antes parecia díspar: é o tipo de Lukács e a periférica de Hutcheon em uma
trajetória – guardadas as devidas particularidades – como a de Oribela. Não
está exposto, reiteramos, se a relação estabelecida com o nobre foi forçosa ou
voluntária, porém é evidente que ela foi enviada ao Brasil porque não tinha
como – por sua posição socialmente inferior – lutar contra a nobreza e
permanecer em seu país a contragosto do poder do Estado. Uma freira,
grávida. Nada menos que de um nobre. Toda a construção da personagem de
Ana Miranda é a contradição em si. Toda ela é a danação do pecado e da
sabedoria em uma mulher, a possuída pela malignidade como exposto por Del
Priore anteriormente, embora fosse também um eco da perpetuação da voz
divina. Todo paradoxo de pertencer a um sistema, ser dele sumariamente
excluída e viver, ainda, sob seu dogma: o castigo por saber, e que fosse
retirado à força – ou por coerção espiritual – essa sabedoria.
88

No excerto abaixo5, pode-se ler indícios importantes para o nosso


estudo, tais como o amordaçamento da Velha por longos períodos por 'saber
demais’, a mordida da cobra – simbolismo cristão da serpente que remete à
tentação do conhecer –, a picada justamente na Velha e daí, por isso, ser
necessário um exorcismo (o tirar o demônio, o veneno do conhecimento que se
instaurava na carne, o calar para sobreviver). As mulheres que buscavam e
encontravam alívios umas nas outras e em suas conversações, as índias
sequer batizadas na religião católica que eram consideradas pela Velha mais
próximas de Deus e com maior entendimento dos preceitos cristãos do que os
padres, o sofrer e a dor que deveriam ser também em silêncio para não
perturbar o sossego dos religiosos. E, não menos importante, a mensagem
implícita de que a personagem fora amordaçada justamente por relatar os
abusos de poder dos homens (novamente o Bispo e o Governador
representando as opressões religiosas e políticas):

(…) Em vez de a ver reinando em suas glórias merecidas de letrada,


em vez de a saber sobre livros ou a arrazoar entre os mais ouvidos,
estava ela assentada num canto do chão com a boca amarrada em
uma mordaça e uma inchação no rosto, como um castigo de ser mais
que os outros e quedei a pensar, mas fui ao desembarcadouro. Que
pode um prisioneiro fazer por outro? (…) E se eu queria um rico
presente, daria, uma pele, uma pedra preciosa, bastava dizer, pois
estava mansa e assim pedi e me soltou o pé do catre cortando a
corda. Queria mais uma outra coisa, que seria de grande serventia à
alma, ir ver a Velha, na cidade e travar conversações, ressentia eu de
nossa amizade. O que permitiu Francisco de Albuquerque, fosse com
ele num domingo, para a missa. Vivia a Velha ainda na casa de
gentias, mas fora mandada tapar a boca com a mordaça, que o
conhecer numa mulher é coisa do Demo e só a podia tirar para a
confissão ou à ceia, andara dizendo umas coisas da terra, do bispo
vil, do governador (…) ficavam as pessoas atônitas daquilo que ela
falava e de querer fazer sua própria justiça, enquanto a Parva podia
gritar nas ruas todas as verdades. Mas deu o padre licença para que
a Velha pudesse falar e sem mordaça me beijou. De uma mordida de
cobra foram suas maiores penas, estivera para morrer, de rosto cheio
e a sair um caldo de inferno, sem trégua, um espírito maléfico entrado
por ali, traindo com a desordem, dentes serrilhando, sem gritos para
não aborrir os padres que demais já se sentiam aborridos com as
intrigas. Viera um cirurgião, com umas águas de ervas, fervedouros,
unturas, estopadas, a ensalmar, de nada servindo, depois um natural
selvagem lhe viera com uns chocalhos, cantorias, archote queimado
e um físico, com uma talha de vinho, cinza de palha, alho pisado e
pólvora, a fazer a Velha vestir uma camisa de homem pelo avesso
para beijar a cruz, a reverter, depois fizera rezas de feitiços do
achaque, como um anjo custódio, dizendo que para si passasse o

5
Entretanto, para clareza completa do leitor acerca da personagem e das circunstâncias às
quais estava submetida, recomendamos a leitura íntegra dos relatos no Diário de Oribela às
páginas 110, 132 e 133.
89

mal e ficando ao fim deitado numa cama feito morto, espumara tanto
na boca que dali saíra o espírito maligno da Velha, ficando esta boa
de um dia ao outro. (…) E que mais lhe queriam tapar a boca por
defender que amancebadas pudessem entrar na igreja e ver missa,
mesmo as nuas. E disse ela. Eu ladrarei quanto puder. Escrevia
cartas e mandava ao rei, que jamais respondera. Tornasse à cidade o
6
padre Gago , teria ela suas penas suspensas (MIRANDA, 1996,
p.110-133).

É interessante observar como muitas vezes é difícil fazer uma leitura


totalizante e concisa das personagens femininas em Desmundo, posto que são
elas cheias de nuanças e complexidade em suas muitas fragmentações e
condutas. A Velha, entretanto, tão sábia e letrada das coisas do mundo, tão
capaz de enxergar os abusos (dos homens, da religião e do Estado), tão séria
e destemida na luta dessas defesas e direitos, muitas vezes é a primeira a
aconselhar Oribela a abaixar a cabeça aos poderes e acatar seu destino com
resignação e submissão à ordem, embora ela própria não o tenha feito em
alguns momentos de sua trajetória. Talvez por que ela mesma tenha sido
vítima de inúmeros sofrimentos por suas contradições, por sua inteligência e
por seu descaber nos lugares reservados a si, aconselhou à sua protegida um
modus operandi diferente do dela. Era fonte de carinho e sabedoria constantes
à Oribela e, indo de encontro às escolhas que fez na vida – pode ser que, por
isso mesmo, pelo vivenciar os castigos na pele – recomendava que nossa
protagonista acatasse os desígnios do destino e, com isso, parasse de lutar
contra as forças que tanto a sufocavam:

Num ímpeto falei de minhas desventuras, do que disse a Velha não


ser eu tão infeliz assim, de boa índole era meu esposo, que me
conformasse e parisse crias. Do que disse eu, assim por dizer, nunca
querer parir de tal aventureiro e dei notícia dele nos confins do
Oriente, entre mafamedes e homens que serviam de mulher em
pecados abomináveis, devia ele de ser tocado pelos maus sopros
daquelas bandas, comera carne de caíres, fossem mouros e tinha
Francisco de Albuquerque, em sua carne, carne moura. Assim como
no engolir o pão sagrado tem a nossa carne a carne de Deus. Da
mãe, tivesse eu por ela respeito, sendo mãe de meu esposo lhe devia
eu reverência por ser de mais posto e que a filha frutificada do filho
com a mãe, se assim fosse, eu a tomasse por minha menina e a
amasse como fruto meu. E tantos mais menininhos de sangue
misturado, tudo aquilo queria dizer filho e mais filho, que Francisco de
Albuquerque era de apetite bravo de touro nas mulheres. E disse ela.
Mais melhor para ti. Que te deleitarás se souberes. (…) Depois de

6
O padre Manoel da Nóbrega era conhecido como ‘o Gago’ nos hospitais onde instaurou a
prática de exorcismo. Chegou ao Brasil em 29 de março de 1549 - após a recusa de Simão
Rodrigues, que preferiu ficar em Portugal - depois de quase dois meses de viagem em uma
comitiva de seis navios e mil pessoas. Ele nunca mais retornou à Europa.
90

estar um grande espaço pensativa, a Velha disse. Deves deixar os


moimentos da alma e aceitar teu destino à sombra de teu esposo e
se desenfadar. Mas os sonhos não são males. São desejos
(MIRANDA, 1996, p.133-136).

Ao longo do romance, nota-se também nos discursos da Velha outro


paradoxo com aquilo que a personagem aparenta ser; ou que, pelo menos,
acreditamos que ela seja e formamos opinião a respeito dessa personagem
pela narrativa de Oribela: destacamos aqui a marcante passagem da página
135, em que a Velha acaba por ecoar paradigmas presentes até hoje, como
por exemplo, o valor da mulher estar atrelado à juventude e à beleza, a
desimportância da mulher enquanto ser social e o papel que a mulher de fato
deveria ocupar na sociedade – de esposa e de mãe, arrazoando assim os
estudos de Del Priore. Ao passo que mostra-se uma rebelde, lê-se, também,
um amargor e certa desilusão com a própria práxis. Insistimos, portanto, nas
antíteses e nos usos constantes da oposição como recurso criativo das
personagens femininas dessa obra.
Também podemos, através dela, fazer mais uma intertextualidade com
os contos-de-fadas e atribuí-la o papel da Fada Madrinha, ser que povoa o
imaginário dos contos infantis ao ajudar as Princesas com conselhos, apoio,
carinho, alertas, sabedoria ou vestidos. Observemos a passagem do
casamento de Oribela:

Tirou a Velha de uma saca um véu de renda delicada com nata e um


livro de rezas cristãs, tudo com a brancura da virgindade, de que
todas as noivas se arregalaram em exclamações, cobiças e disse a
Velha. Era para casar a mais abençoada, que era eu e pegasse os
presentes de meu bom noivo. E me cobriu as tranças a ninfêutria com
o véu alvo como as nuvens mais limpas e mais altas, pelo que ouvi
muitos ahs e ohs de admiração e foram buscar o espelho da Velha,
que me visse eu e vi, como nunca fora, me quebrando um pouco o
coração. (…) Se não há conhecimento não pode haver entendimento.
Disse a Velha. Que esperem. Ainda haverão de muito ganhar. Não
sei se falou de ironia, querendo dizer açoite e castigo, ou se falava de
adorno (MIRANDA, 1996, p.68).

É nela também – na Fada Madrinha subversiva que ironiza, ao fim de


seu discurso, no preparar as moças para o casório, e fala em conhecimento e
entendimento das coisas – que nossa heroína encontra alento e conforto. Nos
seus momentos de exaspero, é com ela que quer falar. Quando pede um
presente ao marido, é o de vê-la. E quando Francisco não conseguiu arrancar
do modo costumeiro a informação que queria de Oribela – quem havia lhe dado
91

abrigo em sua fuga? – ameaçou castigar a Velha se não obtivesse sua


resposta:
(…) Quis ele saber onde estivera eu neste tempo agasalhada e disse
eu que estivera perdida na mata, que não, dissesse eu a verdade e
me negando a dizer quis ele dar castigo à Velha por suas culpas
acusando-a de me ter feito mal, como fugida e que se bastava olhar a
boa circunstância de minhas carnes, que se houvera estado eu
perdida na mata teria a apresentação de um mau-trato e a aparência
de um soçobrado, quis meter em tormentos para que confessasse
seu crime quando em joelhos lhe pedi misericórdia, que não fora
minha amiga a dar agasalho, quem fora, que dera? E disse eu, sem
haver em meu coração uma suspeita ou uma dor (…) foi o mouro
(MIRANDA, 1996, p.186).

E então Oribela lhe contou. Não podia ela com a dor da amiga, embora
pudesse suportar o castigo ao amante talvez por que se o culpasse pelo
adultério e pela luxúria. A mulher solidária a outra mulher nos desterros de um
Brasil. A mulher amparo da outra nas solidões e silêncios impostos pelos
homens. A mulher que sacrifica o ideal de amor pelo leal da amizade. A mulher
que se vê liberta na ausência masculina e na presença da confidente, ideia
continuamente exposta na obra.
E a Velha, degredada para não ser morta, morre na nau naufragada do
Bispo Sardinha que retornava ao reino. Sua morte, por si só, já deixa claro
mais um índice literário de oposição: embarca na nau para sobreviver e se
afoga na ânsia por libertar-se, posto que agora julgara ter-se já expiado da
indiscrição de seu pecado. Todavia, a sua culpa maior era ser mulher; por isso,
o castigo perpétuo e sem salvação.

3.3. As mancebas, agouro da nau

Sete era o número de mancebas embarcadas na nau Senhora Inês que


tiveram seus destinos entrelaçados aos desejos arbitrários da monarquia
portuguesa e do discurso católico, e desembarcaram no Brasil para gerar os
filhos brancos demandados tanto pela ordem dogmática e pela metrópole:

(…) Na Senhora Inês, de velas rotas, muitas avarias, lançados os


ferros a canalha de marinheiros não esperou, tirou seus barretes e ao
chão no convés os perros gritaram desatinados, uns muito para rir,
outros em doidas lágrimas, com as mãos para o céu louvaram a Deus
chegar vivos, que não esperavam, em naus, mulheres são mau
agouro, em oceanos, fêmeas são baús cheios de pedras muito
grandes e pesados, sem serventia nem a ratos a não ser turbar as
vistas, nausear as tripas, alevantar as mãos em súplicas e trombetear
92

por causa alguma, só pelo prazer, feito os demos. E fôramos sete


mancebas, umas sete sombras negras alembrando os sete pecados.
Qué? Sempre um dia chega o verão, com suas flores e rosetas. (…)
Que o Diabo estava solto, o padre girava a chave, batia palmas, logo,
já já, para dentro, descansai pois descansarão. Fizemos tudo
trigosas, fomos avante, tornamos atrás, fugindo de Satanás. (…)
Almas enganadas, mancebas de danados apetites, putinhas contritas,
lá vai a macha, lá vai a velha parida, lá vai a freira fodida, lá vai a
virgem destapada, vão açoitar com vosso amor os cornos desse país
e mais coisas de tal tormento, aquela entre os lobos. Blasfema das
mulheres, dos padres, da Virgem Maria e de Deus. E gritou o padre.
Vade retro! Arrenego! Deus perdoe tua boca esmerdada e te meta
arreios (MIRANDA, 1996, p.14).

Sete, número simbólico da fé cristã: em seis dias Deus criou o mundo,


descansou no sétimo. Sete braços tem o candelabro, em sete anos Salomão
construiu o templo, sete sacerdotes com sete trombetas deveriam dar sete
vezes a volta na cidade no sétimo dia após a tomada de Jericó, sete foram os
espirros de Eliseu antes de a criança ressuscitar, sete mergulhos no Jordão dá
o enfermo antes de se curar, sete são as quedas do justo até levantar-se
perdoado, sete são os animais puros de cada espécie que foram salvos do
dilúvio por Noé em sua Arca e são sete vacas gordas e sete vacas magras
para os sete anos de fartura e sete anos de miséria da profecia que José
sonhou.
Sete7, número místico do fechamento de um ciclo e da renovação que
traz o próximo; numeral do desconhecido e das mudanças vindouras. Sete dias
da semana, sete esferas celestes, sete pecados capitais, sete graus de
perfeição, sete são os planetas astrológicos, sete ramos da árvore cósmica,
sete são os espíritos do Olimpo grego, sete são as pétalas das rosas, sete são
os mares, sete são as virtudes divinas, sete são os arcanjos, sete são as
maravilhas do mundo. Sétimo céu, são sete as hierarquias dos anjos, os
conjuntos perfeitos, o dia do encerramento dos ciclos. O sete das ordens
planetárias, das moradas celestes, das energias, das ordens espirituais e
morais, do período lunar (que remete a uma nova fase depois da que se
encerra). Sete são as cores do arco-íris, as notas musicais, o número da
dinâmica e do movimento.
Em Literatura, sabemos, nenhum elemento foi deixado ao acaso – ou
por distração esquecida de quem escreve – nas linhas de um romance, ainda

7
Para o pensador grego Hipócrates, o sete era um número virtuoso, que mantém a vida em
movimento e influencia os anjos.
93

mais quando se trata de obra tão rica em simbolismos quanto é Desmundo.


Não se pode fazer uma leitura inocente do que costumam chamar de
coincidência: sete é também o número atribuído ao Apocalipse bíblico (sete
são as igrejas, as estrelas, as trombetas, os espíritos de deus, os trovões e a
besta de sete cabeças), além de ser mencionado setenta e sete vezes no
Velho Testamento.
Sete mancebas que chegaram, em 1555 (1+5+5+5=16 - 1+6=7), para
iniciar o ciclo da procriação branca no Brasil que encerrava o seu ciclo
miscigenado apenas por índias e negras; moças que vieram – atendendo à
demanda do Padre Manoel da Nóbrega – para encerrar o ciclo de pecado no
qual viviam os primeiros colonos. Em excertos de cartas históricas remetidas
ao rei datadas de 1549 e 1550 e aqui transcritos, assim se expressava o
religioso ao pedir roupas para cobrir os corpos desnudos das índias e brancas
para gerar filhos:
(…) Também peça V. R. algum petitório para roupa, para, entretanto
cubrirmos estes novos convertidos, ao menos huma camisa a cada
molher, polla honestidade da religião christã, porque vem todos a esta
Cidade à missa aos domingos e festas, que faz muita devação, e vem
rezando as orações que lhes ensinamos, e nom parece honesto
estarem nuas entre os christãos na igreja, e quando as ensinamos.
(…) Muitos cristãos, por serem pobres, se casaram com as mulheres
negras da terra, mas bastantes outros voltarão para o nosso Reino
por não os querermos absolver, ainda que tenham filhos, por serem
casados em Portugal; e nas pregações muito os repreendemos. Se El
– Rei determina povoar mais esta terra, é necessário que venham
muitas mulheres órfãs e de toda a qualidade até meretrizes, porque
há aqui várias qualidades de homens; e os bons e os ricos casarão
com as órfãs; e deste modo se evitarão pecados e aumentará a
população no serviço de Deus (NÓBREGA apud LEITE, 1955, p.39-
79).

São estas mulheres que aqui desembarcaram pelas linhas ficcionais do


diário de Oribela. Elas, que em sua terra nada tinham e viviam sob a égide da
moral cristã, mas que no desmundo eram a materialização do desejo e da
luxúria dos homens, ainda que tenham vindo para cumprir o sacramento. Lê-
se, portanto, mais um paradoxo nas entrelinhas do romance no concernente às
mulheres: arestas congênitas – ainda que se tente – que não se aparam, linhas
paralelas que não convergem entre o que foram criadas para ser e o que são
de fato. Mais subversão, pois são elas as representantes da igreja que trazem
no corpo os desejos pecaminosos, que despertam a gula dos homens, a
94

raridade da mulher branca na Colônia equivalendo à flor no deserto, o nada ter,


o pouco ser e o muito valer no que se refere à objetificação da sua carne:

(…) E nos mandaram em joelhos rezar, que fazíamos pouco de


nossos ímpetos mulheris dados ao demônio que devíamos temer e
vigiar, vivia o Mau dentro de nossas almas negras, para não sermos
arrebatadas pelo espírito do maligno e que depois nos fôssemos
confessar em joelhos. Filhas dos demos, mas os olhos que se
punham em nós destarte, neste país, não eram mais vazios,
avistavam curiosos e as gentes até queriam saber nossos nomes,
feito agora fôssemos de carne e alma, humanas, talvez com um
desprezo por sermos fracas moças mal vestidas, mas não mais
aquele não ver as nossas pequenezas, nem parecia que pensavam
no que nossas mãos podiam, manter acesos fornos e lumes, lavar
roupas nos lavadouros, levar água ou girar as colheres nas panelas,
lidar aos teares ou às agulhas e nossos corpos aos deleites da carne,
não, nem mais despidas pelo silêncio que a cor de nossa pele branca
e o nosso ar de cristãs, mancebas donzelas, era dote. De pobres,
éramos ricas, de um tipo de cabedal nascido de nossa própria
natureza, feito uma terra boa para plantar, ou uma mulher feia de
alma boa. Celebrei em segredo a cegueira daqueles homens tão
precisados, por dentro de mim sentia uma ninfa, falada no pregão
feito fidalga, bofé, adeus à condição pesada e dura, um altivo coração
me vinha, a eu ser um aljôfar que nas conchas nasce, meu orgulho
despejado, que havia dentro de cada uma de nós, desfeita que fosse,
um coração que lhe no peito não cabia e se há fogo no coração, há
água nos olhos. Apenas mulheres, órfãs, pobres, mas tratadas como
as italianas, as de pura pele e claros olhos e sem buços, que
cheiravam como flores e brilhavam como o raio do sol, rainhas do
8
purgatório, deusas dos infernos, cassandras dos desterros, flores de
desertos (MIRANDA, 1996, p.41-42).

Os sete nomes das sete moças (dona Isobel, dona Pollonia, dona
Urraca, as irmãs dona Tareja e dona Bernardinha, além, é claro, de Oribela)
vão sendo apresentados ao longo do romance, mas é em O fogo que
conhecemos seus passados, nos tornamos mais íntimos de algumas delas e
das suas respectivas representações literárias. Indício interessante e que
reforça nossa ideia da alteridade entre Oribela e a Parva (exposta no item 3.1.
deste capítulo), é que nossa protagonista não revela o nome da sétima
manceba ao longo de todo o seu diário: sabemos que dona Giralda (também

8
Na mitologia grega, Cassandra e seu irmão Heleno tiveram seus ouvidos lambidos por
serpentes quando crianças enquanto brincavam no Templo de Apolo e, por causa disso,
podiam escutar as vozes dos deuses. Já crescida, Apolo apaixonou-se por ela e lhe ensinou os
dons da profecia. Cassandra, porém, se recusou a dormir com ele. Sua negação em ser
amante de Apolo resultou em vingança e ele a amaldiçoou, fazendo com que ninguém
acreditasse nas previsões por ela proferidas. Ela prevê a destruição de Tróia pela guerra e
avisa a família e a população, mas é considerada louca por todos. Aqui, lê-se também uma
intertextualidade com Ilíada, de Homero e nota-se mais um índice simbólico da serpente do
conhecimento. Para além, o significado bíblico do nome é da mulher que auxilia, protege e
brilha sobre os homens.
95

irmã de dona Bernardinha e de dona Tareja) e dona Sabina (irmã de dona


Urraca) morreram ainda em Portugal, e os dois únicos nomes citados na nau –
além dos cinco acima conhecidos – são o da Parva e o da Velha.
Ora, se é óbvio que a Velha não era uma das mancebas – tampouco
veio para casar e ter filhos – resta somente a Parva a figurar como o sétimo
nome, reiterando assim a nossa ideia já exposta anteriormente da alteridade
desta com a própria Oribela, já que ela mesma considerava que havia uma
outra dentro dela (inclusive de maneira tão forte e latente, que chegava a fazer
parte dessa contagem cabalística das moças embarcadas).
Isto posto, retomamos aqui a nossa proposta feita ao final deste capítulo
de refletir literariamente a subversão em cada uma destas enviadas da coroa
para cumprir as desventuras impostas pela igreja.
Morta durante a travessia do oceano, dona Isobel é presumivelmente a
moça que era aguardada pelo Mouro e de quem Oribela herdou os sapatinhos.
Posteriormente, nossa protagonista também terá um caso com aquele que faz
a intertextualidade com os contos-de-fadas, sendo ora príncipe encantado ora
feiticeiro, e que esperava pela princesa Isobel que nunca chegou para viver a
própria história. Fora ela lançada ao mar – não fica clara a causa mortis – antes
de cumprir os desígnios dos poderes patriarcais de seu tempo e, volta e meia,
surgia em pensamento para relembrar a Oribela de tudo que era dela e do
nada que era seu:
(…) O chão maltratava os pés das órfãs, as pedras cortavam, não os
meus que tinha eu sapatos, fossem malditos, quase roubados, mas
eram meus, dera o destino por serem meus pés iguais aos da
manceba que morrera. (…) Rezava eu, era melhor que estar morta no
fundo do mar, queria me livrar da minha alma criada entre os tigres
do deserto e alimentada com o leite das víboras e aceitar meu
destino, aceitar o noivo que me davam a rainha e a governadora. (…)
Te aquieta em teu destino, Oribela, que estás no céu e não sabes. De
noite, quando fechava as vistas para dormir, via o rosto pálido mas
sereno e desassombrado de dona Isobel que em mim estava
hóspede e a mim chamava ao fundo do mar, assim assim, sem dizer
palavras, só com as mãos feito puxando a minha alma (MIRANDA,
1996, p.23-65).

Pouco citada em Desmundo, dona Pollonia afigura mais como uma


espécie de complemento para o número total de sete do que como voz ativa no
romance. Encontra-se apenas duas passagens da personagem: a primeira
durante preparação para o casamento – quando ganha uma pedra verde a ser
ainda incrustada em alguma espécie de jóia – e a segunda quando a Velha dá
96

notícias à Oribela dos destinos das mancebas e de como vivia cada uma
depois do casamento: Pollonia, que agora estava grávida, aceitara sua sina de
de bom grado e estivera sempre a juntar cabedais, ou seja, a acumular
riquezas e bens materiais.
A ambição da personagem pode ser justificada pelo medo da escassez –
que estivera presente durante toda a sua vida no reino – ou tenha sido usada
como característica por Ana Miranda como um signo de contraponto e
comparação para aumentar, na visão do leitor, a desgraça das outras moças.
Ela fora recompensada pelos homens do poder pelo seu silêncio. Também
nela, consta a possibilidade do paradoxo entre ser criada sob o preceito cristão
da humildade e agora, fora do mosteiro e em mundo aberto, personificar o
pecado capital da avareza9.
Sabemos que há vezes em que personagens, sem sequer uma única
fala na obra, despertam índices de leitura igualmente importantes para sua
compreensão. Portanto, aqui propomos uma suspensão temporária da ordem
em que citamos os nomes das mancebas logo acima e, antes de seguir com a
nossa análise das moças que desembarcaram no desterro e estiveram
presentes em momentos-chave do romance, gostaríamos de relembrar as
companheiras de Oribela que nem chegaram a embarcar na famigerada nau.
A primeira delas que inserimos nesse contexto é Sabina, que morreu ao
ser estuprada por salteadores na fuga que arquitetou do mosteiro, para buscar
um rico casamento. Nela, podemos ler novamente a necessidade do
matrimônio para validar a existência da mulher desamparada pelas
circunstâncias da vida e a violência a que essa mesma mulher era exposta ao
correr mundo para realizar o que acreditava ser seu desejo. Sabina, moça
judia, subvertia a lógica por viver sob uma religião diferente da que nascera e
por renegá-la posteriormente com a fuga. Irmã de dona Urraca, sua morte
impactou a trajetória da personagem, sendo Urraca a primeira escolhida para
vir ao Brasil e, com isso, levantando a suspeita de que a viagem além-mar era
o castigo do degredo ao invés da promessa de final feliz.

9
Por embasar-se somente em possibilidades, é considerado o mais tolo e fútil dos pecados.
Sua principal característica é o apego excessivo aos bens materiais e ao dinheiro, o que acaba
por afastar o pecador avaro do convívio com Deus.
97

A próxima personagem que gostaríamos de trazer no sentido da


omissão de fala direta e presença meramente figurativa é Giralda, que foi
supostamente morta por impetigo. Todavia, ela não salta aos olhos da leitura
analítica por algum feito de vida, e sim com a causa de sua morte: tanto o
impetigo – mal declarado por Oribela em seu desconhecimento médico como
sendo o responsável por ter ceifado a existência da menina – quanto a sífilis
possuem características físicas semelhantes10, sendo que a primeira atinge
principalmente crianças de dois a cinco anos (não fica claro quantos anos
Giralda tinha quando morreu, embora ainda urinasse na própria cama e a irmã
mais velha, dona Bernardinha, já tivesse com treze anos), e a segunda é uma
doença sexualmente transmissível a qualquer idade.
O impetigo é uma doença altamente contagiosa e que obriga o infectado
a ficar em quarentena nas primeiras quarenta e oito horas, sob risco de infectar
qualquer um que entre em contato com as feridas cutâneas do doente. Oribela,
no entanto, não relata o isolamento da personagem tampouco o contágio e
posterior morte de nenhuma outra moça que vivia no mosteiro. Ninguém, além
de Giralda, é retratada como fisicamente sintomática, o que é no mínimo
incoerente dado o alto grau de contágio da doença como já exposto acima.
Outro dado importante sobre a alegada causa da morte da personagem
é que o impetigo não mata. A sua forma mais severa, entretanto, pode evoluir
para um quadro de glomerulonefrite, uma forma de debilitação dos rins que
altera a cor da urina e atribui a ela uma coloração rosada e escura (indiciando,
assim, a presença de sangue no excremento). Atentamos novamente para o
fato de que Oribela, ao narrar que a moça ainda urinava na cama, não
identifica mudança de cor na urina11. Ora, é de se esperar que uma
anormalidade que indique sangue em uma cama de convento chamasse a
atenção das outras moças tanto quanto das religiosas responsáveis pela ordem
da estância.
A sífilis, por sua vez, é também conhecida como “a grande mascarada” e
“a grande imitadora" por apresentar as mais variadas lesões cutâneas que
podem ser facilmente confundidas com distúrbios mais simples da epiderme,

10
As mais comuns são manchas, bolhas e feridas sobre a pele, além de ambas serem
causadas por bactérias.
11
Para leitura do relato 10, ir à página 90 de Desmundo.
98

como o já citado impetigo12. Não é difícil, portanto, após uma leitura crítica das
entrelinhas e um conhecimento prévio de história, concluir e propor que a
personagem possa ter morrido desta patologia – dada a libertinagem sexual
dos mosteiros previamente exposta neste trabalho – que assolava
repentinamente a Europa do século XVI e condenava à morte ao menor sinal
de contágio.13 Além disso, insistimos, o impetigo não mata e, ainda que o
doente não se trate, a infecção normalmente desaparece espontaneamente em
mais ou menos três semanas.
Propomos a leitura da seguinte passagem do romance para demonstrar
as relações carnais pouquíssimo sagradas que foram estabelecidas entre os
então bastiões do clero e as moças internas em mosteiros. Embasamos, assim,
a nossa assertiva da plausibilidade de uma morte distinta da que foi alegada e
que vitimou a jovem Giralda muito antes do embarque:

(…) A pele maltratada das órfãs e seus perfumes de cabelo, seus


piolhos, as sufocações de dona Pollonia e as perguntas de dona
Urraca, os silêncios da Velha, a voz esganiçada de dona Tareja que
ataviava sem parar, os soluços meus, as faias do padre, sua piedade,
suas turbações, seus beijos em meus lábios na confissão, para o
perdão dos meus pecados, o cheiro de vinho e vômito em sua boca,
as missas no convés, as longas e perseverantes vigílias de noite, a
escuridade das coisas (MIRANDA, 1996, p.16).

Com a invocação da figura silenciosa – porém rica em signos literários


críticos – de Giralda, emergem duas companheiras da travessia transatlântica
de Oribela e tão interessantes quanto essenciais no enredo do romance: suas
irmãs Tareja e Bernardinha.
A primeira, dona Tareja, era acusada pelas demais moças do mosteiro
de não ser mais virgem. Essa ideia, aliás, é retomada outras vezes nas
entrelinhas do diário de Oribela, que descrevia a jovem como vaidosa, fingida,
gulosa, hipócrita e pouco discreta nos seus modos e recatos.
Tareja se faz, aí, a subversão do comportamento que se espera de uma
moça criada sob a égide moral religiosa, e traça, assim, um paralelo bastante
claro com a voz proposta por Hutcheon (1988). Entretanto, se pensarmos mais

12
A principal forma de transmissão deste mal está ligado ao contato direto com as feridas e à
falta de higiene. É importante que se reitere, portanto, que não aparece no romance nenhuma
outra personagem que tenha padecido da doença, descartando, assim, o contágio por toque
direto ou por ambiente.
13
À época, ainda não havia nenhuma forma de resistência à doença. Os primeiros tratamentos
surgiram apenas no século XX.
99

criticamente que o convívio social nas estâncias religiosas poderia ser algo
extremamente profano – como já ficou implicado em outras passagens de
Desmundo –, ela é exatamente o resultado de uma educação pouco sagrada.
E então, de novo, Lukács (1936) aparece na representação da personagem
como sendo fruto do processo histórico e do meio a que está submetida.
Observemos a crítica explícita – porém em censura velada reservada à
intimidade seu diário – de Oribela à Tareja em três momentos. Um quando
compara a si mesma e às outras mancebas a aves enjauladas e privadas de
suas liberdades. A este, seguimos com a passagem de quando a Velha Fada-
Madrinha dá a cada moça uma prenda em ocasião de seus casamentos, e
mais um, quando a Velha a informa dos destinos das suas companheiras de
viagem depois de seus respectivos matrimônios:

(…) Dizia meu pai. Que besta tu és e de asas, feito uma galinha que
quer avoar e não pode. Assim eram as mancebas, fossem umas
aves. Seria a dona Tareja uma ema, porque o corpo é grande e
pesado, seria eu um açor bravo que tem que comer as coisas ruins
do mundo, seria a Velha um galo que anuncia a luz e as outras órfãs
umas pombas, que vão onde mandam, haja sombra, em suas
desvairadas propriedades, que em lugar de cantar gemem e têm a
alma fiel e simples, sem amargura nem sanha nem queixume e se
beijam muito amiúde, gostam de estar juntas feito pombas e se
eriçam aos falcões, enquanto eu, como açor bravo, dou meu coração
a comer. (…) Uma pequena roda engastada em um brinco de ouro e
um anel de prata fina que não cabia em dedo nenhum de Tareja, que
o pendurou ao pescoço num cordel. (…) De Tareja, que hipócrita se
fazia de santa em rebuços negros e rezas em joelhos, em nome de
toda virtude (MIRANDA, 1996, p.57-134).

Os excertos transcritos acima são significativos porque colaboram com a


nossa ambição de compreender a personalidade da personagem e quais
índices podemos ler em cada um deles. Seguindo-se a dona Pollonia, à dona
Tareja pode-se, então, atribuir os pecados capitais da gula, da vaidade14 e da
luxúria, posto que Oribela recorrentemente a acusa dos excessos de comida e
de sua falta de castidade e modéstia.
Neste ponto de nossa pesquisa, propomos que se perceba a riqueza
que se pode notar em cada personagem feminina em Desmundo e o esmero
com que Ana Miranda trabalha cada uma delas. Por mais figurativas que sejam
as suas presenças, há sempre um propósito para estarem ali; seja para indicar

14
Também conhecido como o pecado capital da soberba. Para São Tomás de Aquino, era um
pecado tão grande que deveria ser tratado em separado de todos os outros e, por isso,
merecer vigilância especial.
100

a pluralidade de personalidades que a história oficial tenta superficialmente


homogeneizar, seja para engrandecer a narrativa ao estabelecer elos
comparativos entre uma e outra ou ainda para ampliar os horizontes do nosso
entendimento do romance ao retratar mulheres tão diferentes que foram
obrigadas a viver sob uma mesma circunstância.
O açoite verbal à irmã, proferido pelas demais moças, entretanto,
enfurecia dona Bernardinha, que sempre se sentira responsável pelo cuidado
das duas irmãs presumivelmente mais jovens. Assim Oribela narra o passado
anterior à vida no mosteiro das três irmãs e sua relação mais íntima com uma
delas:
A secar as panelas no mosteiro encontrava eu com a dona
Bernardinha, irmã de Tareja e Giralda, a morta, filhas de pai rico em
Coimbra e sempre vestidas, arraiadas, adoradas e servidas, todas
delgadas de narizes, sem lombrigas, com tal fortuna viveram anos,
em jardins, músicas de boas falas, louça do Japão, chá verde, em
morada com capela e altar, mas um dia lhes morreram os pais, por
cair ao rio o carro que os levava e sendo a mãe prima de uma tia de
uma dama da rainha foram as meninas levadas ao mosteiro. (…)
Soubera de seus cabedais sendo cuidados por tutor cobiçoso que
sem freio passava a si os proveitos, quisera ela viver com uma tia e
não pudera por ser casada com fidalgo de muitos ciúmes ofendido,
assim ficara ela no mosteiro, pobre dona Bernardinha, de mãos
delicadas, que mostrava feridas na água suja, marchetadas de dores,
que nunca servira ela com as mãos e nos primeiros tempos padecera
grandes aflições, mas era da força de um varão, aceitando as dores
sem soluços nem urros, que logo a chamaram de macha, ela negava
mostrando dois peitos grandes, suaves, redondos, de fêmea. Ela se
agastava em defender suas irmãs mais novas, guardava seus
biscoitos para a fome de Tareja, fazia ameaças a quem murmurasse
contra Giralda, de ourinar na cama e Tareja de não ser donzela, que
diziam, tanto chumbo há no mundo, todo o esta menina comeu, um
dia morreu Giralda de impetigo, quase danada ficou dona
Bernardinha, mas assossegava das alterações em mim, que dizia ser
eu sua fonte de beber água pura, que se havia neste mundo pessoa a
quem amasse feito sua mãe, era eu, estávamos sempre segredando
nossas fantasias, ela me beijava a mão com um cuspe frio de que eu
tinha assombro, até que madre Jacinta lhe deu uma áspera disciplina
em nos separar, que não mais falasse ela a mim e nem eu dela nada
ouvisse, nem a visse, que devia ela dormir na cabana dos porcos. E
não nos vimos mais, até o dia da partida (MIRANDA, 1996, p.90).

Ambas – Giralda e Tareja – auxiliam na construção de Bernardinha: ao


expor as fragilidades das irmãs, Ana Miranda fortalece a imagem dessa
personagem essencial no decorrer da obra e que agora propomos analisar. No
relato de nossa protagonista há pouco transcrito; podemos, no entanto,
perceber elementos para além do exposto em uma leitura óbvia e apressada.
Notamos que mais uma vez há uma crítica quanto ao fato contundente de que
101

a mulher não tinha direito à herança e padecia da míngua. Como opção de


sobrevivência, novamente o claustro religioso, que acabava por desligá-las dos
seus direitos tanto físicos quanto cívicos e, assim, reiterava as relações
retroalimentares entre a igreja católica e o Estado português. As três irmãs
foram lesadas por seu tutor e, como consequência, experimentaram o dissabor
da submissão.
Também em Bernardinha, a exploração do trabalho que lastimava suas
mãos, o abuso no isolamento no chiqueiro como castigo e a prática recorrente
da tentativa de feri-la em seu íntimo quanto ao questionamento de sua
sexualidade, posto que existem dados literários referindo-se a opção sexual da
personagem. Como já exposto por Oribela e pelo senso comum das freiras do
mosteiro onde viviam, Bernardinha é uma das personagens que mais sofreu ao
longo do romance. Fosse por capricho do destino e pelos acasos da vida, fosse
pela arbitrariedade dos poderes de seu tempo, a personagem experimentou
diversas formas de provações e humilhações no deglutir e digerir os chumbos
do mundo que lhe eram servidos.
As mais graves violências a que fora submetida estavam no cerne de
sua sexualidade15. Sempre apontada como macha por sua força física e
capacidade de resiliência, a personagem – claramente homossexual nos
relatos de Oribela e na possível paixão que sente pela protagonista ao roubar-
lhe beijos continuamente – é estuprada por homens de forma brutal e
sucessiva. Mais – é prostituída pelo próprio marido, que aparece como um
homem violento e bêbado:
(…) Felizes as esposas, sendo diversa a dona Bernardinha, quebrava
seus ossos aquele que a devia acariciar e bêbado a desnudava,
lançava pela porta fora, desgraçando a pobre com seus brutos
intentos de esposo e em altas vozes, sua mulher lhe parecia macha,
querendo mostrar que era a ela forçado a amar e com ela vivia contra
ciência, não sendo nem por feitiços vencido, que recitava aos berros
de cabra. Sabistisanto, Coronguena Santa Cruz de Madalena, Jeque

15
Nosso trabalho propõe uma ligação entre a personagem desse romance e Felipa de Sousa,
portuguesa que veio ao Brasil depois de ter enviuvado no Algarve. Aqui, em 1591, foi
denunciada e condenada pela Inquisição Portuguesa do Santo Ofício a Salvador por ‘práticas
nefandas’, confessou seu lesbianismo e teve mais seis mulheres envolvidas em seu caso. Com
ela, sete. Por sua transgressão, em 1592 foi punida com a severidade do açoite e do degredo
perpétuo. Ouviu sua sentença na Igreja da Sé com uma vela acesa nas mãos enquanto vestia
uma roupa de linho cru, marca pública dos hereges. Depois foi atada ao pelourinho, chicoteada
e expulsa da então capitania. Para conhecer mais a fundo o caso de Felipa de Sousa,
sugerimos a leitura da pesquisa do antropólogo Luiz Mott (O Lesbianismo no Brasil. Porto
Alegre; Mercado Aberto, 1987).
102

16
Domenada do mais do nunca do nada, Sabistisanto, anto, anto e
mais cantos a se lavar com cebolas. As órfãs tinham seus destinos
selados e me doía de dona Bernardinha, que gostava de afetos e de
roubar uns brincos e as bocas das moças em beijos. Espreitavam
muitas armadilhas a nós. (…) Quis eu saber de que vinha uma grita
de machos na porta da casa de dona Bernardinha. O perro do esposo
dela fazia servir sua mulher por dinheiro, que se fez uma espera na
frente da vivenda e dela se ouviam os gritos, deles os risos, uns
davam por isso uma moeda, outros um pedaço de uma qualquer
coisa, não havendo ali um padre que pusesse fim a tal desmando.
(…) Entrando eu, estava ela em um quarto muito feio e sujo, sem
nada que fosse para deitar que não umas esteiras de naturais, ela
nua da cinta para baixo, a camisa salpicada de sangue, com uma
ladainha muito sentida a maldizer seus cruéis algozes, que a rigorosa
justiça de Deus se fora nas águas, nos ventos e disse eu, não
maldizer de Deus que era pecado com castigo de raio, de trovão, de
morte e aquela miserável padecente com assaz de lágrimas me
abraçou, aquele tempo todo estivera como morta. Consola-me a vista
de tua presença. Se requeria eu justiça lhe fizera meu esposo, em
não sendo o dela e que marcava vingança perpétua, ainda se havia
de ver. Sempre farto de vinho nas noites cometia ele a ela com seu
membro viril que entrava no vaso traseiro dela e instigado da carne
tinha ali polução, contra a vontade dela, a qual com medo consentia.
Com isso encostou a cabeça no meu colo sem mais nenhuma
palavra, sinalou uma pouca d'água e a tomou. Disse querer ir embora
deste país e tornar ao seu (MIRANDA, 1996, p. 134-152).

Ao consternar-se com a situação na qual vivia a amiga e interceder por


ela por intermédio do marido17, Oribela a consola com a ideia de fugir para
Portugal. Embora sem a clareza exata de como procederiam, propõe que as
duas se transfigurem em homens18 para escapar das crueldades a que eram
constantemente submetidas, cada uma a seu modo: voltar à imensidão dos
mares e à tudo que o infinito dos horizontes oceânicos representavam em seus
imaginários trouxe alívio momentâneo às personagens. Era um algo de buscar
forças no futuro e nas lembranças do passado para suportar as dores e sinas
do presente.

16
Segundo as crenças portuguesas, essas palavras eram usadas como formas de vencer os
espíritos que traziam perturbações e patologias diversas. Elas conferiam poder de cura do
bem sobre o mal por ser costume acreditar que nem todas as doenças tinham causas naturais
e algumas se tratavam de possessão por espíritos maléficos. A terapêutica contra as moléstias
e enfermidades consistiam, à época, tanto em fórmulas alopáticas quanto na oralização e
oração dessas palavras, que eram proferidas contra as bruxas na ilha de São Miguel para
suprimir seus poderes malignos. Novamente, então, a ideia da mulher feiticeira e da
necessidade do exorcismo.
17
Um dos raros momentos em que Oribela sente algo próximo de ternura pelo marido, foi
quando este atendeu a seu pedido de intervir pela amiga e salvá-la momentaneamente da
loucura do esposo.
18
Para Oribela e Bernardinha, a única maneira de que fossem respeitadas e conseguissem
embarcar na nau de retorno ao reino, era se disfarçadas de homens: cabelos curtos, roupas,
chapéus e botas. (MIRANDA, 1996, p. 152).
103

Essa ideia de solidariedade entre as mulheres para sobreviver aos


desvarios dos homens – que se observa ao longo do romance – e voltar o olhar
para a possibilidade de futuro regressando ao passado segue no relato 17 de
seu diário, quando Oribela busca na imagem da amiga uma espécie de ânimo
para não esmorecer fisicamente, não ceder ao medo do desconhecido na
escuridão profunda da noite e não desistir de sua mais ousada - e até então
mais bem-sucedida – fuga da casa do marido. Ela busca a lembrança da vida
em Portugal e a mirada cúmplice da amiga para saciar-se da coragem de
validar os seus anseios:
Fui procurando o rumo da cidade, na noite tão escura, pelo vôo das
aves, que iam para o mar e pelo cheiro de sal, pelo vento fresco que
assoprava, os olhos de dentro meus na nau fundeada na baía e em
dona Bernardinha, vergadalta, âncoras a pique, pardeus, velas
mareadas, para perder o medo dos galhos ásperos da mata, das
unhas dos falcões, dos dentes dos morcegos e das cobras que
andavam pelas árvores e as caninanas dos côncavos dos paus
podres e as dos formigueiros e dos bugios que saíam das covas à
noite e dos gatos de rapina cujos olhos via eu luzirem no mato
espreitando, eu com o ânimo de uma galinha branca. Temor dos
chiados, rugidos, assovios, restolhares, crepitações, todo tipo de
ameaça. Não me dava por segura dos lagartos, porque eram tantos
os uivos, os assopros, os roncos e os rinchos dos cavalos marinhos,
as paradas das alimárias de fogo, o rufar das raposas de gelo, que
nem me atrevia eu a abrir os olhos. Feito cego no cavalo, sempre em
frente (MIRANDA, 1996, p.157).

Nossa protagonista não esquece a promessa que fez a Bernardinha e,


quando escondida na casa do Mouro, pede notícias da amiga. Ele, então, lhe
informa que a moça matou o marido e que estava vivendo sob punição e vigília
pública pelo crime. Ela submete-se ao risco de ser novamente capturada pelo
marido e sai em busca da moça. Encontrou-a nas trevas da noite, literalmente
presa em gaiola, retomando a metáfora anterior de Oribela que destinou uma
ave cativa a cada manceba19 jamais liberta. Assim, como antes lhe houvera
prometido, disfarçou-se de homem e foi ao socorro da companheira:
(…) Dona Bernardinha havia morto seu esposo com umas
punhaladas, de noite, ao lhe ter dado de beber umas águas ardentes
e por ele não ter deixado escapar vestida feito homem (…) A dona
Bernardinha puseram numa gaiola no terreiro, a pele marcada pelas
pedras lançadas, de apedrejamentos que lhe fizeram (…) Muito
pasmada ela se fez, nos espantos de meus trajes e riu, numa
demência, que estiveram os miolos da sua cabeça cozinhando ao sol
e à chuva, a estupidez se alastrava em seu rosto, o espírito da
desrazão habitava em seus olhares de raio e seu cuspe, em sua
língua suja e obscena, repugnantes palavras de ódio, maldizendo a
Deus, aos santos, à Virgem, sua pele se marcava de rodas,

19
Desmundo (1996), página 57.
104

apedrejada, seu rosto em dessemelhança de carne se fazia, até os


pés, seus peitos feridos com tão admirável crueza que a toda a gente
faria um temor muito medonho de modo que a horribilidade que ali se
via me causou tamanha tristeza que apertou o coração. (…) Não sei
como o matei. Tivera razão para o matar, havia sido ele um soberbo
capitão dos espíritos danados, dos sulfurosos fogos e de
entendimento feito com a peçonha das víboras, um cão tinhoso que
20
beijara a cauda recurva de Maimont e que bebera sangue de rato e
de cágado macho e que agora morto rodeava o coração de dona
21
Bernardinha como um luzir de pirilampos e um inimigo capital a
alumiar os soturnos cárceres dela e arrastar sua alma pela rua da
amargura. (…) Nem via ela a criminosa justiça do mundo que se fazia
em sua triste sina nem mais se fazia ela de desfeita dos
entendimentos, mas desfazia do mundo e seus divertires, coisa viva
que lhe era a vida em si (…) Mas ao ver a mim disse em vozes tão
fracas que se nem ouvia, olhando para mim com rosto já de
trespassada como se uma luz destrevasse seu coração, suplicou que
a beijasse, o que fiz sem pensar (MIRANDA, 1996, p. 177-185).

Aqui, Bernardinha personifica literariamente um costume que segue hoje


tão melancólico quanto sempre fora no passado: a mulher que de tanto ser
vitimada pelos abusos domésticos, no auge de seu desalento infringe a lei –
que parece existir somente para punição unilateral feminina – e torna-se
culpada ao impor um fim desesperado para a sua dor. Sem opções diante das
crueldades do marido – jamais culpabilizado pelas torturas a que submetia
recorrentemente a esposa – a personagem o mata. Em ciclos intermináveis, ela
é depois morta pela hipocrisia e pelas leis criadas pelos homens e
corroboradas pelos dogmas religiosos.
É de Bernardinha, também, uma das mais icônicas falas do romance.
Em passagem que é metade delírio e metade lucidez, ela profere em seu
sôfrego torpor aos olhos e ouvidos incrédulos de Oribela:

20
Do autor português Augusto Carlos Teixeira de Aragão, Diabruras, santidades e prophecias
(1894) cita Maimont como sinônimo para o demônio. Para ele, bruxas e feiticeiras se reuniam
para invocar e celebrar o diabo com esse nome em troca de poder. Eram essas mulheres
desprovidas de Deus e servas encantadas do que Aragão coloca como o ‘monarcha infernal'. A
obra está ligada aos estudos da Inquisição católica portuguesa, retrata em detalhes os
supostos rituais das bruxas e aqui nos serve como uma intertextualidade com o discurso
dogmático religioso, o simbolismo da mulher pecadora e mais uma referência à própria arte
literária portuguesa.
21
Em passagem da obra de Teixeira de Aragão: (…) A velocidade com que viajam n’essas
noites é egual á do relampago. As reuniões ordinárias, dizem, são á meia noite das sextas
feiras, em certas encruzilhadas, ou nas margens dos rios onde se costumam banhar. Ahi tem
logar a orgia do sabbat, com danças phantasticas e canticos soturnos, terminando o
pandemonio pela ceia distribuida pelo diabo de cauda recurva, sendo o guisado favorito
composto de sapos, cobras e aranhas, temperado com sangue de ratos e cágado macho.
Contam os que teem avistado de longe esta tetrica festa que entre sombras mysteriosas se
nota o luzir dos pyrillampos, produzindo o panorama uma tremura assustadora com um arrepio
que chega á medula dos ossos. (ARAGÃO, 1894, p. 23).
105

E ela disse. Este mundo é um desterro e nós, estrangeiros. Nada


mais que fosse de entender e caiu no chão de focinhos a executar o
triste castigo de sua desfortuna de sem razão emudeceu de tal
maneira que só suas lágrimas davam testemunho do que sentia seu
coração (MIRANDA, 1996, p.180).

Aqui, fica claro mais um indício de crise nessas personagens, em todas


elas, posto que Bernardinha implica pronome plural em sua fala: elas não
pertencem à realidade na qual foram, artificialmente, inseridas. Também estão
excluídas do retorno porque já não são mais as mesmas que chegaram. Elas
são estrangeiras nesse desmundo, nesse universo paralelo que vieram para
ser responsáveis por popular, por criar, por renascer. Um simulacro de suas
vidas passadas para originar vidas futuras. Ana Miranda brinca com as
possibilidades intermitentes do tempo e do espaço nos seus sujeitos que não
cabem em canto nenhum, vivem aqui, mas são de lá. De lá de onde? De uma
Portugal que já não há? Aqui aonde? Um Brasil que ainda não existe?
Observando a trajetória desta personagem, contudo, não é difícil
enxergar a visão hegeliana-marxista da história em Lukács e o peso dessa
formação na construção contemporânea: homossexuais sofrem desde os
tempos mais remotos e sob os mesmos argumentos absurdos dos discursos
heteronormativos compulsórios e religiosos. E continuam açoitados por
provações semelhantes nesse desterro que hoje é país republicano com
constituição parlamentar e dita civilidade aos direitos do próximo. Aos direitos
humanos.
Em Bernardinha, convergem em simbiose, também, o tipo de Lukács
que como mulher típica de sua época nada pôde fazer diante do ceifar que lhe
impôs as circunstâncias determinantes da vida, e a heroína de Hutcheon, posto
que ela se rebela, luta e revida as arbitrariedades das quais constantemente é
vítima.
Por último, e não menos importante, retomamos a já citada dona Urraca.
Judia criada em mosteiro cristão, ela traz em si uma dupla oposição. A
primeira, a da própria religião. Ou a da dupla religião, que, contidas em si
mesmas, propõem caminhos de crença e salvação altamente divergentes. Uma
– o judaísmo – lhe foi imposta por nascimento, a outra – o catolicismo –
igualmente imposta; agora, por circunstância.
106

De um modo ou de outro, lhe foi negado o direito da escolha em crer e


no que crer. Acreditaram por ela e lhe fizeram ajoelhar e dizer amém a um
planejamento que nunca foi próprio de si mesma e pelo qual pagou pecados
que nunca cometeu:

De dona Urraca se dizia por detrás terem sido seus pais judios, uma
gente de fazer violas d'arco, que sabia muito lindamente tanger, a
menina. Houvera no tempo do rei dom Manuel uma paz, finda pelo
22
casamento de Sua Alteza e pelos brados do povo, que havia muito
23
ódio contra os judeus vindos de Castela , como eram os avós de
dona Urraca, por onzenarem. No mosteiro pregavam contra dona
Urraca e ela ouvia em lágrimas, assassina de Jesus, filha de gente
sem rei nem terra, que alevantavam os preços das coisas, era seu
povo causa da peste e da fome que matava os cristãos por os
cristãos mercadejarem as suas janelas e que tinham os judios contas
com Deus e escrituras falsas desdo começo do mundo, que
adoravam uma bezerra de metal e a ela sangravam seus filhos em
gratidão por Deus que os tirara do cativeiro do faraó e se pareciam
24
aos bestiais mouros , adoravam também as rãs e os galos. E
mandavam dona Urraca comer barata, cuspiam em seu rosto, faziam
o sinal-da-cruz no peito depois que ela passava e não pisavam em
sua sombra, que era pecado e lhe formavam nas fuças cruz com os
dedos, puxavam seus cabelos, o que fazia a dona Urraca chorar e
não havendo ninguém para a consolar, ela dizia. É esta a virtude que
os teus deuses ensinam? Pediram à madre que dona Urraca não
usasse vestidos ricos e só trajes por que fosse conhecida, lhe
tomassem os sapatos, não andasse em qualquer parte do mosteiro
para não se misturar com cristãs, morasse aguizada numa cela, nem
fosse amiga de pessoa alguma, lhe arrancassem os livros que tinha,
coisas escritas por blasfemos. Para atender aos continuados
clamores mandara madre Jacinta separar das mancebas a dona
Urraca. (…) Passou dona Urraca a viver entre as enfermas por saber
untar com óleos e qualquer remédio de consolação (MIRANDA, 1996,
p.91).

22
O reinado de Dom Manuel é tido como um símbolo de prosperidade e progresso econômico
em Portugal, pois com ele o país observou uma significativa expansão marítima de seu império
através das descobertas dos caminhos das Índias, do Brasil e das Molucas. Por isso, houve um
enorme saldo positivo em seu comércio, ainda mais no de especiarias. Uma das cláusulas do
contrato de seu casamento com Dona Maria de Aragão - sua segunda esposa -, entretanto, o
obrigava a solicitar ao papa a instauração da Inquisição em Portugal, em 1515. O rei resistiu,
mas acabou por cumprir a cláusula.
23
No concernente à política religiosa de Dom Manuel, observou-se em Portugal um grande
investimento na construção de igrejas, mosteiros e evangelização das novas colônias. No
começo de seu reinado, havia tolerância religiosa e ele chegou a libertar o povo judeu que vivia
em situação de escravidão, pois estavam fugindo das perseguições em Castela. A justificativa
para tal tolerância consiste no fato de que o capital financeiro e intelectual dos judeus eram de
suma importância para a expansão mercantil portuguesa. Com a chegada da Inquisição,
resultados mais violentos: conversões religiosas forçadas, sobretudo dos judeus, que foram
obrigados a delegar a educação de seus filhos à famílias cristãs.
24
Assinado em 30 de novembro de 1496, seu contrato de casamento com a primeira esposa,
Isabel de Aragão, previa a expulsão do reino dos povos considerados infiéis. Neste caso, os
mouros e os judeus.
107

Não fica claro se as irmãs Sabina e Urraca eram órfãs de fato ou se


foram vítimas das políticas de perseguições religiosas operadas no reinado
depois da instauração da Inquisição e, com ela, da arbitrariedade de que as
crianças judias fossem educadas por famílias cristãs ou estâncias católicas
construídas a largo pelo então rei de Portugal, Dom Manuel. O que sabemos é
que ela era um membro judaico que vivia em mosteiro e, no entanto, era
rejeitada pelo ambiente do qual, alegadamente, fazia parte; portanto, se
delineia mais índice de instauração de crise, de não caber, de descaber. De
paradoxo. Como a Velha, ela era parte de um sistema religioso que não mais a
integrava, mas que, ao contrário, a segregava. E, ainda que não lhe conferisse
verdade ou autoridade participativa, não a libertava.
Em suas confissões escritas, a própria Oribela – tão clemente e
acolhedora em outros âmbitos – demonstrava certa atitude de refugo quanto a
Urraca. Reconhecia que se assemelhava a ela em seu quinhão de dor e
infortúnio, mas se via superior em seu batismo e fé cristã. Desprezada por suas
companheiras e desacolhida pelo credo que fora obrigada a assumir, foi a
única que percebeu na possibilidade do Brasil um recomeço. E, das sete
mancebas, parecia ser ela singular no nutrir a esperança de uma vida melhor
em um lugar que ninguém conhecia seu passado e pouco se sabia de sua
história; um lugar este de desconhecimento era, portanto, a melhor opção de
quem fugia à própria sina de se conhecer demais, de estar exposta ao
julgamento humano e de preferir o silêncio solidário das espécies animais às
abrasivas palavras proferidas:

Tinha eu grande temor de dona Urraca, não a queria olhar nem


respirar do mesmo ar saído das suas ventas no camarote, vigiava
que não fosse de noite deitar chifres pela cabeça ou vomitar enxofre
do diabo, suas rezas murmuradas me queimavam os ouvidos. Mas
era ela a que mais suportava as forças do oceano e se foi fazendo
menos odiada pelas órfãs, com sua grande esperança fundada sobre
pedra, crendo que ia ao paraíso da terra se livrar da fraqueza
humana, casar e viver em claustro, sem ver manceba ou pessoa viva
que fosse, só animais. Estava roubada de suas coisas todas, usava
uma veste rude, virava tanto de noite que muitas vezes acordava no
oposto lado, os pés onde estivera a cabeça e murmurava, feito
tomasse em seus sonhos muitos cilícios de cerdas de cavalo ou de
pele de bode tosquiado (MIRANDA, 1996, p.92).

Outro sinal que atenta e instiga a análise dessa personagem é que,


ainda que trabalhasse com o generoso processo de terapêutico da cura e da
108

atenção às enfermas no mosteiro onde era interna, era abusada verbalmente


pelas outras moças – que precisavam de seus cuidados quando estavam
doentes – e despertava medo por sua figura judia.
Instintivamente, não se enxerga o diabo em chamas e labaredas no
corpo do anjo salvador, mas a oposição é permanente em Urraca. E é nela que
se desenha a opressão religiosa praticada pelas próprias oprimidas; é
precisamente nesta personagem que o dito oprimido se torna opressor, que a
vítima vitimiza e que o pecado capital da ira se materializa ao mostrar seis
outras moças cristãs externando sua raiva e provocando mal a alguém. Sendo
ela paradoxo, transforma-se na virtude contrária à cólera; Urraca é o perdão, e
cura o corpo de quem com as mãos lhe apedreja.
A plácida e complacente manceba, diziam as línguas do vilarejo, virava
bicho indomado no tropical das noites brasileiras. Lê-se, então, mais uma
antinomia na construção da personagem pelas linhas de nossa narradora:

(…) De dona Urraca que vivia trancada em sua morada sem que lhe
pusessem as vistas de dia, lhe ouviam a viola d'arco, mas
murmuravam na cidade que se vertia ela de noite numa alimária e
assustava os vizinhos, a assoprar fogo, se dizia até em juramento, do
que a Velha pouco acreditava (MIRANDA, 1996, p.134).

Nas últimas páginas do romance, em índice que pode ser lido no


reencontrar-se consigo depois da proibição quase perpétua de sê-lo, Urraca
retorna às suas origens e dedilha a viola d’arco de sua família. Vem dela o som
que embala o drama de Oribela e que começa por serenar o desespero de
nossa narradora em seu momento mais dilacerante:

Longe se viam as velas de uma nau portuguesa com a cruz do rei,


gente do reino e se ia partindo a nau, não chegando e tudo clareou
feito um raio no meu coração, aquela era a nau que levava o bispo
Sardinha a deitar suas queixas aos pés do rei e gritei tudo o que pude
com a minha voz, tornassem a me buscar, mas não fui ouvida por
ínfima na terra, numa vã esperança, sabendo que me dava Francisco
de Albuquerque o mais cruel de todos os castigos e ainda levando
meu filho, ia ficar eu sozinha com a gente rude da terra, viver entre
eles e me ver tornar cada dia mais um animal besta, até nem sabia
quando, mas que se salvasse deste degredo meu filho, se é que o
cão não o havia morto. (…) Lancei pedras que lá não se deram conta,
feito Deus aos nossos bramidos e cuspi, rasguei minha veste,
arranquei cabelos, esbofeteei o meu rosto até não poder mais, caí em
terra e chorei. Diante da mais funda pena em meu coração, fiz
minhas lágrimas escorrerem na pedra com todo o ódio e a
marcassem feito os pés de Zomé. A uma casa se temperava uma
triste viola d'arco, logo se tangeu e cantou, D'amores jaço, quando as
109

25
torço d'amores dormo , pela porta aberta vi que era a dona Urraca,
fiquei a escutar, com as gentes que escutavam, tão tristes música
que parecia se derramar do coração em rosinhas orvalhadas, ai, ai,
quanta melodia, umas lavandeiras com suas trouxas de roupas à
barrela, ai morenicas las pretas, também pararam pela música, o que
ia eu fazer de minha vida? Na casa das gentias soube que a Velha
partira com o bispo, o que ia eu fazer de minha vida? Muito fiquei ao
pé da igreja assentada numa espera de não sei o que, de que o sol
se fosse, a noite se fosse, o tempo, a vida, numa contemplação de
pensamento, os olhos perdidos na fonte e nas apartações por
convinhável mesura a esfriar da quentura e a memória dos males e
pecados (MIRANDA, 1996, p.210).

Interessante, pois, pontuar que se seu passado mulheril foi forjado no


fogo (em O fogo), é no desmundo (em O desmundo) que todas essas
personagens aqui analisadas encontram seus destinos, seus desatinos, suas
desventuras, seus desafios e seus desenlaces. O espaço que modifica, que
desconstrói, que altera. São elas, todas elas, as moças de Lukács que reiteram
o poder determinante dos processos e ciclos históricos na formação humana.
Mas são, também, as afluências literárias das periféricas excêntricas de
Hutcheon que, ao encarar suas realidades, assumem a carapuça da coragem e
sobrevivem às imposições; por vezes rebelando-se à elas, e, em outras,
driblando-as.
Então, personificando os sete pecados – de céus e mares, da igreja e do
estado – das sete mancebas embarcadas na nau, retornamos ao nosso início,
encontramos desenhado o rosto da nossa protagonista e encerramos esse
ciclo de nosso trabalho:

Em nome do rei, que governava a terra por graça e vontade dos céus
que a ele fizera eu agravo, eram apresentadas as culpas, diziam ser
eu culpada no pecado da gula, que não tinha feito abstinência, devia
eu pagar isso com a minha língua, no que vinha um algoz e me
cortava a língua, disse o juiz que era eu culpada na sensualidade,
devia pagar com meus seios, no que o outro algoz veio a os mamar e
depois de tomar um leite vermelho os cortou e comeu. Fora eu tíbia
no amor a Deus e avarenta no dar esmolas, pelo que havia de pagar
com meus dedos, veio um outro algoz a cortar os ditos das mãos e
dos pés. E como pecara de inveja, tive que pagar com minhas
orelhas e doze bofetadas no rosto. O pecado da soberba era preciso
pagar com o que restava de meus pés sangrados sem dedos, no que
me cortaram os pés, ficando eu estendida. E porque pecara ao falar
muito em prejuízo do próximo, paguei com meus cabelos da cabeça,
que logo ali os tosquiou um homem com uma tesoura na mão,
jogando cada cacho num fogo. Por ser culpada de ladra de moedas
alheias e nisso gastar minha vida com ofensa grave do alto Senhor

25
Mais uma intertextualidade literária e referência à obra do dramaturgo português Gil Vicente,
esta presente no Livro II, Comédias: Comédia de Rubena (1521).
110

que me criou, assim eu era condenada à pena de olhos arrancados,


no que me segurou pelos braços o gigante e me amarrou a um catre,
vieram os algozes com seus capuzes, enfiaram seus dedos nos meus
olhos deixando dois buracos no lugar, o calor do sangue sentia eu no
rosto mas nada via, a língua do demônio lambendo o sangue que
escorria, uma língua de amor, que me fazia suspirar e gemer ais e
uis, apertando meus ombros e fazendo arrepiar, adúltera. Por culpada
de traição ao esposo, era eu devedora de pagar com meu coração,
no que de mim abriram o peito, um corte fino de dor e as mãos
dedudas e grosseiras do algoz se meteram no meu peito a arrancar o
coração, quis gritar mas era como se uma boca me beijasse, senti a
língua do demônio me calando e seu genital me entrando entre as
pernas e assim sem meu coração me rebelei, gritei, me sacudiram, vi
que estava no mundo dos sonhos, queria sair, mas não queria, sem
saber qual dos mundos era o mais ruim e sem querer ver o que ia.
Mas abri os olhos. E vi (MIRANDA, 1996, p.162).

Diante do que esperamos ter mostrado uma análise aprofundada dessas


personagens e suas vozes subversivas, sentimos que é importante reiterar o
potencial do romance histórico enquanto opção de escrita criativa e da
metaficção historiográfica como escolha teórica de leitura para nos apresentar
pontos de vista distintos dos relatos oficiais que, de outro modo, não teríamos
acesso. Que, de fato, não tivemos acesso em nossa vida pedagógica e
apreensão da história enquanto disciplina escolar.
O homem branco conquistador de territórios e vencedor das batalhas
não se ocupou em contar a história da mulher – de nenhuma delas – em suas
dores, diferenças, pluralidade, distinções e heterogenia. Ao dar a voz narrativa
de sua obra a uma personagem feminina e assegurar o diálogo com várias
outras, Ana Miranda nos apresenta prismas que muitos de nós não tínhamos
refletido anteriormente, ou pelo menos não de maneira tão crítica e que
assegurasse tanta alteridade como é possível no campo literário.
A autora, com isso, nos aproxima da mentalidade da mulher na Colônia,
de seu lado mais humano, seus desafios, suas complexidades e sua
sexualidade e, desse modo, mais uma vez, a literatura amplia o leque das
possibilidades de entendimento das verdades históricas pelo fato de questioná-
las e atribuir som e sentido a quem foi silenciado. A quem ainda é, em si,
silêncio.
Nos mitos navegantes mais antigos, é a presença da mulher que traz
má-fortuna à nau26. Em Desmundo, contudo, mais uma antítese subversiva da

26
Daí o costume de se ter uma escultura feita à imagem feminina a bordo, sendo mais comum
que estivesse alocada na proa. Ironicamente, atribuía-se sorte ao objeto por acreditar que ele
111

lógica impetuosa: foi a nau que trouxe embalada em suas ondas a má-sorte do
naufrágio e da desventura à suas passageiras.

3.4. Temericô, Pe-maenduar27

A primeira marcação de tempo de nossa História se deu com a chegada


dos portugueses em território brasileiro, este inteiramente povoado pelos
índios. O conflito cultural se desenhava e se estabelecia nas dificuldades dessa
convivência intempestiva. A pouco temos acesso à reconstrução histórica das
nossas épocas mais remotas, de um Brasil antes de Cabral, mas o discurso
homogêneo certamente omite muito das fissuras, do extermínio dos povos
indígenas e das imposições – inclusive lingüísticas e religiosas através da
Catequese – enquanto parte do processo de colonização.
Estas imposições abrangem, também, o silenciamento da voz nativa nas
nossas narrativas oficiais: nos anos de formação escolar, onde
experimentamos o primeiro contato com a História enquanto disciplina, pode-se
ter a sensação de que tudo foi relatado de maneira compacta, aonde se
sentem brechas, rupturas e descontinuidades.
Então, mais de 500 anos depois, qual o sentido de repensar a História
em nossas origens? Para evitar repetí-la seria um bom começo. Para repará-la,
seria outra chave. Entretanto, como já dito antes, a História trabalha com
documentos. Não se volta no tempo cinco séculos – embora possamos
mergulhar no passado – para deixar que fale uma índia ou para reconhecer
como verdadeira e factual a sua narrativa. Ainda assim, com suas
particularidades, o discurso literário pode contribuir nessa (des)construção e
(re)construção de um Brasil que é distante e presente.
A maior fonte oficial a que se tem acesso, a fim de obter informações a
respeito dos índios, são as correspondências dos jesuítas, sobretudo as do
Padre Anchieta e as do Padre Manoel da Nóbrega. Através dessas epístolas, é
possível perceber uma tentativa de compreender a diversidade indígena e

tinha o poder de serenar os mares, acalmar as tempestades e guiar o navio para longe dos
desastres e naufrágios.
27
Pe-maenduar, do tupi, lembrai-vos vós. A tradução é do Padre Luiz Figueira e pode ser
encontrada em sua obra Arte da grammatica da lingua do Brasil.
112

alguma riqueza no detalhamento dos costumes dos primeiros habitantes do


Brasil, ainda que permeadas por moralismo e estranhamento diante do que
consideravam exótico.
Mas, porque são cartas, são lidas, também elas, como formas
narrativas. Narrativas de impressões. Narrativas do olhar de um sujeito sobre
outros. Narrativas sensoriais. Narrativas que exploram prismas. Narrativas que
apalavram o mundo como apreendem. Narrativas subjetivas. Cabe, aqui,
retomar a reflexão a que nos propusemos no segundo capítulo deste trabalho:
a História elege seus narradores – normalmente os que já ocupam o posto do
colonizador em detrimento do colonizado – e os delega o posto de documentos
oficiais, ainda que sejam eles sujeitos, narradores, personagens.
Pode-se perceber, em excertos das epístolas previamente transcritas ao
longo deste trabalho, certa dificuldade em entender e explicar o novo universo
que a eles se revelava; havia um distanciamento abissal entre o berço
eurocêntrico que os portugueses conheciam e o continente em que
desembarcaram. Há o choque do inusitado. Lendo, nota-se certa
impossibilidade do branco em conhecer ou dialogar com a circunstância dos
povos indígenas, tão oposta aos costumes europeus e a tudo que
representavam. Tomemos como exemplo o seguinte excerto:

(…) Temericô chamavam ás índias mancebas dos Portugueses, e


com este título lhas davam antigamente os pais e irmãos quando iam
a resgatar ás suas terras, como os Tamoios e Temiminós do Rio de
Janeiro e de Espirito Santo, os Tupis de S. Vicente, os Tupinambás
da Baía, e finalmente todos da costa e sertão do Brasil, dizendo-lhes
leva esta para tua mulher, com saberem que muitos daqueles
Portugueses eram casados; e ainda que os Portugueses as tinham
por mancebas, contudo as tinham de praça nas aldeias dos índios, ou
fóra delas, com mulher, filhos e filhas, porque para os índios não era
isso pejo nem vergonha, e lhes chamavam Temericô a mulher de N.
(…) E lhes davam resgates, ferramentas, roupas, etc, como a tais.
(…) Por onde não parece serem estes suficientes sinais de
matrimônio nem da parte dos que se amancebam com elas, nem dos
pais ou irmãos que lhas dão (…) Os que têm muitas mulheres a que
chamam Temericô, não é possível saber-se com qual delas se
juntaram com ânimo marital, porque nem eles entendem quanto
importa falar nisto verdade, nem o sabem dizer realmente, porque
para com todas tiveram o mesmo ânimo. E muitas vezes querem
mais a segunda, terceira, quarta, e ainda a última que as outras, e por
serem ou mais moças ou mais fecundas (ANCHIETA, 1933, p.450-
453).
113

Discurso semelhante é o de Francisco de Albuquerque, ecoado na


narrativa de Oribela:

(…) E se afeiçoavam ao pecado nefando, sem afronta, tomando por


proeza o que serviu de macho e numa tenda pública machos se
faziam de mulheres, nas aldeias vendiam os pais suas filhas meninas
aos portugueses por pouco cabedal, um espelho ou alguidar e as
índias que amavam seus maridos lhes buscavam mulheres para os
desenfadar. Francisco de Albuquerque as tinha em seus desejos, que
me fazia ver e ouvir, pelos lumes acesos e pelas vozes. Mas esposa
era só uma, ele disse (MIRANDA, 1996, p.131).

Temericô, como na carta acima transcrita de Anchieta: mulheres


indígenas oferecidas em escravidão sexual e laboral ao homem português.
Mulher-escambo em troca de objetos ou roupas nas feiras livres nos primeiros
anos de Brasil. Mulheres arrancadas de suas tribos nativas para servir ao
colonizador da maneira que ele considerasse apropriada.
A primeira vez que o substantivo aparece como nome próprio no
romance, entretanto, é para apresentar ao leitor a índia da tribo Tupinambá,
Temericô. Na voz da protagonista, lê-se:

(…) Nesse tempo se deu de minha amizade se encantar por uma


natural, de cor muito baça, bons dentes brancos e miúdos, alegre
rosto, pés pequenos, cabelo aparado e que me falava a língua, com a
rudeza dos matos e modos de animais silvestres. (…) Espantava
morcegos das palhas, ria de qualquer coisa triste, vestia um tafetá
verde e chamava Temericô. (…) Acenava muito ao falar, em voz
desentoada. (…) Preparava Temericô uma cuia de comida, sem
alvoroço chegava, sempre contente, descalça, sem coisa nenhuma
na cabeça. (…) Cantava cantigas, tocava um pífano de graveto,
contava de sua povoação, onde amava os pais e irmãos, de quem
mais nada sabia, que lhe falavam deles as estrelas, fora ela caça do
mato e palavras mansas (MIRANDA, 1996, p.119).

Aqui, abrimos um parêntese e atentamos para o fato de que, ao longo de


toda obra, desde as primeiras narrativas de Oribela, apenas as índias recebem
descrições físicas. Como se somente o corpo delas pudesse merecer atenção
já que, nas brancas cristãs, ele era espelhamento do pecado. Do diabo
humanizado. Das tentações infernais. Da confusão dos homens. Da culpa. Das
culpas. E talvez, até por isso mesmo, seja difícil dar um rosto à protagonista: do
mesmo jeito que ela embaça suas intenções, ela foge ao próprio retrato. Evita,
114

quem sabe, os pecados fugazes da vaidade e da luxúria. Insistimos, portanto,


que só nas índias – a tal ponto libertas das culpas físicas quem eram sombras
nos corpos cristãos – a beleza é descrita e revelada.
As nativas aparecem nestes relatos ficcionais – transcritos em diferentes
momentos dessa pesquisa – como transgressoras. E transgridem pela
ausência de vergonha estampadas em seus corpos e em suas consciências.
Tinham, os povos indígenas, suas próprias crenças espirituais e, antes da
chegada do clero português e suas imposições histórico-coloniais, elas
passavam à muitas léguas de distância da fé no Cristo branco e monoteísta.
Da punição discursiva à beira do altar.
Pois é de Temericô a sabedoria da terra, a alegria do existir, o olhar que
distribui ternura e os conhecimentos dos mistérios naturais. Dela vêm a
candura, o acolhimento, os remédios para muitas dores, as tranças de Oribela,
a conversa com estrelas, a brisa fabricada com abanador, o alimento, a
música, certa subserviência, os óleos para hidratar os cabelos e o alívio para
os castigos físicos que Francisco impunha à narradora. São dela, também, os
desejos impossíveis; as utopias que a tornam tão gêmea em suas
singularidades a outras mulheres. Como já exposto, todas as personagens –
qualquer que fosse sua etnia – vislumbraram vidas distintas às que lhes
presentearam suas sinas. Sinas, patriarcalismo, arbitrariedade, Estado, Igreja.
Viessem elas em naus aventureiras pelos mares atlânticos, nascessem elas
nas matas com os pés enraizados no chão.
Temericô era a índia que se trajava branca com seu vestido de tafetá
verde. Que aceitou o Cristo na Catequese. Que queria o Santo Sacramento da
Igreja. Que revirou a alma ao avesso em nome da salvação. Que aspirava
casar virgem. Que seria monogâmica. Que falava Português, engolia suas
letras e tropeçava em seus fonemas. A seu modo, Temericô subverteu tudo
aquilo que nascera para ser; também ela renegou suas condições natais e
transformou-se no contrário do que era. Também ela tentou desfazer destino.
Sua rebeldia era ser nada do que fora para ela traçado.
Sua vida, quando narrada por Oribela, evoca fatos conhecidos da nossa
história. Nascida entre o povo Tupinambá, que, por volta do século XVI
habitava a costa brasileira – do Rio São Francisco ao Recôncavo Baiano no
nordeste, e do Rio de Janeiro à São Paulo na região sudeste – Temericô fora
115

primeiro alijada do convívio com seu povo por causa das guerras entre as
tribos que compunham a mesma nação28 e, posteriormente, escravizada por
Francisco de Albuquerque:

(…) Era de um gentio muito antigo que fora lançado fora da sua terra
das vizinhanças do mar por outro gentio seu contrário que descera do
sertão pela fama da fartura da riba do mar e seus pais e avós
perderam as terras que tinham senhoreado muitos anos e lhes
destruíram as aldeias, roças, matando os que lhes faziam rosto, sem
perdoar a ninguém, em frontaria com os contrários numa crua guerra,
onde se comiam uns aos outros, os que cativavam ficavam escravos
dos vencedores, numas batalhas navais, ciladas por entre as ilhas,
grande mortandade e se comiam e se faziam escravos, até chegar o
tempo dos portugueses. O-îo-akypûer-i, um trás outro, trás de um o
29
outro, mokõî, mokõ'-mokõî. Tinga (MIRANDA, 1996, p.119).

Embora seja tenso o relacionamento entre o homem branco e os


homens das tribos – os nativos eram considerados inimigos da coroa
portuguesa porque foram partidários dos franceses durante os seus intentos de
invasão pelo litoral brasileiro, ajudando-os, inclusive, no contrabando do Pau-
Brasil no que hoje se conhece como Praia do Francês, em Alagoas – a relação
com a índia Temericô é parte importantíssima da transformação de nossa
protagonista.
De uma Oribela que crescia enquanto personagem pelas informações
absorvidas no desmundo, no ambiente que a modificava constantemente e que
era indicativo de crise do sujeito de não caber ali e não mais pertencer a
Portugal. A narradora, depois do convívio com a índia, já não era mais tão
branca em seus hábitos. E a índia, com Oribela, esbranquiçou ainda mais.
Com ela, aprendeu um pouco da língua indígena, no que lhe ensinou um
pouco mais da portuguesa. Observando as outras índias, foi livrando-se do
horror à nudez. Os dias junto a Temericô fizeram com que Oribela pintasse o
rosto com urucum, se banhasse no rio contra o flagelo do calor, fumasse

28
Um dos maiores povos indígenas, os Tupinambás eram formados por diversas tribos que
guerreavam entre si em batalhas quase sempre sangrentas e motivadas por vingança. Os
cativos eram frequentemente devorados em ritos antropofágicos. Há várias descrições desses
costumes nas cartas jesuíticas.
29
Já no primeiro relato, Temericô, em tupi, conta a Oribela como eram capturados os povos
indígenas: O-îo-akypûer-i, mokõî, mokõ-mokõî. Tinga, um atrás do outro, nas costas do outro,
dois, coisa branca. As palavras podem ser encontradas em tradução de Ana Miranda, em
Desmundo (1996), e também à página 51 na obra de Luiz Figueira, previamente referenciada.
116

cachimbos com ervas e lhe renderam acusação de estar se tornando uma


“selvagem" por parte de Dona Branca:

(…) A Perra advertira o filho de estar eu em conluios com as naturais,


em um despudor, a me despir, tingir de urucum e a lhes aprender a
fala, serem elas das que riam pelos ódios e nunca se cativavam
demais, traiçoeiras como gatas. Tivesse eu cuidado, nas menarcas
possuíam elas venenos em suas entranhas que davam febres
malignas, pareciam demônios percutientes, em suas aldeias pecando
todos os pecados da luxúria (MIRANDA, 1996, p.131).

Mas não tanto. Embora Temericô ganhasse a afeição de Oribela, nossa


dúbia protagonista ainda conservava os traços da colonizadora. E sim, de
opressora. Em certa passagem, depois de uma rusga com a índia, Oribela não
se desculpa. O desentendimento foi provocado pela vontade de Oribela de
retornar ao reino. Temericô, então, firme em suas convicções brancas de
matrimônio e monogamia, considerou isso uma falta de respeito ao marido. E
então, a narradora, orgulhosa, compara Temericô a uma cadela mansa em
seus joelhos após o decorrer dos dias. Na ocasião, em gesto carregado de
simbolismo e metáfora precisa, a índia, para desculpar-se, presenteia Oribela
com uma ave que não era de gaiola nem de alçar vôos. Um pássaro que
repousa nas mãos do dono e que, ainda que bique os dedos e aperte as
garras, não fere. Paira. Não é de revoada, embora tenha asas: fica.
Temericô e Oribela, tão diferentes, às vezes parecem miragens na outra.
Opostos refletidos da outra. Mas, em seus desencontros, espelhavam também
aquilo que a outra desejava ser. Uma, a índia que – depois de feita escrava –
queria ser branca e conhecer a vida no Reino. A outra, a branca que queria ser
livre, experimentar o despudor das mulheres das tribos e que só conseguia
falar de seu passado em Portugal – proibida que fora por Francisco – com a
índia que lhe ouvia. E ouvia porque queria se colocar lá, em tempos e terras
distantes. E mundos para muito além do horizonte que enxergava no mar. A
primeira nasceu livre e tornou-se cativa. A outra, escrava por toda uma vida,
aprendeu a lutar para ser liberta. Como ciclos que se iniciam e se
complementam em suas buscas por mais do que têm. Em ir além do que se vê.
Aliás, essa noção de que mulheres são alívio e abrigo para outras
mulheres, que elas se entendem ao se reconhecerem em suas dores, é
recorrente ao longo do romance. Mesmo que não eclipse também os seus
117

atritos, exemplos de solidariedade entre elas permeiam a obra, sobretudo nos


discursos de Oribela na liberdade que garante uma casa sem homem e o sabor
da tranquilidade que sentiam quando Francisco de Albuquerque se
embrenhava mata adentro, junto com seus capangas e as deixava consigo
mesmas no fortim.
Ainda que haja dificuldade no diálogo, ou mesmo a inexistência do
diálogo diante da possibilidade concreta da desigualdade – que é premissa
básica na relação colonizado-colonizador –, é importante perceber como as
diferenças étnicas e as trocas culturais enriqueceram as mulheres e, com elas,
a nação. O quanto uma deixa de herança à outra. Como se entendiam entre
conflitos e ruídos quando a pauta orbitava no universo íntimo feminino.
O poeta e ensaísta Octavio Paz, em seu Sor Juana Inés de la Cruz ou
As armadilhas da fé (1982), é biógrafo de Juana Inés de la Cruz, e pensa a
importância de se problematizar a História sob pena de cometermos os
mesmos erros caso nos refutemos à reflexão sobre quem fomos na tentativa de
compreender quem somos. Fazendo uma retomada da colonização mexicana
pela Espanha, Paz pondera:

(…) Uma sociedade se define não só por sua atitude diante do futuro
como também diante do passado: suas lembranças não são menos
reveladoras que seus projetos. (…) Não temos uma idéia clara do que
fomos. E, o que é mais grave: não queremos tê-la. Vivemos entre o
mito e a negação, idolatramos certos períodos, nos esquecemos de
outros. Esses esquecimentos são significativos; há uma censura
histórica, bem como uma censura psíquica. Nossa história é um texto
cheio de trechos escritos com tinta preta e outros escritos com tinta
invisível. (…) A nossa história como uma ininterrupta evolução
progressiva; ao destacar excessivamente a continuidade do processo
histórico, acaba omitindo rupturas e diferenças (PAZ, 2017, p.19).

A legitimidade da problematização do passado se dá no sentido de


compreender o presente, entender os ciclos históricos que nos formaram e
tomar consciência do que veio antes de nós para que as injustiças e
apagamentos não sejam esquecidos e, portanto, repetidos. Que se ouça o
ruído que habita nas frestas e fissuras do discurso único e pretensamente
homogêneo.
Conhecer o que passou como uma forma de processo terapêutico, por
meio do qual encaramos nossos traumas enquanto nação e, em certo grau,
118

alguma reparação a quem foi excluído. A quem continua à margem: o mundo


indígena em seu pluralismo de povos, culturas, costumes e línguas.
Memória e resistência, campos que vêm sendo trabalhados sob a
estética da literatura contemporânea, que enxerga nesse viés a possibilidade
de corrupção e subversão da narrativa oficial ao dar a voz a outros
personagens da mesma História. E, assim, nos aproximarmos de quem somos
enquanto povo, que, imbuídos de heranças genéticas semelhantes e
nacionalidade similar, cada dia nos tornamos mais estranhos ao próximo. De,
enfim, nos reconhecermos na identidade brasileira:
(…) Por que vivemos presos todos uns nos outros atados pelos mais
fortes grilhões, por que causa somos todos tão estrangeiros uns dos
outros e pouco sabemos da alma alheia mais que umas coisas que
se podem dizer com palavras duras mas nossas almas afundadas na
ignorância de nós, ai Deus (MIRANDA, 1996, p.1999).

Para Temericô, dizia Oribela, brincar e esquecer eram a mesma coisa30.


Nós, entretanto, devemos lembrá-la e permití-la o inesquecível. Pe-maenduar,
lembrai-vos vós: Ontem, às vezes, ainda é hoje. E o nosso desmundo não
pode mais ser nosso ilustre desconhecido.

30
Desmundo (1996), página 120.
119

Considerações Finais

“(…) Que sabem os homens o que não sabem as fêmeas.


(…) Sabia eu não ser poderosa e que não podia pelejar
com tamanha força, ai, pelas alparcas douradas do rei,
me libertasse de assentar à mesa como esposa e deitar à
cama como mulher, sem entendimento de minha recusa,
a preferir eu a dor do abandono e a sorte, em minha
fraca e mulheril natureza.”
(MIRANDA, 1996, p.71-82)
120

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa pesquisa nasceu tanto de um incômodo quanto de um desejo: a


ignorância de nada ter sabido a respeito da narrativa da mulher na História e a
vontade de ouvi-la.
Oribela nos chegou de maneira nada suave para contar-nos coisas que
não sabíamos ou que jamais houvéramos imaginado. É difícil pensar um Brasil
de 1555 desatrelado das telas a óleo pintadas e reproduzidas exaustivamente
nos livros de História com os quais fomos pedagogicamente educadas. Quando
refletíamos a nossa Colônia, a visão era reducionista e figurava entre naus
atracadas e índios curiosos sobre os novos habitantes. Uma visão tristemente
pobre e caricata. Daí a necessidade de ir além.
Eram-nos desconhecidas as motivações e as razões pelas quais as
mulheres desembarcaram nesse pedaço de desterro. E como por aqui viviam.
Sabíamos que a índia aqui sempre estivera e a negra chegara pela dor da
escravidão. A mulher branca, todavia, nos era mistério.
A começar pela arte literária, nos abriu os olhos Ana Miranda. A voz de
Oribela nos despertou, aos gritos. Desmundo não é fácil. E desassossega
perceber que meio milênio depois da data histórica do nosso descobrimento,
continuamos padecendo de muitas das mesmas mazelas, embora sem nunca
perder a esperança de um final feliz.
Há pouco menos de três anos – em Outubro de 2016 – a ONG
americana Save The Children divulgou uma estudo de resultado não
exatamente surpreendente, porém não menos estarrecedor: o Brasil (ainda) é o
pior país da América do Sul (e um dos 50 piores do mundo) para se nascer
mulher.
A pesquisa levou em consideração alguns dos pontos com os quais se
confrontou a personagem e que persistem vivos quase 500 anos depois da sua
narrativa ficcional: o desenvolvimento e independência femininas, o casamento
forçado ainda na infância e adolescência, a gravidez precoce, a violência
contra a mulher, a mortalidade materna, a baixa representatividade política
feminina e a falta de acesso à educação básica.
O romance de Ana Miranda, através da sua narrativa envolvente,
tocante, atenta e rica, devolve à mente do leitor a imagem assustadora destes
121

problemas que seguem presentes na realidade das mulheres brasileiras, que –


como Oribela e as outras passageiras da nau, que vieram cumprir a função de
esposas designadas pelos poderes então vigentes – são excluídas,
sexualmente objetificadas, muitas vezes emudecidas, alijadas de sua
dignidade, assombradas pelo medo, à mercê da violência e à margem dos
direitos mais básicos.
Não é de espantar quando absorvemos e apreendemos a visão
hegeliana-marxista da história na formação da humanidade. Pode-se
compreender – e compreensão aqui, de modo algum, deve ser lida como
aceitação ou resignação – o resultado do estudo da ONG americana acima
citada ao entrarmos em contato com os estudos de Mary Del Priore acerca da
mulher no Brasil colonial. Estava tudo lá. Está, desde sempre.
Ezra Pound dizia que:

(…) Literatura é a linguagem carregada de significado. Grande


literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o
máximo grau possível. A linguagem é um meio de comunicação. (…)
A incompetência se manifesta no uso de palavras demasiadas. (…)
Uma definição de beleza: adequação ao objetivo (POUND, 2006,
p.35).

E é justamente por esta narrativa dura e contundente, embora tecida


cuidadosamente e entrelaçada com o talento singular da autora que reitera seu
compromisso com o discurso poético, que serão despertadas ou atribuídas
questões de empatia, de alteridade, de entendimento, de compreensão e até
mesmo de arrebatamentos por parte do leitor que apreende, recebe e digere a
obra. Que a lê, a percebe e dela se apropria.
Ao longo de todo este trabalho, portanto, nota-se que as teorias críticas
aparecem como possibilidades de ampliação de leitura e entendimento do
romance, nunca como uma tentativa de tornar a arte um elemento cativo da
produção teórica. Trabalhamos com um objeto artístico que é, por si só,
expansão. Não é papel da teoria crítica – ou não deveria ser – ambicionar o
encaixe perfeito dentro de uma criação, de um fazer literário, posto que assim
se colocaria em movimento contrário ao que lhe cabe, que é o de auxiliar o
pesquisador nas múltiplas possibilidades de leitura e apreensão da narrativa.
122

Sobretudo, ao se pensar Desmundo (1996), que é um Romance


Histórico, mas se delineia horizontalmente ao ser escrito em tempo presente –
ainda que trate de séculos passados – e uma protagonista que escapa da
lógica da moça típica do seu tempo e foge aos rótulos e padrões. É a heroína
em crise, a personagem única e multifacetada, por vezes dúbia em seu caráter
e em muitas outras vezes para além de uma leitura rasa e inocente. Oribela
transgride, subverte, resiste.
A obra desafia a crítica contemporânea – que ainda tem no século XIX
muito do seu embasamento teórico – ao convidar o leitor para absorvê-la sob
os mais diversos primas teóricos, mas nunca pertencendo a nenhum em sua
totalidade. Não se encaixa nem se permite a brutalidade de um único discurso,
porque é, em si, plural. Plural em vozes, plural em forma.
É um romance, é um diário. Dá um nó no tempo. Fala do passado com a
escrita do presente. Desloca oceanos, derruba máscaras. Des-conta. Des-diz.
Desnuda-se na urgência da sua prosa poética que nos obriga a observar
entrelinhas e entre as linhas que parecem dançar nas ondas dos mares
tempestuosos. Desdenha da leitura óbvia. As verdades, nesse romance, são
transversais, são duras e são abjetas. Demanda do leitor olhar atento e
generoso. Desafia e determina que se enxergue mais: mais da História, mais
da Literatura, mais da Crítica. Desmundo é desencaixe.
Nada está lançado ao acaso ou sem função de estar no diário-romance
híbrido de Ana Miranda; da eleição das duas epígrafes que abrem o livro – uma
poesia de Fernando Pessoa e um documento histórico – aos conflitos que o
permeiam, todos os elementos estão interligados e convidando o leitor a
repensar aquele mundo que nos acostumamos a enxergar com um olhar
automatizado, a ressiginificar aquele momento único e inicial da nossa História
através de uma voz dissonante.
Literatura, portanto, não é só o contar histórias nem se reduz ao narrar
lírico da ficção. Literatura é, também, (re)contar histórias. É (des)dizer histórias.
É encontrar um novo significado no passado que explique e compreenda os
ciclos temporais que definiram o presente. É a possibilidade de um (re)construir
o real através das estéticas ficcionais. É a (des)leitura. É dar a voz a quem foi
emudecido pelos relatos tradicionais. É o ampliar de horizontes. É a
oxigenação das idéias pela proposta de um novo viés. É uma autoria. É pintar
123

um novo quadro, bastante diferente dos tradicionais óleo sobre tela que
retratavam índios curiosos e grandes conquistadores portugueses à beira mar
e selva adentro. Ana Miranda sabe disso. E o faz, para nosso deleite literário e
instrução do saber.
Que fiquemos, pois, com a idéia urgente de que a Literatura pode ir – e
vai – além. De que é, sobretudo, a forma artística e material do instrumento do
pensar e do refletir sobre o que fomos, sobre o que somos e sobre o que
poderemos ser se ousarmos enxergar o mundo sob uma nova perspectiva mais
abrangente, mais crítica e consciente; há verdade nas mentiras, Vargas Llosa
já nos disse.
Embora tenha um fim essa dissertação – que aqui se apresenta –, a
pesquisa não poderá tê-lo. É ela o começo de um longo caminho. Ela é,
também, ambiciosa em sua modéstia. Sabemos que conhecemos o todo
apenas em pequenas partes, fragmentadas pelas escolhas e recortes que
tivemos que fazer nesse trabalho. É preciso que continuemos refletindo e
buscando instrumentos que nos embasem e nos possibilitem fazer uma leitura
crítica da realidade para entender a origem do nosso contemporâneo, que,
embora apresente avanços sociais bastante significativos, segue tão sofrido
para quem está à margem, para os nossos heróis e heroínas, tão excêntricos
quanto periféricos. E anônimos.
Temos que ter o compromisso de conhecer a nossa História na tentativa
de mudar o presente, que sangra, em hojes. É preciso que se escute todos
aqueles a quem a voz foi negada. E que continua, de certa forma, silenciada.
Somos um país de aindas. Deveríamos ser um de bastas. A educação, como a
compreendemos, é poderoso auxílio na tentativa de reparações e construções
de futuros menos violentos. A educação, como acreditava Paulo Freire, é
libertadora e nos iguala.
Encontramos, por meio da Arte, algumas das respostas que
buscávamos em nossos objetivos. Respaldadas por estudos de grandes
pensadores que souberam teorizar e explicitar a grandeza da literatura nas
suas múltiplas possibilidades de instrumentalização, tentamos trazer uma
pesquisa coerente, que apresentasse uma nova possibilidade de convergência
teórica entre o que antes era, aparentemente, divergência e disparidade. Um
estudo coeso que fizesse jus à importância do tema e que pudesse contribuir
124

para a sistematização do conhecimento acadêmico e, mais ainda, para


compreensão do social através da ficção literária.
125

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