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Wacauart HABITUS COMO ASSUNTO E FERRAMENTA: reflexdes sobre tornar-se um boxeador: Loic Wacquant Resumo © presente artigo expe mais detalhadamente como me ‘engajel no uso do método etnogréfico e como entrel ‘acidentalmente numa academia de boxe de Chicago, que tornou-se palco e ator central do meu estude de campo sobre lutadores no gueta negro americano, levando ac lancamento, do livro Corpo @ Alma que buscou tanto utilizar metodologicaente quanto elaborar empiricamente 0 conceito de Habitus, central na obra de Pierre Bourdieu. Habitus como ‘objeto de investigacdo: o lvro detalha culdadosamente a ‘geracio das cisposicdes corporais e mentais que definem o Dugllsta competente no cerne da academia, O habitus pode também ser considerado ferramenta de investigacio: aquisigao prética daquelas mesmas dispasig6es por parte do ‘analista servem como técnica para melhor penetrar nos seus Drocessos de construcao social e montagem. O aprencizado or parte do saclélogo ¢ um espelho metodoiégico daquilo ue 0s sujeitos empiricas do estudo tem que pasar no seu Drocesso de aprendizado, O seciélogo é levado a se aprofuncar na compreensio daquila que acontece com 0 Sujelto nesse processo, trazendo & tona sua logica interna propriedades Subterraneas, tornando assim possivel que ‘sejam testadas tanto 2 robusteza quanto @ fecundidade co habitus como guia para a investigacdo das fontes da conduta social. Quando utilzado apropriadamente, o habitus no ‘apenas ilumina as légicas variadas da agéo social mas também fundamenta as virtudes distintivas da imerséo profunda e do engajamento carnal com o objeto da investigacdo etnografica, Palavras-chave Apredizagem. Sociologia carnal. Etnografla. Habitus. Aco Social. Ssubjetvidade. Teoria, ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 18 15092016 Wacauart ‘Ausina coletiva de esquemes pugilisticos no Woodlawn Boys ‘lub de Chicago, Neste artigo, eu expentio mais detalhadamente como me ‘engajel no uso do método etnogréfico e como entrel ‘acidentalmente numa academia de boxe em Chicago, que tornou-se palco e personagem central da minha etnografia Sobre lutadares no gueto negro americano, levando, assim, 20 lancamento do livre Corpo @ Alma que demonstra através de deus resultados tanto a utlizacgo metodolégica, quanto a elaboragio empirica de conceite de habitus, central na obra de Pierre Bourdieu (Wacquant 2004a), Busco também ‘explicitar algumas das conexées biogréficas, intelectuais & analticas entre esse projeto de pesquisa sobre um oficio ‘corporal plebeu, 0 contexto teérico que o informa e a Investigacdo macro-comparativa sobre a merginalidade urbana ¢a qual ele é ume ramificacdo inesperada, Irel ‘esbogar como os aspectos préticos do trabalho de campo me levaram do guete como instrumento da dominaco etno racial 2 Incorporago como problema ¢ ferramenta para a Investigacdo social. Através da reflexdo sobre como tornel-me ‘um lutador, defendo trés pontos essenciais: 0 uso do trabalho de campo como instrumento de construgse teérlca; ' poténcia do conhecimento carnal; ¢ o imperative da reflexividade epistémica, Também chamo atengo para a necessidade de expandir os géneros textuals e estilos de ntpuhwew.rovsta. pe brrevsocioindex pprovstatprinterrendly 38/29 ssoa018 Wacauart etnografia para, dessa maneira, ser possivel capturar 0 ‘Sturm und Drang (ternpestade e impeto) da ago social ¢a forma como é manufaturada e vivenciada cotidianamente. © conceito de habitus funcionou 26 mesmo tempo come Ancora, compasso e curso da jornada etnografica descrita em Corpo e Alma. Ele & objeto de investigacéo: o liv detalha a cconstrucio das disposicdes corpéreas e mentais que definem © boxeador competente no cerne da academia; mas ele também é ferramenta de investigag8o: a aquisi¢do prética ddessas disposicdes pelo analista serve como técnica para melhor adentrar seus processos de construgéo sociale montagem. Em outras palavres, o aprencizado do sociélogo & um esnelho metodolégico do aprendizado ao qual os sujeitos ‘empiricos foram também submetidos. 0 pesquisador é levado ‘assim a aprofundar-se nesse processo, desenterrando @ loglea interna e as propriedades subitineas desse aprendizado, para que ambos, pesquisador e pesquisado, possam, dessa forma, testar a rebustez e fecundidade do habitus como guia para a investigacéo do surgimento das ‘condutas socials. Contréria a uma erenga comum de que 2 habitus € ume nocdo vaga que reproduz mecanicamente as cestruturas sociis, apaga 2 histéria © opera como uma ‘caixa preta’ que impede a observacio e confunde a explicacao (ver Jenkins 1991 para uma reguritagio padre dessas porearias), torna-se claro que @ reconstrugéo sociolégice que Bourdieu da a esse conceito cléssico de filosofia 0 transforma numa ferramenta paderosa para conduzir investigacBes Socials e definie seus mecanismos operantes. Quando uiilzado apropriadamente, o habitus néo apenas ilumina as léoleas veriadas de aco social, como também fundamenta as virtudes distintivas da imerso profunda e do engajamento carnal com o objeto da investigaco etnogrética Do Pacifico Sul & a0 Sul de Chicago 28 que a nosao de habitus prope que agentes humans 80 animals histérices que carregam em seus corpos ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 ssoa018 Wacauart sensibilidades e categorias adquiridas, estes produtos sedimentados das suas experiéncias socials passadas, parece itl Iniciar demonstrando como cheque’ & pesquisa ‘etnagréfica © quais os interesses © expectativas intelectuais {que trouxe comigo & parte Sul de Chicago, Minha IniclagSo no trabalho de campo veio antes ¢a minha entrada na pés- ‘graduacéo na universidede de Chicago em 1985. Para ‘cumprir com minhas obrigacdes militares (como todo cidadéo Francés do sexo masculino era obrigado a fazer naquele tempo), por sorte, fui enviago a realizar um trabalho estritamente civil no Pacifico Sul (Pacifico Ocidental), atuando como sociélogo no centro de pesquisa ORSTOM, o antigo “Escritério de Pesquisas Colonials" da Franca, Passei dois ‘anos na Nova Caledénia, uma ilha francesa a nordeste da Nova Zeléndia, participando de um pequeno grupo de pesquisadores ~ éramos apenas trés ~ durante a revolta de Kanak em novembro de 1984 Isso significe que vive trabalhei numa sociedade colonial brutal e arcaica, $6 que @ Nova Caledénia dos anos 80 era uma colénia tipica do século dezenove, que havia permanecido basicamente intacta 20 final do século 20 (para um relato ver Bens2,1995). Fol uma ‘experiéncia social extraordingria para um aprediz de sociélogo poder realizar pesquisas sobre o sistema escolar, urbanizagéo © mudanca social num contexto de insurreicSo, sob estado de emergéncia, observar em tempo real os ‘embates entre as forcas coloniais ¢ independentes e ter que refletir de forma concrete sobre o papel civico da ciéncia social, Tive, por exemplo, © privilégio de particlpar de um ccongresso fechaco da Frente Kanak para Liberacéo Nacional ‘em Canala no momento alto dos embates, pude viajar a0 redor da “Grande Terre” (a ha Principal) © passar diversas temporadas na Tha Lifou ne casa de amigos que erem miltantes Kanak veteranes. Tudo isso, num momento em que praticamente ninguém estava se mevendo dentro desse terrtérlo, © caldeirdo da Nova Caledénia me fez sensivel & desigualdade etnorracial e & distribuicéo espacial como vetor de controle social ~ 05 Kanaks foram enviados em grande parte para reservas rurais Isoladas ¢ vizinhancas hipersegregradas na cepital Nouméa, Essa experiéncia também chamou minha ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 ssoa018 Wacauart ‘tengo para as formas variadas das hlerarquias de cor € honra prasentes na vida cotidiana, bem como para o lugar central do corpo como alvo, receptor e fonte de relates de poder assimétricas. Ela ainda me expés & formas extremas de imagens racia's depreciativas: 0s natives Melanéslos eram ‘comumente descrites como ‘super primitives’ privados de cultura ¢ histéria, até mesmo quando de sua insurgéncia em busca do controle do seu des 10 histérico (Bourdieu & Bens 1985). Tudo isso foi imensamente itil mais tarde, no Sul de CChicago, onde os Negros Americenos (Africen-Americans) ‘eram tratados assiduamente de forma similar. Foi na Nova CCaledBnia que Ios cléssicas da etnologia, Mauss, Mead, Malinowski, Radcliffe-Brown, Bateson, etc (especialmente trabalhos sobre o Pacifico Ociedental: as ilhas Trobriand ficavam ali bem perto) ¢ onde mantive meus primeiros, cadernos de campo. O primeiro de todos foi escrito durante estada com a tribo Luccilla, na Baia de Wé, no natel de 1983, mais ou menos um ano antes da insurreigéo pela independéncia (seu ponto alto encontrava-se numa seco sobre cacer morcegos € ter que comé-los assados no jantar ddaquela noite). Anotagées de campo foram utlizadas j4 na minha primeira publicacéo sobre desigualdade na educaséo, conflito colonial e transformagée das comunidades Melanésias, sob @ pressio de expanséo capitalista e de dominacdo Francesa, ‘0 final da minha temporada na Caledénia, recebi uma bolsa de estudes para realizar © doutorado na Universidade de Chicago, o berco da sociologia americana e epicentro tradicional de etnografia urbane. Quando cheguei & cidade de Upton Sinclair (autor ensaista americano que produziu a primeira grande descricdo da vida no gueto negro de CChicage:), minha intengdo era desenvolver uma histéria antropoligica da dominacéo colonial na Nove Celedénia, mas ful inesperadamente encaminhado para o gueto negro americano. Por um lado, 0s portées de Nova Caledénia foram abruptamente fechados depo's que eu apresentel uma reclemagao formal contra um burocrata mediocre que fol meu supervisor em Nouméa e que havia forcade seu nome como cco-autor de uma menografia sobre o sistema educacional que ‘eu havia realizada sozinho (Wacquant 1985). Os diretores do ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 ssoa018 Wacauart Instituto em Paris adiantaram-se para defender 0 trapaceiro efetivamente me baniram da ilha. Por outro lado, eu me ‘encontrava cotidianamente confrontado com a realidade brutal do gueto de Chicago ou 0 que ainda existia dele. Recebl a Utima unidade domicilar sdantil disponivel no ‘campus, @ que ninguém mais queria, ¢ entéo passei a viver no rua 61, na divisa do distrito negro e pobre de Woodlawn, Era um constante sentiment de inquictacdo e perplexidade ter logo abaixo da minha janela este ambiente urbano quase lunar, com sua decadéncia inacreditavel, sua miséria € violéncta, a0 mesmo tempo definide pela separacso totalmente hermética entre o mundo universitario branco, préspero e privilegiado e a vizinhanca negra abandonada 20 ‘seu redor. Tendo vindo da europa ocidental onde tais niveis de decadéncia urbana, destituicso material e segregacso racial so inexistentes, passei, no cotidiano, a me questionar politica intelectualmente de maneira profunda, Fol nessa poca que © segundo momento mais importante da minha Vida intelectual teve lugar, 0 encontro com William Julius ‘Wilson (0 primeiro fol com Pierre Bourdieu, cinco anos antes, ‘quando decidi me converter da economia para a seciologia depois de assistir ums palestra professada por ele, ver Wacquant 2002) Wilson & 0 mais influente sociéloge negro americano da segunda metade do Século 20 e 0 maior expert na relagéo centre raga e classe nos Estados Unidos. Sua andlise sobre "O Negro e tnstituigées Amerieanas” em The Declining Significance of Race (Wilson 1978) definiu os parémetros para aquele campo de pesquisa social em 1978. Ele foi um dos professores que iniclalmente me insplraram na ida 8 CChicago. Portanto, quando ele me ofereceu uma chance de trabalhar no seu grande projeto de pesquisa sobre pobreza urbana que tinha ecabado de inaugurar (dos quais os resultados podem ser, de modo geral, encontrades em seu livro The Truly Disadvantaged; Wilson 1987), eu me agerrei {a essa oportunidade e rapidamente me tornel seu colaborador e co-autor, Isso me deu a chance de ir direto a0 centro do problema ¢ também a oportunidade de ver de perto como esse debate clentifico e politico operava, especialmente dentro das Fundacées Flantrépicas e “think tanks” que ritphwur revista ufpe er revsocilindex phptevistaprirterrendy/38729 ssoa018 Wacauart dderam forma a reemergéncia das problemsticas de race, classe e pobreza no subirbio. Foi dessa maneira, primeiro como assistente de Wilson e depois sozinho, que comece! minhas investigagBes sobre a transformac#o do gueto negro depois dos tumultes dos anos 60, empenhado em me afastar das visdes patologizantes que geravam e distorciam as pesquisas sabre a questio. Eu tenho um grande débito intelectual e pessoal para com Bill Wilson, que fol um mentor ao mesmo tempo exigente € generoso, Ele me estimulou ¢ apoiou, e também me deu a liberdade de divergir de suas andlises, indo as vezes em direcdes diametralmente opostas as suas, Através do ‘exernpl, ele me ensinou o que é ter coragem intelectual buscar 0 contexto amplo, ir fundo nos detalhes, fazer as perguntas mais eifices, até mesmo quando isso significa ferir alguns brios sociais e académicas ao longo do caminhe. Ele também convidou Pierre Bourdieu & falar a sua equipe de investigadores sobre a pesquisa que tratava da urbanizacio & proletarizacéo a partir dos anos 60 na Argdla (Bourdieu et al, 1963). Descobrimes algumn tempo depois que Bourdieu tinha tentado traduzir The Dectining Significance of Race para o francés alguns anos antes. Esse encontro, @ as discusses que se seguiram, solidficaram minha idéia de relacionar as primeiras investigacdes antropolégicas de Bourdieu focadas na trajetiria de vida dos subprotetiios argelinos aos problemas contemporéneos dos residentes do ‘queto negro de Chicago, que preccupavam Wilson. Mas eu ainda néo sabia como fazé-lo, ‘A etnografia teve um papel fundamental nesse contexto, de dduas maneiras, Por um lado, eu fiz mais disciplinas em ~antropolagla do que em seclologia porque o departamento de Sociologia na Universidade de Chicago era intelectualmente ‘enfadonho e porque eu estava visceraimente comprometido ‘com uma visio unitéria da ciéncia social herdada da minha formagio francesa. Os cursos, trabalhos e apoio de John & ean Comaroff, Marshall Sahlins, Bernard Cohn e Raymond Smith me levavam em dire¢8o a0 trabalho de campo, Por ‘outro lado, eu queria encontrar rapidamente um local para realizar observacao direte dentro do gueto porque a literature ritphwur revista ufpe er revsocilindex phptevistaprirterrendy/38729 778 ssoa018 Wacauart ‘existente sobre esse tépico era 0 produto de uma “olhar de fora” que me parecia fundamentalmente enviesade, senéo ccego (Wacquant, 1997). Esse literatura era dominada por uma abordagem estatistica, aplicada a partir de cima, por pesquisadores que no possulem, na maloria das vezes, nenhum conhecimento de primeira ou segunda méo acerca do que é 2 realidade comum das vizinhangas pobres do CGinturdo Negro, ¢ que, por falta dessa informaco, preenchiam essa lacuna com esteriétipos obtidos através do ‘senso comum, jornalistico ou académico, Eu queria reconstruir a quest#o do gueto a partir da fonte, de baixo pre ‘cima, baseando-me na observacdo das atividades cotidianes 2 as relagBes entre os residentes daquela terra non grata e, ‘exatamente por essa razBo, incognita (ver Wacquant [1992] 19988, para uma versao inicial), Eu considerava impossivel, epistemalogicamente & morelmente, pesquisar o gueto sem ter um conhecimento de primeira mio aprofundade por duas razées: primeiro porque ‘© gueto estava bem ali literalment 8 minh porta (no verso, A noite, Se podia ouvir 0 barulho das tiras vindos do outro lado da rua) e, segunda, porque os trabalhos ja realizados, pareciam a mim estar cheios de nogBes académicas pouco plausivels e perniciosas, a comecar pelo mito académico que pregava a existéncia ca “underclass” (classe subalterna) ¢ que tomava conta da producdo intelectual naquele memento (ver Katz 1993 © Gans 1995 para discussées criticas © ‘Wacquant 1996 para uma dissecco mais conceitual). Como homem francés branco, minhas experiéncias formativas tanto socials quanto intelectuais me exclulam completamente deste ccontexto € Intensificavam a necessidade que eu sentla de ‘obter alguma familiridade prética em relagéo a ele. Depois de algumas tentativas frustradas, encontrei, acidentalmente, ‘a academia de boxe em Woodlawn, @ umas trés quadras do meu apartamento e me matriculei dizendo simplesmente que queria aprender a lutar boxe porque no havia nenhuma ‘outra explicagio melhor naquele momento. Na verdade, eu n@o tinha qualquer curiosidade nem o menor interesse sobre ‘9 mundo puglistico em si (mas eu queria, sim, seguir uma rotina regular de exercico fisico). A academia deveria servir apenas como porta de entrada para a observacao dentro do ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 ssoa018 Wacauart ‘gueto, um lugar onde eu poderia encontrar possiveis, informantes. (© Habitus vai & academia No entanto a academia rapidamente se tornou no apenas um lugar opartune para observar a vida cotidiana dos homens. Jovens da vizinhanca, como também um microcosmo ccomplexo com histéria e cultura intensas e vida prépria, socialmente, esteticamente, emaconalmente e moralmente rica, Numa questo de meses, eu forjel um elo carnal forte com os frequentadores regulares do clube de boxe e com 0 velho treinador DeeDee Armour, que tornou-se um tipo de pal ‘adotivo para mim. Pouce @ pouco, comecei a me sentir atraiéo pelo magnetismo da “Ciéncla Dace” e chegava a passar a maior parte do meu tempo na academia ou nes seus arredores. Depois de mais ou menos um ano, a ideia de ‘explorer uma segunda érea de pesquisa sobre a légica social de uma habiligade corporal comegou a tomar forma. © que ‘excita 0s boxeadores? Porque, entre tanta outras, eles se ddevotam a esta prétice, das mais destrutives e difceis? Como les obtém 0 desejo e as hablidades necessérios para permanecer praticande? Em meio a tudo isso, qual 0 papel dda academia, da rua, da violéncia e do estlgma racial que os roviela, dos interesses pessoais e do prazer,e, Finalmente, da renga coletiva na possibilidade de transcender pessoalmente todos os obstéculos? Como se desenvolve uma competéncia Social que é ela mesma competéncia incorporada e transmitide através de uma pedagogia silenciosa dos ‘organismos em ago? De maneira suscinta entéo, como © habitus pugiistico é fabricado e posto em acéo? Fol dessa maneira que me vi trabalhando simutaneamente em dois projectos conectades ~ dois projetos ostensivamente diferentes um do outro mas de fato inimamente relacionados: uma microssociologia carnal sobre a aprendizagem do boxe como prétice corporal subproletéria no gueto, oferecende uma “fata” particular deste universo a partir de babxo e de dentro (Wacquant 2004), © uma ritphwur revista ufpe er revsocilindex phptevistaprirterrendy/38729 ssoa018 Wacauart macressoclologia histérica e tebrica do gueto como Instrumente de exclusse racial e dominacéa social, epontades, através de uma perspectiva mais generalizante a partir de cima e de fora (Wacquant 2008). Eu comegara a escrever um diério de campo depois de todas {as sessées de treinamento desde a minha primeire semana na academia, inicialmente, na tentativa de superar a sensasio quase que sufocante de estar, das mais diferentes formas, completamente fore de lugar na cena puaiistica e, sem saber, na realidade, o que ria fazer com minhas anotacées. Passel a tomer notes de meneira mais sistemstica © 2 explorer as varias facetas da Céncia Dace. A partir dal, a nogéo de habitus imediatamente me pareceu ser 0 instrumento conceitual que daria sentido &s minhas ‘experiéncias pessoais como aprendiz de boxeador e serviria como base para organizar minha observacdo sobre a pedagosia pusilistica que estava em andamento. Eu havia lido 0s textos antropolégices de Bourdieu do comeco 20 fim durante meus anos na Nova Caledénia, portant, tinha uma ‘grande fariiaridade cor sua elaboragia do conceit, que pretendia superar a antinomia entre um objetivismo que reduz 2 prética 20s resultados mecénices das necessidades estruturais © um subjetivisme que confunde a vontade e intenco pessoal do agente com a origem da sua ago (Bourdieu: [1980] 1990; ver Wacquant 2004b para uma eneslogia e exegese do conceito), 0 autor de Outline of a Theory of Practice havia recuperade 0 conceito de habitus @ partir de uma linhagem extensa de flésofos, indo desde Aristételes passando por S80 Tomés de Aquino até Huser, para desenvolver ume teorla deposicional da aco reconhecendo que agentes sociais néo so seres passivos controlades por forgas externas, mas criaturas habilidesas ‘que constroem a realidade social ativamente através de “categorias de percensio, apreciagSo e aco" ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 ssoa018 Wacauart 0 velho treinador DeeDee, orquestra a pedagogia silenciosa dos corpos em acéo. Diferentemente da fenomenologia, no entanto, Bourdieu Insiste que embora resilientes © compartilhadas, essas ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 128 ssoa018 Wacauart ccategorias no so universais (ou transcendentais ne linguagem da filesofia Kantiana) e que a matriz generativa ue elas compaem nao é imutével. Ao contrério, como ssedimentos incorporados da histéria individual e coletiva, las so em si mesmas soclalmente construldas. Produto da histéria, o habitus produz as préticas, individuals € coletivas, portanto, da historia, conforme aos esquemas: ‘engendrados pela histéria; ele garante a presence ative das ‘experiéncias passadas que, depositadas em cada organismo sob @ forma de esquemas de percepcao, de pensamento © ce aco, tendem, de forma mais segura que todas as regras formals e que todas as normas explcites, a garantir 3 conformidade des préticas e sua consténcia a0 longo do tempo. (Bourdieu [1980] 2009, p.90) Quatro propriedades do conceito de habitus sugerem sua relevancia direta para a compreenséo da producdo social dos lutadores. Primeiro, o habitus é um canjunto de disposigles adquiridas e ninguém nasce boxeador (muito menos eu!): 0 treinamento dos lutadores consiste precisamente em ‘exercicios fisicos repetitives (drills), regras ascéticas para ‘suas vidas (monitoramento e controle da alimentacéo, tempo, ‘emosiies © desejo sexuel) e jogos socials produzides no intulto de instiler novas habllidades, categorias e cesejos que sejam especifices ao mundo pusilistico (Wacquant 1998b). Segundo, o habitus define que a proficiéncia prética opera abaixo do nivel da consciéncia e do discurso e isso combina perfeltamente com uma caracteristica essencial da experiéncie de aprendizaco pusilistico na qual a compreensio mental é de pouquissima serventia (e pode inclusive ser um abstéculo sério dentro do ringue) caso no se tenha compreendido a téenica de boxear com seu corpo (Wacquant 19952), Terceiro, o habitus indica que conjuntos de disposigées variam de acordo com a localizagéo e @ trajetéria social: indWviduos com diferentes experiéncias de vida terBo apreendido formas variadas de pensar, sentir € aair; suas disposicBes primérias sero mais ou menos distentes daquelas requeridas pela Cléncia Dace; senco assim, eles estaro mais ou menos Investides ou capacitados para desenvolver esta prética, Isso certamente estava de ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 28 ssoa018 Wacauart ‘acordo com minha experléncia pessoal e antacies sobre os comportamentes disparatados dos meus companheires de academia 20 longo do tempo, durante o qual eles equilibravam-se na corda bamba entre © chamado elusive das ruas e @ academia, adaptavam-se & autoridade do nosso treinador © buscavam reconstruir a si préprias de acordo com as demandas exatas daquela profisséo. Quarto, as estruturas conativas € cognitivs socialmente construidas que formam o habitus s80 maledve's e transmissivels porque las resultem de um trabaiho pedagégico. Se voce tem interesse em éescobrir 0 habitus, entéo estude as prticas ‘organizadas da inculcagéo através das quals ele & sedimentado (Wacquant 19956). ‘0 “momento magico” do trabalho de campo que cristalizou ‘essa intuigdo teérica e transformou o que era inicialmente uma atividade marginal numa pesquisa prosriamente dita Sobre as ligicas socials de Incorporacéo nfo fol muito lorioso: foi quando tive meu nariz quebrado num sesso de sparring em maio de 1989, mais ou menos nove meses apés minha iniiagBo. Esse les o me forgou a permanecer um bem tempo fore do ringue, durante o qual Bourdieu me impeliu a ‘escrever um relatério de campo sobre minha iniciagéo pare um niimero temético do Actes de la Recherche en Sclences Sociales sobre “O Espaco dos Esportes”. O resultado disso foi um artigo longo que me ajudou a ver que era possivel & fecundo tornar @ teoria da ago embutida na nocio de habitus em um experimento empirico sobre @ produce prética de lutedores na academia de Woodlawn (Wacquant 1989, 2002a). Esse artigo fo! logo empliado através do tengajamento mals direto com 0 habitus no Amblto teérico Enquanto desenvolvia minhas investigagées sobre o boxe © sobre 0 gueto, e fe em contato permanente com Pierre Bourdieu, que me encorajava e guiava. Quando descobrit {que eu havia me inserito come aprendiz de boxe no Woodlawn Boys Club, ele me esereveu um notinha que dizia basicamente “continue, vocé val aprender mais sobre 0 gueto nessa academia do que jamais iia com todos os surveys do mundo (Mais tarde, quando eu me aprofundel cada vez mais na minha imerséo, ele ficou um pouco assustado € ritphwur revista ufpe er revsocilindex phptevistaprirterrendy/38729 ssoa018 Wacauart tentou que eu me afastasse um pouco, Quando me inscrevi para lutar no torneio amador Chicago Galden Gloves, ele primero ameacou me renegar por temer que eu fosse me machucar até que percebeu no haver motive para panic: ‘eu estava bem preparado para este teste de fogo). Bourdieu ‘esteve em Cricago diversas vezes, visitou 2 academia e conhecau DeeDee e meus amigas boxeadores (Eu 0 apresentel a eles como o "Mike Tyson da sociologia") Durante uma dessas visitas, nasceu o projeto de um tivo, focado no piblico Anglo-Americano, no qual explicariamas 0 ndcleo teérico do seu trabalho, j& que era nesse aspecto que ‘se encontravam as malores distorcGes e obstaculos para uma utlizago mais Fertil dos seus modelos, Devotamas trés anos. escrita, de um lado a outro do atlantica, de livra An Invitation to reflexive Sociology (por fax, telefone, cartas © ‘encontras de tempos em tempos) no qual nés desembaracames o né do habitus, capital e campo, Durante ‘aqueles anes, level uma vida tipo Dr. Jekyll e Mr. Hyde, boxeando de dia e escrevendo teoria social & noite, As tardes eu ia’ academia treinar, passar 0 tempo com meus colegas € cconversar sem parar com nosso treinador DeeDee antes de dirigit para casa quando a academia feciava, E tarde da noite, depots de ja ter digitado minhas anctacées de campo, ‘eu passava a0 manuscrito do livro que escrevie com Bourdieu. Era ao mesmo tempo estimulante, revigorante e ‘exaustiva, No entanto, as sessdes dlurnas como estudante do pugilismo ofereciam ao mesmo tempo alivio para a cogitag3o teérica © um estimula poderaso pare pensar sobre os problemas abstratos, que eram trabalhados no liv, em termes mais mundanos e cotidianes. A sociolagia do gueto (a ual eu havia alargado para incluir uma comparaco com 8 transformago pés-industrial da periferia urbana francesa), @ ‘etnografia carnal do corpo habil e 0 trabalho teérico com Bourdieu, foram todos elaborados juntos @ ao mesmo tempo, « esto tados Interligados. © projeto sobre o boxe & uma etnagrafia clissica em seus pardmetras, um tipo de estude de vilas como aqueles conduzidos por antropélogos Ingleses na década de 40, mas com uma diferenga: @ vila seriam a academia de boxe € suas extensies, @ minha tribo, os lutadores e seus séquitos ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 ssoa018 Wacauart Mantive essa unidade estrutural e funcional porque ela delimita os boxeadores e cria um horizonte temporal, relacional, mental, emacional e estético especificas que diferencia os pugilistas, levando-os a “heroificar" seu mundo da vida e, por essa razéo, a distanclarem-se de seus ccontextos comuns (Wacquant 1995). Eu busquel, em primeiro luger, esmiucar essa relagéo dividida, de ‘epesicso simbdlica’ entre o gueto ¢ a academia, a rua eo ringue, Além disso, ev procurel demonstrar como a estrutura simbélica ¢ social da academia governam a transmissBo das técnices da arte masculina a produce da crenga coletiva na ilusfo pusilistice. Por fim, tentel penetrar na légica prética de uma prética corporal que opera nos limites da prética através de um aprendizado de longo prazo com foco na “primeira pessoa’, Por trés anos, eu me camuflel na paisagem local © {ui eapturedo pelo jogo. Aprendi como boxear e tome! parte em todas as etapas de preparacdo de um puglliste até chegar 2a lutar no grande terneio amador Golden Gloves. Acompanhel meus colegas de academia em suas peregrinagBes pessoals profissionais e tive que interagir rotineiramente com treinadores, agentes, o-ganizadores ete que faziam © mundo do boxe © compartilhavam 0s ganhos desse “show-business sengrento” (Wecquent 1998c). Por essa razéo, eu ful ‘empurrado para dentro das entranhas sensuais © morsis do pusilismo 8 ponto de ter seriamente cogitado interromper minha trajetéria académica para tornar-me boxeador profissional Mes, como deve ter ficado claro pelo que fol descrito até agora, 0 objeto e método dequela pesquisa nfo eram de padréo cléssico. Corpo e Alma oferece uma radicalizago empirica e metodolégica da teoria do habitus de Bourdieu. Por um lado, abro a caixa preta do habitus pugilistico revelando o processo de producdo © montagem das categorias cognitivas, habilidades corporais e desejos, os ‘quais definem conjuntamente @ competéncia e aptico cespecificas do boxeador Por outro lado, fago uso de habitus como ferramenta metodolégica, ou seja, me coloco no vortex local da agio para dessa maneira adquirir através da pratica, em tempo real, as disposigées do boxeador no intulto de luciéar © magnetismo préprio ao mundo pugilistico, Tss0 me ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 ssoa018 Wacauart permite evidenciar 2 poderosa fascinacéo da combinagéo do offcio, sensualidade e moralidade que conecta © pugllista 8 ‘sua profisso assim como imprime as nocGes incorporadas de risco e redenge que o permitem superar a sensa¢io velada de ser superexplorada (Wacquant 2001). 0 método, portanto, testa a teoria da ago que informa a anélise de ‘acordo com um modelo de pesquisa recursive ¢ reflexive. A idela que me guiou até aqui era a de forgar a légica da ‘observacdo partleipante a ponto de Inverté-la e transformé-la numa participacao observante, Dentro da tradico Anglo- americana, quando estudantes de antropelogia vlo a campo pela primeira vez, eles so alertados para "no se tornarem nativos”. Na tradicSo francesa, a imersio radical é admissivel ~ basta pensar em Deadly Words de Jeanne Favret-Saada ((1978] 1980) ~ mas apenas sob a condicéo de acontecer ‘em conjunto a uma epistemologia subjetivista que nos fez perder-nos nas profundezas do antropélogo-sujeto. Minha posicso, pelo contréri, & afirmar que “vire native", mas *vire rnativo armado", ou seja, equipado com suas ferramentas teéricas e metodolégicas, com um estoque cheio de probleméticas herdadas da sua disciplina, com capacidade de reflexividade e andlise e guiade, uma ver que vocé tenha pasado pelo drama da iniclagdo, por um esforgo constante para objetivar a experiéncia e construir 0 objeto ao invés de ‘se permitir ser ingenuamente tomado e construido por ele V8 em frente, vire nativo, mas retorne sociélogo! No meu €2s0, 0 conceito de habitus Serviu tanto como ponte para ‘entrar na fébrica do conhecimento pusilistico ¢ analisar metodicamente @ textura do mun¢o do (em) trabalho do pugllista, quanto como escudo protetor contra a ilusBo da ‘enrolacéo subjetivista que confunde andlse social corn ccontagdo de histéria narcisista, Da came ao texto ‘Alguns dos meus criticos, ao tomarem a forma narrativa do meu livre por seu conteddo analtico e ao canfundirem meu ritpihwur revista ufpe br revsocilindex phptevistaprinterrendy/38729 ssoa018 Wacauart trabalho com uma extenséo do “estudo das ccupacies" da segunda Escola de Chicago (Hughes 1994), nem sequer notaram 0 duplo papel que o conceito de habitus desempenha na pesquisa e até reclamaram da auséncia de teorla ne mesmo (Wacquant 2005c), De fato, teoria e método ‘estdo extremamente juntos a0 ponte de fundirem-se no ‘objeto empirico, que é ele préprio elaborado por essa mesma teoria e método, Corpo e Alma & uma etnografia experimental na forma ‘original do termo no que diz respeito ao fato de que o esquisador é um dos corpos socializados jogados no

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