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DESDE QUE O MUNDO E MUNDO eo homem PEC CO Nae a MME UTUR Cm SSe Te RELL Es Ue TSR Ct Re EOS tO LEMS C teu. volta de uma fogueira: Em tempos antigos, essas historias Roem n eer mi eocea TN cee Mn ces experiéncia. humana do mundo, preenchendo as lacunas Puce i ceo ieilivenias, aves espaciais mundos cibernéticos, Puisoes ‘brasileiras sobre o que 0 amanha eee Me Men curr a ees GSveT SM ISaA US ULE CCUM See SC pocas diferentes da nossa? Viveremos em sociedades nas SO CUINEY Sca IE MIC MIS Ct ci UE A UE Ca ISS Cuca eee cy Moc em ISU loe en aC CCT ORCS ON Ua Toe EU gE) CSE ena et ee Peron tito migra ceK Et NCU OC One MEmery ts weet te Elec Ue IS elle ee USES NEU) DSC U CRN an On Ogre ERIC OR NUE erie Nat DCE eg EUS CSS UNO SMUT URC IC CER Race escritores como Isaac Asimov, Ray Bradbury e Arthur C: Clark, o-género entim ficou definido tal como conhecemos enon ie MOcnec Men tycett 1c) Enquanto isso, no Brasil, a literatura de ficeao-cient/- fica teve um desenvolvimento de natureza mista. Influen- ELEM ate MIO ee oe OR gc ROR CIES UU see MU eee eT e eee TE William Gibson, a FC brasileira assumiu um carater nico, DSS AE Hiecrs eat Me Race en CSS Renae rere icnieee oeninie rece iecs UM Res RMU CEE Une Ur nec Ret eS EL fepresentados mais de 150.anos de-uma tradigao literaria GUID erica LM RSE eM Uno CTLCUc Lt UC PAGINAS DO FUTURO CONTOS BRASILEIROS DE FICCAO CIENTIFICA PAGINAS DO FUTURO CONTOS BRASILEIROS DE FICGAO CIENTIFICA SELECAO E APRESENTACAO BRAULIO TAVARES ILUSTRACOES ROMERO CAVALCANTI Casa da Palavra Copyright © 2011 desta edi¢ao Casa da Palavra Copyright © 2011 organizador Braulio Tavares Copyright © 2011 individual dos autores Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19.02.1998. £ proibida a reprodagao total ou parcial sem a expressa anuéncia da editorae do autor. Diregdo editorial MARTHA RIBAS ANA CECILIA IMPELLIZIERE MARTINS Diregao gratfica “THAIS MARQUES Coordenagao de producao editorial e gréfica CRISTIANE DE ANDRADE REIS Preparagao de originais e produgao editorial LEONARDO ALVES Produgao grafica MEYRELE TORRES Revisao CAROLINA RODRIGUES Hustragdes ROMERO CAVALCANTI Design de capa MARCELO MARTINEZ | LABORATORIO SECRETO Designer assistente JOAO FERRAZ ! LABORATORIO SECRETO Diagtamagao FILIGRANA Digitagao. JULIANA CUBEIRO Este livro foi revisado segundo 0 Novo Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa, CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, R] Tasap Paginas do futuro / org. Breulio Tavares; ilustracdes Romero Cavalcanti. - Rio de Janeiro; Casa da Palavra, 20341, ISBN 978-85-7734-203-7 1. Antologias (Fiogao fantéstica}. 2. Conto fantéstico brasileiro. . Tavares, Braulio, 1950- 11-6648, DD: 869.9308 DU: 821.134.3(81)-3/082) CASA DA PALAVRA PRODUGAO EDITORIAL Av, Calogeras, 6, sala 1.001 Rio de Janeiro 20030070 21.2222-3167 21.2224-7461 divulga@casadapalavra.com.br www.casadapalavra.com.br a 5 suMARIO Apresentagdo 9 Ma-Hére | Rachel de Queiroz 22. Veja seu futuro | Ataide Tartari 31 O fim do mundo | Joaquim Manuel de Macedo 39 O inimigo gaseificado, ou a vinganga do sr. Concreto| Oswald Beresford 55 O quarto selo (fragmento) |Rubem Fonseca 61 Exercicios de siléncio | Finisia Fideli 73 Uma breve historia da maquinidade | Fabio Femandes 95 Vanessa von Chrysler | Fausto Fawcett 105 Do outro lado da janela! André Carneiro 117 Déjé-vu | Luiz Bras 121 O copo de cristal | Jerénymo Monteiro 131 15 minutos! Ademir Assuncdo 151 APRESENTAGAO Braulio Tavares ad Mitos e lendas, romances cientificos e pulp fiction O que conhecemos como ficcao cientifica (FC) resulta principalmente de trés tradigGes literarias que sao sucessivas e ao mesmo tempo superpostas, uma vez que as mais recentes nao eliminam as mais antigas, mas recorrem a elas frequentemente como parametros, bancos de dados, fontes de inspiragao. ‘A mais antiga, mais volumosa e mais heterogénea delas é 0 imenso con- junto de narrativas épicas, fantasticas e aventurosas que vem desde a Anti- guidade e esta presente em praticamente todas as culturas. Inclui as histé- tias de viagens fantasticas, seres sobrenaturais, deuses, monstros, artefatos miagicos, cidades encantadas, excursdes a outros mundos, mitos de criagao. Desde as Metamorfoses de Ovidio e a Odisseia de Homero até 0 Epico de Gil- gamesh e as Mil e Uma Noites, essas narrativas muitas vezes andnimas {as quais vém se somar os contos populares ¢ os contos de fadas} sao versdes coletivas de numerosos temas que hoje inspiram a FC, a fantasia e o horror. ‘A segunda tradigao é a do chamado Scientific Romance (SR) europeu, que € 0 encontro dessa tradicao do fantasioso com a ascensao da literatura rea- lista no velho continente. Temas extraordinarios sao tratados com verossi- milhanga narrativa e recebem o influxo das ideias cientificas que florescem entre o Renascimento e as Revolugdes Industriais. O SR viria da tradigao especulativa, as vezes satirica, as vezes utopica ou distépica, surgida entre os séculos XVII ¢ XVIII, com autores como Johannes Kepler (1571-1639), Jonathan Swift (1667-1745), Cyrano de Bergerac {2619-1655}, Voltaire (1694-1778), entre muitos outros, No século XIX essa tradicéo encontrou autores que apesar de sua importancia (principalmente 9 pelo sucesso que a maioria deles encontrou em vida) si0 considerados apenas uma influéncia colateral da FC atual, tais como William Morris (1834-1896), Samuel Butler (1835-1902), Edwin Abbott (1839-1926), C.H. Hinton (1853-19¢7) e Olaf Stapledon (1886-1950). Mesmo contando com todos esses praticantes ilustres, o SR geralmente é descrito como aquele tipo de literatura tornado célebre por jiilio Verne (1828-1905) e H.G. Wells (1866-1946), além dos seus contempordneos Arthur Conan Doyle (1859-1930), H. Rider Haggard (1856-1925}, Camille Flammarion (1842-1925) e varios ou- tros, Essa lista de aomes pode parecer excessivamente longa, mas € necess4- ria, porque foram esses os autores que os escritores brasileiros leram e com os quais tentaram dialogar em sua época, mesmo sem ter a minima ideia da existéncia de uma literatura chamada de “ficgao cientifica”. Brian Stableford diria que “esse termo [Scientific Romance] tende a des- crever obras caracterizadas por perspectivas longas e evoluciondrias; por uma relativa auséncia de espirito de fronteira e pela presenga mais escassa daquele tipo de heréi derivado dos pulp magazines, destinado a transpor todas as fronteiras imagindveis; e em geral por um tom moderadamente menos esperangoso a respeito do futuro do que o tipico da FC de género até recentemente’” E essas pulp magazines norte-americanas introduzem a terceira tradigao, cuja histéria comega de forma mais sélida em 1926 com. a criagao da revista Amazing Stories por Hugo Gernsback (1884-1967). Esse corpo literdrio teve um rapido crescimento e evolucao nos Estados Unidos até a Segunda Guerra Mundial e depois influenciou de modo definitive a literatura fantastica, futurista, especulativa etc. praticada no mundo. No romance brasileiro de FC duas tendéncias foram se firmando desde 0 século XIX: os romances utdpicos ou satiricos, e os romances voltados para 0 Espaco Selvagem no interior de nosso pais (principalmente a Amnaz6nia). A partir dos anos 1980, 0 crescimento do mercado editorial e a influéncia do cinema e da TV (onde, agora, muitos jovens tém seu primeiro contato com. a tematica da FC, bem antes de encontré-la nos livros) multiplicaram as tendéncias que refletem, em maior ou menor grau, a FC que se pratica nos BUA e na Europa: a space opera, 0 romance cientifico ecol6gico, o techno- -thriller, a FC mistico-religiosa, a historia alternativa, a FC cosmolégica de * Clute, John; Nicrolls, Peter (eds.). The Eneyclopedia of Science Fiction. Nova York: St. Martin’s Press, 1993, p.1076. 10 piciwas 09 FUTURO i aa aueoenmomin [ perfil hard, e as correntes mais recentes, como os universos compartilhados, 0 cyberpunk e o steampunk. Contos de FC a brasileira Nesta antologia, houve a intengao de representar épocas sucessivas do con- to de FC em nossa literatura, embora as associages estilisticas e tematicas me parecam mais interessantes do que a relagao cronolégica. O conto mais antigo aqui (e um dos mais antigos da FC brasileira) ¢"O fim do mundo’, de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), no qual um tema tra- dicional da EC é tratedo em tom de facécia, de gracejo sem compromisso, crf- tica subordinada ao entretenimento, numa mistura de futurismo cientifico e comentario mordaz ao estilo de vida dos leitores. Macedo, cujas preocupagdes literdrias sao neste caso as mais superficiais, chega a empregar um modo ca- ricatural de escrita (como na cena em que o narrador amontoa bancos sobre bancos para alcancar a Lua), semelhante ao que empregaria Albino Coutinho (1860-1940) em 1923 no desfecho de seu A liga dos planetas; um estilo teatral e carnavalizado de personificar os planetas que lembra os filmes de Georges Mélids (1861-1938) ou as charges politicas de Angelo Agostini (1843-1910). Essa tendéncia a carnavalizago dos temas da FC voltaria a ter evidéncia no cinema de 1950 em diante: viagem no tempo em Nem Sansdo nem Dalila (1955) ¢ espionagem astrondutica em O homem do Sputnik (1959), de Carlos Manga, pés-apocalipse em Brasil ano 2000 (1969), de Walter Lima Jr. etc. Outra vertente representada nesta antologia é o texto-colagem modernis- ta, que em Oswald Beresford (?-1924) ainda est4 meio contaminado por exa- geros cémicos, mas em Rubem Fonseca, Fausto Fawcett e Ademir Assungaio se aproxima (se cortinuarmos buscando paralelos nas narrativas visuais) das histérias em quadrinhos de revistas como Heavy Metal, dos anos 1980, com suas metrépoles informatizadas, criminosos cosmopolitas, terroristas high-tech, distopias capitalistas. E toda uma ramificacao do que ficou co- nhecido como a ambientacao pés-Blade Runner: uma mistura de tecnologia, submundo e atrito socioldgico, que cobre de Ranxerox ¢ Frank Miller até Transmetropolitan e Alan Moore. E importante notar que Beresford, um autor que morreu jovem, visi- velmente procurave se filiar a um tipo de literatura que The era contem- APANSENTAGAO. Hn poranea, mas nac demonstrava esforco de filiacdo a qualquer tipo de FC estrangeira. Seu conto, assim como provavelmente seu romance perdido, Mme. Cosmépolis, parece mais proximo do que José Paulo Paes (1926-1998) charnou de “literatura art-nouveau’, que, em casos como os de Beresford e de Berilo Neves (1901-1974; autor de A costela de Addo, 1929; A mulher € 0 diabo, 1931; e Século XXI, 1934), demonstrou pelo menos uma familiari- dade superficial com temas, conceitos e termos técnicos da FC estrangeira da €poca. Parece ser um desses casos em que um autor tem familiaridade bastante com um género para pedir-lhe algo emprestado, mas nao se sente ligado a cle, nem o leva tao a sério, a ponto de sentirse obrigado a dar-lhe algo de sua propria criacao. A literatura brasileira dessa época produziu muitos contos assim: leves, frivolos, destinados antes de tudo 4 publica- ao em jornais, com uma malicia cheia de cumplicidades e piscadelas de olho para os leitores. Hoje, Beresford soa como um precursor de Fonseca, Fawcett e Assungio no uso de uma prosa fragmentada, de alta voltagem, com flashes visuais intensos, impessoalidade dos tipos (0 Exterminados, o sr. Concreto, o Unabomber) e acima de tudo 0 novo ethos da maquina urbana, cruel e predadora. A prosa estilhagada desses autores consiste mais numa justaposigao de fragmentos do que numa sucessao de enunciados narrativos e descritivos. Existe uma teoria segundo a qual os contetidos representados na FC sao de ordem tao surpreendente e improvavel que seria contraproducente repre- sentatos através ce uma prosa excessivamente moderna. Contetdos insdli- tos pedem uma pzosa transparente, para que sejam percebidos com maior impacto; contetidos familiares pedem uma prosa energizante para poderem produzir novos sentidos. As paisagens surrealistas de Salvador Dali nado renderiam da mesma forma se submetidas aos tracos desconstrutores de Picasso; ¢ o conto de FC se beneficia muitas vezes da parceria entre a fabula fantéstica e a narrativa convencional, a segunda deixando que todo o im- pacto estético e conceitual seja produzido pela primeira. Fazem parte dessa tendéncia, nesta antologia, os contos de André Carneiro, Ataide Tartari e Jerénymo Monteiro (1908-1970), que lembram episédios de seriados como Além da imaginagao ou Quinta dimensao, pela sua cuidadosa reconstituicao mimética de um ambiente banal, familiar (sendo Tartari e Monteiro em cenarios tipicamente paulistas) e pela inser¢4o gradual do fantastico nesse panorama de crérica urbana ou de memorialismo. 12. PhciNas Do FUTURO suisse ane saat uc saensnamnannnmnminnnnssont ee A guerra é 0 tema de duas das historias nao ambientadas no Brasil. Em Uma breve hist6ria da maquinidade, Fabio Fernandes faz um pastiche de crénica hist6rica descrevendo a gradual ascensao das maquinas ao poder, numa ambientagao steampunk, um subgénero que imagina um passado di- ferente para a Europa pés-Revolugoes Industriais, aproximadamente entre 1750 € 1900. Literariamente, essa Era do Vapor, que precedeu a Era da Ble- tricidade, foi também a era da ascensao do romance realista, do romance gotico e do folhetim seriado. © steampunk recebe material de todos esses afluentes, embora superficialmente parega ser apenas um museu de tecno- logia retro. Fabio Fernandes realiza na sua crénica a confluéncia de varias dessas linhas mest:as do género, reunindo autématos, Charles Darwin e Viktor Frankenstein, Se 9 conto de Fabio Fernandes ¢ saturado de informacao historica e de historia literdria, o de Luiz Bras ocorre num mundo desconhecido ¢ nur tempo fora dos gonzos. Evocando mais uma vez uma ambientagao de hist6- tias em quadrinhos, lembra um daqueles cenarios de batalhas de Moebius (pseud6nimo do quadrinista Jean Giraud), em que guerreiros nao identifi- cados combatem criaturas insdlitas € se referem o tempo todo a uma rea- lidade incalculavelmente mais complexa, da qual aquela batalha é apenas um sinal insignificante. “Déja vu” é uma experiéncia de fabulacao pura sem referencial externo. Sua estrutura em tempo reverso exige do leitor um es- forgo de concatenasao narrativa que intensifica a urgéncia e o teor delirante do combate. Os dois contos escritos por mulheres, apesar de muito diferentes entre si (em concepgao, em ponto de vista e em voz narrativa), compartilham 0 tema do confronto entre a tecnologia e 0 primitivismo, vencido pelo segun- do, seja essa urna vitéria de fato ou apenas moral. Nesses conflitos entre Givilizaghes dispares, a mais poderosa ¢ forcada a se render diante da sa- bedoria ou da esperteza da outra. Tanto a visto de mundo oriental quanto © romance picaresco rondam essas narrativas que celebram a “vitéria do pequeno contra 0 muito’, como dizia Carlos Drummond de Andrade. Seria muito reducionista ver nesses contos uma simples fabula consolatéria (as vit6rias na ficcéo compensando as derrotas na realidade); ha um feixe mais variado de processos em acao. 0 Ma-Hére do conto de Rachel de Queiroz (1910-2003) 6 uma versdo simpatica dos monstros de contos de A.E. van Nogt (1912-2000) como “Black Destroyer” e “Discord in Scarlet” {ambos de APRESENTAGAO 33 Lo 1939; 0 segundo texto teria servido de inspiracao para o filme Alien, o gitavo Ppassageiro). O conto vale, entre outras coisas, pelo modo como leva o leitor a se identificar com o alienigena, que parece ironizar a ferocidade bruta dos monstros norte-americanos. (Resta, é claro, a curiosidade: a autora conhece- ria os contos de Van Vogt?) J&o conto de Finisia Fideli se relaciona com a FC de cunho antropolégico praticada, por exemplo, por Ursula K. LeGuin em textos como “The Word for World is Forest’ (1976), uma EC mais sobre culturas, sobre mentalida- des coletivas, do que sobre individuos. 0 lento compasso de sua narrativa corresponde a transformagao gradual do protagonista em contato com o novo ambiente. A formacao do leitor de FC A literatura é uma forma individual de expressao, mas as escolhas indivi- duais de um autor {principalmente a mais crucial de todas: por que escrever um livro e nao outro entre os muitos que lhe sao possiveis) sempre se dao num contexto coletivo de estimulos e respostas. Escreve-se em parte para si mesmo, e em parte para reagir a um ambiente ideoldgico, ainda que seja para discordar dele e contradizé-lo, No caso dos escritores que pensam em estabelecer uma czrreira profissional (viver exclusivamente de literatura), esse senso de pertencer a uma coletividade é ainda mais nitido. Leitores tipicos de FC do mundo inteiro sao individuos que, durante a infancia ou a adolescéncia, entram em contato com traducdes da FC de Imgua inglesa e a assimilam ao mesmo tempo que a literatura de seu pais ea literatura em geral. © leitor de FC comega jovem, e a FC é uma de suas leituras formativas, se nao a principal. No Brasil, 6 frequente que a leitura de obras liter4rias brasileiras durante a infancia seja uma experiéncia ligada a escola e aos estudos obrigatérios. Ja a FC é uma leitura de lazer e entretenimento, feita por iniciativa do proprio jovem, muitas vezes em conjunto com outros leitores da mesma idade, Na tradicional dicotomia entre os dois tipos de aprendizado na juventude, a Escola ¢ a Rua, ndo ha diivida de que para o leitor brasileiro a FC pertence segunda experiéncia, pois nao é um tipo de literatura que receba sancao of- cial por parte do sistema de ensino e dos proprios professores. Essa sancao 14 PAGIVAS DO FUTURO talvez 56 vena a ocorrer um pouco mais tarde, com professores de fi biologia etc., que aconselham a leitura de livros de FC para o entendimento de alguns conceitos. Isso, porém, se da de uma maneira informal, pois os proprios professores sao leitores do género. Sao muito raros os casos de incentivo oficial 4 adogao de FC estrangeira como complemento curricular. Uma consequéncia é que a experiéncia literéria mainstream, veiculada através do colégio e da universidade, é vista muitas vezes como obrigatoria e macante; € que a experiéncia literéria da FC seja vista como excitante e livre, espontanea. Dessa maneira, um fosso se abriu entre as duas literaturas em nosso pais. Esse fosso separa, em seus extremos, um ambiente literdrio voltado para 0 mainstream e que nao tem qualquer familiaridade com a FC, e um ambien- te, situado principalmente no fandom brasileiro, a comunidade de fas desse género, com leitores ¢ autores de FC que nunca leram os grandes classicos da literatura brasileira, a nao ser nas poucas vezes obrigatorias. Isso faz com que no Brasil exista uma exacerbacao do fendmeno que vernos também nos paises de lingua inglesa em que a FC se consolidou: a disputa entre os tadicais do Estilo e os radicais do Enredo, entre a literatura como a arte de escrever bem nao importa 0 qué, ea literatura como a arte de contar uma boa histéria, nao importa como. O autor brasileiro de FC sente-se pressionado a ser fiel a duas tradigées li- terarias que em grande parte se ignoram ou se menosprezam. Por um lado, esse autor procura dialogar com os mestres da FC de lingua inglesa que cle leu em tradugao, na infancia e adolescéncia, e muitas vezes passou a ler no original em inglés, Por outro, ele sente a necessidade de dialogar também com a tradi¢4o literaria do Brasil, até porque nao lhe resta outra escolha, pois sua obra tera que ser veiculada neste idioma e neste mercado editorial, tera que ser comentada por estes criticos e apreciada por estes leitores. O jovem autor brasileiro de FC (o que tem entre 15 ¢ 30 anos) geralmen- te tem uma experiéncia de leitor construida a partir de livros traduzidos e de livros lidos em inglés. Tem um conhecimento amplo e variado sobre os temas da FC internacional, geralmente concentra sua leitura em um subgé- nero (digamos: fantasia heroica, ou cyberpunk, ou FC hard, ou os classicos da Golden Age etc.), mas procura se informar sobre as novas tendéncias e ler o mais que pode. No entanto, em muitos casos Ihe falta uma familiari- dade maior com o que sera inevitavelmente seu instrumento de trabalho: APRESENTAGRO 45 a Ifngna literaria brasileira, qne nao é a lingua brasileira que se usa nos jor- nais ou na comunicagao didria. Do ponto de vista da tematica ¢ necessario que 0 aspirante a escritor de FC tenha familiaridade com o género, para nao imaginar que é dele alguma brilhante ideia, como a de uma maquina que viaja no tempo ou de um robé que pensa que é um ser humano. Do ponto de vista do estilo, é necessario que ele tenha com a lingua brasileira uma relacao de intimidade e dominio, do contrario suas histérias correm risco de se assemelhar aquelas pinturas amadorfsticas em que o artista teve uma ideia original mas a execugao com os pincéis é a de um diletante de fim de semana. Essa apreciagao, é claro, reduz uma situac4o complexa e com muitas al- ternancias ao longo dos anos, e ndo 6 dificil encontrar numerosos exern- plos isolados que a contradigam. Isso nao invalida, acredito, este aspecto a FC brasileira nao pode abrir mao de um conhecimento da FC crucii internacional, sob 0 risco de deixar de ser FC, e nao pode abrir mao de um conhecimento equivalente da literatura do nosso pais, sob o risco de deixar de ser brasileira. O mercado editorial de FC Uma distingao importante a ser feita é que o mercado editorial brasileiro é muito diferente do norte-americano ou do europeu, o que dé 4 nossa pro- ducao de FC um cardter peculiar. Em primeiro lugar, é praticamente inexis- tente a figura do escritor profissional de FC, o que vive exclusivamente (ou mesmo principalmente) da venda de textos desse género. 0 Brasil é um pais de muitos autores e muitas editoras, mas de relativamente poucos leitores e tiragens muito reduzidas. Mais ainda do que no mercado de livros, é no mercado de contos que esté a diferenga entre os paises. No Brasil, o mer- cado que paga pela publicacao de contos (independentemente de género) & insignificante; um mercado desproporcional em relacao a0 ntimero de escritores, de titulos e até de leitores de literatura. Isso priva a FC brasileira de uma important'ssima antecémara existente na Europa e nos EUA: as revistas especializadas, em que os escritores tornam seu nome conhecido ¢ conseguem uma remuneracao capaz de fazé-los dar com seguranga 0 passo seguinte, que é tornar-se um escritor em tempo integral. Mesmo aqueles 16, PAGINAS DO FUTURO que por variadas razdes nao se interessam numa carreira exclusivamente literaria podem ter na literatura um complemento de renda a ser cultiva- do, ao lado de outra profissao, pela vida inteira. No caso do Brasil, mesmo a atividade literaria no mainstream geralmente é mantida como segunda carreira. No caso da FC, é uma segunda carreira nao remunerada, que mes- mo quando cercada de aparato profissional (grandes editoras, livros bem cuidados, resenhas na imprensa) nao tem como constituir uma profissao. Se nos EUA a maioria dos escritores de FC migra lentamente do semi- profissionalismo (a literatura em meio expediente, ou nos fins de semana) para a dedicagao exclusiva, no Brasil a migracao é do status de amador para o de semiprofissional e se encerra ai. Tudo isso, é claro, influencia as escolhas de um escritor, os temas que aborda, os enredos que imagina, 0 seu estilo, os seus personagens. Toda literatura é didlogo com outra lite- ratura circundante, e isso é ainda mais verdade na FC, que muito mais do que o mainstream é uma literatura circunscrita e comunitaria, que criou para si um universo de estimulos e respostas complexo, mas reduzido. O fandom envolve leitores, autores, editores, criticos, fanzineiros (agora blogueiros) ligados por uma rede de editozas, publicagées ¢ eventos, e, hoje em dia, de websites, comunidades da internet e redes sociais. Fend- menos semelhantes nao existem no mainstream, pelo menos nao com a intensidade e a disposicao militante que se vé no fandom de FC e géne- tos limftrofes (fantasia, terror etc.), A FC brasileira dos anos pré-1960 exclui por completo o fendmeno do fandom, que comegou a se articular de modo ainda incipiente na Primeira Onda (anos 1960) e se impés como fator determinante na Segunda Onda, com a formagao dos clubes e fanzi- nes na década de 1980 (Hiperespaco, Antares, Megalon, Clube de Leitores de Ficcao Cientifica - CLFC etc.}, O agrupamento de fas em torno de revistas ¢ clubes proporciona uma intensa troca de informacoes e de opiniées criticas, facilita o contato pessoal entre autores e leitores através de convencoes periédicas, concede prémios e outras distingdes. Acaba por se constituir num mercado editorial 4 parte, compensando a pequenez dos seus nimeros com a enorme visibilidade in- terna dos seus membros, embora, como tantas outras comunidades de inte- Tesses muito especificos, corra o perigo de perder a visio critica e se trans- formar num gueto voltado 4 adoracao fetichista de seus idolos, como ocorre com muitos fa-clubes do cinema e do rock. APRESENTAGAO 17 Do ponte de vista editorial, a FC brasileira vive nesta segunda década do século o seu melhor momento, com 0 surgimento ou a consolidagao de editoras, principalmente em Sao Paulo, como Devir, Aleph, Draco, Tarja, Ter racota, Giz — algumas especializadas em literatura de género (FC, fantasia, horror), outras com selos especificos para essa area, e todas com intensa divulgagao. A multiplicag4o de autores pode proporcionar a massa critica para que cresca entre nés uma EC que, por um lado, tenha algo de novo a dizer e a mostrar ao resto do mundo, e, por outzo, seja uma literatura que de fato imagine o Brasil. Dois livros essenciais para o estudo da FC produzida em nosso pats so Fic- edo cient{fica, fantasia e horror no Brasil - 1875 a 1950, de Roberto de Sousa Causo (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003) e Fiegdo cientifica brasileira: mitos culturais e necionalidade no pais do futuro, de M. Elizabeth Ginway (Sa0 Paulo: Devir, 2005) 18 PAGINAS DO FUTERO MA-HORE cg Para meu sobrinho Rogério Foi num dia de sol, daqui a muitos anos. Ma-Hére, o hominculo, meio es- condido atrés de um tufo de algas, espiava 0 navio espacial que boiava no mar tranquilo, como uma bala de prata. Em torno ao nariz da nave quatro gigantes se afadigavam, vaporizando soldas, rebatendo emendas, respiran- do com forga pelos aqua-lung que traziam as costas. Era a terceira daquelas naves que vinha pousar em Tali, para espanto e temor dos aborfgenes. Os homens da primeira haviam partido, logo depois de pousados, sem tentati- va de aproximagac. Os da segunda desembarcaram, fizeram gestos de ami- zade para os grupos de nativos que os espiavam de longe e, ao partir, dei- xaram presentes em terra ~ livros, instrumentos de ver ao longe, e outros, de utilidade ignorada. Esses presentes, todos de tamanho desproporcional & raga dos Zira-Nura, foram levados para o museu, arrastados como carcagas de bichos pré-histéricos. E agora, a terceira nave viera boiar Jonge, em mar despovoado, a conservar avarias. Por acaso Ma-Hire a descobrira, a relampejar toda prateada, ao sol. Ven- cendo 0 medo, nadou até mais perto: do lado esquerdo da nave ndo se via nenhum gigante, 6 uma imensa escotilha aberta, quase ao nivel das ondas. ‘Tremendo de excitagéo, Ma-Hére nadou mais, até poder tocar com a mao © corpo metélico do engenho: teria alguma defesa elétrica? Nao, nao tinha. A borda redonda da escotilha ficava alto, mas dava para alcan¢é-la com o brago erguido: igou-se até 1a, espiou dentro, nao viu ninguém. Era tentacao demais; Ma-Hére nao resistiu, ergueu mais 0 corpo na crista de uma mareta, escalou o que para ele era alto muro da escotilha e, num a salto rapido, ja estava no interior da nave desconhecida, a agua a lhe escor- rer do cabelo metélico pelo corpo liso. Tudo Id dentro era feito na escala dos gigantes; a cabine parecia imensa aos olhos do pequeno bumanoide, Mas ouvindo um ruido familiar, vindo de fora, ele correu a debrucar-se a escotilha: 14 embaixo, na agua, o golfinho da sua montaria erguia o focinho para o alto e silvava inquieto, a chamar 0 dono; Ma-Hére debrugou-se mais, estendeu o braco curto, fez-the festas na cabeca macica, depois o despediu com algumas palavras da sua branda lin- guagem aglutinante. © golfinho hesitou, mergulhou, emergiu ¢ afinal afas- tou-se, num nado vagaroso, a mergulhar e aflorar, e a virar-se constantemen- te para tras. Porém Ma-Hére nao esperou que ele sumisse, no seu intenso desejo de ver “aquilo” por dentro. Os enormes assentos estufados, as vigias de cristal grosso, 14 em cima; 0 painel de instrumentos que parecia tomar e encher toda a patede... De repente sentiu que parara o rufdo dos instru- mentos a operar no casco externo e escutou o trovejo das vozes dos gigantes que se aproximava Tomado de panico, o homtinculo ia fugir para a agua, quando viu surgir na boca da escotilha uma das cabecas avermelhadas, logo seguida das outras trés. Era tarde. Correu a se esconder sob um dos assentos; tremia de medo; que lhe fariam os astronautas gigantes se o apanhassem espionando a sua nave? Os homens pareciam exaustos, depois das longas horas passadas a re- mendar 0 casco avariado por um bélido. E, para aumentar o terror de Ma- -Hore, a primeira providéncia que tomaram foi rapidamente fechar as duas portas da escotilha. Logo puseram a funcionar a aparelhagem de ar-condi- cionado, restabelecendo o ambiente terrestre dentro da nave. Ma-Hore se encolhia todo, sempre acocorado sob 0 estofo da poltrona. Preso, estava preso com as estranhas criaturas de rosto réseo e cabelo descorado, uma das quais tinha uma erigada barba vermelha a lhe descer pelo pescoco. Jé nao se serviam mais dos aqua-lung. Que bicos estranhos! E quando falavam, com suas vozes asperas, os timpanos do homunculo retiniam. Passados alguns minutos, Ma-Hére, ainda escondido, comecou a sentir- -se mal. Dava-Ihe uma tontura, parecia que estava bébado, que tomara uma dose grande demais de male, a sua aguardente predileta, feita de amoras do mar... e quanto mais 0 ambiente se oxigenava, mais o pequeno visitante sen- tia a sua ebriedade se agravar. Agora o atacava uma irresistivel vontade de rir, uma alegria irresponsavel. Perdeu o medo dos gigantes, p6s-se a cantar; 22 Péctnas Do FuruRO e afinal, roubado de tode controle, sain do esconderijo, rebentando de riso, rodopiando pelo tapete, a agitar os bragos, danga que lembrava a dos pe- quenos diabos verdes que atormentam os Zira-Nura nas horas do furacéo. © ruido insélito despertou os astronautas do seu torpor de fadiga, Cui- daram primeiro que era 0 alto-falante, com alguma transmissao extempo- ranea. Mas deram com os olhos no pequeno humanoide, a dangar e a rit, sacudindo a juba negra. Mitia, o cacula dos tripulantes e ainda um pouco criangola, disparou também numa gargalhada, contagiado, e tentou colher do tapete o anao intruso, Porém Ma-Hére conseguiu fugir da mao enorme, que evidentemente receava machucé-lo, e continuou dangando ¢ gargalhando. O navegador, Viruboy, ajoelhou-se no chao para o ver de mais perto: ~ Nao disse que esses aborigenes eram anfibios, comandante? Olhe os pés de patot Mitia observou: ~ E como é pequenino! Sera uma crianca? Os outros também vieram se ajoelhar em torno, a contemplar 0 visitante que prosseguia no seu insano sapateado. De estatura nao teria dois palinos. Os pés nus, de dedos interligados por membranas, os bragos curtos seme: Ihantes a nadadeiras, terminados por mos de quatro dedos, os cabelos que brilhavam num ardor metélico, como pelo de lontra, confirmavam a sua condigao de anfibio. A pele do corpo era de um grao mais grosso que a dos homens, lisa e cor de marfim. Os olhos enviesados, de cor indefinida, a boca larga, o nariz curto, pequenas orelhas redondas que a juba quase escondia, ~ Nao, 6 pequeno, mas evidentemente se trata de um adulto ~ observou 0 comandante. — Que é que ele tem? Sera louco? O copiloto, que também era o médico da equipe, entendera o fendmeno: ~ Nao, ele esté bébado com o nosso ar. Como a atmosfera deles é muito rarefeita, a nossa Ihes faz 0 efeito de um gas hilariante. Vamos dar um jeito, sendo ele morre intoxicado. Mitia teve uma ideia: abriu a porta externa da escotilha, fechou a inter- na, até que a pequena camara entre as duas se enchesse da atmosfera do planeta a que os terrestres davam o namero de série W-65. Depois Mitia fechou a porta externa e carregou © hominculo, j4 meio desmaiado, para o compartimento es:anque que se enchera com seu ar natural. Ma-Hore res- pirou fundo, como um quase afogado posto em terra; rapidamente se refez. Dentro em pouco jé sentava, olhava em torno, ¢ logo correu a porta externa: Ma-nORE, 23 mas nem sequer alcancava a roda metélica que manobrava a escotilha. Pelo vidro que os separava da camara de entrada, os tripulantes espiavam o seu clandestino. O comandante gostaria de levar para a Terra ~ mas, além de ser impossivel manté1o todo o tempo ali, que fariam se esgotasse a provisao de ar apanhada em W-65? Akim Ilitch, o médico, se propés entao a fabricar um pequeno aque-lung para o héspede. E quanto ao ar ~ a segunda expedicao que estivera ali levara uma amostra da a:mosfera de W-65; eles tinham a formula, Seria facil pre- parar uma dosagem idéntica, encher 0 baléo do aqua-lung... Ma-Hore, ante a impossibilidade de fugir, encostava ao vidro divisorio 0 seu rosto suiplice, fazia gestos implorativos, articulava pedidos que ninguém podia escutar. Mitia pegou num papel, desenhou a figura de um homunculo com um aqua-lung as costas ¢ 0 mostrou ao visitante, através da vidraga; em seguida apontou para Akim Ilitch, que j adaptava um pedaco de tubo plastico a um pequeno balao metalico, e depois o foi encher nas torneiras de ar-con- dicionado, regulando cuidadosamente as dosagens, com o olho na agulha dos dials. Ma-Hére pareceu compreender ~ e mostrou-se mais calmo. Com pouco, Akim Hitch abriu a porta e lhe ajustou as costas e ao nariz o impro- visado aparelho respiratorio. O homenzinho imediatamente lhe percebeu a utilidade e em breve circulava pela nave, amigavel, curioso; por fim tirou do bolso do seu traje de pele de peixe um toco de grafite e puxou de sobre a mesa do navegador uma folha de papel. Mostrava para o desenho mais habilidade que Mitia ¢, com tracos répidos, desenhou a nave, a escotilha aberta; sobre essa escotilha desenhou-se a si mesmo, na atitude classica do mergulhador, a pular para a agua la embaixo. Pedia para ir embora, é claro. Mas 0 comandante, fazendo que nao entendia a stiplica desenhada de Ma-Hore, deu algumas ordens r4pidas aos tripulantes. Cada um ocupou seu posto; antes porém instalaram o pequeno héspede que esperneava, recal- citrante, num assento improvisado com algumas almofadas. Sobre elas 0 ataram, embora Mitia, para tranquilizar um pouco 0 apavorado Ma-Hore, lhe demonstrasse que eles também se prendiam com cinto dos assentos — que a medida era de seguranca, nao de violéncia. Dando provas da compre- ensao rapida que ja mostrara antes, o Zira-Nura conformowse, Ademais, 0 estrondo da partida, a terrivel aceleragao, o puseram a nocaute. Quando vol- tou a si, viu que a nave marchava serena como um astro e que Akim Tlitch 24 riatvas D0 FUruRo. Fe - ‘Lo Ihe ajeitava, solicito, o conduto de ar do aqua-lung. Verificou também que estava solto. Em redor, os outros lhe sorriam. E 0 comandante, segurando- -o pelo pescoco, como a um cachorrinho, polo de pé sobre a mesa e The apontou para 0 vigia: no vasto cé6u escuro, um globo luminoso parecia fugir yelozmente. 0 comandanie apontou para o globo, falou algumas palavras e desenhou uns simbolos no papel. Escrevera a sigla W-65, e Ma-Hére, em- bora nao pudesse ler aquilo, tinha entendido. Porque, voltando-se para 0 astronauta, com um ar de profunda magoa, perguntou num murmirio: ~ Tali? Qs outros é que nao o entenderam e o fixaram, interrogativos. Ai Ma- -Hore puxou o seu bastao de grafite e riscou nuns poucos tragos uma paisa- gem de mar e terra, povoada de homunculos & sua imagem. Mostrowa aos outros repetindo “Taldi”, Depois apontava o globe luminoso: ~ Taldi? O comandante entendeu que aquele era o nome nativo de W-65. E grave- mente concordou: ~ Sim, é Taléi. A sorte, pensavam: os astronautas, € que 0 seu pequeno cativo tinha 0 cora- 0 ligeiro ou filos6fico. Porque depressa aceitou o irrepardvel e tratou de adaptarse, Auxiliado pelos desenhos, com rapidez adquiriu um bom voca- bulério na lingua dos humans. Tinha a inteligéncia avida de um adolescen- te bem dotado. A sua simpatia, o seu humor tranquilo, também ajudavam. ‘A viagem era longa e, pasado um més, ele ja falava e entendia tudo, e tra- vava com 0s tripulantes compridas conversas. Ouvia coisas da Terra, com um ar maravilhado ~ as grandes cidades, as fabricas, as viagens espaciais, as fabulosas facanhas da técnica. E também contava coisas da sua gente que, na gua, elemento dominante em nove décimos do pequeno planeta, passa- vam grande parte da sua vida. Fazia desenhos representando as aldeias com as suas casas de teto cénico, destinadas a pro:egé-los principalmente do sol, que os maltratava muito. ‘Aki Tlitch quis saber se eles nao faziam uso do fogo, pai de toda civiliza- cao humana na Terra. Nao, Ma-Hore explicou: a sua natureza anfibia temia e detestava o fogo; talvez por isso os Zira-Nura, embora tao inteligentes, MA-HORE, 25 nao se houvessem adiantado muito em civilizagio. Além do mais, 0 pouco oxigénio que tinam na atmosfera nao facilitaria a igni¢&o, sugeriu Viruboy, o navegador. Mas j4 haviamn descoberto a eletricidade e os metais que desprendem energia, como 0 radio, e j4 usavam imperfeitamente. Como viviam em pe- quenas tribos e nao se interessavam por disputas de territorio ~ 0 mar, fonte das matérias-primas, chegava para todos -, no se aplicavam a inventar ar- mas de guerra; possuiam apenas armas de caca e defesa destinadas a livré- Jos das feras aquéticas - cetaceos, peixes e moluscos. Falavam uma lingua harmoniosa que, aos ouvidos dos homens, lembrava o japonés. Cultivavam: as artes eseritas, p:incipalmente a poesia, imprimindo livros com ideogra- mas da sua escrita - que Ma-Hére reproduzia; usavam como papel folhas de papiro de campos submarinos. Gostavam de pintar, de esculpir, de cantar; e Ma-Hore, depois de escutar com respeito da boca dos homens (que ainda nao tinham perdido a mania da propaganda) a historia da sobrevivéncia e da civilizacao, explicava, como se pedisse desculpas, que dadas as facilida- des das suas condigdes de vida, os Zira-Nura tinham caminhado mais no sentido da arte que da técnica... O nome Zira-Nura queria dizer senhores da terra e do mar. Para justificar, domesticavam alguns animais ~ uma espécie de lontra mindscula que thes fazia as vezes de cao, e algumas aves para consumo doméstico. No mar, domesticavam uma variedade de golfinho que Ihes servia de montaria, gado leiteiro e produtor de carne. No mais, eram. monégamos, politeistas, democratas, discursadores, com uma elevada no- ao do préprio ego: e 0 comandante os definiu numa palavra ‘nica: ~ Uns gregos. Ao que a tripulacao assentiu, no velho habito da unanimidade: sim, uns gregos. A etapa seguince na “educagao” de Ma-Hére notabilizou-se pelo seu in- tenso interesse pelo trabalho dos astronautas e pela rotina de bordo, espe- cialmente pelo funcionamento e trato dos aparelhos de ar-condicionado, aos cuidados do seu predileto, Akim Ilitch. Logo assimilou 0 mecanismo delicade das dosagens, 0 manejo dos compressores. Pouco a pouco Akim Hitch, divertido, j4 0 deixava renovar sozinho a carga do balao do seu peque- no aqua-lung, cujo uso Ma-Hére nao podia dispensar. Para a noite, porém {ou antes, no intervalo dedicade ao sono, pois ali nao havia dia nem noite), Mitia e 0 médico haviam transformado um pequeno arméario embutido a 26 PACINAS DO FUTURO parede em camara estanque, chcio do ar adequado, onde o homenzinho dormia. Por iniciativa propria Ma-Hore tomou a si 0 cuidado dos tanques hidropdnicos, onde se fazia cultura de algas para purificagao do ar e pro- dugao de alimentos frescos. Nessa hora, gostava de mergulhar longamente © rosto na égua, fazendo funcionar as pequenas branquias ressequidas. E também se ocupava com varios outros pequenos servicgos dentro da nave, amavel e diligente. No tédio da longa travessia os homens tomavam gosto pela instrugao daquele aprendiz tao solicito. E ele, depois que o mecanismo da aeragao nao Ihe escondia mais nenhum segredo, dedicou-se & navegacao. Ficava longas horas ao lado de Virubov enquanto o navegador anotava mapas ¢ conferia célculos, Mas nao entendia nada, queixava-se, ¢ Virubov 0 consolava dizen- do que ele carecia do indispensavel preparo matematico. Ma-Hére porém insistia em saber: era mesmo dali que dependia a orientacao da nave, o seu rumo para a distante Terra? E tal era o seu empenho em compreender, que certo dia 0 comandante o pegou pela mao e 0 levou ao santo dos santos: 0 cérebro eletronice da nave. Explicou que seria impossivel orientar a rota nas distancias do infinito como quem dirige uma simples maquina voadora. O menor erro de calculo daria um desvio de milhdes de quilémetros. 56 0 cérebro poderia pilotar a nave: naquela fita de papel perfurado Ihe eram fornecidos os dados, e 0 maravilhoso engenho eletrénico controlava tudo até a chegada. Daquela hora em diante, Ma-Hére se declarou o escravo do cérebro. Lim- pava-o, polia os metais expostos, estava sempre presente e atento quando 0 comandante vinha fazer 0 seu controle diario. Os companheiros diziam rin- do que quando chegassem a Terra Ihe dariam um cérebro eletronico como esposa. Ma-Hére sorria também, mas com um estranho brilho nos olhos enviesados. eee ‘A viagem se alongava, infindavel, Era tudo tao sereno, dentro da nave, que a disciplina relaxara e ninguém dormia mais em turnos alterados de repouso, de dois em dois. Todos dormiam a “noite”, e de “dia” faziam refeigdes regula- res, almoco, jantar e ceia, numa agradavel rotina doméstica. Naquela “noite” Tepousavam todos, pois, quando Ma-Hére, com seu aqua-lung posto, abriu Ma-HORE 27 sutilmente a porta da cabine condicionada. Visitou os tripulantes nos seus beliches: dormiam, sim. Dirigiu-se em seguida ao aparelho condicionador do ar e mudou a posicao dos botdes de dosagem. Em breve um cheiro forte encheu a nave ¢ Ma-Hore voltou a sua cabina, onde esperou uma hora. Pés de novo o aqua-lung e saiu. De um em um tateou o pulso dos astronautas: nao batiam mais. Por seguranca, Ma-Hére esperou mais uma meia hora ¢ fez segundo exame: os homens estavam mortos, bem mortos. Com gestos seguros, ele abriu uma vélvula ¢ deixou que se escapasse para fora o ar envenenado; findo o qué, regulou o preparo de um ar novo ~ 0 bom, o doce ar de Taléi. Liberto do aqua-lung, respirou forte e fundo, com um sorriso feliz. Cantarolando, dirigiu-se ao cérebro eletrénico: e repetiu, como num rito, as complicadas manobras que o comandante the ensinara para o deter, Co- piou numa fita nove, cuidadosamente invertidos, os dados com que 0 cére- bro fora alimentado de W-65 até aquele ponto. Pés a fita na fenda, apertou 0s botdes ~ fiel ao que aprendera do pobre comandante, agora ali tio morto, com 0 rosto esfogueado pela barba ruiva. E afinal foi espiar pela vigia, para ver se o céu mudara na marcha de re- gresso para a terra dos Zira-Nura. Primeira publicagao Dérea, Gumercindo Rocha (org.). Historias do aconteceré. Rio de Janeiro: Edigdes GRD, 1961 28 PAGINAS DO FUTURO. VEJA SEU FUTURO a Eu descobri essa maquina do tempo quando tinha 17 anos. Fla ficava den- tro de uma loja de material fotografico na rua Conselheiro Crispiniano, lé no centro de Sao Paulo. Na época eu estava comecando a me interessar por fotografia, indo a workshops sobre essa arte e frequentando essa que era considerada a rua dos fotégrafos. O estabelecimento em questao era numa sobreloja. Do lado esquerdo ficavam as méquinas fotogréficas, os acessérios ¢ outros equipamentos; do lado direito, um salao amplo que servia como galeria. E, no fundo desse salto, a maquina. Eu achei estranho a placa dizendo, em letras garrafais: Veja Seu FuruRO! 0 que é isso?, eu pensei. Uma cartomante em uma loja de fotografia? Embaixo da placa havia uma cortina negra, como num teatrinho de ma- rionetes. De repente, ouvi um ruido parecido com o de uma enceradeira. Dei um passo para tras quando percebi que a cortina estava se abrindo. Uma senhora saiu chorando, procurando pelo lengo. Ela olhou para mim e seguit em frente enquanto exclamava: ~ Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Ento o senhor saiu da parte de tras da m4quina. Ele parecia mais um cientista maluco que um cartomante. Usava um colete de fotégrafo e um par de éculos parecidos com aqueles usados por soldadores, Ele tirou os éculos e olhou para mim. ~ Quer ver seu futuro, garoto? ~ Por que aquela mulher saiu chorando? ~ Acho que 0 futuro dela é meio tragico ~ ele respondeu. ~ Mas pelo me- nos agora ela pode fazer algo a respeito. ~ Como assim? 31 — Bom, se vocé ficar sabendo que uma tua é sem. safda, vocé nao entra nela, né? Eu dei de ombros. ~ Entdo, quer dar urna olhada no seu? ~ ele insistiu. ~ Quanto é? — Cinquenta. ~Hummm, acho que vou deixar para outro dia... Ele riu. ~ TA legal. Fago por vinte. — O patrdo nao vei reclamar? Ele alargou o sortiso. ~ Amadeu sou eu. A propésito: a loja se chamava Foto Amadeu. Quando olhei dentro da maquina, achei que era uma brincadeira de crianga: aquilo nao passava de uma ducha circular! — Que é isso, seu Amadeu? O senhor vai me dar um banho de ducha ge- lada? ~ eu reclamei rindo. ~ Nao, nao se preocupe. Nao sai 4gua, nao ~ ele disse. ~ Eu comprei uma ducha por causa do formato. Eu precisava de uma estrutura metélica assim, com anéis, para gerar 0 vortice ~ ele acrescentou, como se aquilo fizesse algum sentido para mim. Eu me posicionei dentro da ducha ~ Pronto, e agora? — Relaxa. — Ele fechou a cortina. - Se tiver um pouco de tontura, pode segurar no cano, nao tem problema. ‘Alguns segundos depois o ruido comecou. Eu continuava olhando para a frente, para a cortina. De repente 0 mundo comecou a rodar, como se eu estivesse bébado. Eu me agarrei num dos canos. Agora era mais que uma bebedeira: 0 mundo girava tanto que eu nao via mais nada, pensei que ia desmaiar. E foi como se eu estivesse desmaiado mesmo. No auge da tontura, eu tinha fechado os olhos, mas, quando a tontura passou, eu os abrie me vi em outro lugar. Estava sentado em frente a uma mesa, olhando para Cari- na, minha namorada. Mas ndo era exatamente a Carina que eu conhecia; ela estava envelhecida, com os cabelos mais curtos ¢ pintados de outra cor. E entao, de repente, eu soube de tudo, Foi como um download instantaneo de mais de vinte anos de memoria. A Carina tinha quarenta anos, assim como 32, PAciNAs po FUTURC eu; nés tinhamos um casal de filhos e estévamos ali brigando por sua custé- dia, entre outras coisas, Estévamos na audiéncia do nosso divércio litigioso. ~ $6 trinta por cento do salario dele? — ela estava dizendo, quase berran- do, olhando para 0 advogado ao lado dela. - £ a minha juventude perdida, isso nao vale nada? Eu também estava nervoso e nao deixei sua reclamac4o sem resposta: ~ Ah! Quem tem que ser indenizado pela juventude perdida sou eu! Voce fez de tudo para antecipar 0 nosso casamento, nao fez? — Quem nao treuxe camisinha foi vocé, meu bem. Antes que eu pulasse em cima da mesa e agarrasse 0 pescoco da Carina, o mundo comecou a rodar, rodar, rodar ~ até que eu me vi novamente em pé naquela ducha circular. — Vocé nao vai chorar, vai? - disse seu Amadeu, me olhando com um. sorriso sarcastico. ~ Nao, eu s6 fiquei urn pouco nervoso. Enquanto eu [he entregava os vinte combinados, ele disse: ~ Se vocé nao gostou do que viu, espero que saiba o que fazer para que isso nao acontega de verdade. Agora foi a minha vez de exibir um sorriso sarcastico ao responder: ~ Ab, eu sei, sim! Pode deixar. No fitn de semana seguinte, eu terminei meu namoro com a Carina. Pode chamar de pé na bunda preventivo, se quiser, exe Qs anos que se seguiram foram os melhores da minha vida, e eu nunca deixei de dar crédito aquela maquina do tempo por isso. Namorei meninas mais bonitas que a Carina e me diverti muito mais com a minha turma de amigos livres e desimpedidos. Mas agora, aos 22 anos, eu senti que precisa- va da maquina do seu Amadeu para tomar outra decisao sobre meu futuro. Eu estava no ultimo ano da faculdade e trabalhando como estagiario em uma das maiores empresas de auditoria do mercado. Tinha certeza de que aquilo me garantiria umn futuro promissor, mas ao mesmo tempo estava odiando o tipo de trabalho que fazia. Voltei a loja, que pouco tinha mudado, e encontrei a maquina em sua cortina preta no mesmo canto do salao. A diferenga é que nao havia mais ‘veja sav FUTURO 33 nenbuma placa sobre ela. O Veja seu Furuno! tinha sido retirado. Fui no balcao ¢ perguntei: - A maquina do tempo ainda funciona? O home sorriu e perguntou: = Aquilo? ~E. ~ Acho que sim, mas quase todas as pessoas que entraram nela saitam reclamando muito, entao eu tirei a placa ~ ele disse. ~ Voeé j4 entrou nela? ~ Ha alguns anos. — Vou chamar meu pai. £ s6 ele que mexe com aquilo. Seu Amadeu finalmente apareceu, vindo do fundo da loja. Seus cabelos estavam mais brancos do que eu lembrava. Eu apertei sua mao e disse: ~ Eu gostaria de fazer outra... como se diz? Viagem? Consulta? ~- Foto. Foto do futuro - ele respondeu. - Afinal, estamos numa loja de fotografia. ~ Seu filho me disse que sua maquina gerou muitas reclamagoes. ~ Pois 6. ~ Fle suspirou. - Descobri que as pessoas na verdade nao que- rem saber sobre seu futuro; o que elas querem é alimentar suas ilusbes sobre ele, E por isso que cartomantes fazem sucesso. Entrei na maquina enquanto seu Amadeu punha seus éculos de solda- dor. 0 ruido familiar comecou e, alguns segundos depois, eu me vi sozinho num quarto de hotel. Com o download da meméria, soube que estava ali a trabalho, num hotel de aeroporto, num pais do Oriente. Era tarde da noite eeu trabalhava no meu laptop, pois tinha um relatério a entregar logo pela manha. Eu me sentia pressionado, e a pressao vinha de todos os lados: do patrdo, do cliente ¢, acima de tudo, do meu desejo reprimido de dar o fora dali, jogar tudo pre alto, gritar foda-se! e voltar para casa. Era verao no Bra- sil, minha familia e meus amigos estavam na praia, e era com eles que eu queria estar. A angistia que eu sentia era enorme, desesperadora. Comecei a suar, meu cora¢do palpitava, minha respiracdo era ofegante. De repente, senti uma dor muito forte no peito, a visdo parecia escurecer eo mundo comecou a rodar... Voltei 4 loja do seu Amadeu antes que eu pudesse saber se estava mes- mo tendo um infarto. Talvez fosse apenas uma gastrite. De qualquer modo, 34 PAGINAS 00 FUTURO desci da maquina massageando o peito e determinado a evitar 0 risco de ter um infarto aos cinquenta anos. Meu pai ficou doido quando eu lhe disse que tinha pedido demissao da- quela empresa de auditoria. Passei os anos seguintes pulando de emprego em emprego, todos sem futuro. Quando fiz trinta anos, porém, surgiu a oportunidade de adquirir um servico de assisténcia técnica autorizada. Jun- tei as economias que tinha, peguei uma grana com meu pai, fiz um finan- ciamento no banco e mergulhei de cabega nesse negocio. Eu estava feliz como empresario, mas mesmo assim ~ ou talvez por causa disso ~, achei que deveria conferir meu novo futuro naquela maquina. Vol- tei a loja, mas nao encontrei seu Amadeu. Seu filho me disse que ele estava em casa, doente. ~ Mas vocé nao sabe operar a maquina? ~ eu insisti. ~ Saber, eu sei ~ ele respondeu. ~ Acontece que ela ja nao faz mais parte dos servicos desta loja. Eu estiquei 0 pescogo e olhei para o fundo do saléo. Realmente a maqui- na ja nao estava no lugar de costume. ~-£, ela foi removida ~ ele confirmou e, com o polegar, apontou para suas costas. ~ Esta no nosso depésito. Eu suspirei antes de fazer minha proposta: ~ Me diz seu prego. Eu estou disposto a pagar bem por uma foto com ela. Ele concordou com a cabeca antes de suspirar e dizer: ~ Espero que cla ainda funcione... A maquina estava coberta com uma lona, que foi retirada. Ele passou um espanador para tirar um pouco do pé e depois a ligou numa tomada, Algumas luzinhas de um painel traseiro se ascenderarn. Ela parecia ter res- suscitado. ~ Humm, parece que t4 OK. Eu me posicionei no centro da ducha e fiquei esperando pelo ruido. De- ele disse. ~ Vamos tentar? morou mais do que eu lembrava, mas depois a coisa engrenou, o mundo comegou a rodar. Dessa vez eu me vi em um consultério sombrio, sentado em uma ca- deira de plastico, sendo encarado por uma jovem. psiquiatra com pinta de veya Seu FUTURO 35 recém-formada. Eu tinha setenta anos ¢ estava falido. Sobrevivia com uma aposentadoria miseravel e morava de favor no quarto de empregada do apartamento da minha filha. Olhei para o meu relégio de pulso. Nao sabia quantos segundos tinham passado, mas eu j4 astava louco para voltar ao presente tomar as providén- cias necessarias. Teria de vender meu negécio antes que ele comecasse a dar prejuizo ¢ eu afundasse nas dividas. Agora seria bem facil planejar essa decisao, j4 que eu sabia exatamente em que ano 0 servico de assisténcia técnica deixaria de ser lucrativo. Olhei de novo para o relogio algo estava errado: 0 mundo jé deveria ter comecade a rodar. ~O senhor nao vai dizer qual é 0 seu problema? Eu levantei a cahega. ~ E entao? ~ ela insistiu. - Por que o senhor marcou esta consulta? ~ Foi minha filha que marcou para mim. Sinceramente nao sei o motivo. Voltei a olhar o relogio. Outro minuto tinha se passado. O que estava acon- tecendo, afinal? Sera que a maquina tinha quebrado? Qu teria sido culpa do Amadeuzinho, que no sabia operé-la? ~O senhor sofre de claustrofobia? — perguntou a doutora. ~ Nao ha moti- vo para o senhor ficar nervoso. Procure relaxar. Respire fundo. ~ Nao, nao é claustrofobia. ~ Eu respirei fundo, como ela disse. ~ $6 fiquei um pouco ansioso. ~ Com 0 qué? ~ Seria dificil explicar... Ela sorriu. ~ Tentel — Bom... ~ Vamos, mundo! Comece a rodar e me livre deste constrangi- mentol, eu pensei enquanto buscava palavras que pudessem fazer sentido aos ouvidos da doutora. - Eu nao sou este velho que vocé est vendo; tenho trinta anos e estou dentro de uma simulagao do meu futuro. ~ Sei... E quanto a mim? Eu nao existo? ~ Claro que existe! Dentro desta simulagao, vocé existe. ~ Sei... ~ Bom, talvez ela seja mesmo uma maquina do tempo e eu esteja mesmo no futuro real ~ eu disse, pensando em voz alta. ~ Sei... Faz tempo que o senhor tem essa sensagao de ser outra pessoa? 36. rhcmas 00 uruno ~ Nao, nao foi isso o que eu quis dizer... ~ Eu sei, eu sei: 0 senhhor esta convicto do que disse. Isso é assim mesmo, nao se preocupe ~ ela disse enquanto pegava o bloquinho de receitas. ~ Eu vou lhe receitar esse remédio, que 0 senhor deve tomar todos os dias antes do café da manha. Se essa sensagéio nao passar, pode voltar aqui que eu lhe dou outra coisa. Eu peguei a receita e fingi léla, sem saber 0 que dizer. ~ Por favor, senhor ~ disse a doutora, apontando para a porta. - Isto éum hospital pablico, Tem uma fila enorme ali fora. Eu levantei e saf em siléncio, e o mundo nunca mais rodou. Primeira publicagao Oliveira, Nelson de. Portal Fundagéo. $40 Paulo: edicdo independente, 2009. VaA SH FUTURO. 37 Ce recehe lentes que The ca pen Ld Ed das O FIM DO MUNDO m Estava reservada ao Martinho a triste obrigacao de escrever a ltigubre histd- tia do cataclismo por que passou a cidade do Rio de Janeiro, e por que muito provavelmente ha de ter passado 0 mundo inteiro no fatal dia 13 de junho. Eu sou 0 novo Noé que’ sobreviveu ao novo dilivio! E sou ao mesmo tempo 0 Moisés do século das luzes que deve referir 0 infausto caso do fim do mundo no ano de 1857. Nao fui daqueles estouvados incrédulos que zombaram da profecia do cénego de Liége; tive sempre a maior veneragao pelos cénegos, e nao havia de ser em uma questao de cometa que o Martinho duvidasse da palavra de um cénego. Também nao me contei no namero dos terroristas e dos aterrados, que, esperando pelo fim do mundo no dia 13 de junho, nao pensaram em escapar ao diltivio, e resolveram-se a morrer iméveis e caladinhos como carneiros. A ideia de acabar como capao, peru ou leitoa em dia de banquete me re- voltava deveras. “Quéi’, disse eu a mim mesmo, conversando com os méus botoes. “Qué! O Martinho, que tinha direito a considerar-se imortalizado pela fama, ha de assim sem mais nem menos perder a sua imortalidade, reduzido a torresmo pelo fogo da cauda de um cometa?” Dizem que a diligéncta ¢ mae da boa ventura: a industria humana pode vencer quase o impossivel: pus-me a refletir, a imaginar, a combinar; gastei nisso mais tempo do que qualquer dos meus colegas em estudar a sua parte num drama novo, e por fim de contas dei um pulo, bati palmas, exclamei como Arquimedes: “Eureka!” 39

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