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MANUEL PACHECO NETO

PALMILHANDO O BRASIL COLONIAL: A MOTRICIDADE DE


BANDEIRANTES, ÍNDIOS E JESUÍTAS NO SÉCULO XVII

Dourados, MS

– 2002 –
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MANUEL PACHECO NETO

PALMILHANDO O BRASIL COLONIAL: A MOTRICIDADE DE


BANDEIRANTES, ÍNDIOS E JESUÍTAS NO SÉCULO XVII

Dissertação apresentada ao programa de Pós-graduação em


História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Campus de Dourados, para a obtenção do título de Mestre
em História. Área de concentração: História, Região e
Identidades.

Orientador: Prof. Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos

Dourados, MS
– 2002 –
MANUEL PACHECO NETO

PALMILHANDO O BRASIL COLONIAL: A MOTRICIDADE DE


BANDEIRANTES, ÍNDIOS E JESUÍTAS NO SÉCULO XVII

COMISSÃO JULGADORA

DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE

Presidente e orientador______________________________________________________
2° Examinador_____________________________________________________________
3° Examinador_____________________________________________________________
Dourados,________ de______________de _________.

DADOS CURRICULARES

MANUEL PACHECO NETO

NASCIMENTO 29/11/1965 – São Simão/SP


FILIAÇÃO Manuel Pacheco Júnior
Marilena Dorothéa Toffoli Pacheco

1987/1990 Curso de Graduação em Educação Física


Universidade Metodista de Piracicaba – UNIMEP

1996/1997 Curso de Pós-Graduação – Lato Sensu em Metodologia


do Ensino Superior
Faculdades Integradas de Dourados
Dedico este trabalho
à minha esposa Ana Cláudia,
companhia doce, norteadora e equilibrada
ao longo de tantos anos.
Aos meus filhos Diogo, Jorge, João e Manuel,
dínamos de toda e qualquer luta.
Aos meus pais, professores Manuel e Marilena,
que na infância me propiciaram um ambiente
onde o estudo se apresentava
como valor fundamental.
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos, pelos preciosos


ensinamentos na disciplina Metodologias da História e por ter, durante a
elaboração deste trabalho, sempre com paciência e atenção, me possibilitado o
vislumbrar de novas veredas e trilheiros, que me levaram a abordar aspectos
historiográficos então por mim desconhecidos.

Ao Prof. Dr. Paulo Roberto Cimó Queiroz, pelos ensinamentos precisos sobre
as penetrações bandeirantes no oeste, abordados na disciplina Mato Grosso do
Sul: história e historiografia, bem como pelas prestimosas sugestões quando fez
parte da banca de qualificação que examinou este estudo.

À Profª Drª Luiza Rios Ricci Volpato, pela gentileza e amistosidade com que
me recebeu em Cuiabá, bem como pelos valiosos esclarecimentos sobre o
período colonial brasileiro.

À minha irmã, Profª Doutoranda Rita Pacheco Limberti, por ter me incentivado
a me inscrever no processo seletivo para o curso de Mestrado em História,
fazendo a revisão gramatical de meu anteprojeto de pesquisa e dando dicas
importantes em termos de construção do texto inicial.

Ao meu sogro José Marques Luiz, advogado e professor aposentado da


UFMS, pela revisão gramatical deste trabalho.

À minha esposa Ana Cláudia, pelo incentivo, pela compreensão em minhas


horas de ausência, pela digitação dos textos e sobretudo pelo amor e carinho.
RESUMO

No Brasil Colonial do século XVII a vivência da motricidade corporal foi cotidiana,


assumindo por vezes configurações notadamente significativas.
Bandeirantes, índios e jesuítas, uns mais outros menos, deslocavam-se pelas matas,
buscando atingir seus objetivos específicos.
A motilidade das bandeiras, cujos integrantes marchavam à pé, tornou-se notória pela
escravização de índios, pela descoberta de riquezas minerais e pela expansão territorial.
O presente estudo busca evidenciar as implicações referentes ao desempenho físico dos
bandeirantes, entendido como conseqüência histórica da carestia da vila de São Paulo. Distâncias
muito grandes foram cumpridas por esses homens, que buscavam solucionar seus problemas
econômicos.
Buscamos analisar também o desempenho físico dos índios, homens naturais da terra, que
demons traram no período em questão admiráveis e múltiplas habilidades corporais, que envolviam
técnicas de caça e de procura de alimentos. Engajados nas bandeiras, muitos indígenas
contribuíram para que pontos desconhecidos dos colonizadores fossem alcançados. Nascidos nas
matas, os índios estavam portanto em seu elemento, revelando-se guias precisos, orientando as
expedições por trilhas e veredas nunca antes palmilhadas pelos bandeirantes.
As bandeiras de apresamento, extremamente ofensivas puseram muitos índios em fuga,
especialmente na região do Guairá, onde os jesuítas haviam estabelecido diversas reduções.
Em termos de performance física, buscamos evidenciar a fuga em massa dirigida pelos
jesuítas guairenhos, que envolveu milhares de indígenas num avançamento rumo ao sul do Brasil,
por vias fluvial e terrestre.
Preocupamo-nos também em relacionar a motricidade bandeirante à mudança contextual
ocorrida na colônia após a descoberta do ouro.
Para tanto, em todas as partes deste estudo, pesquisamos em material bibliográfico
pertencente às áreas da História e da Educação Física, com predominância na utilização de
material historiográfico.
As conclusões sugerem a confirmação de nossos pressupostos primevos. A motricidade
humana foi uma característica importante no Brasil Colonial, envolvendo homens de grupos e
motivações distintas, tendo contribuído ainda para a nova orientação sócio -econômica brasileira,
que subtraiu do nordeste a hegemônica prosperidade de seu parque açucareiro, que era
caracterizado pelo antônimo do movimento: o sedentarismo.
ABSTRACT

In Colonial Brazil of the century XVII the existence of the corporal motricity was daily,
assuming notedly per times configurations significant.
Members of the flags, indians and jesuits, some more other ones minus, they moved for
forests, looking for to reach its specific objectives.
The motricity of the flags, whose members advanced the on foot, became notorious for the
enslavement of indians, for the discovery of mineral wealth and for the territorial expansion.
The present study search to evidence the referring implications to the physical acting of the
members of the flags, expert as historical consequence of the shortage of the villa os São Paulo.
Very big distances were executed by these men, that looked for to solve its economic problems.
We looked for to also analyze the physical acting of the indians, natural men of the earth,
that demonstrated in the period in admirable subject and multiple corporal abilities, that involved
hunt techniques and of search of victuals. Engaged in the flags, many indigenous they contributed
so that the settlers unknown points were reached. Bom in the forests, the indians were therefore in
its element, being revealed precise guides, never guiding before the expeditions for trails and
sidewalks roamed for the members of the flags.
The capture flags, extremely offensives, put many indians in escape, especially in the area of
Guairá, where the jesuits had established several reductions. In termsof physical performance we
looked for to evidence the escape in mass driven by the jesuits guairenhos, that in involved
thousands of natives in na advancement heading for the south of Brazil, by waterways and
terrestrial.
We also worried in relating the motricity member of the flags to the change of context
happened in the colony after the discovery of the gold.
For so much, everywhere of this study, we researched in bibliographical material belonging
to the areas of the History and Physical Education, with predominance in the use of material
historiographic.
The conclusions suggest the confirmation of our primeval presuppositions. The human
motricity was as important characteristic in Colonial Brazil,involving men of groups and different
motivations, having still contributed to the new brasilian socioeconomic orientation, that subtracted
the dominant prosperity of its sugar park of the northeast, that was characterized by the antonym of
the movement: the affixation.
SUMÁRIO

Resumo vi

Abstract vii

Lista de ilustrações x

INTRODUÇÃO xi

CAPÍTULO I
O BANDEIRANTE E O BANDEIRANTISMO 30
1. Do mito ao homem comum 30

2. A luta contra a natureza 41

CAPÍTULO II
ÍNDIOS: CICERONES E MESTRES DO SERTÃO 56

CAPÍTULO III
FUGINDO DO “TEMPESTUOSO DILÚVIO” : ÍNDIOS E
JESUÍTAS NAVEGANDO E MARCHANDO NO SERTÃO 72
1. Vivendo bandeirantemente e morrendo cristamente: a remissão dos predadores
de gente 72
2. Capelães, beatões e padres: cúmplices da violência bandeirantista
80
3. A fuga do Guairá: medo historicamente construído e terror supersticioso
determinam sôfrega motricidade humana 88
CAPÍTULO IV
BANDEIRISMO: DESEMPENHO CORPÓREO-MOTOR NO BRASIL
COLONIAL 110
1. Meninos, homens e anciãos: sede, fome e cansaço na marcha sertaneja 110
2. O papel da motricidade bandeirante na mudança da configuração contextual do
Brasil Colonial 119

CONCLUSÃO 137

FONTES E BIBLIOGRAFIA 139

ANEXOS 145
LISTA DE FIGURAS

HOMENAGEM À EPOPÉIA DE 32.............................................................................. 49

GLÓRIA AOS HERÓIS................................................................................................ 50

SUSTENTAE O FOGO................................................................................................. 51

BRASÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO.................................................................... 52

CAPA DA REVISTA SUPERINTERESSANTE........................................................... 53

CAPA DA OBRA HISTÓRIA DAS BANDEIRAS PAULISTAS, DE AFFONSO

DE TAUNAY............................................................................................................. 54

CAPA DA OBRA CURSO DE BANDEROLOGIA, COLETÂNEA

DE CONFERÊNCIAS................................................................................................... 55
INTRODUÇÃO

Desde nossos tempos de faculdade, nos anos oitenta do século passado, sentíamo-nos
atraídos pelo papel exercido pela motricidade humana na história. Por aquela época,
freqüentávamos com assiduidade a biblioteca da Universidade Metodista de Piracicaba, buscando
genericamente nos livros de história episódios onde as atividades físic as se mostravam aparentes,
apresentando-se como relevantes em diversos contextos interdependentes. Por conta desta
pesquisa de caráter informal, logramos com o tempo acumular uma considerável compilação de
textos, dentre os quais extraímos diversas configurações contextuais onde o papel das atividades
corporais nos parecia ressaltado. Torna -se válido mencionar a obviedade de que nossa pesquisa
era aleatória, posto que carente das diretrizes científicas formais da academia. Ainda na
graduação, aquela pesquisa bibliográfica acabou por nos nortear em termos mais específicos, no
sentido de que desenvolvêssemos nossa monografia de final de curso abordando o papel do
desporto como elemento alienante, auxiliador nas ações ditatoriais impostas pelo governo militar,
no contexto histórico brasileiro de 1970. Julgamos ser oportuno mencionar, que comumente as
monografias de graduação em Educação Física enfocam diversas modalidades desporto-
recreativas, levando em conta seus aspectos técnicos, táticos, competitivos, pedagógicos ou
didáticos. A pesquisa histórica não aparece com freqüência entre os graduandos em Educação
Física, que predominantemente abordam os desportos e as atividades corporais entendidos como
metodologia de trabalho, seja ela ligada à docência ou ao treinamento. Esta observação visa
esclarecer que nosso entendimento acerca do movimento humano transcende a concepção de que
as práticas corporais encerram-se em si mesmas, circunscritas aos dogmatismos doutrinários de
suas atribuições clássicas, como a promoção da saúde, a sociabilização e a alta performance. As
atividades corporais estão inseridas num universo incomensurável, que oferta possibilidades
inesgotáveis de análise. Desde que o homem existe sobre a Terra, configura-se sua situação
motriz. Desassombrados, expressamos nossa convicção de que a história é uma extensa crônica
de corpos em movimento, destacando a obviedade da não negação do psiquismo, uma vez que
entendemos o homem como ser uno, indivisível, na esteira das teorias de Santim, Morais, Rizzo e
Medina, que promovem desde os anos oitenta uma discussão filosófica humanista, dialetizando o
pensamento de Descartes e Platão, que divide o homem ao meio, fragmentando-o
dicotomicamente. Já na nossa monografia de Pós-Graduação Lato
Sensu (Metodologia do Ensino Superior), que cursamos em 1997, revisitamos o mesmo tema
desenvolvido oito anos antes, agora sob a orientação da Profª Drª Marina Evaristo Wenceslau,
que contribuiu muito para que melhorássemos nossa pesquisa, revestindo-a de uma conotação
científica mais acentuada. Dessa monografia, extraímos alguns elementos e os inserimos em nosso
anteprojeto de pesquisa, apresentado em 1999 à comissão de seleção do programa de Mestrado
em História da UFMS, Câmpus de Dourados. Nesse anteprojeto, aberto e abrangente, constava a
jornada a pé do bandeirante Domingos Jorge Velho, visando dar fim ao Quilombo de Palmares.
Há muito, em nossas leituras informais, havíamos nos dado conta da possibilidade de abordagem
do bandeirismo sob a ótica do desempenho corporal, mercê das grandes distâncias cumpridas em
marcha sob condições não raro adversas. Com o estudo da bibliografia para a prova seletiva do
Mestrado, vislumbramos essa possibilidade de forma mais nítida, sobretudo por conta de Holanda
e Monteiro, que descrevem incursões bandeirantistas onde o desempenho corpóreo motriz se fez
verdadeiramente intenso. Com leituras posteriores – já cursando o Mestrado – de Nemésio,
Vasconcelos, Ellis, Volpato, Haubert, Ricardo e Taunay, definimos as bandeiras como objeto de
estudo em nossa dissertação de mestrado, que ora apresentamos. Nossa pesquisa, em seus
primeiros escritos, apresentou uma conotação um tanto quanto desconectada da história.
Alertados pelo Prof. Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos, nosso orientador, passamo s a entender
de forma menos unilateral as incursões dos bandeirantes, que foram empreendidas em
conseqüência da penúria verificada na Vila de Piratininga, configurando-se portanto como frutos
de uma contingência histórica. Reorientamos nossa redação neste sentido, buscando o
entendimento das atividades físicas dos bandeirantes como desdobramentos desta contingência
histórica, observada no contexto do Brasil Colonial. Outra orientação relevante do Prof.
Vasconcelos foi no sentido de que abordássemos o papel do índio nas bandeiras. Vale dizer que
essa orientação específica ensejou maior respaldo teórico ao nosso estudo, pois possibilitou novos
prismas de análise e observação, que ressaltam naturalmente a contribuição indígena – inclusive em
termos de desempenho corporal – para que as bandeiras alcançassem pontos longínquos do
continente. No trabalho que ora se apresenta buscamos enfocar prioritariamente o
bandeirismo do século XVII, por ser o recorte temporal onde despontam inúmeras incursões que
percorreram grandes distâncias, configurando as situações de maior desempenho físico-motor dos
sertanistas de São Paulo. No entanto, visando não causar detrimento na explicitação dos
resultados primários de nossa pesquisa, não pretendemos omitir algumas expedições de grande
percurso, observadas fora dos seiscentos. Para tanto, servimo-nos dos esteios de Braudel no que
respeita ao tempo das mentalidades, que aborda as permanências atitudinais e comportamentais,
transcendendo a cronologia. Alicerçamo-nos também em Bloch, que postula o tempo histórico
como a possibilidade de entendimento dos fenômenos, pautando a temporalidade como algo
flexível, que possa assegurar, num sentido mais amplo, a inteligibilidade da produção
historiográfica. A postura destes dois historiadores encontramos em Prieto, que por sua vez
buscou resolver essa questão com maestria, enfatizando que “ el tiempo histórico, hemos señalado
antes, no es el tiempo cronológico.” Prosseguindo com seu arrazoado contundente, o historiador
espanhol escreveu: “... la estructuración positivista de la historia aprisionó el pasado de los
hombres y mujeres en las mallas de la cronologia y prescindió – no podia ser de outra maneira –
de los ritmos próprios de cada formación social histórica, de sus latidos” (PRIETO, 1995, p. 105-
6). Considerando o tempo cronológico como sendo “... el único tiempo de los historiadores
positivistas;” o mesmo autor observa que “tiempo vivido y tiempo cronológico son dos aspectos
diferentes.”
As incursões dos bandeirantes no século XVII configuraram um tiempo vivido que teve
sua gênese nos primeiros anos de fundação da Vila de São Paulo, tendo por outro lado a
predecessão de outras expedições posteriores ao recorte temporal da décima sétima centúria.
Nosso recorte temporal portanto não é estanque, posto que imprescinde de algumas abordagens
que tangem incursões sertanistas já no século XVIII, principalmente aquelas que devassaram o
sertão oeste, culminando com a descoberta do ouro cuiabano em 1718.
Entendemos as expedições do século XVII como elementos de um histórico fenômeno
caminheiro, que iniciou-se quando os primeiros homens do altiplano paulista penetraram as matas à
caça de índios, estendendo-se até princípios do século XVIII, quando as expedições fluviais
Araritaguaba-Cuiabá tornaram-se a principal via de acesso rumo às jazidas auríferas do oeste.
Centramos portanto o foco de nosso estudo nas bandeiras do século XVII, tendo esta
centúria como recorte temporal, cuidando no entanto para que algumas indispensáveis conexões
com a cronologia anterior não fossem lançadas no limbo, em detrimento da compreensão da
atividade corporal como elemento relevante na história do bandeirismo e no contexto do Brasil
Colonial.
Doravante trataremos das considerações sobre o teor de cada um dos capítulos deste
trabalho, buscando explicar as motivações e intencionalidades que lhes ensejaram.
O Capítulo I, intitulado O Bandeirante e o Bandeirantismo, divide-se em duas partes,
que são: Do mito ao homem comum e A luta contra a natureza. No primeiro destes texto s,
dedicamo-nos à tentativa de desconstruir a imagem apologética dos sertanistas de São Paulo,
tangendo a gênese da representação histórico-ideológica que acabou por elevar o andrajoso
piratiningano, paupérrimo e carente, à condição de destemido herói épic o, portador de inúmeras
adjetivações enaltecedoras. O marchador das matas da América do Sul, ricamente paramentado e
profundamente religioso, foi uma representação histórica forjada com fins políticos, visando
garantir a manutenção do poder conquistado pelos paulistas no prorromper da proclamação da
República. Líderes natos de perigosas incursões sertanejas, responsáveis pela miscigenação racial
democrática, alargadores das fronteiras do Brasil e patriotas por excelência, os bandeirantes
haviam palmilhado boa parte do continente com suas botas de cano alto, povoando paragens
remotas e gestando cidades.
Donos do poder nos primórdios da República, os cafeicultores paulistas foram os
mentores da empreitada de alçar os bandeirantes à condição sobranceira de líderes ancestrais,
cujos descendentes deviam continuar sua saga de chefiar a nação. A obra de Cassiano Ricardo,
uma de nossas fontes principais neste capítulo, apresenta-se como um expoente em termos de
representação épico-heroística dos bandeirantes que, envergando escupis e portando arcabuzes,
arrostaram os perigos indisíveis das solidões e dos desertos sul-americanos.
Não apenas nos textos produzidos pela historiografia ufanista, mas também na iconografia
que os acompanha, os bandeirantes posam altivos para a posteridade. De suas faces barbadas,
sombreadas por grandes chapéus de feltro, emanam inquestionáveis liderança e irredutibilidade. O
sertanista paulista concebido imageticamente é também sempre branco, erguendo-se racialmente
incólume de uma população profundamente miscigenada. Nesta urdidura ideológica não o
mameluco era sugerido como chefe apto a governar o Brasil, mas o branco de ancestralidade
portuguesa, o descendente puro do europeu.
Eficazmente arraigada no imaginário brasileiro, sobretudo no paulista, a figura do herói
bandeirante paira como um paradigma histórico, passível de ser revista, revisitada e analisada sob
outros ângulos. Grande parte da obra de Sérgio Buarque de Holanda é dedicada à isso. A
contribuição deste historiador é sobremaneira digna de nota, pois foi iniciada nos anos 30 do
século XX, uma época em que o convencionalismo apontava predominantemente para o sentido
de pujança e desassombro ao tratar dos bandeirantes, que eram por sua vez apresentados como
membros da raça de gigantes. Holanda mobilizou a abordagem do
bandeirismo efetivamente ligando-a ao fator econômico de São Paulo, onde imperava a
adversidade diária da miserabilidade, de onde certamente não haviam saído sertanistas
faustosamente vestidos, mas homens trajando modestas indumentárias, buscando amainar a
situação periclitante de suas vidas. O caminhante de Sérgio Buarque foi o contraponto do
bandeirante de Cassiano Ricardo. Ao furor épico deste último, contrapunha -se a pesquisa
histórica detetivesca do primeiro. A produção historiográfica destes dois autores foi
contemporânea, tendo gerado posturas ferreamente defendidas por ambas as partes. A famosa
controvérsia em torno da noção de homem cordial foi suscitada por Ricardo na obra Marcha
para Oeste, onde discorda enfaticamente das afirmações de Holanda em Raízes do Brasil. Esta
celeuma foi iniciada em 1940, com diversas argumentações divergentes entre os dois
interlocutores, estendendo-se até o ano de 1959, quando Ricardo, ainda de forma pertinaz,
explicita sua discordância ante Holanda, que já tinha escrito em 1948 sobre o seu receio de que
“que já tenha gasto muita cera com esse pobre defunto” (Holanda apud Robert Wegner, 2000, p.
54), mesmo tendo mudado a estruturação de suas assertivas na edição de Raízes do Brasil do
mencionado ano. Este acirrado antagonismo foi aqui evocado para que possamos avaliar
melhor a reação provocada pela metodologia historiográfica de Holanda. Vale lembrar que
Cassiano Ricardo era, antes de historiador, literato reconhecido. Entendemos ser esta observação
aqui necessária, para que se evidencie que este autor era, em primeira instância, mais passível de
enveredar-se pela inobservância das intrincadas minúcias da pesquisa histórica, quedando-se
perante sua inclinação de imaginativo e hábil romanceador, que muitos dilemas resolvia apenas
com o bico da pena, passando à larga das contingências e determinismos históricos. Já Holanda,
seu desafeto e contendor intelectual, dedicara sua vida ao labor historiográfico, fazendo disso sua
principal atividade e sendo reconhecido por muitos de seus pares como um pesquisador
equilibrado e incansável. A trajetória das obras de Holanda foi acompanhada por historiadores
como Affonso Taunay (que publicou o undécimo último volume de História Geral das Bandeiras
Paulistas em 1950, cinco anos após a primeira edição de Monções, de Holanda) e Alfredo Ellis
Júnior, que não demonstraram oponência ante o então novo viés historiográfico proposto pelo
autor, que apresentava os sertanistas paulistas como homens impelidos ao sertão pela carestia da
vida cotidiana na vila de Piratininga. A obra de Holanda, aqui mencionada, embora não tendo sido
utilizada na elaboração do texto que no momento enfocamos, sedimentou de forma efetiva o nosso
entendimento, em termos mais ordinários, sobre a dimensão humana, não mítica, dos
componentes das bandeiras. Utilizamo-nos dos escritos de Holanda em outra parte de nossa
pesquisa, como ficará exposto adiante. Encontramos na obra Entradas e Bandeiras, de
Luiza Rios Ricci Volpato, uma elaboração textual clara e precisa sobre o bandeirismo. Essa obra
foi por nós utilizada como fonte na redação do texto que ora anunciamos, sobretudo por abordar
a situação embrionária que gestou a construção da representação mítico-épica do bandeirante na
historiografia, que remonta ao século XIX, quando do advento da proclamação da república do
Brasil. A recém instaurada república abrigava em suas cúpulas os representantes da cafeicultura
paulista, elite agrária que pretendia permanecer no poder. O mando no Br asil emanava portanto
dos homens de São Paulo, dos homens que então lideravam as terras ancestrais dos bandeirantes
e também toda a nação. A figura do bandeirante neste contexto foi então utilizada como
instrumento ideológico, como elemento de afirmação política. Neste sentido, o sertanista paulista,
herói e chefe magno, figurou como uma referência, uma alusão histórica que sugeria de onde
deveria emanar o poder não apenas naquele momento, como também no futuro. São Paulo era o
berço dos bandeirantes, abrigando em seu seio os descendentes destes comandantes natos. Nesta
ordem de argumentações, estava presente a idéia – ora implícita, ora explícita – de que os
paulistas eram herdeiros de aptidões naturais de comando. Além de tanger aspectos
significativos da construção da figura do bandeirante, Volpato faz afirmações que podem ser
entendidas como antíteses das assertivas constantes na historiografia apologética, sobretudo a
produzida por Cassiano Ricardo, a qual a autora evoca criticamente mais de uma vez. O homem e
a mulher nativos do Brasil, que na obra de Ricardo figuram como elementos secundários de uma
guerra de conquista encetada pelos bandeirantes, são enunciados por Volpato como atores
históricos, presentes inclusive nas expedições (neste caso os homens), mas passíveis dos mais
torpes aviltamentos e violências advindos dos paulistas. A idéia da bandeira como instituição
democrática, que perpassa a obra de Ricardo, foi antagonizada consistentemente por Volpato em
Entradas e Bandeiras, onde a presença de índios, mamelucos e até mesmo brancos de menor
prestígio – nas expedições – é explicada remetendo ao entendimento de que estes integrantes
estavam submetidos à ascendência dos mestres de campo e seus auxiliares, que não raro agiam
arbitrariamente, cometend o desmandos desbragados. Ressaltemos que muitas expedições
apresentavam características militares, organizadas sob rígida concepção hierárquica, onde
certamente não reinavam os prncípios democráticos, como pretendeu difundir Ricardo.
Ainda na primeira parte do primeiro capítulo, ocupamo-nos da procura de demonstrar
como o mito do bandeirante – gestado com fins político-ideológicos no final do século XIX –, foi
novamente evocado com intenções parecidas na terceira década da centúria seguinte, quando do
deflagrar da Revolução Constitucionalista de 1932, oportunidade em que o estado de São Paulo,
tendo à testa seus dirigentes, pretendeu, sob o pretexto da reinstauração dos princípios
democráticos, mudar os rumos do poder nacional, então excercido ditatorialme nte por Getúlio
Vargas. Na iminência da luta armada, bem como em seu trasncurso, a ancestralidade bandeirante
figurou massivamente na propaganda feita pelos representantes do poder paulista. O passado de
glória dos bravos piratininganos foi revivescido em hinos, jornais, panfletos e através da imprensa
falada. Mandatários do progresso no passado, os habitantes de São Paulo precisavam demonstrar
sua força novamente, agora não com mosquetes ou arcabuzes, mas com baionetas e fuzis calibre
44, configurando-se como os vanguardistas, os iniciadores de um novo tempo para o Brasil. O
povo que já desbravara os sertões da colônia agora devassaria as brenhas fechadas da ditadura
getulista. Para buscar demonstrar esse ressurgir do mito bandeirantista com
finalidades políticas, pesquisamos em livros impressos no estado de São Paulo, cujos autores
foram homens que se envolveram pessoalmente na Epopéia Constitucionalista de 1932.
Exploramos também o valioso arquivo pessoal do Sr. Pedro Toffoli, único combatente vivo dos
66 integrantes do Batalhão XX de Agosto, hoje com 92 anos de vida. Desse arquivo, extraímos
alguns jornais antigos e material propagandístico da Revolução, contendo representação
iconográficas e textos de conteúdo claramente ufanista, que visavam inspirar sentimentos épicos de
coragem e altivez nos componentes do Exército Bandeirante. Também na primeira
parte do capítulo que ora enunciamos, fizemos algumas considerações sobre como a figura do
sertanista herói está alojada no imaginário do senso comum, mercê principalmente da forma de
abordagem do tema bandeirismo no ensino fundamental.
Nossa intenção primordial, no primeiro texto deste
estudo, foi a de procurar encontrar o homem comum atrás do pesado e arraigado aparato
heroístico que reveste o bandeirante, uma vez que o objeto de nosso estudo situa-se na
perspectiva de uma construção historiográfica onde será mostrado o desempenho físico acentuado
do habitante piratiningano, que atormentado pela carestia que campeava em São Paulo, tornou-se
o maior viajor caminhante das matas coloniais.
Na segunda parte do primeiro capítulo, nomeada A luta contra a natureza,
procuramos abordar um aspecto pouco lembrado na historiografia do bandeirantismo, que foi a
dificultosa transposição da Serra do Mar pelos primeiros homens que alcançaram os campos de
Piratininga. A subida deste grande acidente geográfico é mencionada por vários historiadores, mas
de forma fugaz, sem o devido detimento que parece merecer. Autores tanto da historiografia
crítica, quanto da apologética, são convergentes sobre as grandes dificuldades enfrentadas pelos
escaladores dos hostis rochedos, que quase perpendiculares, empertigavam-se como obstáculos
que por muito tempo haviam impedido o avanço dos habitantes da orla oceância para o interior da
colônia. Os ascencionistas da Serra do Mar foram
submetidos a esforços físicos extremos. O desempenho corporal deles exigido pela montanha
impassível foi brutal. No livro A economia paulista no século XVIII,
Alfredo Ellis Júnior, ao tratar da incipiência dos assentamentos dos vicentinos em Piratininga,
afirma que existe uma lacuna na historiografia que trata do passado paulista, pois esta o descreve
como se a Serra do Mar não existisse. Nesta obra de Ellis, que usamos como fonte para a
elaboração do texto que estamos anunciando, a Serra do Mar é entendida como um imponente
elemento da natureza, que somente foi vencido pelos homens mais aptos fisicamente. O autor se
preocupa em deixar expressa a sua percepção de que a montanha, silencio sa e inerte,
desencadeou uma triagem seletiva natural, de onde saíram vitoriosos os escaladores com maiores
predicados de motricidade e força, ou seja: os mais ágeis e os mais fortes.
Foram três as motivações que nos levaram a escrever um texto específico sobre a Serra
do Mar: a primeira delas é a evidente performance corpóreo-motora ensejada na transposição
deste acidente topográfico, já que o desempenho físico é nosso objeto de estudo; a segunda está
ligada ao nosso entendimento de que a situação germinal do bandeirismo estava ali sendo gestada,
já que num primeiro momento era preciso transpor a montanha, e noutro era necessário caminhar à
caça de índios; a terceira motivação foi a tentativa de demonstrar a condição de isolamento
imposta pela serra aos habitantes do planalto de São Paulo, que após transpô-la arduamente
romperam ligações com a região praiana, iniciando a história das bandeiras propriamente dita,
mercê da miséria econômica de Piratininga.
Trataremos agora do Capítulo II, intitulado Índios: cicerones e
mestres do sertão. Neste texto, procuramos mostrar o importante papel desempenhado pelo
índio nas bandeiras. Na historiografia apologética, a figura do homem natural da terra é
ensombrecida pelo vultoso protagonismo do bandeirante, que a tudo ordena e dá fluxo. O índio
literalmente ensinou ao sertanista paulista os segredos da sobrevivência no meio natural, garantindo
o cumprimento de grandes marchas pelo interior do continente. No entanto, a despeito disso, seu
notável papel apresenta-se ora esmaecido, ora quase apagado ou até mesmo ausente ou omitido
na produção historiográfica mais convencional. Na caça, na coleta de alimentos, na procura de
água e sobretudo no guiar os paulistas por trilhas desconhecidas, o índio descortinou um novo
modo de vida àqueles homens ignorantes das técnicas nativas da América. Em termos de
desempenho físico, o indígena ensinou aos primeiros sertanistas, singularidades importantes para
atenuar o desgaste das marchas, revelando-lhes novas formas de pisadura, que não concentravam
esforços excessivos em poucas junturas ósseas, propiciando um trabalho mais generalizado das
articualções dos pés, diminuindo assim as possibilidades de surgimento de lesões tendíneo-
ligamentosas, bem como das dores que as acompanha m, o que por fim favorecia o aumento das
distâncias percorridas. As adaptações corporais dos sertanistas às técnicas
indígenas não se restringiram à forma de pisar, requereram aprendizados significativamente mais
complexos, que envolveram remodelações e substituições importantes em seus padrões de
coordenação motora. Nas práticas de caça, os sertanistas aprenderam a usar o arco e a flecha,
instrumentos que até então não haviam utilizado. Para que se tornassem arqueiros ou flecheiros
eficientes, precisaram reordenar, reorientar seus padrões corpóreo-motrizes, ajustando-os à arma
indígena. Especificamente sobre este aprendizado, fizemos uma lacônica análise cinesiológica no
texto que ora enunciamos. A
contribuição dos índios nas bandeiras era sobremaneira aparente nas paragens carentes de caça.
Nessas oportunidades o índio assumia inteiramente o protagonismo, se assim pode ser dito.
Famintos, os paulistas dependiam inteiramente da perícia nativa em encontrar mel. Muitos índios
eram extremamente hábeis nesta tarefa, que consistia em avistar a abelha e correr atrás dela pela
mata, portando machados e cabaças, até que o vôo do inseto finalmente se finasse nos favos. Essa
destreza indígena, que impressionou muita gente no Brasil Colonial, envolvia dispêndio energético
acentuado, denotando apurado desempenho físico global, uma vez que exigia capacitações
múltiplas: relativas à resistência aeróbica, à coordenação motriz e à percepção espaço-temporal,
além da óbvia acuidade visual.
Nos sertões pobres de caça, a habilidade de prospecção melífera dos índios amainou a
fome de muitos bandeirantes, não apenas permitindo que continuassem seus avanços, como
também salvando muitos deles da morte por inanição.
Os índios foram importantes atores históricos da época bandeirantista, sobretudo no
século XVII, quando, segundo Monteiro, tornaram-se bem mais numerosos nas expedições. A
destreza em encontrar água foi outra grande contribuição dos indígenas engajados nas bandeiras.
Tal perícia, que envolvia técnicas diversas, favoreceu o caminhar das expedições pelos sertões
sem água.
Para a elaboração desse Capítulo II servimo-nos da produção de dois autores da
historiografia crítica, Luiza Volpato e Sérgio Buarque de Holanda, utilizando respctivamente como
fontes suas obras Entradas e Bandeiras e Caminhos e Fronteiras.
O Capítulo III, que no momento passamos a comentar, intitula-se Fugindo do
tempestuoso dilúvio: índios e jesuítas navegando e marchando no sertão. O texto subdivide-
se em três partes: Vivendo bandeirantemente e morrendo cristamente: a remissão dos
predadores de gente (parte 1); Capelães, beatões e padres: cúmplices da violência
bandeirantista (parte 2) e A fuga do Guairá: medo historicamente construído e terror
supersticioso determinam sôfrega motricidade humana (parte 3).
Utilizamos como fontes bibliográficas as obras Índios e jesuítas nos tempos das missões
– de Maxime Haubert; Marcha para o Oeste – de Cassiano Ricardo e sobretudo A conquista
espiritual – de Antônio Ruiz de Montoya. Além destas obras, qualificadas como fontes, outras
duas também foram utilizadas de forma significativa: Negros da terra – de John Monteiro e
História das bandeiras paulistas – de Affonso Taunay.
Na primeira parte do texto, já nomeada, tratamos da questão da violência dos ataques
bandeirantes às reduções inacianas. Extremamente ofensivas, as expedições apresadoras
promoveram a matança de muitos índios reduzidos no Guairá, revelando uma situação de
agressividade repetitiva e contumaz, já que os ataques foram ocorrendo ao longo do te mpo, na
primeira metade do século XVII, até que onze povoações fossem destruídas.
A ofensividade intensa dos sertanistas de São Paulo, com todas as suas implicações
predatórias, ressaltou-se como técnica militar nas bandeiras do século XVII. Matava -se parte do
contingente inimigo para capturar sua outra fração, que nem sempre era pequena. Chacinas para
obter a escravização, esta era a essência dos objetivos dos bandeirantes, que se organizavam
como regimentos de combate, caminhando pelas matarias à procura de índios. Desta forma, muitos
sertanistas atravessavam a vida, promovendo a violência e a devastação, derramando farto sangue
indígena no Brasil Colonial, principalmente no século XVII, quando o apresamento adensou-se
nitidamente. A despeito disso, a religiosidade fez-se presente entre os componentes das bandeiras.
Não aquela religiosidade estritamente cumpridora dos ditames católicos, mas uma religiosidade
profundamente temerosa, consciente de suas abominávies faltas e preocupada com o perdão
formal dos homens do clero. É recorrente na historiografia a singular mudança de maneiras
observada em muitos bandeirantes idosos. Já se aproximando do fenecimento, o violento caçador
de índios buscava redimir-se perante Deus, deixando bens em espólio para confrarias religiosas,
comungando freqüentemente, solicitando a visita do padre quando doente e finalmente
reconhecendo filhos bastardos, frutos de cópulas (muitas vezes forçadas) com índias. Procuramos
portanto demonstrar essa devoção peculiar, que não sofreava a agressividade desabrida, mas que
atormentava os sertanistas por toda a vida, tornando-os na velhice obsecados com a salvação
eterna. Na segunda parte do texto, cujo título também já mencionamos,
buscamos o entendimento acerca da função dos capelães que acompanhavam as bandeiras. Estes
homens receberam do padre Montoya o depreciativo epíteto de beatões, dadas as particularidade
de suas maneiras condescendentes ao presenciar os assassinatos e os apresamentos dos indígenas.
Essa condescendência não era explí cita, mas sim atitudinal, uma vez que esses capelães buscavam
conversar sobre a devoção a Deus com os jesuítas das reduções no próprio momento do
apresamento, com a barbárie campeando à sua volta. Levar padres nas expedições fazia parte das
necessidades dos bandeirantes, especificamente visando obter perdão por seus atos.
Ainda nesta segunda parte do
Capítulo III, julgamos também importante buscar informações adicionais sobre a conduta dos
clérigos coloniais antes e depois do século XVII, visando sobretudo apurar se os falsos devotos –
como os adjetivou Haubert –, se fizeram presentes apenas nas expedições bandeirantistas. Nessa
procura, encontramos na obra A Companhia de Jesus e o plano português do Brasil, de
Vitorino Nemésio, importantes menções sobre a chegada do padre Manuel da Nóbrega ao Brasil,
na metade do século XVI, quando este sacerdote ficou estupefato com o desregramento e a
licenciosidade dos padres da Bahia e de São Vicente, que mantinham relações sexuais com índias,
sendo que alguns deles dispunham de seis delas para tal prática. Foram muitos os filhos naturais
advindos destas relações, valendo observar que vários padres se tornaram pais seis ou sete vezes.
Já na obra História Geral das Bandeiras Paulistas, de Affonso Taunay,
encontramos valiosas informações sobre as iniqüidades do clero no início do século XVIII, após a
descoberta das minas auríficas. Religiosos de diversas ordens afluíram para os locais de
mineração. Estes clérigos de má vida, como os alcunhou Taunay, iam para as áreas mineiras para
fugir às penas impostas pelas cúpulas católicas, ou até mesmo buscando evadirem-se das garras da
justiça real. Dessa forma, é fácil entender que estes homens não tinham um passado sem máculas.
Agindo em contrariedade às ordens de seus superiores clericais, que reiterada e oficialmente os
admoestavam a retornar a seus conventos e paróquias, esses padres teimavam em permanecer nas
minas, onde levavam vida livre, inseridos num ambiente heterogêneo, onde pessoas de conduta
suspeita não eram necessariamente raras. Buscando a síntese desse texto,
esclarecemos que nosso intento primordial foi analisar a função dos capelães nas bandeiras, os
quais entendemos também como elementos apresadores passivos, já que não sofreavam, em
nenhum momento, as atividades destrutivas dos bandeirantes. Porém não nos furtamos de
pesquisar um pouco mais amplamente sobre a conduta do clero no período colonial, pesquisa essa
que nos propiciou a compreensão de que as atitudes condenáveis – aos olhos da igreja – dos
capelães paulistas não foram isoladas, não estando portanto circunscritas apenas ao bandeirismo.
Se os beatões de Montoya – que são os mesmos falsos devotos de Haubert – faziam vista grossa
à chacina e à escravização de índios no século XVII, os padres que indignaram Nóbrega na
centúria anterior já se regalavam sexualmente com mulheres indígenas, sendo que também no
começo dos oitocentos os clérigos de má vida, abordados por Taunay, viviam em notório
desregramento ao redor das minas de ouro. Revela -se, portanto, a notável incidência de religiosos
que contrariavam os dogmas da Igreja no Brasil dos séculos XVI, XVII e XVIII, avultando-se os
capelães bandeirantistas, pelos atos bárbaros que presenciaram sem nada fazer.
Na terceira parte do Capítulo III, cujo título já teve sua enunciação, tratamos da
abordagem de alguns aspectos significativos da retirada dos doze mil índios de San Ignácio e
Loreto, as duas últimas reduções dentre as treze anteriormente existentes no Guairá. Dirigida pelo
padre Ruiz de Montoya, essa fuga em massa para o extremo sul teve implicações singulares. Antes
da partida, onze povoados haviam sido devastados pelos bandeirantes. A face mais fria da vilania
havia se revelado portanto inúmeras vezes. Destarte, os índios de Loreto e San Igná cio
experimentavam uma profunda sensação de perigo iminente, presas do medo historicamente
construído. Entre os missionários, além do medo de homens, iniciou-se um processo de
exacerbação mística, onde as inquietações advindas de especulações sobrenaturais associavam os
bandeirantes ao diabo. Essas aflições religiosas forma naturalmente passadas para os índios, já que
estes estavam ali sendo doutrinados pelos jesuítas. Indícios malígnos eram entrevistos pelos
missionários, como estátuas suando ou chorando, aparições do diabo disfarçado de mameluco ou
até mesmo ardilosamente sob a forma da Rainha do Céu.
Estava presente no Guairá, de forma evidente, todo o arcabouço
dogmático espiritual da Idade Média européia, especialmente respeitante à Espanha, ber ço da
Companhia de Jesus. A permanência da mentalidade religiosa medieval, com todo o seu fatalismo
e sobrenaturalidade, delineou-se detalhadamente em Loreto e San Ignácio. Os escritos de
Montoya deixam isso muito claro, pois anunciam a proximidade do final dos tempos, associando-a
ao determinismo da passagem de um cometa. Em recente obra, intitulada Ano 1000, ano 2000:
na pista de nossos medos, Georges Duby aborda esta questão dos sinais da natureza, que eram
entendidos no medievo como anunciadores do juízo final. O historiador francês inclusive cita as
aparições de cometas entendidas como presságios, prelúdios do fim do mundo. Montoya, em
certo trecho de A conquista espiritual, na iminência da partida para fugir dos bandeirantes,
expressa-se como alguém que teme a proximidade inadiável do juízo final, exteriorizando, pelo
teor ou conotação de suas palavras, sua convicção acerca do avizinhamento deste evento. Os
bandeirantes chegariam espalhando a devastação. Estátuas haviam suado ou chorado. Aparições
sob a forma de mamelucos haviam sido observadas ... As hordas anticristãs1 , os destruidores
do gênero humano2 irromperiam em breve das matas, abatendo-se implacavelmente sobre as
duas derradeiras povoações guairenhas. Os índios, doutrinandos dos missionários, absorveram
todo esse denso imaginário apocalíptico, experimentando portanto não apenas o medo do
bandeirante cruel e palpável, mas também do sertanista avatar do mal, impregnado de
malevolência satânica. Para as intenções primordiais de nossa pesquisa,
que centram-se na análise do desempenho corporal humano, a abordagem dessa situação de
medo profundo e coletivo foi fundamental, pois abriu perspectivas coerentes, em termos
estritamente científicos, de entendimento sobre a fuga dos doze mil índios do Guairá, liderada pelo
padre Montoya.
A fisiologia humana, ciência que trata do funcionamento e das funções orgânicas,
possibilitou-nos o respaldo necessário para escrever com segurança sobre a intensa motricidade
evidenciada pelos retirantes. O temor é uma sensação que desencadeia uma grande gama de
modificações fisiológicas no corpo humano. Tendo sido os habitantes guairenhos submetidos ao
medo historicamente construído (onze reduções haviam sido devastadas), bem como ao terror
supersticioso (disseminado pelo s jesuítas), torna -se evidente que em seus corpos operou-se uma
importante mudança de padrões fisiológicos, cujas especificidades determinaram uma situação de
motricidade intensa. Em outros termos, pode ser dito sem reservas, que o desempenho corporal
durante a fuga foi intensificado pelo medo. Um desempenho corporal sôfrego e obviamente

1
Maxime Haubert, aludindo ao misticismo reinante no Guairá, escreveu que os mamelucos “ fariam parte das hordas do
anticristo” (Haubert, 1990, p. 170).
notável, que fez com que os fugitivos alcançassem os limites do sul brasileiro, depois do
padecimento da fome, da epidemia de disenteria e da exaustão física advinda da marcha e da
navegação.
As implicações fisiológicas advindas do medo são muitas. Pesquisamos na literatura
específica da fisiologia do medo, buscando informações precisas sobre a relação medo-
motricidade humana, visando sobretudo entender mais esmiuçadamente acerca do desempenho
motor dos retirantes do Guairá. Dessa pesquisa resultou um rol de informações indispensável para
as intenções desta dissertação. Dessa forma, muitas explicações de ordem fisiológica estão
inseridas no próprio texto que ora introduzimos, mas outras, necessariamente detalhadas, forma
introduzidas ao final do trabalho, em forma de anexo. As explicações fisiológicas contidas no
próprio texto, em nosso entendimento não reompem seu fluxo em termos historiográficos. Porém
as outras, que estão em anexo, se inseridas no texto causariam um hiato na sucessão dos eventos
analisados. Fazemos aqui estas considerações para justificar a presença das laudas em anexo, que
não obstante saibamos não ser procedimento ordinário em trabalhos científicos, foram apensas
motivadas precisamente por duas razões que emanam puramente do cientificismo. A primeira
dessas razões é a preservação do entendimento histórico, que como já dissemos seria prejudicado
por explicações fisiológicas detalhadas no próprio texto, uma vez que tais informações são
compactas e extensas. A segunda razão reside na imprescindibilidade, na indispensabilidade de
constar nesta dissertação todas as implicações fisiológicas do sentimento de medo, pois este
assunto está relacionado, de forma indissociável, ao desempenho físico dos retirantes do Guairá,
que é o que buscamos evidenciar no texto. A
caminhada para contornar as grandes quedas do rio Paraná, bem como a navegação em
cachoeiras e correntes pedregosas, exigiu dos guairenhos um dispêndio energético muito grande,
que exauriu seus corpos inopinadamente. Além da marcha e da navegação, mostrou-se também,
de forma evidente, a grande habilidade de nado dos índios, quando algumas embarcações
soçobraram. Muitos retirantes morreram pelo caminho, obstados pelas adversidades da disenteria,
da falta de alimentos e do esgotamento corporal advindo do caminhar e do navegar. Os que
alcançaram o sul do Brasil, alquebrados e esfalfados, ainda se puseram a reconstruir San Ignácio e
Loreto, edificando prédios e templos, amainando e lavrando a terra.
O êxodo dos índios e missionários do
Guairá foi, em nosso entendimento, um episódio histórico onde a atividade corpóreo-motora se fez

2
Montoya, sobre os bandeirantes, escreveu “É seu instituto ... destruir o gênero humano” (Montoya, 1985, p. 125).
intensa, ensejada pelo medo de sertanistas agressivos e escravocratas, que humanos ou inumanos,
por sua vez também se movimentaram muito pelo Brasil Colonial, buscando aplacar a carestia de
suas vidas. Comentemos agora o Capítulo IV: Bandeirismo: desempenho corpóreo-motor
no Brasil Colonial. Este capítulo, o último de nossa pesquisa, divide-se em duas partes. Na
primeira delas, intitulada Meninos, homens e anciãos: sede, fome e cansaço na marcha
sertaneja, abordamos as implicações de notáveis adversidades verificadas nas caminhadas das
bandeiras, buscando demonstrar que nessas oportunidades a performance física revelou-se de
forma intensa, sobretudo pelos grandes percursos levados a termo. Milhares de quilômetros foram
vencidos em situações distintas, onde a exaustão, a fome e a sede não raro se fizeram presentes.
Nessas expedições, a presença de meninos ainda púberes, bem como a de homens idosos, foi por
nós entendida como passível de mais detida análise, já que em extremos opostos da vida, em
termos de idade, tais expedicionários denotaram ainda mais a performance física intensa, devido às
características anátomo -fisiológicas próprias dessas faixas etárias, comprovadas cientificamente
como limitantes em atividades que reivindicam esforços acentuados e constantes. Visando
propiciar melhor entendimento sobre a inclusão de meninos e anciãos nas bandeiras, em termos de
desempenho físico, lançamos mão de explicações fisiológicas e anatômicas, que esclarecem, em
termos precisos, as particularidades das limitações impostas ao corpo pela meninice e pela velhice.
Tais explicações, para não romper o fluxo do texto, foram colocadas em forma de notas de
rodapé.
No mesmo texto, tecemos também algumas considerações sobre a motivação primeva de
nosso estudo, que busca o entendimento acerca da atividade física do bandeirante não concebido
como herói, mas enfocado sob o prisma da historiografia crítica. Nesse sentido, julgamos ser
necessário dizer que a construção da figura do bandeirante herói, ao invés de ressaltar as evidentes
performances corpóreo-motrizes levadas a cabo nas marchas, acabou por ocultá-las, já que as
diluíram em partículas infinitesimais, inseridas em textos pomposos e empolados, onde profusos
adjetivos eruditos concorrem para alçar o viandante planáltico à categoria de personagem
epopéico. As marchas dos heróis, nesta representação apologética repleta de interfaces, padecem
sob o domínio das motivações ideológicas, calcadas predominantemente na sugestão de liderança
nata dos paulistas. Em outras palavras, o mito bandeirante, de certa forma e curiosamente, não se
detém na particularidade mais espantosa de seu pretenso protagonista: o desempenho corporal
evidentemente acentuado. A historiografia ufanista não se detém nisto pelo perigo daí decorrente
em evidenciar demais a pobreza de São Paulo, fator econômico que ensejou as grandes jornadas.
Se percebidos como miseráveis, os paulistas iniciariam a ser entendidos como homens comuns,
começariam a ser despidos de suas vestes de heróis, perdendo sua aura mítica. O homem
ordinário seria então vislumbrado ... mas o Brasil está cheio de homens ordinários. A nação não
precisaria portanto de um paulista para governá -la. Poderia ser um mineiro, um pernambucano ou
um matogrossense, já que o paulista nada tinha de diferente. Estaria assim desconstruída a
representação heroística do bandeirante, caso a historiografia apologética o apresentasse como
homem envergado e condicionado pelos determinismos históricos de seu tempo. Para nós,
que procuramos visualizar o bandeirante sob o viés da historiografia crítica, evidencia -se ainda
mais a faceta do paulista viandante, que buscando se safar da carestia denotou notável rendimento
motriz, percorrendo áreas grandes não apenas no interior da colônia portuguesa, como também na
América espanhola. Entendemos que qualquer outra característica
construída do bandeirante não consegue, mesmo que tantas vezes reiterada na historiografia
apologética, sobrepujar a faceta mais significativa do homem piratiningano, que foi a de cumpridor
de extensas e extenuantes jornadas a pé, oprimido pela carestia do planalto paulista.
Na segunda parte do último capítulo, intitulada O papel da
motricidade bandeirante na mudança da configuração contextual do Brasil Colonial,
procuramos mostrar como a motilidade dos paulistas causou modificações significativas na
sociedade colonial. Nessa tarefa, a obra ¿ Y que és la História ?, de Saturnino Sanches Prieto,
de imediato descortinou importantes possibilidades de aplicação objetiva em nosso estudo,
apresentando-se como satisfatório respaldo teórico-metodológico. Utilizamos também os
conceitos de Romein citados na obra de Prieto sobre “ El Progreso”, ao abordar a prosperidade
dos engenhos nordestinos, em contraposição à penúria vivenciada em Piratininga, berço do
bandeirismo. Prieto, citando Romein, escreveu que a “ atmosféra de la autosatisfaccion es
suscetible de actuar como un freno a nuevos progresos”, observando ainda que “ el progreso
viene muchas veces de otros pueblos atrasados ...” , e ainda que “ ... el retraso, en ciertas
condiciones, es una vantaja que espole hacia nuevos esfuerzos” . O atraso de São Paulo em
relação ao Nordeste no século XVII era evidente. Nos sólidos engenhos nordestinos, alicerçados
no poder dos grandes senhores de terras, a “ atmosféra de autosatisfaccion” se fazia presente. Na
Vila de Piratininga, cujo cotidiano se fazia repleto de privações e adversidades, tal “atmosféra”
não era experimentada, ensejando condições onde a população buscou soluções práticas para
seus problemas, configurando os “ nuevos esfuerzos” de um “ pueblo atrasado”, que devassou
as brenhas à cata de índios e minerais de valor. A leitura da obra de Prieto, além de ter sido útil em
termos de aplicação prática em nossa pesquisa, facilitou, através das teorias do historiador J.
Romein, um entendimento mais específico do que é entendido como progresso em termos
historiográficos, contribuindo sobretudo para que pautássemos, de forma mais embasada, a
situação econômica díspar verificada entre o planalto de São Paulo e as capitanias do nordeste.
Após feitas as considerações sobre os
fatores que determinaram as marchas dos bandeirantes, fatores esses entendidos como
contingências históricas, partimos para a análise de algumas expedições bandeirantistas do século
XVII, que por suas peculiaridades variadas configuraram-se como situações onde a faina física
avultou-se de forma perceptível. Abordamos a expedição de Domingos Jorge Velho, que cumpriu
seis mil quilômetros de percurso antes de assaltar o Quilombo dos Palmares. Enfocamos também a
bandeira de Antônio Raposo Tavares, que caminhou de dez a doze mil quilômetros pela América
Colonial. Nessas duas oportunidades as dificuldades foram extremas,com muitas baixas
registradas em seus respectivos contingentes.
Agruras significativas foram também vivenciadas pelas expedições do início do século
XVIII, que trouxeram à luz o ouro de Cuiabá, no Centro-Oeste brasileiro, afastado
aproximadamente dois mil quilômetros de São Paulo. Pululam na historiografia – tanto crítica
quanto apologética – os revezes enfrentados pela prospecção aurífica no oeste, à época em
muitos pontos intocado por homens não naturais daquela extensa área. A bandeira de Pascoal
Moreira Cabral jornadeou por caminhos incógnitos, antes de encontrar incrustações de ouro nas
barrancas do Coxipó-Mirim. Não menores adversidades enfrentou Miguel Sutil, que graças a dois
indígenas coletores de mel, encontrou o ouro de aluvião, no lugar onde germinaria a vila de
Cuiabá. Contemporaneamente, em terras goianas, a expedição de Bartolomeu Bueno da Silva
Filho perdeu quatro dezenas de integrantes, mercê do esgotamento corporal imposto pela fome.
Depois desse infortúnio, em nova arremetida, o próprio Bueno da Silva acabou por liderar outra
expedição, desta feita encontrando os jazigos auríferos de Goiás. Essa expedição, para Synésio
Sampaio Góes Filho – que publicou em 1999 a obra Navegantes, bandeirantes, diplomatas –
foi a última bandeira típica de que se tem notícia. Não faz parte de nossas intenções embasar
demoradamente nossa concordância ou discordância em relação às palavras deste autor, já que o
foco central de nosso estudo não procura tanger essa questão. Contudo, expressamos nosso
entendimento de que a passagem da época bandeirantista para a monçoeira não se deu de forma
compartimentada, abrupta ou estanque. As monções foram gestadas no bojo do bandeiriamo, cujo
princípio primário era a locomoção, que entre estes dois períodos utilizou-se de vias de
penetração distintas: as veredas das matas e a rede hidrográfica.
A descoberta do ouro no Centro-Oeste deu-se no ocaso do bandeirismo. As últimas
expedições a pé propiciaram então, pelo sucesso de suas prospecções minerais, um afluxo de
grande contingente para a proximidade das minas. Essa migração envolveu não apenas os
moradores da colônia, como também os de alé m-oceano. Em face disso, foi aberto um caminho
pedestre para Goiás, ao mesmo tempo em que as expedições fluviais Porto Feliz-Cuiabá foram se
tornando a preponderante via de acesso para as paragens do ouro de aluvião. Esmaecia o
bandeirismo propriamente dito, que em primeira instância causara essa nova dinâmica na colônia,
uma nova época, no dizer de Alfredo Ellis Júnior. A transmigração acentuada,
que envolveu milhares de pessoas, acabou por deslocar as populações do nordeste para o
sudeste, ponto de partida para alcançar as minas recém-descobertas. Dessa forma, a
prosperidade que antes se associava ao cultivo canavieiro nordestino, passou a ser relacionada à
mineração. O rush do ouro no século XVIII acabou por adensar demograficamente outras áreas
do Brasil, que atraíram – com o correr do tempo – para si, até mesmo o poder político central,
que transladou-se da Bahia para o Rio de Janeiro em 1763. As monções partiam de São Paulo,
pelo rio Tietê, atraindo aventureiros provindos de diversos lugares. A capitania de São Vicente
aumentou drasticamente sua demografia, tornando-se paulatinamente a mais populosa da colônia,
característica que – guardadas as devidas proporções – ainda é observada no estado de São
Paulo do Brasil atual.
Estas últimas observações, quase um exercício parafraseático de alguns trechos da última
parte do Capítulo IV, foram ensejadas para que evidenciemos nosso entendimento de que a
motricidade corporal dos integrantes das bandeiras, tendo como fator desencadeante a pobreza
paulista, contribuiu, de forma importante, para a mudança da configuração contextual do Brasil
Colonial. O ouro estava no interior do continente, no hinterland, distante e escondido. Os
bandeirantes o encontraram, após uma miríade de expedições desvestidas de êxito. Marcharam
não raro exaustos, ultrapassando os limites de seus próprios corpos, acossados pela sede, pela
fome e pelo sentido de alerta ante as matas desconhecidas. O desempenho físico desses andejos
possibilitou o encontro do almejado metal, que por sua vez determinou as significativas mudanças
ocorridas no Brasil Colonial, já aludidas preliminarmente.
CAPÍTULO I

O BANDEIRANTE E O BANDEIRANTISMO

A análise do movimento bandeirantista,


fora da ótica do herói, a partir do estudo
das condições sociais de vida, evidencia o
alto nível de violências perpetradas contra
os silvícolas ...
Luiza Volpato

1. Do mito ao homem comum

O marco inicial da colonização efetiva do Brasil foi a fundação da Vila de São Vicente, por
volta de 1532. Situado em estreita faixa litorânea, o núcleo populacional nascente, instituído por
Martim Afonso de Souza, voltava-se para a Metrópole de além-mar. Já no princípio do
povoamento, foi construído o primeiro engenho de açúcar da Colônia, sob o nome de São Jorge
dos Erasmos, tendo o segundo surgido quase simultaneamente, denominado Madre de Deus.
Distante duas léguas, nascia também a Vila de Santos, erigida por Brás Cubas.

O cultivo canavieiro em São Vicente logrou êxito, com produção suficientemente


satisfatória para que o porto de Santos sustentasse movimentado comércio. A navegação regular
que paulatinamente se estabeleceu, propiciou aos vicentinos um cotidiano sem graves carências,
permitindo-lhes inclusive a obtenção de produtos provenientes da Metrópole.

A Serra do Mar foi transposta duas décadas depois da fundação de São Vicente, a 08 de
setembro de 1553, ensejando a ocupação do planalto paulista. Estava lançada a semente de uma
sociedade que viria a se distinguir daquela que vivia na orla marítima. No lugar onde era a aldeia
Inhapuambuçú, do líder indígena Tibiriçá, os jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta
fizeram germinar a Vila de Piratininga, a 25 de janeiro de 1554, referência decisiva para o
engrossamento da ocupação planaltina.

Do povoado que então se formou surgiria a figura do sertanista, do andejo que viria a
adentrar as matas visando apresar índios para, num primeiro momento, escravizá -los no labor
assistencial e, posteriormente, com a demanda de mão-de-obra dos engenhos, comercializá-los.
Essa relevante faceta do bandeirante, caçador e traficante de indígenas, é minimizada
sobremaneira na obra de Ricardo, que engendra uma concepção identitária do homem planáltico
representado predominantemente como um desbravador heróico e cristão, em busca de ouro e
pedras de valor.

Confessa-se o chefe da bandeira antes de sair. Logo depois parte o grupo


heróico e aguerrido. Rezarão por ele os poucos que ficaram. Também ele o
fará, já nos confins do mundo ...(RICARDO, 1942, p. 211).

O autor de Marcha para Oeste ainda confere aos bandeirantes as qualidades de arautos
da democracia, de opositores do capitalismo mercantilista europeu e de promotores da
miscigenação racial.

Evidenciou-se em VOLPATO (1985) que as bandeiras não eram agregações


democráticas, caracterizando-se por uma rígida estratificação hierárquica, onde o mando do cabo-
de-tropa ou mestre-de-campo era proeminente. A participação indígena nas expedições
desenvolvia-se sob o espectro do autoritarismo, sendo que os trabalhos executados por não
índios, situados nos patamares hierárquicos inferiores, também ocorriam sob a mesma égide.
Ressaltemos que muitos aborígenes engajados nas bandeiras de caça ao índio, eram eles
mesmos provenientes de apresamentos anteriores.
Essa prática remonta aos primórdios do bandeirismo, quando os primeiros índios foram
amansados pelos paulistas.
Na obra A questão indígena na província de Mato Grosso escreveu Vasconcelos:
Marcante, contudo, foi a formação de bandeiras com a presença de índios
para combater e capturar outros índios. (...) Desde o século XVI os
portugueses usaram intermediários indígenas na busca de cativos
(VASCONCELOS, 1999, p. 105).

Tecendo considerações sobre os subterfúgios apologéticos de Ricardo, observou o


mesmo autor:
Na obra Marcha para oeste, Cassiano Ricardo tentou eximir o bandeirante
da responsabilidade sobre a chamada fase da ‘bandeira de prea’, dando
um significado mais complexo ao bandeirantismo (VASCONCELOS,
1999, p. 104).

Essas palavras de Vasconcelos são lapidares, uma vez que propiciam um entendimento
mais crítico acerca do tergiversar de Ricardo, que busca evasivas para ocultar a característica do
bandeirante como caçador de indígenas. Evidenciando não apenas o apresamento, como também
o engajamento do próprio índio nas expedições apresadoras, Vasconcelos contribui notadamente
para protrairmos a intencionalidade presente no discurso de Ricardo, que simplesmente
fundamenta a mobilidade bandeirantista na perspectiva de obtenção de minérios valiosos, lançando
mão de um vocabulário exageradamente épico, evocando até mesmo seres mitológicos, guardiães
de riquezas naturais ignoradas pelos paulistas. Vejamos as palavras de Ricardo sobre as
motivações das marchas bandeirantistas:
... Atrás daqueles mataréos trágicos que pareciam querer contar-lhes o
segredo de uma fortuna escondida por dragões exclusivistas e odiosos.
Esses mitos, sim – arrastaram os grupos terra adentro. Naquela
mobilidade dramática e estrepitosa que ainda nos enche de espanto ...
(RICARDO, 1942, p. 46).

Panegirista do bandeirismo, Ricardo afirma, na mesma obra, que o objetivo principal das
expedições era a busca de pedras preciosas, chegando a mencionar que “uma esmeralda valia
mais que um latifúndio” (RICARDO, 1942, p. 51). Nota-se claramente a tendência antagônica de
suas assertivas, posto que na mesma obra o autor atribui aos bandeirantes a característica de
opositores do capitalismo mercantilista europeu. Parece-nos que quem parte para os mataréos
trágicos em busca de algo de grande valor, está em verdade raciocinando sob a lógica capitalista,
ansiando por lucro pecuniário. Expedições que buscavam unicamente riquezas minerais realmente
existiram, porém a maioria das bandeiras tinha como objetivo principal o apresamento de índios,
visando o labor escravo assistencial e o tráfico escravista para os engenhos canavieiros, o que
também era uma atividade mercantil do capitalismo, em sua fase de acumulação primitiva. Algumas
dessas expedições, ao mesmo tempo que apresavam aborígenes, não se furtavam de promover
também a prospecção de jazidas minerais, com as atenções de seus integrantes também voltadas
para este fim.
MONTEIRO (1994) explica que o ciclo bandeirantista de apresamento de índios só
findou-se no final do século XVII, quando a busca de jazidas auríferas robusteceu-se
notadamente.
No que tange à miscigenação, a representação mítica do bandeirismo engendrou a idéia de
igualdade e democracia racial. A igualdade inter-racial inexistiu nas bandeiras. Exemplo modelar é
o de Fernão Dias Pais, que para seus dois filhos dispensava atenções díspares. Um deles, Garcia,
“legítimo branco”, recebia atenções paternais convencionais; o outro, José, “mestiço-bastardo”,
experimentou o detrimento imposto por sua hibridez.
A última expedição de Fernão Dias partiu do planalto paulista em 1674. Já no sertão
houve um motim, que foi debelado com a execução dos amotinados. Entre os assassinados estava
José, o filho mestiço do chefe bandeirante.
Domingos Jorge Velho extinguiu definitivamente o Quilombo de Palmares em 1695,
quando matou o líder negro Zumbi. Tempos depois, instalado na propriedade que recebeu como
recompensa pelo feito, foi visitado pelo Bispo Dom Francisco de Lima. O religioso horrorizou-se,
quando Jorge Velho apresentou-se com suas sete concubinas índias.
Ao Bispo horrorizavam particularmente as ‘barbaridades, costumes e
vícios’ do paulista, que andava ‘metido pelas matas à caça de índios e
índias, estas para o exercício de suas torpezas e aqueles para o granjeio de
seus interesses.’ (GRYZINSKI, 1995, p. 74)

A democratização biológica mitificada por Ricardo, parece em primeira instância,


esbarrar na poligamia. As relações sexuais entre bandeirantes e índias eram principalmente
pautadas por motivações unilaterais, com o sertanista subjugando a mulher, não se importanto com
sua disposição para o ato.
Observemos o que escreveu Volpato:
Era comum ao homem do sertão o uso de índias como concubinas. Esse
concubinato era ao nível da exploração, numa relação na qual a índia era
aviltada, tanto em sua condição de mulher, como em sua condição de raça
dominada (VOLPATO, 1985, p. 73).

O abuso sexual de mulheres autóctones era na verdade um costume claramente recorrente


entre os bandeirantes. Muitas vezes, as índias nem mesmo eram tomadas como concubinas, já que
o concubinato é entendido como convivência e conjunção carnal cotidianas. O uso de índias
como concubinas, como escreveu Volpato, talvez fosse uma prática menos ultrajante – se
podemos assim dizer – que a curra ou o estrupo propriamente ditos, verificados principalmente
nos ataques às reduções jesuíticas. Quando do assalto dos paulistas à redução de Jesus Maria,
observemos o que escreveu o Padre Ruiz de Montoya:
Às mulheres deste povo e de outros destruídos, quando de boa aparência,
fossem elas casadas, solteiras ou pagãs, encerrava-as o dono consigo num
aposento, passando com elas as noites como o faz um bode num curral de
cabras (MONTOYA, 1985, p. 246).

Relações sexuais forçadas, onde a aquiescência das índias era obtida através da violência.
Estas são as situações mais recorrentes na história do sertanismo, sendo bem mais esporádicas as
ocasiões onde a cópula era precedida por cortejos, ou após o consentimento do autóctone
progenitor da mulher desejada.
Neste sentido, a democratização biológica que Ricardo atribuiu aos bandeirantes não
parece ter sido construída em bases essencialmente democráticas. Contudo, vejamos as palavras
desse autor: “... A mestiçagem é uma reação bio -democrática da raça contra uma condição social
anti-democrática” (RICARDO, 1942, p. 63, Vol. 2).
Conforme ficou claro em Gryzinski, Volpato e Montoya, o uso sexual das mulheres
naturais da terra era encetado pela vontade inflexível dos sertanistas. Em outras palavras,
parafraseando Ricardo, pode ser dito que a mestiçagem é uma reação bio-ditatorial contra
uma condição social democrática. Arriscamos essa paráfrase entendendo que em qualquer
condição social democrática a mulher é livre para escolher seu parceiro sexual, situação essa que
não era comum na conjunção física entre bandeirantes e índias. Parece-nos até que Ricardo
comete um anacronismo, ao perspectivar a análise da mestiçagem sob o prisma da democratização
racial, uma vez que aos atos cotidianos do Brasil Colonial não parece ser adequada a evocação
dos valores da democracia, como ela era entendida nos anos quarenta do século XX, quando foi
publicada sua obra Marcha para Oeste, onde reiteradas vezes ele tange a miscigenação como
elemento fomentador da democracia racial.
A quintescência da antítese da democracia racial foi protagonizada por João Leme. Tal
sertanista mantinha uma índia como concubina, vindo a descobrir que ela era amante de um índio.
Aviltado em seus brios, João Leme mandou prender os dois, torturou-os, providenciou a
castração do rival e finalmente consumou a dupla execução. João Leme era um dos legendários
irmãos Leme, que mesmo inseridos no universo violento do bandeirismo, lograram granjear fama
de facínoras temíveis.
Os diversos crimes desses homens façanhudos3 acabaram por levar suas cabeças a
prêmio. Tais criminosos foram mortos, tendo sido o juiz Godinho Manso quem instituiu a
recompensa. Panegirista proeminente do bandeirismo, Taunay apelidou Godinho Manso como
abutre forense (Taunay apud Ricardo, 1942, p. 238).
A história do bandeirismo é sobretudo impregnada do derramamento de sangue indígena,
do despovoamento das matas e da exploração do homem pelo homem. Os núcleos populacionais
ensejados pelas expedições, em suas características iniciais, configuravam-se como pequenas
agregações humanas, próximas ou mesmo insinuadas nos perímetros então esvaziados, onde antes
aldeias inteiras existiram, povoando desde há muito o interior do continente. Arrancado de sua
vida tribal, o homem natural da terra tornou-se trabalhador escravo nos engenhos e nas lavouras
de cana, sendo também utilizado sobretudo como flecheiro, em novas expedições de apresamento.
Teríamos muitos exemplos para corroborar as mazelas impostas aos índios no Brasil Colonial. No
entanto, basta evocar dentre tantos outros, o caso da bandeira de Domingos Jorge Velho, que
promoveu o assassinato em massa de aproximadamente 300 tapuios no Nordeste, devastando
suas principais aldeias. Em 1638, o rei Felipe IV nomeou uma comissão de espanhóis e
portugueses, visando a apuração das denúncias feitas pelos jesuítas contra os bandeirantes. Tal
comissão acusou os andejos paulistas do apresamento ou morte de 300 000 (trezentos mil) índios.
Volpato, contudo, esclarece que não se sabe ao certo a quantidade de silvícolas arrancados das
matas e missões jesuíticas: “ Grande parte deste contingente se perdia nas longas caminhadas a pé
desde o local de apresamento até São Paulo” (VOLPATO, 1985, p. 14).
Levando-se em conta o que escreveu Monteiro, no que diz respeito ao fechamento

3
Adjetivo aplicado aos irmãos Leme por RICARDO, C., Marcha para Oeste, p. 237.
do ciclo de caça ao índio no final do século XVII, conclui-se que após a apuração da comissão
mista em 1638, as muitas outras expedições de apresamento promoveram escravização e morte
de um número não estimado de indígenas, que elevou a estimativa calculada pelos portugueses e
espanhóis nomeados por Felipe IV. O próprio bandeirismo de contrato de Domingos Jorge Velho,
que devastou os tapuios no Nordeste, passando à larga do apresamento e praticando o assassinato
em larga escala, ocorreu já no último decênio dos seiscentos.
Com as bandeiras de busca ao ouro a
utilização de mão-de-obra indígena não se extinguiu, mas orientou-se de outras formas. O índio
continuou a servir os sertanistas em labores diversos, embora já não mais fossem objeto de tráfico
intensivo. Nas roças, na coleta de alimentos, na caça de subsistência, o homem natural da terra
continuava vivendo sob o despotismo de seus mandantes. O mel era alimento particularmente
apreciado pelos expedicionários paulistas, que para obtê -lo se serviam dos silvícolas, hábeis em
encontrar colméias seguindo as abelhas com os olhos. Em outubro de 1722, o sertanista Miguel
Sutil dirigiu-se do Arraial de Coxipó até a localidade onde hoje se ergue a cidade de Cuiabá,
visando observar uma roça já iniciada. Lá chegando, ordenou que dois índios saíssem à cata de
mel, munidos de machados e cabaças. Os índios demoraram a retornar, só o fazendo já noite
avançada, tendo Sutil os recebido com rispidez. Os meleiros haviam falhado na procura de
colméias, mas apresentaram ao irritado paulista um embrulho feito com folhas, contendo vinte e
três granitos de ouro, que pesavam cento e vinte oitavas. Assim, ao acaso, foi descoberto o ouro
em Cuiabá, por dois indígenas destros nos rastreamento melífico. Ocupamo-nos, até o
presente momento, em evidenciar alguns aspectos básicos do universo bandeirantista, emanados
das páginas da historiografia. Fez parte deste intuito divisar os bandeirantes como homens comuns,
que premidos pelas circunstâncias contextuais de seu tempo, buscaram alternativas práticas para a
solução de seus problemas diários. A conotação heróica do sertanista paulista foi iniciada pela
historiografia produzida no final do século XIX, tornando-se alentada no início do século XX.

Nos estertores do Governo Imperial, os cafeicultores de São Paulo prosperavam


pronunciadamente. Observemos o que escreveu Volpato:

Esse é o período em que os cafeicultores paulistas, impulsionados por um


surto de desenvolvimento que o governo imperial não tinha como atender
e premidos por exigências, ascenderam ao poder através da Proclamação
da República (VOLPATO, 1985, p. 19).
Já encarapitados no poder, os dirigentes cafeeiros iniciaram a urdir a legitimação popular
de suas aptidões hereditárias de mando. Nessa urdidura, tais aptidões eram sugeridas como
provindas da ancestralidade bandeirante.
Sertanistas paulistas, cafeicultores paulistas ... Gerações extemporâneas de uma mesma e
gloriosa linhagem, com habilidades já há muito comprovadas no exercício do poder.
Posteriormente, já nos anos 20 do século XX, o governo do estado de São Paulo investiu
significativamente em projetos de pesquisa sobre o bandeirismo, através de incentivos e
financiamentos. Essa iniciativa fez proliferar o número de trabalhos sobre o tema, com vários
livros sendo publicados. Surgiu deste rol a mais extensa obra sobre o assunto, História Geral das
Bandeiras Paulistas , de Afonso d’E. Taunay.
Heroicizado, o planaltino comum das origens de São Paulo, que outrora marchara para
oeste, foi identificado com a expansão dos cafezais, que então avançavam na mesma direção.
Herdeiros de um legado ancestral de liderança, instrumentalizado na representação mítico/política
do bandeirante, os cafeicultores paulistas buscaram a afirmação de seus dirigentes, catapultando-
os ao suposto nicho social que alojava os homens mais aptos para governar. Quanto a isso
explica Volpato:
Assim, os paulistas, descendentes dos bandeirantes, deveriam assumir o
destino que lhes estava reservado e, a exemplo de seus ancestrais, tomar a
liderança do país. Aos paulistas os brasileiros deviam as conquistas e as
riquezas do passado; aos paulistas os brasileiros deviam o
desenvolvimento do presente. Sua liderança não deveria ser questionada,
porque lhes era própria. (VOLPATO, 1985, p. 19)

Confundindo os interesses de alguns com os de todos, ou seja, os interesses dos grupos


cafeeiros com os da Nação, a historiografia de então não apenas configurou-se como elemento
político-ideológico, mas também contribuiu sobremaneira na transmutação do sertanista planaltino
em figura mítico/legendária, herói épico de um contexto rústico, que lhe reivindicava características
excepcionais para a solução das portentosas adversidades que se multiplicavam. Como
corroboração, observemos as virtudes do bandeirante apresentado por Ricardo, após a queda
da República Velha, revestido como detentor das qualidades de chefe da ditadura nacionalista do
Estado Novo:
O costume de só vermos o herói no chefe de bandeira nos leva a esquecer,
ainda, outros aspectos de sua figura - entre os quais o governador
investido de todos os poderes, o chefe de um executivo que tudo ordena, o
legislador que decreta as leis ... o juiz que dá remédio às desavenças e
queixas ... provê todos os atos da vida civil. Ele não é apenas o cabo de
tropa, o generalíssimo: é o próprio poder público, o ditador, o chefe de
estado. (RICARDO, 1942, p. 27)

Essas palavras de Ricardo são emblemáticas tanto no que diz respeito à instrumentalização
política do bandeirante, como no que tange à sua representação heroicizante. Para o autor, o
bandeirante não é apenas herói - “O costume de só vermos o herói ...” -, mas também possuidor
de características administrativas que o qualificam a gerir expedições sertanistas ou nações:
“Ninguém como o chefe da bandeira encarna tão bem a concepção de governo forte.”
(RICARDO apud VOLPATO, 1985, p. 20)
As características de comando e capacidade administrativa são aqui atribuídas ao
bandeirante em adição à sua condição de herói. Ao mencionar que o sertanista paulista possui
outros atributos, em adendo à sua probidade heroística, Ricardo conota como inalienável esta sua
última faceta. Destarte, torna-se clara a insinuação do bandeirante como detentor de óbvio,
legítimo e irrefutável heroísmo. Ora, se o costume nos leva a só ver o herói em alguém, é porque
este alguém é supostamente herói em primeira instância. Se acaso este alguém possui ainda outras
qualidades, as possui além de sua condição primordial de herói. Em Ricardo, a historiografia do
bandeirismo engendrou um indivíduo que detém não apenas heroicidade, mas ainda inúmeras
outras qualificações em apêndice.
A própria hibridez racial do bandeirante, anteriormente desprezada e lançada no limbo das
etnias, passou a ser exaltada pelos panegiristas do bandeirismo, considerada como a forjadora de
um homem com características especiais. Um homem que reunia a inteligência do branco e as
habilidades físicas do índio. Este homem novo, apontado como privilegiado, era o mameluco, o
bandeirante mestiço. Em síntese, a mestiçagem, antes considerada degenerescente, passou a ser
apresentada como fator de aprimoramento racial, que propiciou o surgimento de um ser humano
excepcional, o mameluco, membro da raça de gigantes.
O interesse pelo estudo do bandeirismo, ensejado no fim do século XIX pelos próceres da
cafeicultura, e robustecido pelo governo paulista nos anos 20 do século XX, propiciou uma vasta
bibliografia sobre o tema. Autores como Taunay, Ricardo e Alcântara Machado tornaram-se
referências, em conseqüência de suas alentadas obras no que tange o assunto.
Bem antes dessas publicações, ainda no século XVIII, Pedro Taques de Almeida Paes
Leme escrevia sua Nobiliarquia Paulistana, Histórica e Genealógica. Essa obra, publicada
juntamente com outros trabalhos na década de 20 do século XX, já enaltecia os feitos
bandeirantes, porém não em proporções tão desbragadas quanto à produção bibliográfica que foi
estimulada primeiramente pelas cúpulas da cultura cafeeira, e posteriormente pelo governo do
estado de São Paulo.
Desde então, intermitentemente, o mito do bandeirantismo ressurgiu como insuflador de
sentimentos de varonilidade e tenacidade entre o povo paulista. Ressalta-se como exemplo
modelar a Revolução Constitucionalista de 1932 4 , quando São Paulo insurgiu-se ante a ditadura
de Getúlio Vargas, empunhando armas sob o argumento da reinstauração da democracia. O
Governo Federal apontou tal movimento como separatista. São Paulo contava inicialmente com o
apoio de Minas Gerais e Mato Grosso. Em dado momento, com o confronto bélico já deflagrado,
Minas Gerais inusitadamente aderiu às tropas governistas. A contribuição matogrossense foi um
batalhão de menos de uma centena de homens, comandado por Bertholdo Klinger. Nosso
objetivo, ao abordar essa luta armada, não é o de penetrar no âmago de suas implicações, mas tão
somente o de evidenciar a evocação da ancestralidade bandeirante 5 , num momento que
particularmente reivindicava a afirmação de sentimentos altaneiros e desassombrados. Atentemo-
nos para a letra do Hino da Revolução Constitucionalista, de autoria de Octávio Médice:
Marchai Paulistas
Bandeirantes da nova cruzada!
Paulistas da terra de glória!
Erguei-vos pela Pátria sagrada,
Que o Brasil quer a nossa victória!

As falanges valentes, guerreiras,


De entusiasmo e ardor varonil,
Formarão destemidas Bandeiras
Para honra do nosso Brasil!

No horizonte brilha o sol


O sol da Lei e da Verdade;
E de São Paulo é o arrebol
De toda a nossa liberdade!

Piratininga! A tradição!
Dos nossos filhos corajosos
E a desejada salvação

4
Tal movimento é também conhecido como Guerra Cívica de 1932 ou Epopéia Constitucionalista de 1932.
5
Às páginas 49, 50 e 51 estão apensas representações imagéticas identificando os combatentes paulistas de 1932 com seus
ancestrais naturais, os bandeirantes. Trata-se de material comemorativo da Epopéia Paulista.
Dos brasileiros bravos e gloriosos!

Marchai, Paulistas!
Fortes soldados da lei!
Marchai, altivos!;
Nosso Brasil defendei!

Bandeirantes de valor!
Vede o nosso céu de anil!
Vossos peitos e a altivez do nosso amor,
São trincheiras da vitória do Brasil!

Bandeirantes! Para a guerra!


Em defesa da nação!
A coragem que São Paulo encerra,
É de toda a nossa gente redenção!6

Evocando os laivos épicos emanados da historiografia do bandeirismo, Médice construiu


versos incitadores.
A letra desse Hino Marcial denota a postulação do legado ancestral de liderança dos
paulistas, herdado dos sertanistas de Piratininga, revelando também a intenção de mesclar e
confundir interesses grupais (no caso os de São Paulo) com interesses gerais (os da Nação 7 ). A
liderança hereditária por merecimento, bem como a generalização de interesses, segundo Volpato,
foram as tônicas da instrumentalização política do bandeirante, efetivada no último decênio do
século XIX pelos dirigentes cafeeiros, e robustecida, com incentivos financeiros, pelo governo
paulista, nos anos vinte do século XX, como já vimos anteriormente. Mencionamos novamente
essa manobra político/ideológica, pretendendo verificar sua eficácia no que diz respeito ao
espraiamento da mitificação bandeirantista junto aos paulistas. A letra do hino Marchai Paulistas
foi escrita em julho de 1932, época em que a obra de Taunay se avultava como a mais alentada
dentre as produzidas na década anterior, quando dos incentivos pecuniários governamentais.
A historiografia do bandeirismo, unilateral e desbragadamente elogiosa no que tange ao
sertanista piratiningano, parece ter logrado êxito nos seus intuitos, disseminando eficazmente nas
instituições de ensino a construção mítico/heróico/épica dos habitantes das origens de São Paulo.
A letra desse Hino Marcial Paulista, foi composta, portanto, num contexto em que inexistiam
trabalhos ou obras que contrapunham a representação mítica da figura do bandeirante. Atentemo-

6
OLIVEIRA, F., Elementos para a história de São Simão, p. 339 e 340.
nos para o fato de que o autor da letra de Marchai Paulistas era um professor, um educador, que
no transcurso de sua própria formação escolar assimilara (e até muito bem, pelo conteúdo das
quadras escritas) a conotação heroicizante do bandeirante.

Até mesmo a concepção imagética dos livros didáticos atuais apresenta o sertanista
paulista como um homem alto, forte e viril, paramentado com chapéu de abas largas, botas altas,
gibão acolchoado e mosquetão. A expansão territorial lhe é atribuída em primeira instância,
qualificando-o como responsável pelas dimensões geográficas do Brasil. O corajoso desbravador
das matas é a figura primordial que se aloja no universo cognitivo dos educandos do ensino
fundamental, desdobrando-se no senso comum, onde se reproduz em dimensões consideráveis. A
reportagem publicada pela Revista Superinteressante (Abril/ 2000), aborda as bandeiras sob a
ótica acadêmica atual. O texto publicado apresenta como referências John Manuel Monteiro e
Sérgio Buarque de Holanda, enfocando os massacres de índios e missões jesuíticas, bem como o
apresamento e tráfico dos negros da terra. A capa da revista exibe mestiç os maltrapilhos,
encardidos e descalços, empunhando rústicas armas de fogo, encimados pelos dizeres:
Bandeirantes, a verdadeira cara dos conquistadores8 . Parece-nos óbvio que tal chamada de
capa não seria necessária, caso o grande público tivesse conhecimento dessa configuração dos
bandeirantes. Em outras palavras, a concepção dos bandeirantes como heróis agrestes e bem
paramentados parece estar bem disseminada na sociedade brasileira9.

Até o momento, nossas considerações visaram abordar o processo que la nçou os


bandeirantes à linha limítrofe que separa mitologia e história, transformando numa representação
construída o homem comum de Piratininga. Na historiografia do bandeirantismo, a tênue linha que
divide história e mito foi notadamente ultrapassada, causando ação deletéria nas intenções de
compreensão do período colonial brasileiro. Oportuniza-se aqui observar o que escreveu Vilar:
“... não negligenciemos o mito, porém certifiquemo-nos de que ele seja inserido numa evolução
histórica mais concreta, que deve ser reconstituída.” (VILAR apud D’ALESSIO, 1998, p. 43)

Entendemos que negligenciar a aura mitológica que envolve o bandeirismo seria uma
omissão de nossa parte, embora não seja necessariamente o fulcro de nosso objeto de estudo. Por
esse motivo, detivemo-nos neste assunto até agora. Nossa intenção essencial foi desalojar o
bandeirante de seu nicho de glória, onde se torna difícil lobrigar o ser humano convencional.

7
À página 52, se encontra o brasão do estado de São Paulo, que à época da Revolução Constitucionalista sofreu uma
interessante modificação.
8
À página 53, capa da revista Superinteressante, edição de abril de 2000.
Fomos movidos pelo cientificismo, uma vez que nossa postulação centra-se na atividade física
proeminente do bandeirante-homem, não do bandeirante extra-humano, situado num patamar
onde seus feitos são exaltados e glorificados, em detrimento de sua condição não extraordinária.

2. A luta contra a natureza

As duas décadas que separam as fundações das vilas de São Vicente e Piratininga, são
fundamentais para que possamos entender claramente o surgimento do bandeirismo. Em São
Vicente, como já vimos no início deste trabalho, a navegação mercantil, estabelecida com a
Metrópole, supria a população de suas necessidades mais prementes. A cultura canavieira
propiciava poder de barganha aos vicentinos, ensejando uma rotina livre de carências profundas.
O açúcar garantia aos litorâneos mais abastados, proprietários de engenhos, a obtenção de artigos
importados e de escravos africanos.
Já a comunidade que se estabeleceu no planalto, experimentou desde o início um viver
adverso, que apresentava dificuldades novas, inexistentes na orla oceânica. Assim, os paulistas de
Piratininga praticavam a lavoura trigal de subsistência, produziam seu próprio vinho,
manufaturavam seu próprio tecido e apresavam índios para o trabalho escravo.
As características antagônicas dos povoados praiano e planáltico geraram sociedades
díspares. Os habitantes de São Vicente, em virtude da ausência de necessidades básicas,
vocacionaram-se para a afixação, para o sedentarismo; enquanto os planaltinos foram instados ao
movimento.
Na obra Caminhos e Fronteiras, Holanda aborda em minúcias o viver cotidiano na
Capitania de Martim Afonso, resgatando detalhes que revelam as adversidades enfrentadas pelos
paulistas, bem como as adaptações de costumes que ensejaram um universo misto, onde hábitos
indígenas e europeus se interpenetraram.
Na sociedade que se formou em Piratininga, nasceu o movimento bandeirantista, que
iniciou a adentrar as matas apresando índios. Nestas incursões iniciais, os caminhantes exploravam

9
Às páginas 54 e 55 capas de dois livros considerados clássicos do bandeirismo: História das Bandeiras Paulistas, ,de
Affonso Taunay e Curso de Bandeirologia, compilação de conferências de diversos autores.
as florestas relativamente próximas ao povoado, uma vez que seu objeto de caça, o indígena, era
suficientemente fácil de ser encontrado. Esta é a gênese oficialmente veiculada e aceita no que diz
respeito ao bandeirismo, com a qual somos cordatos, considerando que bandeiras foram
expedições organizadas com objetivos específicos. Por outro lado, no que tange ao movimento
humano, lançando vistas para os tempos da ocupação do planalto, percebe-se que os homens
que galgaram a Serra do Mar já haviam empreendido intensa atividade corporal. A região serrana,
durante vinte anos, fora obstáculo considerado quase intransponível, impedindo aos vicentinos o
avanço para o interior do continente. Vários autores já escreveram sobre a grande montanha, que
por duas décadas manteve completa inacessibilidade. No que diz respeito a este acidente
orográfico, os escritos transcritos abaixo parecem ser convergentes:

Íngreme (a Serra do Mar), cheia de despenhadeiros, de acesso tão difícil


que os caminhantes tinham de marchar agarrando-se aos arbustos, a
montanha impunha-se quase como uma ‘muralha’ a impedir a penetração
pelo interior. (VOLPATO, 1985, p. 27)

... Subia o pessoal agarrando em raiz de árvore, machucando os joelhos


em pedra e correndo o risco de rolar pela ribanceira. (RICARDO, 1942, p.
72)

Em concordância com Volpato e Ricardo, apresenta-se Taunay, comentando sobre o


caminho do mar:

... O caminho do mar ... este caminho primitivo que na Serra de


Paranapiacaba tantos rumos tomou, vindo a ser chamado, no século XVI,
caminho do Padre José, começou como de esperar por ser o peior dos que
tinha o mundo ... era freqüentemente vencido pelos ascencionistas com a
cooperação dos braços e até dos cotovelos ...(TAUNAY, 1946, p.14)

Também em conformidade com Volpato, Ricardo e Taunay apresenta-se Holanda:

Vencida porém a escabrosidade da Serra do Mar ... (HOLANDA, 1990, p.


15)

Aqui, a adjetivação da montanha aponta incisivamente para a hostilidade natural de sua


configuração topográfica. Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa,
escabrosidade significa: 1. Qualidade de escabroso; ingremidade, aspereza. 2. Dificuldade. Ainda
segundo o mesmo dicionário, escabroso significa: 1. Pedregoso, escarpado, áspero. 2. Difícil,
árduo. 3. Oposto às conveniências.
Suspeitamos estar claro que a transposição da Serra do Mar exigiu intenso desempenho
corpóreo-motor dos homens que se estabeleceram no altiplano paulista. O aclive acentuado e
pedregoso, semi-coberto de vegetação e rochas soltas, ofereceu uma situação onde a atividade
física se fez plena 10.
Esses caminhantes que alcançaram o planalto formaram o núcleo humano de onde
surgiriam os bandeirantes. Muitos destes homens que transpuseram a montanha, posteriormente
compuseram bandeiras, tornando-se portanto bandeirantes. Quando da transposição da
montanha, esses homens denotaram resistência suficientemente satisfatória aos esforços corporais
da empreitada.
Para nós, a relação bandeirante-desempenho corporal teve início nos paredões da Serra
do Mar, com os extenuantes esforços dos homens que avançavam rumo ao planalto.
Considerando que dentre eles houve integrantes de bandeiras, conclui-se obviamente que o já
bandeirante de um tempo posterior deixara seu rastro na montanha abrupta, explicitando as
primícias, os primórdios da principal característica bandeirantista, o movimento. As bandeiras,
expedições sertanistas organizadas, foram embrionariamente gestadas na Vila de Piratininga. Isto é
consenso. No entanto, a mobilidade dos paulistas do altiplano foi trazida pelos caminhantes que
venceram a Serra do Mar ... ou a própria mobilidade os trouxe, como queiramos.
Estas considerações pretendem buscar o entendimento de que o movimento é algo inerente
ao ser humano, não propriamente exclusivo de grupos específicos. É verdade que certas
configurações contextuais impelem o homem à atividades físicas mais intensas, como aconteceu na
Vila de Piratininga. Faz-se necessário, no entanto, divisar o rendimento corpóreo como elemento
presente em momentos assaz diversificados na história, permeando homens e grupos com
objetivos diametralmente opostos. O desempenho físico dos bandeirantes não lhes era inato em
exclusividade. Em termos anátomo-fisiológicos, os corpos dos caminhantes que compuseram as
expedições paulistas não eram excepcionais. Ali estavam homens comuns, que premidos pelas
circunstâncias, realizaram feitos físicos de envergadura verdadeiramente impressionante, como
teremos oportunidade de verificar adiante.

10
A escalada das escarpas da Serra do Mar envolveu quase a totalidade dos segmentos musculares dos corpos dos
caminhantes. Braços e pernas em movimentos díspares, mãos que agarravam tenazmente nos galhos, com a força imposta
pelo medo da morte. Pés que tateavam o solo, buscando o apoio mais seguro, evitando os elementos soltos. Cabeças que se
voltavam para cima e para os lados, esquadrinhando o ambiente, procurando o caminho menos perigoso. Alta secreção de
adrenalina, exacerbada sudorese, elevada freqüência cardíaca, grande ventilação pulmonar, fortes contrações miológicas,
acentuadas vascularização e oxigenação muscular, pronunc iado dispêndio energético. Todos estes mecanismos fisiológicos
levaram os homens que galgavam a serra a atingir seu objetivo, chegar ao altiplano.
Estamos abordando a transposição da Serra do Mar para evidenciar que o movimento
físico, foi na oportunidade realizado por indivíduos que ainda não eram considerados bandeirantes,
portanto homens desprovidos da aura épica do bandeirismo. Destarte, parece aclarar-se a
concepção de que o rendimento físico, presente nas bandeiras, foi um desdobramento natural de
dois espaços de tempo diferentes: num deles era preciso transpor a montanha, no outro era
necessário caminhar em busca de índios. Curioso é observar que os escaladores da grande serra
não são considerados pela historiografia ufanista do bandeirismo como membros da raça de
gigantes, mesmo tendo sido muitos deles bandeirantes posteriormente. A historiografia aponta o
movimento corporal como vocação específica do homem já instalado no planalto, atribuindo
notadamente tal peculiaridade ao bandeirantismo, desconsiderando a escalada da região serrana,
com todas as suas adversidades naturais. Corroborando estas reflexões, numa só frase
explicitamos nosso entendimento de que a mobilidade não é atributo apenas dos sertanistas do
planalto paulista. A história não é carente de exemplos que respaldam esta asserção. Em diversos
contextos históricos o desempenho corpóreo-motriz se fez proeminente, envolvendo homens de
tempos e etnias diferentes.
O movimento bandeirantista no Brasil Colonial insere-se como mais um elemento neste
extenso rol, que abarca uma vasta gama de etnias e motivações variadas. Os homens que
venceram a escabrosidade da Serra do Mar, na iminência do prorrompimento da ocupação
planáltica, não premeditavam a organização de bandeiras. Eram migrantes vicentinos, não heróis,
não bandeirantes, eram indivíduos que deixavam para trás o caranguejar no litoral – no
conhecido dizer de frei Vicente de Salvador –, buscando os cumes da penedia imponente.
Inusitados alpinistas coloniais, desprovidos de acessórios que lhes conferisse maior segurança na
escalada, confiando unicamente na força e destreza de seus braços e pernas. Pretendemos com
estas considerações, alhear os bandeirantes já assentados no Planalto da condição de detentores
de características físicas especiais. Vejamos o que escreveu Volpato: “A grande mobilidade das
bandeiras não pode ser explicada a partir de condições físicas especiais dos paulistas.”
(VOLPATO, 1985, p. 21)
Por bandeiras entende-se expedições organizadas visando o apresamento de índios e a
procura de minérios valiosos. Nestas expedições a intensa azáfama corpórea fez-se notória, porém
sem que isso possa facultar-nos a possibilidade de alçar o bandeirismo ao zênite da escala das
proezas físicas constantes na historiografia.
A gloriosa pujança da raça de gigantes provém em parte dos vicentinos que arranhavam
a costa como caranguejos, mas que acabaram por subir a Serra do Mar, usando suas frágeis
quelíceras 11 na admirável escalada.
Entendemos que a Serra do Mar foi um obstáculo extremamente difícil de ser transposto,
arriscando-nos ainda a refletir que talvez muito poucas vezes as bandeiras propriamente ditas
tenham enfrentado formações orográficas tão ásperas. Neste sentido, parece-nos razoável dizer
que os esforços físicos necessários para a ascenção em local tão abrupto e fragoso foram dos
mais notáveis do período colonial brasileiro, em face da diversificada performance motora que
envolveu a estrutura corporal dos ascensionistas, em termos literalmente globais. Não-bandeirantes
que lograram realizar uma tarefa que muitos bandeirantes jamais viriam a realizar, posto que em
tempos posteriores as expedições piratininganas já partiam do Planalto rumo ao interior do
continente, de costas para a Serra do Mar, uma grande muralha natural já vencida.
Na obra A economia paulista do século XVIII, Alfredo Ellis Júnior dedica o segundo
capítulo inteiramente ao propósito de ressaltar a existência de um lapso na historiografia que trata
dos primórdios de Piratininga, onde a Serra do Mar não é levada em conta, mesmo tendo sido um
elemento da natureza que influiu de forma suficientemente perceptível no contexto da Capitania de
São Vicente. Nesse texto, o autor faz observações enfáticas e extensas sobre a ausência de uma
abordagem que denote a relevância da Serra do Mar, enquanto elemento dificultador do acesso
ao Planalto.Inexiste na historiografia um trabalho que trate dessa questão a fundo, conferindo a ela
a significação devida. Citemos as palavras de Ellis:
Infelizmente, ao se estudar o passado paulista, não tem sido atribuída à
Serra do Mar a importantíssima função por este arestoso acidente
geográfico exercida na evolução do agregado humano localizado em
Piratininga. O estudo do passado da nossa terra vem sendo feito, como se
essa muralha orográfica não existisse (ELLIS, 1979, p. 65).

Embora a muralha orográfica tenha imposto esforços físicos acentuados aos primeiros
povoadores da Vila de São Paulo, a historiografia faz menções vagas sobre isso. A confragosa
cordilheira, que por vinte anos vedou o acesso dos litorâneos para o interior do continente,
aparece quase que obliterada na hist ória. Para isso contribuíram muito as enormes marchas
sertanejas, realizadas pelas bandeiras após a fundação de Piratininga. Tais empreendimentos, pela
característica recorrente de grandes distâncias percorridas a pé, ensombreceram a notável faina

11
Nome dado às patas dianteiras dos caranguejos, que são usadas para capturar suas presas.
física levada a cabo quando da transposição da montanha. Ao ascender à crista da grande serra,
os vanguardistas dos assentamentos planálticos venceram uma adversidade natural implacável, que
no entendimento de Ellis funcionou como elemento selecionador, que só permitiu aos homens mais
vigorosos chegar ao término da tarefa bruta:

Constrangidos a grimpar pelas arestosidade da serra, os vicentinos, é


evidente, não puderam todos atingir o objetivo. Muitos ficaram pelo
caminho! Outros desanimaram! Outros pereceram na difícil empreitada!
Não os ajudava o físico ou o moral. De fato, só venceram o páreo os mais
bem dotados de músculos e de agilidade. A Serra do Mar foi um
verdadeiro filtro seletivo, eliminando os indivíduos menos fortes... (ELLIS,
1979, p. 66) (o grifo é nosso)

Ellis aponta, de forma nítida e incisiva, para o importante papel desenvolvido pela
performance corporal na escalada das escarpas inclementes. O grande desempenho físico exigido
pelos paredões abruptos extrapolou os limites de não poucos homens, que se abateram pelo
desânimo, desistindo em algum ponto do traiçoeiro trajeto. Também não raros foram os que
despencaram das ravinas alcantiladas, encontrando a morte ao final da queda. Não aquinhoados
com elevadas qualidades corpóreo-motrizes, indispensáveis para o cumprimento completo do
escalamento, esses homens foram retidos pelo agigantado filtro seletivo da natureza. Ao escrever
que só saíram vencedores os mais bem dotados de músculos e de agilidade, Ellis tange uma
nota crua, incomum na historiografia, posto que as passagens históricas onde o corpo se ressalta,
via de regra padecem sob o dogmatismo acadêmico das explicações derivativas, que deslocam a
estrutura física humana para a orla dos fatos, como se ela não atuasse como fator significativo para
a mudança dos contextos sociais, que por sua vez são partes integrantes das contingências ou dos
processos históricos. Cabe aqui esclarecer nosso entendimento de que a historiografia necessita,
obviamente, dos elementos contingenciais, para alcançar a compreensão dos processos históricos
ou das conformações contextuais. Contudo, isso não se eleva como concepção antagônica ao
nosso viés de percepção dos fatos ou episódios históricos, onde vislumbramos o trabalho corporal
atuando como fator de relevante importância. A subida da Serra do Mar, abordada por Ellis de
forma minuciosa, promove o entendimento insofismável de que o rendimento dos corpos dos
escaladores foi fator determinante, para que o intento de chegar ao planalto fosse atingido. Mais
ainda, não apenas o rendimento dos corpos, como também suas particularidades individuais, de
caráter não apenas anatômico, mas também motriz.
Corpos ágeis e corpos fortes, arrostando a impassibilidade inerte dos vultosos penedos,
das enganosas anfratuosidades dos paredões retos, correndo o risco da queda, da precipitação no
vazio. Corpos inábeis e corpos débeis, drenados pelo suor profuso, extenuados pelas contrações
musculares sequenciais ... corpos que não chegaram ao fim da ascenção, perdendo a vida ou
desistindo.
Dadas as particularidades da áspera escalada, os homens que chegaram ao topo da serra
certamente sofreram escoriações corporais diversas. Trabalhando simultaneamente com braços e
pernas, arrastando o abdômen e tórax nas encostas, avançando como quadrúpedes no aclive
rochoso, os escaladores da montanha não escaparam de esfoladuras nos joelhos e cotovelos,
arranhaduras na parte frontal do tronco, cortes e luxações, devido a situações de contrações
musculares em posições anti-anatômicas.
As grandes escarpas, depois de vencidas, voltaram a obstar o caminho dos homens que as
haviam transposto, agora em sentido contrário. Vejamos as palavras de Ellis:
Dificultando pela sua aspereza o livre trânsito entre o planalto e o litoral,
fez com que a vila de Piratininga se voltasse inteiramente para o sertão,
onde o paulista ia buscar ‘o remédio para a sua pobreza’: o índio. Ou
pesquisar tesouros naturais de pedras e metais preciosos ... (ELLIS, 1989,
p.277).

Desta forma, praticamente isolados da orla oceância e carentes economicamente, o


habitantes de São Paulo iniciaram a adentrar sistematicamente o sertão, iniciando a história das
bandeiras propriamente dita, que fora gestada, primariamente, na vanguarda da escalada da Serra
do Mar.
56

CAPÍTULO II
ÍNDIOS: CICERONES E MESTRES DO SERTÃO

Bandeira quer dizer movimento, e o


movimento é o índio.
Cassiano Ricardo

As marchas realizadas pelas bandeiras cobriram amplas distâncias, palmilhando


regiões até então infreqüentadas pelos europeus. Áreas ignotas, com densas massas
arbóreas, luxuriâncias verdes cujas copas ensombreciam troncos de diâmetros diversos,
irmanados e engastados pela trama do cipoal tropical. À primeira vista, não muito longe
das habitações perimetrais de Piratininga, a mataria parecia quase impenetrável. No
entanto, a inacessibilidade aparente das brenhas guardava trilhas toscas, que se espraiavam
para dentro do espesso emaranhado vegetal, avançando e entrecruzando-se rumo ao sertão
e à orla oceânica. À estreiteza dessas sendas somava -se ainda a profusão da galharia mais
baixa, obstando o avanço dos sertanistas do Planalto Paulista.
Na maioria das vezes os bandeirantes não devassaram florestas intocadas, mas
serviram-se dessas rústicas veredas ancestrais, que já existiam no continente.
Observemos o que escreveu Holanda: “Da existência efetiva destas vias já com
caráter mais ou menos permanente, antes de iniciar-se a colonização, nada autoriza a
duvidar” (HOLANDA, 1957, p. 23).
A origem de muitas dessas trilhas antigas, por vezes conferida aos índios, é também
atribuída às alimárias da fauna nativa. Quanto a isso, vejamos as palavras de Holanda:
E assim como o branco e o mameluco se aproveitaram não raro das
veredas dos índios, há motivo para pensar que estes, por sua vez, foram,
em muitos casos, simples sucessores dos animais selvagens, do tapir
especialmente, cujos carreiros ao longo de rios e riachos, ou em direção
à nascentes d’água, se adaptavam perfeitamente às necessidades e
hábitos daquelas populações. Hábitos a que os europeus e seus
descendentes tiveram de acomodar -se com freqüência nas viagens
terrestres... (HOLANDA, 1957, p. 35).

Parece estar claro que os sertanistas paulistas predominantemente não


incursionaram por regiões nunca antes palmilhadas, mas sim percorriam as matas servindo-
se de uma rede rudimentar de trilhas exiguamente estreitas, desde há muito utilizadas pelos
57

indígenas. Dessa forma, em primeira instância, a expansão das bandeiras foi auxiliada
pelas atividades caminheiras anteriores dos homens naturais da terra. Essas vias, por vezes
meros arremedos de acesso, serviam aos índios não apenas para sua locomoção em busca
de água, caça ou coleta de frutos, mas ainda para alcançar outras aldeias que pontilhavam a
mata. As andanças pelo continente começaram, portanto, muito tempo antes que as
embarcações dos portugueses atingissem as praias do Brasil. Não apenas os cascos do tapir
ou as patas da onça, mas muitos pés descalços já haviam pisado o húmus da floresta ou a
fragosidade dos campos, bem antes que a frota de Cabral zarpasse da Europa.
Especificamente sobre os Guarulhos, andejos do Planalto Paulista, observou Holanda:
Desses índios sabemos, por mais de uma referência, principalmente das
atas da Câmara paulistana, que eram andantes e sem pouso certo. Muito
caminho pisado mais tarde pelas bandeiras foi aberto e trilhado
inicialmente por eles, e assim terão contribuído para marcar de modo
definitivo a fisionomia da terra onde vagaram (HOLANDA, 1957, p.
33).

Furtiva e vigilante, mas sobretudo cons tante, a intensa movimentação do homem


natural da terra era indispensável para a manutenção da vida no ambiente selvagem.
Destarte, por serem então imprescindíveis à sobrevivência, o movimento e a atividade
física dos índios abriram picadas nas matas ínvia s da América, formando uma rede de
galerias rudimentares sob as copas das árvores. O cotidiano indígena, então ainda intocado
pelo europeu, configurava o antípoda do sedentarismo.
Vivendo em regime tribal, os nativos do continente não conheciam o
individualismo, partilhando comunitariamente com os de seu grupo os produtos advindos
da caça e da coleta. Por força deste hábito de partilha, que incluía informações sobre
veredas que conduziam a áreas de interesse comunitário, o fluxo intensificava -se a tal
ponto, que alguns caminhos se tornavam vias de trânsito regular, alargando-se mais do que
os outros, que eram predominantemente estreitos. Circunscritos ao meio agreste desde o
nascimento, os silvícolas naturalmente aprendiam, desenvolviam e apuravam, ao longo da
vida, uma vasta gama de técnicas que lhes assegurava a sobrevivência. Dentre esta miríade
de técnicas, que incluía práticas venatórias e de obtenção de alimentos, figuravam também
procedimentos que amenizavam o cansaço corporal advindo das grandes viagens a pé.
Viandantes de muitas jornadas, os indígenas granjearam experiência suficiente para
desenvolver uma pisadura singular, que diminuía os efeitos provenientes da exaustão
muscular e dos excessos causados às articulações dos pés. Quanto a isso, observemos o que
escreveu Volpato:
58

Caminhando com as pontas dos pés voltadas para frente e com os dedos
dos pés voltados para baixo, os índios conseguiam uma distribuição mais
uniforme do peso do corpo sobre as juntas dos pés e, com isso
conseguiam evitar o cansaço precoce e alongar mais as caminhadas
diárias. Estas transcorriam entre a madrugada e o entardecer
(VOLPATO, 1985, p. 66).

Também sobre a maneira indígena de caminhar, bem como sua eficácia ante a
exaustão, observou Holanda:

Com seu sistema peculiar, os índios não só economizam trabalho, pois a


ponta do pé encontra naturalmente menos superfície de resistência nos
galhos e macegas, mas também devido à distribuição mais proporcional
do peso do corpo, nenhuma junta desenvolve mais trabalho do que as
outras, nenhuma parte sofre maior cansaço, e assim – viribus unitis –
tornam-se possíveis percursos mais extensos (HOLANDA, 1957, p. 35).

Comparativamente aos primeiros bandeirantes, o cumprimento de grandes


distâncias por parte da população indígena se fez com menor sofrimento corporal, uma vez
que as particularidades de seus deslocamentos, mercê principalmente da singularidade do
pisar, propiciou uma situação anátomo-fisiológica que coibia em parte o desgaste na
estrutura articular dos pés. O deslocamento e o rendimento físico-motriz era elemento
fundamental para os povos indígenas do Brasil, sobretudo nos primeiros tempos da
colonização. As necessidades do regime tribal impunham o aprendizado de diversas
habilidades corporais, tornando os homens naturais da terra destros em múltiplas atividades
físicas, das quais trataremos mais adiante. Detenhamo-nos por ora nas marchas indígenas,
que contribuíram enormemente para o avanço dos bandeirantes mato adentro. Sem o saber,
subjugados pela postura senhorial dos cabos-de-tropa piratininganos, os índios foram os
verdadeiros mestres sertanistas dos bandeirantes, ciceroneando-os e iniciando-os nos
segredos do viver cotidiano, num universo que reivindicava habilidades específicas.
Guiando os expedicionários paulistas por trilhas incultas, os índios possibilitaram o
descortinamento de áreas remotas, nunca antes percorridas por homens oriundos de além-
mar. Desta forma, o alcance destas paragens longínquas foi em grande parte devido à
colaboração indígena. Vejamos o que escreveu Monteiro:

No decorrer do século XVII, a participação ativa de índios nas


expedições tornava-se cada vez mais essencial, à medida que se
buscavam cativos em locais desconhecidos pelos brancos (MONTEIRO,
1998, p. 111).
59

Pela metade do século XVII, profusa mataria cobria a região do atual estado de
Minas Gerais. Essa área, na época considerada sertão fechado e distante do Planalto
Paulista, apresentava, à semelhança dos arredores de Piratininga, significativo
entrelaçamento de veredas antigas, trilhadas pelos índios em tempos primevos. Respeitante
a isso, escreveu Barreiros:

Povoada por dezenas de tribos indígenas, essa área, que integra hoje o
Estado de Minas Gerais, era certamente cortada por trilhas infindáveis,
palmilhadas por ‘nações’ nômades de Tapuias, Pataxós, Tupimaés, e do
famoso Cataguá, além de tantos outros, em suas constantes andanças.
Sem a cooperação do chamado gentio manso, conhecedor desse
intrincado emaranhado de caminhos incipientes, teria sido difícil a
penetração do civilizado por aqueles sertões (BARREIROS, 1979, p.
05).

Destarte, suspeitamos estar claro que o avanço dos bandeirantes pelo sertão
incógnito contou com a importante colaboração dos indígenas, que familiarizados com as
tortuosidades, bifurcações e paralelismos das sendas , guiaram as expedições pelas brenhas
ínvias, por muitas vezes evitando que as marchas perdessem o norte. Por ignorar a
localização das sendas mais facilmente transitáveis, não raro as bandeiras enveredaram por
trilhas quase fechadas, nas quais perdiam tempo desbastando a galharia que obstava o
avanço, diminuindo o ritmo da marcha. No desbaste destes caminhos arremedados, o
trabalho físico era considerável. Usando facões e machados, os sertanistas, especialmente
os vanguardistas da expedição, empreendiam de sgastante atividade braçal, que aumentava
consideravelmente o cansaço corporal até ali advindo do caminhar. Para as muitas
bandeiras que contavam com índios conhecedores da trama formada pelas trilhas, o
avançamento era mais regular, uma vez que os caminhos menos incultos eram escolhidos,
sendo preteridos os menos batidos ou semi-abandonados.
A conformação das matas era familiar aos silvícolas, que sabiam onde estavam pela
observação das espécies vegetais e outros elementos. Sendo assim, se por vezes ocorria
adentrarem trilhas intransitáveis no ciceronear expedições, os índios, via de regra, não
tardavam muito em conduzir as tropas para uma via menos rústica. Uma determinada
árvore, uma pedra mais avultada, um toco à beira do carreiro ou um cipoal mais espesso; o
avistar de qualquer destes elementos comumente orientava os indígenas, não raro
indicando a proximidade de um trilheiro de melhor fluxo. Nessas oportunidades, os índios
guiavam as expedições no ato de abandonar a vereda, adentrando o mato fechado, onde
60

depois de caminhar desbastando certo trecho, apresentava -se uma trilha mais espaçosa do
que a anterior, possibilitando a marcha regular, sem interrupções12.
Em carta ao rei de Portugal, em 26 de outubro de 1725, já quando os sertões haviam
sido pa lmilhados nas mais diversificadas direções, escrevia Rodrigo César de Menezes: “É
certo senhor, que sem o gentio não podem os paulistas talhar os sertões”
(NDIHR/Documentos Ibéricos – Mfcha 15 – Doc. 750 – Anexo 02). Cumpre observar que
essa missiva ao rei foi escrita já no fim do primeiro quartel do século XVIII, mais de um
século e meio após as primeiras entradas.
Servindo-se da submissa assistência dos índios, os bandeirantes obtiveram
preciosas facilitações em seus deslocamentos pelos sertões. Destit uídas desta assistência
calcada na experiência agreste, as jornadas das bandeiras muito provavelmente sofreriam
importantes ações deletérias em seus avanços, ao revelar inabilidade em situações díspares.
Muito mais numerosos teriam sido os desnorteios na trama das matas, mercê da ausência
do conhecimento necessário para avançar, utilizando os referenciais naturais do meio
agreste.
A colaboração indígena nas expedições paulistas foi de fundamental importância.
No entanto, faz-se necessário salientar que muitos grupos nativos do Brasil empreendiam
suas andanças circunscritos à satisfação de suas necessidades, ou seja, locomoviam-se por
sendas específicas, que os conduziam à caça, à água e aos frutos nativos, essenciais à
sobrevivência. Em outras palavras, es tes grupos indígenas caminhavam por áreas restritas,
prescindindo de avanços maiores, uma vez que nenhuma necessidade os impelia. Quando
escrevemos áreas restritas não queremos dizer necessariamente áreas pequenas, mas
procuramos promover o entendimento de que as andanças de muitos grupos indígenas
ligavam-se diretamente ao abastecimento de víveres, restringindo-se a paragens
específicas, onde a obtenção era certa.
Dissociadas das bandeiras, as caminhadas indígenas eram reguladas pelo senso
tribal, obedecendo a fundamentos que visavam o sustento coletivo, que por sua vez era
configurado como nítida linha limítrofe em termos de distância. Nesse sentido, parece-nos
razoável observar que as marchas dos índios apresentavam padrões de finitude. Obtendo
água e alimento, encerrava -se o estímulo para a continuidade da locomoção. Já as
expedições bandeirantistas, especialmente as que buscavam riquezas minerais,

12
Apenas para avançar caminhando, excetuando-se outras situações de esforço físico, os bandeirantes,
guiados pelos ínidios, empreendiam atividade física que envolvia trabalho de membros superiores e
inferiores, ora simultâneo, ora alternado.
61

movimentavam-se muitas vezes sem padrões de finitude , uma vez que o objeto de sua
procura jazia desconhecido em algum lugar do sertão. Diferentemente dos indígenas - que
sabiam onde estava o regato para coletar água, onde era o carreiro do veado para caçá-lo -,
os bandeirantes concebiam previamente a possibilidade de percorrer extensões incertas,
ignorando a área onde seus objetivos poderiam ser eventualmente atingidos. Destarte, a
finitude do caminhar só se dava quando do encontro dos sertanistas com seu objeto de
busca. As expedições, portanto, operavam com a noção de distâncias desmedidas. As
longas jornadas a pé, empreendidas pelas bandeiras, de certa forma fizeram com que os
silvícolas nelas inseridos cobrissem distâncias maiores do que costumavam cobrir, quando
anteriormente palmilhavam determinadas áreas do sertão, buscando os elementos que sua
sobrevivência reivindicava. Ao trilhar distâncias mais amplas com as bandeiras, os índios
ultrapassavam os limites de seu primitivo território de ação, quando então os carreiros e
trilhas não mais lhes eram conhecidos. Nessa situação ulterior, onde sua faceta de
c icerones quase desaparecia, os indígenas continuavam contribuindo com o avanço das
expedições, especialmente com suas habilidades de encontrar água e alimento no ambiente
florestal.
A possibilidade de ficar sem água em suas incursões era uma das grandes
preocupações dos bandeirantes. Valendo-se da habilidade indígena, muitos paulistas foram
poupados de morrer de sede, mormente em regiões que não apresentavam minas ou
ribeirões. Os habitantes naturais da terra propiciavam aos expedicionários piratininganos a
presencialidade de situações inusitadas, onde técnicas aparentemente rústicas denotavam
grande eficácia. Como aprendizes ante doutos mestres, ainda que não o demonstrando em
termos atitudinais, os bandeirantes assimilaram ensinamentos valiosíssimos provindos dos
índios. No que diz respeito às maneiras utilizadas pelos indígenas para obter água,
escreveu Volpato:
... foi de valor extraordinário para os sertanistas as habilidades
desenvolvidas pelos índios em descobrir olhos d’água ou mesmo
córregos e algumas vertentes. Desde cedo os silvícolas aprendiam a
descobrir a existência da água pela configuração e coloração do
terreno, pela temperatura do vento e por outros sinais só perceptíveis
àqueles que tinham uma vida toda passada no sertão... (VOLPATO,
1985, p. 69).

A perícia indígena em encontrar água potável não se restringia apenas a minas que
afloravam da terra ou de rochas, bem como a riachos ou ribeirões. Outras possibilidades,
perceptíveis apenas aos sentidos apurados dos nativos, se revelavam em meio aos profusos
62

elementos silvestres. Determinadas espécies vegetais (como a árvore -fonte ou samaritana


do sertão, o umbuzeiro, o taquaruçu, o caraguatá e algumas espécies de cipó)
apresentavam-se como dádivas aos viajores das bandeiras, aplacando-lhes a tortura
imposta pela sede. Desconhecidos dos primeiros sertanistas piratininganos, tais vegetais
foram a eles revelados pelos índios. Com o decurso dos anos, após sucessivas incursões,
muitos bandeirantes tornaram-se tão destros quanto os índios, em suas técnicas de
prospecção hídrica. Holanda escreveu sobre a destreza de índios e bandeirantes no que diz
respeito a estas lidas, pautando em corroboração a argúcia no observar a natureza à sua
volta, abordando ainda como determinada árvore-fonte (samaritana do sertão) tornou-se
importante para as bandeiras que seguiam a rota para Goiás:

Os verdadeiros meios de que dispunham, tanto índios como sertanistas,


quando procuravam algum veio d’água em lugar onde nada indicava sua
presença, escapavam, todavia, a uma análise precisa e objetiva. Em
regra, esses meios, decorrem de extraordinária capacidade de
observação da natureza, peculiar a estes homens e inatingível para o
civilizado. A longa prática do sertão ensinava-lhes que o remédio pronto
para a sede poderia bem estar sob uma laje, ou um rochedo, ou mesmo
disfarçado por um tronco de árvore, onde não o alcançariam viajantes
descuidados ou inexperientes. Um dêsses verdadeiros tesouros ocultos
existiu muito tempo no Campo dos Parecis, que atravessava a estrada
para Vila Boa de Goiás. Num pau de cinco palmos de espessura e no
ponto exato onde começava a ramar, havia um buraco sempre cheio
d’água. Ali, por meio de canudos de taquara, costumavam refrescar-se
os sequiosos. Consumida a água, em pouco tempo voltava-se a encher o
buraco. Não fosse isso, o viajante poderia percorrer em todos os sentidos
a vasta planície sem ter onde beber, pelo menos numa extensão de
quatro léguas ( HOLANDA, 1957, p. 39).

Também sobre isso escreveu Volpato:

O contínuo andar pelo sertão, a observação da mata e o exemplo dos


silvícolas fizeram com que os bandeirantes fossem adquirindo mais
habilidade em encontrar água e aplacar a sede. Entre os meios
encontrados para livrar o sertanista da tortura da falta d’água destaca-
se a árvore-fonte, árvore-rio, samaritana do sertão. Estes eram os nomes
que recebia uma árvore natural dos sertões goianos e baianos que, muito
grande e copada, tinha nos ramos buracos cheios d’água, Estas árvores
davam exatamente nos terrenos secos, onde, num raio de quatro léguas,
dificilmente se encontraria água. Os viajantes, utilizando-se de pequenas
varas de taquara matavam sua sede, Consumida a água, pouco tempo
depois o buraco voltava a se encher, permitindo que outro sedento se
saciasse (VOLPATO, 1985, p. 69).
63

É notável a convergência de Volpato e Holanda no que respeita às informações


sobre a prospecção hídrica entre índios e bandeirantes. Igualmente, tais autores mencionam
ainda a utilização de vários tipos de cipó para amainar a sede. De tais espécies vegetais
serviam-se os membros das expedições, cortando-as e posicionando-as verticalmente,
donde vertia de sua extremidade um líquido fresco, apropriado para dessedentar
parcialmente as gargantas ressequidas. Esses cipós medravam em densas florestas, não
ocorrendo em terrenos fragosos. Ao palmilhar regiões rochosas, as bandeiras utilizavam-se
do caraguatá, que pela conformação de suas folhas configura um rústico vaso natural, onde
fica contida certa quantidade de água pluvial. Nas áreas relvosas, outra alternativa era o
taquaruçu, cujas hastes, entre seus nós, forneciam líquido semelhante ao obtido nos cipós
mencionados. Também em paragens ásperas, semi-áridas, era encontrado o umbuzeiro,
árvore leguminosa, fornecedora de tubérculos, que postos na boca, desmanchavam-se
fac ilmente, debelando a sede. Entranhados vários palmos sob a terra, os tubérculos do
umbuzeiro não eram fáceis de achar, exigindo peculiar procedimento da parte de quem os
procurava. Quanto a isso, observemos as palavras de Holanda:
Como esses turbérculos se achavam algumas vezes afastados cinqüenta
e sessenta passos da árvore, os índios costumavam bater no solo com um
cajado; pelo som das pancadas podiam saber onde lhes convinha cavar
(HOLANDA, 1957, p. 41).

Vale aqui ressaltar a agudeza e a sutileza desta técnica nativa, que pela
reverberação do impacto no chão, captava através da percepção tátil, no empunhar o
cajado, a exata localização da raiz do umbuzeiro.
Em síntese, no que tange à obtenção de água e líquidos de efeito fisiológico
congênere, os homens naturais da terra foram de relevante importância para as bandeiras.
Não fossem os índios, muitos sertanistas, em especial os precursores, teriam cambaleado
nas matas ou pradarias do Brasil, antes de fenecerem vitimados pela sede.
Quanto à alimentação, a contribuição indígena para o avanço das expedições não
terá sido de menor monta. Falemos a princípio do mel, gênero que teve singular
importância para a manutenção da energia física dos sertanistas, mormente quando da
carestia de outros víveres. Muitos índios eram pronunciadamente experimentados nos
métodos de obter mel, sendo conveniente ressaltar que tal destreza não era generalizada.
Aqueles que demonstravam habilidade em localizar colméias eram denominados meleiros.
O rastreamento melífero era uma atividade notável, sobretudo aos olhos dos europeus.
Vejamos as palavras de Holanda:
64

Acompanhando com os olhos atentos a pequenina abelha silvestre, tão


pequena às vezes como um pequeno mosquito, o índio encontra muitas
vezes os favos cobiçados, depois de buscá -los pelos atalhos da floresta.
Tal importância chegou a assumir esse trabalho para a vida do selvagem
que alguns, interpelados sobre o motivo que os levaria a arrancarem
sobrancelhas e pestanas, prontamente respondiam que assim o faziam
para melhor acompanharem as abelhas em vôo (HOLANDA, 1957, p.
47).

O olhar indígena, direcionado inarredavelmente para o pequeno inseto – que em


verdade tornava-se minúsculo ante a configuração imponente da floresta que lhe fazia
fundo – impressionou sobremaneira o pa dre Cardiael, jesuíta das Missões do Paraguai. O
religioso espanhol, espantado com a agudeza de visão dos meleiros, comparou-os ao lince,
animal de extraordinária acuidade visual, felino dotado de olhos tão poderosos, que figura
em diversas narrativas folc lóricas como sendo capaz de enxergar através das paredes. Em
Caminhos e Fronteiras, Holanda cita as palavras do padre Cardiael sobre a vista dos
índios: “ ... muitos a tem tão perspicaz como um lince, seja pela disposição particular de
seus olhos, seja, o que é mais natural, pelo exercício constante ...”

Comparações acaloradas à parte, evoquemos a racionalidade objetiva, que nos


direciona para a constatação de que a acuidade visual de alguns índios meleiros era
notável. Vale salientar, em corroboração, que a destreza no encontrar colméias não era
atributo generalizado entre todos os nativos do Brasil, porém também não eram poucos os
que se destacavam nessa lida. Uma quantidade considerável de silvícolas aprimorou-se
tanto na procura de mel, que durante as expedições eram incumbidos quase que apenas
disso. Lembremo-nos que foi, inclusive, a dois índios meleiros que o sorocabano Miguel
Sutil deveu o descobrimento do ouro cuiabano. Os indígenas saíram à cata de mel,
encontrando ao acaso o precioso metal de alu vião. Analisando de forma holística a
atividade corporal de rastreamento melífero, julgamos ser de fácil entendimento que não
apenas a acuidade visual levava o meleiro à colméia. Não apenas a agudeza ocular ou a
vista de lince , mas uma série de outras habilidades corpóreo-motrizes o conduzia aos favos
cobiçados. Ao avistar a abelha, ensejava -se a perseguição, que era desencadeada pelo
movimento global do corpo. Correndo pela mata, sem desfocar o olhar do inseto, o meleiro
revelava espantosa percepção espaço-temporal, desviando com rapidez dos obstáculos
naturais, que não eram poucos. O percurso da abelha não obedece a trilhas ou carreiros,
mudando de direção imprevisivelmente, adentrando o emaranhado arbóreo, por vezes
entrançado por cipoal e galharias. As mudanças constantes no curso da corrida, o desvio ou
65

transposição dos elementos florestais, o aumento da velocidade quando da iminência de


perder de vista o inseto; tudo isso exigia do índio coordenação corpóreo-motora no mínimo
satisfatória. Pernas este ndendo-se em largas passadas na desabalada carreira, braços
movimentando-se intensamente, propiciando impulso adicional para a rapidez exigida pela
perseguição.

Com o foco do olhar centrado na abelha, o índio servia -se da visão periférica para
aperceber-se dos troncos ou galhos maiores, dos quais desviava-se com notável destreza.
As ramarias mais finas eram ignoradas, sendo vencidas pelo próprio corpo em
deslocamento. A entomologia nos ensina que uma abelha pode se afastar vários
quilômetros de sua colônia, buscando o pólen para a feitura do mel. Considerando esta
asserção científica, faz-se razoável concluir que o meleiro por vezes empreendia corridas
de proporções significantes pela mata, ou seja, carreiras de proporções quilométricas.

Vale mencionar, sem contudo pretender inferir que isso configurasse grande
estorvo, que os meleiros levavam consigo machados e cabaças, instrumentos utilizados na
coleta do mel. Concernente a isso, escreveu Holanda:

Quando, após a caminhada matinal, uma tropa de paulistas se


arranchava em sertão pobre de caça ou de palmito, o trabalho maior
competia talvez aos índios meleiros, armados de necessários apetrechos,
que eram machados e cabaças (HOLANDA, 1957, p. 58).

Embora tais apetrechos não sejam necessariamente pesados, cumpre observar que o
volume por eles representado certamente contribuía para o aumento da dificuldade da
corrida, uma vez que a trama das matas não raro oferecia exíguos espaços úteis à passagem
do meleiro. Em síntese, corroboremos nosso entendimento de que a procura do mel era
uma atividade corporal notável, que exigia do índio destreza e agilidade. Entre o lobrigar a
abelha e o achado da colméia, desenvolvia-se uma situação de considerável desempenho
físico, singular percepção espaço-temporal e espantosa coordenação motora. Retornando
do âmago da mata, os meleiros entregavam aos paulistas não apenas o mel encontrado, mas
também um pouco de seu suor. Ao saciar-se com o precioso alimento produzido pelos
apídeos, os bandeirantes sorviam também uma parcela do suor dos índios, cujas mãos
molhadas haviam, a golpes de machado, retirado os favos dos ocos de pau.

Nos lugares ermos de caça, raízes comestíveis ou frutos, o mel manteve muitos
paulistas de pé, viabilizando a continuidade das marchas sertanejas. Sobre as áreas
desprovidas de outras opções alimentares, vejamos as palavras de Holanda: “Nesses casos,
66

o mel tornava -se o único remédio para a fome e a sua ausência significou muitas vezes a
última penúria” (HOLANDA, 1957, p. 58).
Os índios meleiros salvaram muitos bandeirantes da última penúria. Livraram
muitos paulistas da mais atroz das fomes, quando até mesmo sapos eram ingeridos sem
repúdio.
Além do mel, os índios ensinaram os bandeirantes a consumir uma grande
diversidade de gêneros vegetais e animais. Insetos, vermes e raízes faziam parte dessa
dieta, esdrúxula aos olhos dos europeus. Para sobreviver no sertão, os paulistas foram se
ajustando aos hábitos alimentares indígenas. Sobre isso observemos o que escreveu
Holanda:
... a acomodação à dieta alimentar dos primitivos moradores do país,
que constitui certamente resultado de um longo esforço de adaptação ao
seu clima e às suas condições materiais, terá favorecido qualidades de
energia e resistência, as mesmas qualidades que assinalariam os antigos
paulistas, por exemplo, em todos os recantos do Brasil (HOLANDA,
1957, p. 63). (o gifo é nosso)

As palavras de Holanda, além de abordarem a adaptação das bandeiras concernente


à ingestão de víveres, ressaltam sobremaneira características de aptidão física advindas
desses hábitos de ingestão. Essa frase do autor de Caminhos e Fronteiras atribui
qualidades de energia e resistência aos antigos paulistas , qualidades estas que teriam sido
ainda aprimoradas pela dieta aprendida com os índios. Não terá sido essa a única vez que
Holanda teceu comentários claros no que diz respeito ao desempenho corporal dos
bandeirantes. Outra obra do autor, Monções, apresenta diversas observações sobre a
capacidade física dos expedicionários de Piratininga. Vejamos algumas: “sóbrios, tenazes,
afeitos à fadiga ... a capacidade de resistir longamente à fome, à sede, ao cansaço ... a
energia física necessária a muitos desses empreendimentos ...” (HOLANDA, 1990, p. 18-
9).
Essas observações, no entanto, são entendidas, via de regra, como ensejadas pela
vida carente em Piratininga. Holanda, conscienciosamente, associa a notável locomoção
das bandeiras à escassez de recursos vivenciada na Vila de São Paulo. Senão vejamos:
A grande mobilidade dos paulistas estava condicionada em grande
parte, a certa insuficiência do meio em que viviam ... eles foram
constantemente impelidos, mesmo nas grandes entradas, por exigências
de um triste viver cotidiano e caseiro: teimosamente pelejaram contra a
pobreza, para repará-la não hesitavam em des locar-se por espaços cada
vez maiores ... (HOLANDA, 1990, p. 16 e 26).
67

Entendemos terem sido as marchas bandeirantes motivadas pela situação de penúria


vigente no planalto piratiningano. Esta pobreza proeminente, que privava os paulistas de
confortos primários, configurou-se como uma contingência histórica, que alavancou as
marchas sertão adentro. Destarte, as bandeiras que vararam as matas, sobretudo as
primeiras, eram formadas por homens em busca de soluções práticas para suas
problemáticas particulares, que eram principalmente causadas por carências cotidianas
múltiplas. Tal entendimento, sobretudo, não antagoniza nossa concepção de que as
bandeiras foram agregações de homens comuns, que demonstraram desempenho físico
notável. Os habitantes de São Paulo foram para o sertão à caça de índios ou à procura de
riquezas minerais, visando amenizar a miséria material de suas vidas. Para tanto, lograram
cumprir marchas incomensuráveis, onde muitas vezes os limites da extenuação corporal
foram notadamente ultrapassados. As distâncias desmedidas percorridas pelos
bandeirantes, constam abundantemente na historiografia. Sobre essas grandes extensões
cumpridas a pé, escreveu Volpato: “... os paulistas organizaram uma infinidade de marchas
para o interior ... percorreram distâncias inacreditáveis, devassaram o sertão” (VOLPATO,
1985, p. 46).
Ao escrever distâncias inacreditáveis, a autora de Entradas e Bandeiras,
normalmente comedida em suas palavras - posto que em suas obras desmistifica a aura
épica do bandeirismo –, expressa-se revelando distâncias tão grandes, que o fato de terem
sido cumpridas a pé não é crível. Essa interpretação intencionalmente literal das palavras
de Volpato é, contudo, forçosamente equivocada. Esse nosso equívoco ensejado tem, no
entanto, o objetivo de elucidar que é impossível que tais percursos não tenham sido
cumpridos em marcha, já que constam profusamente na historiografia, seja ela ufanista ou
anti-épica. Na verdade, entendemos claramente que Volpato, ao mencionar distâncias
inacreditáveis, não pretendeu evocar o antônimo literal de distâncias acreditáveis, mas sim
enfatizar as grandes dimensões das andanças sertanejas. Para que essas andanças se
concretizassem, parece-nos óbvia a imprescindibilidade de significativo dispêndio
energético, que por sua vez só poderia ser subtraído de corpos não necessariamente débeis.
Impelidos pela contingência histórica da miséria piratiningana, os bandeirantes foram a
configuração da antítese do sedentarismo. Foram os baluartes (e isso não nos parece épico)
da locomoção, foram dos corpos que mais se movimentaram no Brasil Colonial, foram os
signos vivos do deslocamento humano. Não prescindindo dos índios, que os auxiliaram
significativamente, os bandeirantes foram os maiores caminheiros da América de então.
Homens ordinários, nada extraordinários, mas que impelidos ao sertão por adversidades
68

contextuais, empreenderam enormes jornadas de pés descalços. Viajores de motricidade


não mensurável, os expedicionários de São Paulo tornaram-se os maiores sertanistas
daquele Brasil recortado de Capitanias, atingindo as mais longínquas delas, bem como
transcendendo os limites da colônia portuguesa, avançando a oeste e adentrando a América
Espanhola, contribuindo para o fracasso do Tratado de Tordesilhas.
Tendo absorvido dos indígenas as técnicas de sobrevivência agreste, os
bandeirantes – que já denotavam extrema mobilidade – puderam alongar a abrangência de
suas marchas. Já tendo abordado as habilidades dos silvícolas em encontrar água e mel,
gêneros preciosíssimos par a o êxito das expedições, mencionemos os métodos nativos de
caça, assimilados pelos bandeirantes. As práticas venatórias dos índios diferiam muito das
dos europeus, sendo mais furtivas, menos perceptíveis à presa. Vejamos as palavras de
Volpato:
Os índios orientavam os sertanistas na arte da caça, a partir de suas
técnicas específicas. Eram utilizadas as armadilhas, como tocaia,
juçana, jirau, juquiá, arapuca, etc. e também as armas indígenas. Estas
ofereciam a vantagem de poderem ser fabricadas quase que a qualquer
momento e não necessitavam de munição, elemento dispendioso no
armamento de uma bandeira. Além disso, as armas brancas ofereciam a
vantagem de não espantar a presa, uma vez que não fazem barulho. Com
o tempo, os próprios bandeirantes se tornaram destros no uso do arco e
flecha (VOLPATO, 1985, p. 67).

Acostumados aos mosquetes, os bandeirantes acabaram compreendendo o prejuízo


causado por essa arma às práticas de caça, devido ao estampido forte, que espantava todos
os animais das adjacências. Mais profícuo se configurava o andar cauteloso pela mata,
quase silencioso, acentuadamente vigilante. Atentos aos movimentos mais ínfimos, os
sertanistas paulistas aprenderam com os índios a grande importância de agir furtivamente
nas atividades venatórias.

Tornando-se hábeis no manejo do arco e da flecha, os bandeirantes assimilaram


novos padrões de coordenação motriz, no que respeita aos membros superiores.

Analisemos sucintamente, em termos cinesiológicos13 , o uso do arco e flecha. De


diferente empunhadura em relação às armas de fogo, o arco requer maior precisão e justeza
de movimentos para fazer-se frutífero. Empunhando o arco verticalmente com uma mão, o
arqueiro executa a ação simultânea de puxar o cordel para trás com a outra mão, ao mesmo
tempo em que faz arrimo para a ponta de flecha e retém entre os dedos sua porção
posterior. Ao tensionar o cordel para trás, o arqueiro faz um movimento antagônico à força
69

estática de seu outro braço, que retém o arco à frente. Este antagonismo de movimentos,
propiciado por contrações musculares díspares, requer coordenação motora específica, que
só é adquirida com a prática constante. A assimilação deste trabalho motriz é fundamental
para que a flecha seja lançada certeiramente. O alvo na verdade só será atingido quando da
automatização destes movimentos opostos. Fazer pontaria, mirar a presa, torna-se
improfícuo se a oposição dos movimentos não se harmonizar, propiciando estabilidade à
arma nativa.
A harmonização do antagonismo miológico14 somente é obtida após a repetição
sucessiva, ou seja, é resultado de treinamento. Um arqueiro não treinado, ao fazer pontaria,
não sustém a arma com estabilidade, comprometendo a direção da flecha. A coordenação
motora dos membros superiores deverá estar destra, para que no ato de mirar, a flecha
parta com destino certo.
Esta concisa análise cinesiológica sobre o uso do arco e flecha ensejou-se, devido à
evidente situação de aprendizado corpóreo-motor vivenciada pelos bandeirantes. Buscando
a eficácia venatória, os bandeirantes, até então acostumados ao uso das armas européias,
submeteram seus corpos a novos padrões motrizes, adaptando-os ao manuseio do arco e da
flecha.
Pode-se dizer dos métodos indígenas de caça, que além de serem mais eficientes do
que os europeus, contribuíram para que pontos distantes do sertão fossem alcançados.
Expressemo-nos melhor: os bandeirantes conduziam a pólvora – necessária para municiar
armas de fogo – em caixas encouradas. Quando do esgotamento dessas reservas, ou mesmo
da deterioração decorrente da umidade, o uso dos métodos venatórios indígenas, já
largamente utilizados, tornavam-se a única opção no predar animais para a alimentação. Se
dependessem exclusivamente de mosquetes ou mosquetões, as expedições bandeirantistas
não teriam atingido paragens tão remotas.
Muitas bandeiras permaneciam meses e até anos no sertão, sendo que nessas
oportunidades não raro os artigos de munição acabavam, quando então, em exclusividade,
as armadilhas e armas indígenas obtinham a caça, alimentando os expedicionários e
propiciando a continuidade da caminhada.
Suspeitamos que as linhas escritas acima denotem certa redundância de nossa
parte, apesar das diferenças vocabulares. No entanto, nossa intenção foi a de corroborar em

13
Respeitante à Cinesiologia, ciência que estuda o movimento humano.
14
Relativo à Miologia – estudo dos músculos.
70

ressalto a significativa contribuição dos métodos de caça nativos, fundamental para que as
mais extensas marchas fossem cumpridas.
Se nas práticas de caça os índios foram de fundamental importância, o mesmo não
pode ser dito quanto à pesca. Os estratagemas nativos incluíam espinhos e plantas tóxicas.
Ambos os procedimentos foram suplantados pelo anzol e pela rede, mais eficientes,
trazidos do Velho Mundo. Dos espinhos curvos os peixes escapavam com relativa
facilidade, sendo que a intoxicação ictiológica com tirigui e timbó foi restringida, pelo fato
de matar um número de peixes muito maior do que o necessário para o consumo.
Na alimentação frugívora, os nativos da terra ensinaram aos paulistas a utilização
do palmito, do pinhão, do araçá, do ananás, da guabiroba, do araticum, da jabuticaba, do
jataí,etc. Impelidos para o viver agreste, os bandeirantes foram viandantes de significativa
performance corpóreo-motora, vencendo distâncias espantosas. O desempenho físico dos
sertanistas de São Paulo, ainda que considerado o contexto em que estava inserida a Vila
de Piratininga, parece-nos ter sido no mínimo notável. Quanto à regularidade cotidiana das
marchas bandeirantistas, escreveu Taunay: “Descontadas as falhas, a bandeira poderia
facilmente caminhar 40 quilômetros diários” (TAUNAY, 1950, p. 61).
John Manuel Monteiro comenta, na obra Negros da Terra, a expedição de Raposo
Tavares, que cumpriu dez mil quilômetros, saindo de São Paulo, atravessando o Mato
Grosso e o Paraguai, adentrando novamente o Brasil pela Amazônia e alcançando
finalmente Belém do Pará, nas extremidades do norte do país. Domingos Jorge Velho,
antes de atacar Palmares, deslocou-se seis mil quilômetros do Piauí a São Paulo (visando
recrutar homens), e de lá retornando ao Nordeste, onde após dizimar aldeias tapuias iniciou
as investidas contra o quilombo liderado por Zumbi.
Fernão Dias Paes, passou os últimos oito anos de sua vida no sertão, morrendo na
barranca do Rio das Velhas, já longevo, aos 73 anos.
Incontáveis outros exemplos de ingentes esforços corporais constam na
historiogra fia do bandeirismo. A história do bandeirismo é sobretudo uma extensa crônica
de corpos em movimento. Nessa cena de intensa motricidade são escassos os corpos
estáticos. O movimento era a regra dos paulistas, sendo o sedentarismo a exceção.
De finitude imprevisível, as marchas bandeirantistas encontraram nos silvícolas
inestimáveis orientadores. Observemos as palavras de Holanda:
Em São Paulo, cuja população, particularmente a população masculina,
se distinguiu durante todo o período por uma excessiva mobi lidade, a
mistura étnica e também a aculturação, resultante do convívio assíduo e
obrigatório, seja durante as entradas, seja nos sítios de roça, deram ao
71

indígena um papel que será impossível disfarçar (HOLANDA, 1957, p.


68).

Os índios, mesmo tendo sido importantes agentes históricos do Brasil Colonial,


foram removidos estrategicamente do foco central do cotidiano da época, servindo de
títeres nas mãos dos historiadores apologéticos, que via de regra os mencionam
pejorativamente, sob o prisma comumente etnocêntrico do colonialismo europeu.
Para nós, os índios foram os verdadeiros mestres sertanistas dos bandeirantes.
Mestres obscuros, ensombrecidos pelos heróis épicos forjados nas páginas da
historiografia, sobretudo aquela produzida no fim do século XIX e primeiras décadas do
século XX, notadamente elaborada ideologicamente, visando ressaltar os paulistas como os
homens mais aptos a governar o Brasil.
John Manuel Monteiro entende que a função dos indígenas como elementos
históricos foi suprimida na histor iografia tradicional. Vejamos suas palavras:
De fato, a história dos índios apresenta um claro exemplo da omissão de
um ator significativo nos livros de história mais convencionais, pois com
a construção da figura do bandeirante, entre outros mitos da
colonização, o papel histórico do índio foi completamente apagado
(MONTEIRO, 1994, p. 119).

Sem os índios, as bandeiras não teriam realizado marchas tão notáveis. Sem os
índios, as bandeiras não teriam concretizado feitos de grande envergadura, tão decantados
na historiografia ufanista. Mais ainda, entendemos que em situações diversas os índios
foram os protagonistas de muitos devassamentos, colocando os paulistas como
coadjuvantes ou meros expectadores, ante a argúcia e a prática de quem sempre viveu nos
sertões.
72

CAPÍTULO III

FUGINDO DO TEMPESTUOSO DILÚVIO: ÍNDIOS E JESUÍTAS NAVEGANDO E


MARCHANDO NO SERTÃO

A história das nossas relações com os


índios é, em grande parte uma
crônica de chacinas ...
Darcy Ribeiro

1. Vivendo bandeirantemente e morrendo cristamente: a remissão dos predadores


de gente

A extrema violência dos ataques dos bandeirantes às missões jesuíticas semeou


profundo temor entre indígenas e clérigos. Quando dos assaltos, o pânico generalizado
tomava conta das reduções, enquanto a destruição e o massacre reinavam imperiosamente,
em meio a corpos desmembrados e igrejas e edificações incendiadas. Uma babel de sons
instituía-se caoticamente, quebrando o funcionamento da ordem estabelecida pelos padres.
O alto crepitar das grandes labaredas que devoravam os edifícios, as vozes ríspidas
dos cabos -de-tropa ordenando a matança, os estampidos dos mosquetes, o choro das
crianças, os gritos das mães desesperadas, os lamentos de agonia dos moribundos, os
clamores de clemência dos missionários. Em termos simplistas, as expedições de
apresamento eram agregações de andejos se deslocando pela mata à caça de seres
humanos. Nesse sentido, passando à larga das implicações contextuais, os bandeirantes
eram caçadores de gente. Levando em conta ainda o morticínio quando do abrupto início
dos ataques – morticínio este que visava coibir qualquer forma de resistência, através do
pavor generalizado –, podemos adjetivar os bandeirantes não apenas como caçadores , mas
também como predadores de gente. Afirmamos isto embasados pela lexicologia, pois a
ascepção literal da palavra predador significa: o ser que destrói outro violentamente. 15
Os aprestos para a organização de uma bandeira de apresamento incluíam
instrumentos diversos, sendo que muitos deles tinham como objetivo o combate e a
aniquilação da vida. Entre esses gêneros constavam o mosquete, o mosquetão, o alfange, o

15
Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.
73

punhal e o machete. Para os sertanistas mais proeminentes acrescentava-se ainda a espada,


que não tinha seu uso generalizado entre os expedicionários.
Os flecheiros, predominantemente indígenas engajados nas bandeiras, ofertavam
também a opção das mortíferas setas envenenadas, bem como das incendiárias. Vale ainda
registrar que o facão e o machado, que em primeira instância tinham como fim o desbaste
dos caminhos e trilheiros, eram também utilizados contra os índios nos ataques às reduções
jesuíticas, como teremos oportunidade de observar adiante. Cumpre também afirmar que
mosquetes, mosquetões e flechas eram amplamente utilizados para as práticas venatórias
de subsistência, bem como para a defesa ante animais selvagens, especialmente os felinos
de grande porte 16, significativamente profusos nas matas do Brasil Colonial.
Como usurpadores da cobiçada mão-de-obra indígena, os bandeirantes das
expedições apresadoras de certo modo eram impelidos ao emprego da força e da
agressividade, já que muitos grupos indígenas – especialmente os já cristianizados – não
eram conquistados pelas artimanhas da oratória, artimanhas estas propaladas pela
historiografia apologética como pacificação dos índios, ou ainda como conquista pacífica
dos mesmos.
O braço do silvícola era necessário como lenitivo para a miséria do planalto de São
Paulo. Esse lenitivo era via de regra obtido através de métodos inumanos, porém práticos.
A eficiência das bandeiras de apresamento, muitas vezes, tinha ligação direta com o teor de
selvageria empregado nos ataques aos grupos indígenas. Não por acaso, os assaltos às
reduções jesuíticas constam na historiografia como dentre os que mais capturaram índios.
O elemento surpresa e o prorrompimento abrupto da agressividade extrema arrefeciam as
intenções de resistência, prostrando submissa a grande maioria da população da redução
invadida. A estupefação e o aturdimento ante a determinação destruidora do ataque,
normalmente sufocavam o ânimo guerreiro dos indígenas, num primeiro momento
fazendo-os expectadores da exterminação de diversos integrantes de sua comunidade, em
seguida tornando-os fugitivos amedrontados, em busca de salvação in dividual. Com o
pavor semeado, extinguia -se as possibilidades de oponência coletiva, emergindo o
comportamento de fuga, que naturalmente sucede o medo profundo.
No que tange à entrada dos paulistas na redução de Jesus Maria, observemos o que
escreveu Mont oya:
Foi assim, e a som de caixa, de banderia desfraldada e em ordem
militar, que os paulistas entraram pelo povoado já disparando armas e,

16
Onças pintadas, onças negras e suçuaranas (onças pardas).
74

sem aguardarem parlamentação, atacando a igreja com a detonação de


seus mosquetes. Havia se acolhido a ela a gente do povo 17 ... Malferido e
cheio de cansaço protegeu-se um dos religiosos atrás de um tronco de
madeira. Com isso todos assestaram a ele sua pontaria
(MONTOYA,1985, p. 243).

Essas palavras, escritas na terceira década do século XVII, expõem de forma clara
que os assaltos dos sertanistas de Piratininga se caracterizavam predominantemente pelo
viés da aniquilação inicial de índios e padres, num furor predatório que imolava
considerável número de pessoas, antes que o apresamento propriamente dito se
consumasse. Sobre isso, na obra Capítulos de História Colonial, escreveu Capistrano de
Abreu:
... À primeira investida morrem muitos dos assaltados e logo desmaia -
lhes a coragem;os restantes, amarrados, são conduzidos ao povoado e
distribuídos segundo as condições em que se organizou a bandeira
(ABREU, 1982, p. 114).

Privilegiando o entendimento sobre o aspecto militar dessa e de outras expedições


que devastaram as reduções jesuíticas do Guairá e Tape, observemos o que escreveu
Monteiro:
No sul, particularmente em São Paulo, os colonos desenvolveram formas
específicas de apresamento, inicialmente privilegiando a composição de
expedições de grande porte, com organização e disciplina militares.
Foram estas as expedições que assolaram as missões jesuíticas do
Guairá (atual estado do Paraná) e Tape (atual Rio Grande do Sul),
transferindo dezenas de milhares de índios guarani para os sítios e
fazendas dos paulistas (MONTEIRO,1998, p. 108 e 109).

Esta citação de Monteiro aqui é feita tão somente visando a elucidação das
características fortemente tendentes ao militarismo, presentes nas bandeiras de
apresamento até aproximadamente 1640. Milícias armadas e estratificadas
hierarquicamente invadiam as reduções, observando o cumprimento de estratégias
previamente elaboradas, empunhando bandeiras18 e tocando caixas de guerra. Eram
regimentos de combate em primeira instância, que chacinavam primeiramente um
determinado contingente do inimigo, incutindo pavor nos sobreviventes, que eram o
objetivo principal do ataque. Na obra Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens
de São Paulo, Monteiro escreveu sobre o triste destino de alguns índios no trajeto entre o

17
A gente do povo são os índios da redução em questão.
18
Aqui o termo tem seu significado mais usual.
75

local de apresamento e o planalto paulista. Quanto a isso faremos menção adiante. Ainda
sobre o ataque dos bandeirante s à redução de Jesus Maria, vejamos a continuidade da
narrativa de Montoya: “Resolveram os inimigos queimar a igreja ... por três vezes atiraram
setas inflamadas ... o fogo fez, na quarta tentativa, a presa irremediável na palha da igreja”
(MONTOYA,1985, p. 244).
Lembremo-nos que a igreja estava apinhada, acolhendo a gente do povo em seu
interior, que para lá havia confluído quando do início da sanha assassina dos
expedicionários de São Paulo. O ato de incendiar o edifício propiciaria sua evacuação
forçada ou mesmo queimaria vivas as não poucas pessoas que lá se abrigavam do caos
exterior. Acuados pela fumaça e pelo calor que se adensavam, religiosos e índios foram
tomados pelo mais paroxístico desespero. No desnorteio coletivo, um impasse implacável
se apresentava: lá fora estavam à espera o chumbo, o aço ou na melhor das hipóteses o
apresamento; cá dentro as labaredas se avultavam rapidamente, cascatas de palhas
chamejantes caíam do teto, onde as vigas eram já de um vermelho vivo e incandescente.
As toras das paredes em pouco seriam grossos cilindros em brasa, que tombariam ao chão.
A morte por incineração seria uma amarga escolha, uma escolha praticamente impossível
de ser feita, dado seu caráter indizivelmente doloroso. A opção pelo abandono da igreja se
deu causada pela fuga do fogo. A porta principal do templo estava em chamas, restando
aos apavorados índios e jesuítas a saída por um baixo portão secundário. Destramelando-o
e passando em fila pela estreita abertura, muitos indígenas encontraram um hediondo fim
do lado de fora. Vejamos as palavras de Montoya:
Abriram então um portãozinho, pelo qual saíram os índios ... Com isso
acudiram ao mesmo portãozinho, como possessos pelo demônio, aqueles
tigres ferozes 19 e começaram, com espadas, facões e alfanges, a derrubar
cabeças, matando com a maior brutalidade ou barbaridade já vista no
mundo (MONTOYA, 1985, p. 244 e 245).

Fugindo do fogo, saindo em fila pela exígua passagem que conduzia para o exterior
da igreja, os índios foram trucidados pelos bandeirantes. A cena descrita pelo autor de A
conquista espiritual não nos sugere nenhuma espécie de confronto, nenhuma espécie de
refrega ou batalha. Aponta sim para um episódio onde vários assassinatos foram cometidos
por homens armados, cujas vítimas – adultos 20 e crianças – saíam desnorteados de um

19
Aqui MONTOYA (1985) se refere aos bandeirantes como tigres ferozes, numa alusão alegórica a
predação e violência presenciada por ele na redução de Jesus Maria.
20
Sendo os índios adultos de ambos os sexos mercadorias valiosas no planalto paulista, é provável que
fossem muitos deles poupados da morte, sem que isso possa conferir segurança para que afirmemos que não
foram muitos os assassinados.
76

prédio enfumaçado e incandescente, prestes a desabar. Nada de peleja, nada de contenda,


mas sim um grupo de sertanistas, deliberadamente esquartejando toda uma fila de índios.
Uma aberrante horda de carrascos, uma inconcebível turba de verdugos em ação, tangendo
a concretude bestial de um inimaginável festival sanguinário, surrealista e orgíaco, onde
pedaços de corpos caíam sucessivamente ao chão. O paroxismo da algidez humana
configurou-se quando os pequenos párvulos indígenas foram mortos. Recém-nascidos, que
há pouco tempo repousavam no calor do ventre materno, agora experimentavam a
frialdade cortante das lâminas afiadas. Como corolário de sua obra nefasta, os bandeirantes
cometeram sucessivos infanticídios na redução de Jesus Maria. Quanto a isso, escreveu
Montoya:
Digo sem exageros que aqui se viu a crueldade de Herodes, e se viu em
muito acrescida, porque aquele, ao perdoar às mães, contentou-se com o
sangue de seus filhinhos delicados. Mas estes (novos “Herodes”) não
se fartaram nem com uma nem com outra coisa, não bastando à sua
ferocidade insaciável sequer os arroios que do sangue inocente
brotavam. Provavam eles o fio de aço dos seus sabres em cortarem os
meninos em duas partes, em lhes abrirem as cabezas e despedaçarem os
seus membros fracos. Importavam numa confusão horrenda os gritos, o
berreiro e os uivos destes lobos, de mistura com as vozes chorosas das
mães, que ficavam atravessadas pela espada bárbara e também pela dor
de verem despedaçados os seus filhinhos ( MONTOYA, 1985, p. 245).

Este nefando morticínio junto ao templo fumegante, condenado pelas labaredas,


engendrou uma visão ultrajante aos olhos do jesuíta. Faz-se oportuno observar, à guisa de
ênfase, que na mentalidade sertanista o desencadear da mortandade obedecia a princípios
que visavam um propósito: o apresamento dos autóctones (que como já observaram vários
autores – citando trechos de escritos bandeirantistas – era o remédio para a pobreza do
povoado do planalto).
Analisar as investidas bandeirantes à luz dos conceitos que regem a sociedade do
Brasil atual, seria por demais pueril. O olhar do homem do século XXI, se dissociado de
todos os determinismos sociais do século XVII, seria desfocado, perdendo-se em algum
ponto entre duas palavras de significados diametralmente opostos: civilização e barbárie. É
certo que o significado de ambos os vocábulos, em termos conceituais (não literais ou
lexicológicos), encerram conotações digamos modificadas, decorridos quase quatrocentos
anos. Em outras pala vras, o que hoje se entende por barbárie não é exatamente o mesmo
que se entendia na décima sétima centúria, podendo ser dito o mesmo em relação ao termo
civilização. As temporalidades diferentes, bem como o considerável espaço cronológico
77

que medeia entre os setecentos e o início do século XXI, requerem uma postura científica
cautelosa quanto à essa questão da terminologia e suas concepções, que se flexibilizam no
decurso dos anos, apesar de, via de regra, as acepções literais das palavras serem mantidas.
Fazemos estas reflexões tão somente para evidenciar nossa preocupação no que
concerne ao cuidado em não lançarmos insinuações atemporais, desprovidas das
indispensáveis implicações históricas que envolveram as bandeiras, neste caso as
específicas de caça ao índio. Imiscuir qualquer conceito ou juízo de valor contemporâneo
ao abordar o Brasil Colonial, certamente resultaria num desmonte de qualquer arremedo de
compreensão do período em pauta. Nesta tarefa, a inserção desavisada de qualquer código
de conduta hoje concebido coletiva e tacitamente, ainda que não expresso na formalidade
das leis, evocaria, mesmo que involuntariamente, o anacronismo. Neste caso, o embuste
historiográfico se consumaria, ao limitar os atos dos homens do passado entre as raias que
balizam o comportamento dos homens de hoje. A mentalidade – mesmo levadas em conta
as permanências – é outra, os padrões sociais não são iguais, e o mais importante: os
contextos hitóricos não são similares, com toda a sua carga multifacetada de contingências
e fatores determinantes.
Os bandeirantes eram homens de sua própria época, regidos por peculiaridades
históricas específicas, onde o fator econômico desempenhou um papel preponderante. Os
maltrapilhos que habitavam a vila de São Paulo, logrando superar a carestia profunda de
suas vidas, lançaram-se ao sertão, tornando-se caminhantes de inusitadas longitudes. A
mentalidade dos bandeirantes também apresentava traços singulares, produto do
antagonismo entre a violência desenfreada e o catolicismo dogmático. Tementes a Deus,
mas descumpridores dos principais ditames do cristianismo, escoavam suas vidas de forma
mundana, escravizando, torturando, estuprando e matando. Escreveu Montoya: “Não há
dúvida que tenham fé em Deus, mas são do diabo as suas obras” (MONTOYA, 1985, p.
244).
Essa dialética traduzia -se na presença de capelães nas expedições. Estes não se
apresentavam trajados para confrontos, mas sim envergando hábitos religiosos, com
alentados terços e cruzes pendentes a cingirem-lhes as cinturas. Abordaremos adiante, em
maiores comentários, a função desses clérigos nas bandeiras. Em Entradas e Bandeiras ,
Volpato faz comentários interessantes sobre a relação dos sertanistas paulistas com a
espiritualidade cristã. A síntese das palavras dessa autora aponta os paulistas como homens
que pareciam buscar a reconciliação com Deus já à beira da morte. Exauridos da
juventude, rememorando as vilezas cometidas ao longo dos anos, os bandeirantes
78

acovardavam-se ante a perspectiva da danação eterna no fogo do inferno. Ao avizinhar-se a


implacabilidade da justiça divina, não poucos cabos-de-tropa ou mestres-de-campo
transformavam-se em anciãos temerosos, configurando a antítese de si mesmos quando
moços. Não mais a impetuosidade agressiva e avassalador a; não mais a busca de soluções
práticas para os problemas imediatos; não mais a mortandade de índios indefesos ou
guerreiros; não mais a vazão da concupiscência com índias subjugadas à força; não mais
crianças despedaçadas; não mais missionários aviltados com injúrias; não mais igrejas e
altares destruídos! No crepúsculo da vida, no ocaso da existência terrena, muitos
bandeirantes adquiriam modos brandos, afáveis.
Nos testamentos da época, constam o reconhecimento de inúmeros filhos bastardos
por parte de sertanistas longevos. Filhos rejeitados ao longo da vida, repentinamente
aquinhoados na partilha dos bens do pai sertanista, o qual por vezes jamais vira. O
bandeirante idoso, antípoda esvanecente de si próprio, buscava redimir -se de todas as
formas, observando todas as convenções religiosas afoitamente, dada a exiguidade do
tempo que lhe restava. À procura da salvação, encenava -se a paródia do velho sertanista
sorvendo o sangue de Cristo na hóstia sagrada, ao invés de banhar o sabre no sangue
indígena. Os que se acamavam devido a moléstias longas, pediam a visita regular do padre
à beira do leito, ansiando por conforto espiritual. A boca que outrora, em voz tonitruante,
proferira impropérios aos inacianos, era a mesma que agora, murcha e ressequida,
murmurava para o missionário, confessando pecados ignóbeis, antes de abrir -se
flacidamente para receber a comunhão. Quando já em seus estertores, na iminência
imediata da expiração, o vetusto bandeirante recebia a extrema -unção, consumando sua
vida em sentido inverso ao que escreveu Cassiano Ricardo em Marcha para o Oeste :
“Cristãmente e bandeirantemente” (RICARDO, 1942, p. 210). Na verdade, os paulistas
agiam bandeirantemente por quase toda a vida, procurando apenas morrer cristãmente,
para expiar suas faltas. A obra de Ricardo é um inexaurível manancial de frases que
intentam conciliar os bandeirantes com a cristandade, apresentando-os como prestadores
de relevantes serviços ao catolicismo incipiente do Brasil Colonial. Vejamos esta: “Uma
coisa porém é c erta: a bandeira prestou maior serviço ao cristianismo do que o cristianismo
à bandeira” (RICARDO, 1942, p.231). Sabedores que somos da sanha sanguinária das
expedições apresadoras, vejamos agora esta: “Cristãmente se realizavam, dentro da
bandeira, todos os atos da vida quotidiana” (RICARDO, 1942, p. 211). Pretendendo
arrazoar favoravelmente a respeito de João Leme, homicida considerado bandido até
mesmo pelos piratininganos e a quem Holanda adjetivou como facinoroso , Ricardo saiu-se
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assim: “O próprio João Leme da Silva (um dos irmãos Leme) não morreu no cadafalso mas
cristãmente?” (RICARDO, 1942, p. 211). Sobre Jorge Velho, o homem que chefiou a
matança e a degola de quase três centenas de tapuios, além de literalmente reduzir a
pedaços o corpo de Zumbi, dizimando ainda nas refregas de Palmares mais de duzentos
negros, escreveu Ricardo:
... o próprio Domingos Jorge doando, em testamento, trinta das suas
fazendas de criar em favor dos jesuítas do Colégio da Baía, com o ônus,
verdadeiramente cristão, de que as rendas se destinassem, também, ao
amparo das viúvas indigentes (RICARDO, 1942, p. 220).

Para nós, a doação de Jorge Velho, que aquinhoou os jesuítas generosamente em


seu rol testamentário, exemplifica de forma clara o modus vivendi do bandeirante ancião,
que como já abordamos, caracteriza-se pelo pendor para a redenção, temendo a
sobrenaturalidade vindoura após o fenecimento. Vale lembrar que, o assaz considerável
patrimônio de Jorge Velho, foi em grande parte obtido com a exterminação dos tapuios e
dos palmarinos. Essas duas chacinas, que foram encomendadas pelo Governo Geral do
Brasil e ratificadas em contrato pela coroa portuguesa, previam o cedimento de muitas
terras para o bandeirante, além da posse de todos os negros sobreviventes das pelejas em
Palmares. Destarte, Domingos Jorge transformou-se num senhor de terras, com uma
escravatura farta, composta de braços indígenas e negros. Um mestre de campo, um andejo
que matara sob contrato para ser pago com terras ... um mestre de campo envelhecido, que
contempla os seguidores de Inácio de Loyola com uma grande área de três dezenas de
fazendas, granjeada à custa de farto derramamento de sangue. Em sentido figurado, pode
ser dito que Jorge Velho construiu seu patrimônio sob uma alentada pilha de corpos
humanos, desmembrados diga-se de passagem. A despeito disso Ricardo logra atribuir-lhe
o adjetivo piedoso , quando o enfoca em um de seus escritos. Jorge Velho, esclareça-se, era
dos raríssimos sertanistas que sabiam escrever, sendo apontado por Holanda em Raízes do
Brasil como detentor de certo atilamento intelectual. John Monteiro, na obra Negros da
terra escreveu: “Domingos Jorge não apenas falava como também escrevia em português,
algo inusitado...” (MONTEIRO, 1994, p. 164).
Ao procurar ressaltar a religiosidade do mestre de campo, quando este se ressentia
da morte de três de seus homens em certa campanha, escreveu Ricardo:
... a respeito de Domingos Jorge Velho, que é piedoso e diz: meu capelão
saiu para fóra, estando eu a sair para a campanha; mandei-o buscar;
não quis vir ... morreram-me três homens brancos sem confissão – coisa
que mais tenho sentido nesta vida (RICARDO, 1942, p. 230 e 231).
80

Segundo o Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, o adjetivo piedoso


significa: que tem piedade. Na mesma obra o substantivo piedade significa: amor às coisas
religiosas; religiosidade; devoção; compaixão; dó; pena. Percebe-se aqui a complexa
problemática suscitada por Ricardo, que em seu discurso incursiona por labirintos
completamente inesperados, selecionando vocábulos que são verdadeiros primores de
representação apologética. A religiosidade bandeirantista, com suas especificidades todas,
é de fato apontada por muitos autores, como Holanda, Volpato, Taunay, Haubert, Azevedo,
Ellis, Monteiro, Vasconcelos e Montoya, sendo estes dois últimos missionários inacianos.
Neste sentido, o temor a Deus e a consciência de sua existência fazem-se claros na
mentalidade bandeirante, sendo recorrentes na historiografia. Por outro lado, as acepções
compaixão, dó e pena - que são mais diretamente associadas à idéia de piedade – são aqui
não apropriadas, uma vez que um sertanista como Jorge Velho não era movido pelos
parâmetros desses sentimentos sinônimos. Sua lógica era a da ação, que no momento de
sua prática esta va completamente dissociada de qualquer conotação convencional
castradora. A ação propriamente dita redundaria em obtenção, em grangeamento de bens.
Para Jorge Velho, como também para grande parte dos sertanistas de São Paulo, as coisas
de Deus e dos sentimentos humanos estavam apartadas de seus atos durante suas
empreitadas. Obter sesmarias através da guerra, ou apropriar-se da força de trabalho
indígena, eram objetivos que propiciavam benesses palpáveis, concretas.

2. Capelães, beatões e padres: cúmplices da violência bandeirantista

Como já tivemos oportunidade de mencionar, as expedições de apresamento


incluíam capelães em suas fileiras, que receberam de Montoya a jocosa alcunha de
beatões. Cumpre aqui observar que esses homens representavam a presença cristã nas
bandeiras, porém sem limitar ou refrear os atos dos bandeirantes. Sobre isso, vejamos o
que escreveu Montoya:
Levam eles (os bandeirantes) consigo uns lobos vestidos de peles de
ovelhas, os quais não passam de uns verdadeiros hipócritas. Tem por
ofício o de, enquanto os demais andam roubando e despojando igrejas,
bem como atando índios adultos e despedaçando crianças, mostrarem
eles mesmos grande rosários pendurados ao pescoço. Além disso se
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aproximam dos padres, pedem-lhes confessar e se metem a falar sobre a


oração e o recolhimento (MONTOYA, 1985, p. 127).

Pelas palavras do inaciano, percebe-se que a figura do capelão no bandeirismo


escravizador não denotava qualquer arremedo de indício repressivo, no que diz respeito
aos crimes ou pecados praticados pelos paulistas. Para que possamos aquilatar melhor essa
situação contumaz, vejamos o relato deixado pelo jesuíta, quando do assalto dos
bandeirantes à redução de São Francisco Xavier:
Enquanto os demais arrebatavam tudo que viam, um ‘beatão’ daqueles
que atrás descrevi, pôs-se sem pressa a falar com um padre sobre coisas
muito espirituais, a confissão e as diferenças e graus existentes na
oração ... tinha ele ... o rosário muito comprido nas mãos. Fingindo que
rezava, ia passando com grande pressa as contas. Reparamos depois que
ele contava, sem dúvida, os cativos que eles levavam, para calcular o seu
quinhão ... ( MONTOYA, 1985, p. 130).

Aqui, o autor de A conquista espiritual, afirma que o capelão procede não apenas
de forma alheada ao que ocorre à sua volta. O saque após a abordagem hostil é feito pelos
bandeirantes, ao mesmo tempo em que o beatão se aproxima de um padre da redução,
iniciando um colóquio sobre as coisas de Deus. A vilania do assalto dos paulistas, em
pleno curso, parece não lhe dizer respeito. A ação que se desenrola em sua presença, com
todas as suas implicações anti-cristãs, não tolhe sua iniciativa de conversar com o padre da
redução sobre práticas religiosas e espirituais, que em seus propósitos doutrinários
promovem a asce nção do homem. Abstraído do ataque promovido por seus companheiros
de marcha sertaneja, o capelão age com placidez em meio ao apresamento que se consuma.
O germe da escravização está sendo gestado em concomitância com a palestra sobre os
ditames divinos, iniciada pelo capelão ante o desconfiado e estupefato jesuíta da redução
invadida. Além desta postura nada clerical, que aparentemente ignora atos condenáveis –
aos olhos da Igreja – acontecendo ao derredor, o beatão mencionado por Montoya ainda
finge que reza o terço, quando na verdade está contando os índios que estão sendo
aprisionados, para então calcular quantos escravos terá para si na hora da partilha. Vale
observar, portanto, que Montoya imputa ao capelão o desonroso procedimento de religioso
que anseia pela mão-de-obra indígena. Um homem com o rosário nas mãos, passando as
contas com os dedos ávidos ... cada conta um índio, cada conta um escravo. Quanto mais
peças aprisionadas, maior sua fração quando da distribuição delas entre os membros da
expedição.
Não sendo propriamente um agente ativo do apresamento, o capelão bandeirantista,
82

com seu procedimento conveniente, apresenta -se como um elemento apresador passivo,
uma vez que não denota, de forma alguma, estar em discordância com os objet ivos
elementares dos bandeirantes. Isto num primeiro momento, pois ao receber sua cota de
presas após os ataques, o beatão demonstra de forma explícita sua concordância ou
anuência em relação à captura e escravização dos silvícolas. Analisando por outro pr isma,
considerando sua participação como membro efetivo da expedição, que tendo partido de
São Paulo, marchou pelas matas e deu caça aos índios, julgamos razoável o entendimento
de que ele – o beatão ou capelão – era também um expedicionário apresador, posto que
figurava nas fileiras de uma corporação organizada, que tinha como único fim o
apresamento dos autóctones. Em qualquer das duas proposituras, percebe-se às escâncaras,
que a presença formal da figura do religioso não inibia a atitude comumente atroz,
verificada no bandeirismo apresador.
A inclusão do capelão nas bandeiras foi concebida em estreita relação com a
necessidade de conciliar os sertanistas com Deus, a despeito de seus atos reprováveis
perante a doutrina da Igreja Católica. Destarte, torna -se compreensível – lembrando que
aqui nosso propósito não se alicerça no julgamento – a postura do beatão, quando
demonstra em suas maneiras aparentemente não notar os crimes perpetrados em sua
presença. Sua função não era sofrear a ação dos paulistas através de palavras ou ações. Na
verdade, em termos práticos, qualquer cerceamento ao comportamento dos expedicionários
implicaria em procedimento antagônico ao objetivo primordial da empresa. Os
bandeirantes embrenhavam-se pelas matarias para capturar índios, considerando
previamente todos os aspectos concretamente tangíveis da jornada. Não estava inclusa nas
deliberações dos paulistas todo o sentido abstrato da fé cristã, quando da organização de
uma bandeira escravizante. O que precisasse ser feito seria feito, desde que a mão de obra
silvícola fosse trazida do sertão. Nenhuma outra implicação sobrepujava esta ordem de
idéias, bastando para isso constatar na historiografia as abundantes chacinas que vitimaram
os indígenas à época das bandeiras, sobretudo no século XVII. Conhecedores dos
principais preceitos do cristianismo, mas também sabedores de que esses preceitos
limitariam suas práticas homicidas e escravocratas, os paulistas encontraram uma saída
singular, um escape pelo viés do perdão posterior , formalmente concedido por um homem
de Deus. A presença do capelão nas expedições foi engendrada desta forma, onde ficou
estabelecido entre os homens de armas e o representante de Deus o entendimento tácito de
que os primeiros eram caçadores de gente, sendo o último responsável pelo ato da
reconciliação dos primeiros com Deus. Pacificar as mentes atormentadas por muitas e
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implacáveis culpas, esse era o trabalho do capelão nas bandeiras. Isso fica muito claro em
Ricardo, onde o apologismo aos bandeirantes mescla -se indissoluvelmente à uma
desvelada hostilidade ante a religiosidade propalada pelos jesuítas, carregada de
conotações limitantes à violência. É nítida a aversão desse autor, no que concerne ao
balisamento da liberdade de ação apregoado pelas convenções cristãs.
Nada de rédeas, nada de freios dos beatões , capelães ou padres. Interessava aos
paulistas apenas o arrefecimento de seus tumultuosos conflitos interiores, gerados por uma
vida contumazmente sanguinária. Quanto a isso, observemos os escritos de Ricardo:
Precisava o bandeirante de alguém que lhe passasse esponjas na alma e
recorria ao capelão como quem recorre àquele que nascera pra esse fim:
perdoar em nome de Cristo. Si o padre não tivesse essa função
misericordiosa de perdoar, então que fosse às urtigas. Sua função
obrigatória era ‘descarregar a consciência’ ao sertanista atormentado.
Fizesse isso e teria cumprido o seu dever (RICARDO, 1942, p. 222) (o
grifo é nosso).

Estas palavras explicitam, de forma clara e enfática, que os sertanistas queriam de


seus capelães nada mais que o perdão. Findadas as tormentas da consciência, reiniciada a
bonança dos pensamentos apacentados, os sertanistas estavam prontos para cometer novos
pecados e obter novos perdões.
Curiosas são as incursões labirínticas no discurso de Ricardo, quando busca
justificativas estéreis para explicar os crimes dantescos cometidos pelos expedicionários
paulistas. Em diversos trechos de Marcha para Oeste, os bandeirantes são qualificados
como sentinelas vanguardistas da gênese da pátria brasileira. São os formadores da nação,
são patriotas emblemáticos, que levam padres em seus deslocamentos sertanejos. De
mentalidade simplista e rude, os homens andrajosos do planalto paulista são sugeridos
como semeadores de atitudes indispensáveis à formação inicial e ao fortalecimento da
pátria. Sabemos que esses homens, ao encetar distantes caminhadas pelas matas da
Colônia, estavam sendo movidos por motivos particulares, restritos. Volvidos para a
solução de sua indigência, os andejos do planalto de Piratininga não estavam preocupados
com a pátria, não estavam ocupados com elocubrações requintadas e coletivistas, uma vez
que nem mesmo possuíam agudeza intelectual para isso. Caçadores de mão de obra
escrava, os bandeirantes capturavam os nativos da terra para aplacar a miserabilidade de
suas vidas no altiplano de São Paulo. Para que este objetivo fosse concretizado era
necessário o emprego da violência, que não raro atingia matizes assustadores, cabendo aos
capelães o concedimento do perdão aos autores dos assaltos. Desta forma, percebe-se que a
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agressividade das empreitadas apresadoras era motivada por implicações históricas


específicas, não sendo gestada no bojo de sentimentos de patriotismo. Não obstante estas
considerações, observemos as distorções contextuais envolvendo a pátria, escritas por
Ricardo:
Fossem suprimidos os crimes, que explicam a origem de todas as pátrias
e estas só existiram no reino do céo. As pátrias não se formam sem dor,
sem ação, sem sangue. Daí a razão pela qual bandeirante nunca
dispensou padre. Este seria obrigado, por bem ou por mal, a
descarregar a consciência daquele, já que Cristo era bandeirante. Pois
não é Cristo o pai dos bons e a esperança dos maus? Estes e aqueles não
lhe pertencem, segundo a linguagem da própria bíblia? A técnica do
perdão não é a grande arma do crinstianismo diante do irremediável?
(RICARDO, 1942, p. 223).

Estas palavras disparatadas de Ricardo atingem culminâncias burlescas,


qualificando o próprio Cristo como bandeirante e afirmando ser obrigação – por bem ou
por mal – do padre aplacar os dramas das consciências homicídas. Entendendo o perdão
como técnica ou arma do cristianismo perante o irremediável, o autor acaba caindo na
armadilha engendrada por suas próprias palavras, pois vale lembrar que para ser perdoado
– segundo os cânones católicos – o pecador precisa demonstrar arrependimento. Ricardo
não menciona isso, mas analisando seu tom ou viés discursivo, não parece ser inidôneo
conjecturar que ele passa à larga de tanger o arrependimento, por tentar ressaltar que o
derramamento de sangue é instrínseco ao nascimento das pátrias, já que elas não se
formam sem dor, sem ação, sem sangue. Essa intenção trasparece nas frases de Ricardo. A
gênese das pátrias obedece em Ricardo à lógica do genocídio, sendo algo natural. Isso nos
parece muito claro. E já que a aniquilação de seres humanos formam pátrias, existe
heroísmo e patriotismo no ato de aniquilar. Em desdobramento, de forma implícita ou
subliminar, está presente nesse pensamento a idé ia de que não há nada do que se
arrepender, já que atitudes heróicas ou patrióticas são merecedoras de honra e admiração,
e não de irrompimentos individuais ou externações pias de acabrunhamentos ou remorsos.
Assassinatos e perdões, sem passar necessariamente pelo arrependimento exteriorizado. O
remédio serial para o irremediável serial. O perdão serial para assassinatos seriais.
Apresadores e capelães, respectivamente matadores reincidentes e promovedores de
perdões sequenciais. Para os sertanistas, o ajuste de contas ou a reconciliação com Deus
era algo posterior ao apresamento e ao morticínio. A necessidade de abastecimento e
reposição de mão-de-obra indígena era constante, sendo, portanto, constante a violência e o
perdão concedido pelos capelães em nome de Deus.
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Sobre a sanha dos bandeirantes quando dos ataques às reduções de Santo Antônio e
são Miguel, deixou escrito o padre Montoya:
...Entraram a som de caixa e em ordem militar nas duas reduções de
Santo Antônio e são Miguel, destroçando índios a machadadas. Os
pobres dos índios com isso se refugiaram na igreja, onde os matavam –
como no matadouro se matam vacas - , tomaram por despojo as
modestas alfaias litúrgicas e chegaram mesmo a derramar os santos
óleos pelo chão (MONTOYA, 1985, p. 126).

Tratando desta mesma investida bandeirante, na obra Índios e Jesuítas no tempo


das Missões, escreveu Maxime Haubert:
Os assaltantes apoderam-se dos bebês para obterem as mães, depois
quebram-lhes a cabeça contra as árvores; matam os neófitos até nos
braços dos missionários e incendeiam as cabanas que abrigam os
inválidos. Alguns falsos devotos tem por tarefa neutralizar os jesuítas.
Com um grande rosário em volta do pescoço ... oram de várias formas,
dissertam sobre a felicidade de servir a Deus, investigam o estado
espiritual da redução ... (HAUBERT, 1990, p. 157).

Aqui, encontramos novamente a figura do capelão-beatão já mencionada por


Montoya. Enquanto crânios de crianças indígenas são esmagados de encontro às árvores, o
religioso expedicionário ora e parla menta sobre as virtudes da devoção. Esse ataque
paulista ocorreu em setembro de 1628, sob o comando de Antônio Raposo Tavares. Para
fornecer algumas informações adicionais sobre a qualidade dos padres no Brasil Colônia,
entendemos ser de utilidade refletir sobre a obra A Companhia de Jesus e o Plano
Português do Brasil, de Vitorino Nemésio. No capítulo XXI do citado trabalho, o autor
trata da chegada do padre Manoel da Nóbrega à Bahia, em 29 de março de 1549, na
incipiência da instalação inaciana na colônia . Nóbrega encontrou na Bahia sacerdotes que
contrariavam o rígido código disciplinar da Companhia de Jesus. Tais homens eram
impenitentes, levando vida libertária e desregrada, em dissonância gritante com os cânones
católicos. Sobre isso, vejamos o que escreveu Nóbrega:
Os clérigos que havia no Brasil eram por enquanto ‘a escória que de lá
vem’, quando eram precisos sacerdotes ‘de vida aprovada’...
(NÓBREGA apud NEMÉSIO, 1971, p. 203)

Se o modo de vida dos padres da Bahia já não era muito aprovado por Nóbrega em
1549, menos ainda dignificante era o modus vivendi dos religiosos afixados em São
Vicente, como teve oportunidade de constatar o mesmo e iminente Nóbrega em 1553,
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portanto cinco anos depois de seu estarrecimento ante os padres do Nordeste. Observemos
o que escreveu Nóbrega:
Dos dez padres de missa que lá havia, ‘só dois ou três não tem sete ou
oito filhos como os outros’, e esses mesmos dispunham de serralhos de
‘cinco índias ou seis índias de má vida’. Havia dez anos que um deles
não subia ao altar; outro, idem, há coisa de três ou quatro, e aos outros
mais lhe valia não celebrar (NÓBREGA apud NEMÉSIO, 1971, p. 271)

Maculando, conspurcando os preceitos da Igreja Católica, esses padres causavam


estupefação nos clérigos inflexíveis, que guardavam as regras do sacerdócio com estrita
observância. Parece-nos fácil a compreensão das críticas de Nóbrega no que diz respeito a
estes homens de batina e vida libertina, que enodoavam a reputação do clero através da
concupiscência poligâmica. A causa da indignação de Nóbrega foi nesse caso a vazão de
desejos lúbricos com índias, que é válido lembrar, andavam semi-nuas na capitania de São
Vicente, com suas vergonhas à mostra.
Já em Montoya, as críticas são dirigidas à hipocrisia e à omissão dos padres
capelães das bandeiras, que oravam enquanto índios eram esquartejados perante seus
olhos. Cumpre aqui ressaltar que o puritanismo presente no discurso de Nóbrega e
Montoya é um desdobramento natural das convenções cristãs, que expresso através da
oralidade ou da pena, busca corroborar a imposição dogmática da fé, repudiando a prática
sexual livre e a violência, mas não prescindindo da evangelização etnocêntrica, calcada no
desmanche de todo o rico universo religioso indígena, depauperando o poder dos Xamãs e
Pagés e promovendo a destribalização. Esse processo incipiente de aculturação, visava
abrir espaço mítico-religioso-social para que a cruz cristã reinasse altaneira, onde outrora o
diabo havia obrado, através das práticas ritualísticas nativas.
Essas considerações sobre clérigos cumpridores e não cumpridores da doutrina
católica, bem como sobre os contundentes arrazoados de Nóbrega e Montoya,
submeteram-se, sobretudo, à nossa intenção de buscar entender – em termos contextuais –
as ações do clero no Brasil Colônia. Os homens naturais da América foram desrespeitados
tanto pelos padres lúbricos, quanto pelos evangelizadores. Uns faziam sexo com índias,
enquanto outros disseminavam que os líderes religiosos tribais obravam sob inspiração
demoníaca. Nesse sentido, faz-se necessário isentar Montoya da prerrogativa de protetor
dos índios. Essa asserção é fundamental para que possamos entender esse jesuíta como um
homem, que pela sua formação, entendia como execráveis as ações dos bandeirantes –
sendo elas escravistas ou homicidas –, mas que obviamente não estava ocupado em
87

preservar as tradições mitológicas e comunitárias dos índios. Muito pelo contrário,


Montoya era um sacerdote proeminente, respeitado por seus pares de devoção, encarnando
a figura emblemática do evangelizador católico, que à toda espiritualidade não cristã
procura aniquilar. Adiante teremos a oportunidade de abordar uma ação concreta desse
padre, que procurou salvar doze mil índios da ferocidade dos bandeirantes ... doze mil
índios, doze mil ovelhas de seu rebanho, já usurpadas de suas tradições, em pleno processo
de aculturação, em pleno curso de aceitação dos padrões místico-culturais europeus ... doze
mil almas de Jesus Cristo, salvas da barbárie pela piedade da Companhia de Jesus. Esse
episódio, de fuga em massa pela mata, foi dirigido por Montoya quando da aproximação de
uma expedição de apresamento. Nessa empresa, o missionário e milhares de índios
cumpriram a pé um percurso significativo, enfrentando toda a sorte de fatores adversos,
quer geográficos, alimentares ou patológicos. A atividade corporal empreendida foi
intensa, propiciada por singularidades anátomo-fisiológicas particulares à situação de medo
ou pavor. Como dissemos, adiante trataremos desse êxodo com mais detalhamento. Por ora
julgamos ser elucidativo, em termos historiográficos, incursionar ainda um pouco acerca
do modo de vida dos padres no Brasil Colonial, visando sobretudo mostrar que as
iniqüidades do clero não ficaram cinrcunscritas apenas aos beatões das bandeiras.
Pontilham na historiografia, de forma facilmente perceptível, as menções sobre os
religiosos de conduta duvidosa no período colonial brasileiro. Em História Geral das
Bandeiras Paulistas, Taunay aborda a imigração de padres e frades para os arredores dos
jazigos auríferos de Minas Gerais, desvencilhando-se por conta própria de seus afazeres e
obrigações eclesiásticos, a despeito das determinações de seus superiores. Vejamos o que
escreveu Taunay:
Pelo território aurífero avultavam frades que pelo emprego de bons
modos e paciência jamais se conformariam a se recolherem a seus
conventos, pois na clausura não lhes seria possível continuar a vida
licenciosa das minas (TAUNAY, 1936, p. 282).

Agindo desabridamente à revelia da hierarquia da Igreja, esses religiosos afluíam


para as áreas de mineração, onde se revelavam renitentes aos chamados de seus
responsáveis. Sobre isso deixou escrito Taunay:
Os bispos e os prelados de várias ordens viviam amargurados ao
verificar que se não fazia conta alguma das suas censuras. Não
conseguaim fazer voltar aos seus bispados e conventos os não poucos
clérigos e religiosos, que escandalosamente andavam nas terras
auríferas, onde havia muitos apóstatas, egressos e giróvagos (TAUNAY,
1936, p. 278).
88

Refletindo sobre a inquietação da própria coroa perante essa situação, escreveu o


mesmo historiador:
Desde vários anos aliás preocupava-se o governo do reino com a
presença e permanência destes clérigos de má vida, emigrados para o
longínquo Brasil para fugirem às penas impostas pelos seus prelados, ou
às justiças reais (TAUNAY, 1936. p. 278).

Observa -se aqui que tais clérigos tinham débitos anteriores não apenas com a
Igreja, mas também com a justiça majestática. Esses homens de sotaina aportavam no
Brasil em número cada vez maior. Para verificarmos isso, observemos ainda estes escritos
de Taunay:
A imigração de clérigos maus chegou a tomar tais proporções que em
1709 motivaria uma carta régia de Dom João V proibindo a passagem
ao Brasil desses homens sem licença real ‘pelo grande dano e
pertubação por eles causados nas minas para onde logo passavam’.
Uma vez lá zombavam das ordens de despejo que lhes eram intimadas
pelos governadores do Rio de Janeiro. Assim se exigiria de todos os
mestres de embarcações partidas do reino e das ilhas a decalração
formal de que não transportavam religioso clandestino, sob pena de
multa de dois mil cruzados (TAUNAY, 1936 p. 279).

Enfatizemos que esse deslocamento de religiosos para as minas de ouro ocorreu na


primeira década do século XVIII, sendo esses imigrantes apontados como de conduta
reprovável. Montoya deixou escrito no século XVII sobre os beatões das bandeiras, que
em suas ações contrariavam os dogmas católicos, sendo que no século XVI Manuel da
Nóbrega adjetivou como escória os clérigos do Brasil. Destarte, em síntese, torna-se clara
a recorrência de considerações desabonadoras ao clero, tecidas ao longo de dois séculos de
escrita da história colonial brasileira, lembrando que muitas vezes as acusações partiram
de homens servidores da Igreja.

3. A fuga do Guairá: medo historicamente construído e terror supersticioso


determinam sôfrega motricidade humana

O bandeirismo apresador espalhou a morte, o terror e o trabalho forçado entre os


homens naturais do Brasil, principalmente aqueles que já se encontravam reduzidos pelos
jesuítas.O motivo desta predileção era óbvio, pois nas reduções os índios estavam
89

concentrados em termos demográficos, configurando um manancial considerável e


populoso, donde se extraía grande número de presas a cada investida. A desmedida
agressividade também pode explicar-se – além da necessidade da imposição do medo
como fator intimidador – pela grande quantidade de índios presentes, que acaso
oferecessem resistência podiam causar estragos consideráveis à tropa sertanista, com
ferimentos e baixas no contingente invasor. Sob esta concepção, torna -se também não
descabido o raciocínio de que os bandeirantes agiam assim também por cautela, atacando
fulminantemente uma agregação de índios que, pela vultosidade numérica, podia se
transfor mar num importante fator antagonista, em termos de confronto aberto. É fácil
observar que a costumeira tática paulista pretendia impedir deflagrações de batalhas,
priorizando sobretudo o controle inicial e imediato da situação. Sobre a invasão dos
paulista s na região do Guairá escreveu Montoya:
Entrou essa gente em nossas reduções: cativando,matando e despojando
altares. Fomo-nos com pressa três padres rumo a seus ranchos e
alojamento, onde já retinham muita gente presa. Pedimo-lhes que nos
devolvessem os que haviam cativado, pois não eram poucos os que
possuíam acorrentados. Como loucos frenéticos gritaram de imediato,
dizendo: prendam-nos! Prendam-nos, pois são traidores! Juntamente
dispararam alguns arcabuzes, ferindo oito ou dez dos índios que nos
acompanhavam. Morreu um deles, ali mesmo, devido a um balaço, que
lhe deram numa das coxas. O padre Cristovão de Mendoza saiu ferido
de um flechaço (MONTOYA, 1985, p. 125).

Acreditamos ser facilmente perceptível que nossa exposição desce às minudências


das características ominosas dos assaltos paulistas às reduções. Cabe portanto explicar, que
disto depende em grande parte, tanto em termos históricos quanto em termos de motilidade
física, qualquer intenção de entendimento deste deslocamento coletivo comunitário
encetado pelos sertões da colônia, que atravessou todas as capitanias do sul do Brasil. Para
tanto, observemos as ações dos bandeirantes, quando já consumado o apresamento e a
contagem dos cativos, na iminência da partida de retorno à Piratininga, após a devastação
das reduções de Santo Antônio e São Miguel. Sobre isso escreveu Montoya:
Soubemos que já pretendiam ir-se embora e que pensavam em queimar
os enfermos e impedidos de viajar. Mandei que fosse ter com eles o
Padre Cristóvão de Mendoza, para que lhes pedisse a permissão de
antes os batizar ou ao menos a sua não-matança. Responderam, com
suas astúcias costumeiras, dizendo que nos avisariam, mas, retirando-se
daquele posto, que é uma espeçie de curral maior que a praça de
Madrid, puseram fogo às choças, que todas de palha, onde queimaram
muitíssima gente com inumanidade de feras (MONTOYA, 1985, p. 127).
90

Deixando atrás de si um sulco de morte, incineração e ruínas, os bandeirantes


iniciavam a longa marcha de volta a São Paulo, conduzindo os indígenas capturados, que
seriam escravizados no trabalho de lavrar, plantar e colher. Na verdade, a partir do
momento do apresamento, os índios já eram escravos consumados. Acorrentados uns aos
outros, – para coibir movimentos individuais mais amplos, que lhes permitisse a fuga, – os
índios caminhavam pela mata, guiados por seus captores. Nesta viagem a pé, já totalmente
subjugados pelos bandeirantes, as presas sofriam toda a sorte de compungimentos.
Vejamos as palavras de Haubert:
... Forma-se em direção a São Paulo o cortejo dos cativos, que geme sob
as sevícias, gritam de fome, urram de dor com a separação. Todos
aqueles que não podem segui-lo são mortos ou abandonados à sua
agonia (HAUBERT, 1990, p. 157).

No que diz respeito aos ataques paulistas e à condução dos cativos ao planalto
vicentino, escreveu o mesmo autor: “... seu rastro sendo reconhecido pelas aldeias
incendiadas e pelos cadáveres que juncam a floresta” (HAUBERT, 1990, p.157).
Montoya escreveu sobre os padres Simão Masseta e Justo Mansilla, que em janeiro
de 1629 acompanharam os bandeirantes e os índios apresados em Santo Antônio e São
Miguel, quando da marcha rumo a São Paulo. Observemos suas palavras:
Aos mortos que ficavam pelos caminhos, não era possível enterrá-los.
Tendo percorrido quase trezentas léguas a pé, chegaram à Vila de São
Paulo... (MONTOYA, 1985, p. 127).

Sobre o retorno desta mesma bandeira ao planalto paulista, acompanhada pelos dois
jesuítas já mencionados escreveu Volpato: “... não restam dúvidas sobre a grande perda de
prisioneiros pelo caminho” (VOLPATO, 1985, p. 82).
As expedições de apresamento, quando de retorno ao planalto e bem sucedidas em
termos de quantidade de apresados, deixavam nas matas uma trilha onde pontilhavam
homens mortos. Isso fica claro em Montoya, Volpato e Haubert. Uma trilha fúnebre,
lúgubre. Uma trilha de defuntos, um caminho de cadáveres.
Também sobre a triste marcha dos índios escravizados, citando partes do relato de
um jesuíta de nome não mencionado, escreveu Monteiro:
A longa caminhada até São Paulo prometia horrores adicionais, ‘como
matar os enfermos, os velhos, aleijados e ainda crianças que impedem os
pais ou parentes a seguirem viagem com a pressa e expediência que eles
pretendem e procuram às vezes com tanto excesso que chegaram a
cortar braços a uns para com eles açoitarem os outros’. Outro padre
denunciou que os paulistas se comportavam com tanta crueldade que
91

não me pareceu ser cristãos, matando as crianças e os velhos que não


conseguem caminhar, dando-os de comer a seus cachorros...
(MONTEIRO, 1994, p.73).

Todos estes horrores até aqui abordados – desde as chacinas dos ataques, passando
pela omissão dos beatães e culminando com a jornada até São Paulo –, incutiram um
sentimento de medo profundo nos silvícolas das missões, como também em muitos dos
missionários inacianos. A expectativa e tensão, ante a iminência ou irrompimento
inesperado de uma investida paulista era um sofrimento diário. A qualquer momento podia
acontecer o pior. Uma sombra de pressaga aflição pairava sobre as reduções do Guairá. De
uma hora para outra podia ser desencadeada a desolação completa, trazendo a morte e a
escravidão. Vejamos sobre isso as palavras de Haubert:
Durante muitos anos, a vida cotidiana das famílias reunidas pelos
jesuítas é dominada pelo medo dos mamelucos, pelo terror das
pilhagens, pelo horror das aldeias incendiadas. A vida cotidiana se
resume em neófitos fugindo precipitadamente para a floresta e que, para
evitar ser capturados, amarram o focinho dos animais domésticos e
cortam a língua dos galos. A vida cotidiana é aquela velha que ficou
sazinha em sua aldeia e se enforca de desespero (HAUBERT, 1990,
p.158).

Esse denso suspense, além de pôr os índios em sobressaltos, serviu para alimentar
as tendências místicas de não poucos jesuítas, que passaram a conotar os bandeirantes
como asseclas de Satã. No que concerne a essa questão, escreveu Haubert:
Alguns missionários contam que, à aproximaçao dos mamelucos, viram
lágrimas ou suor aflorarem nos quadros e estátuas da igreja. Por vezes,
o próprio diabo se encarrega de trazer o presságio funesto, aparecendo,
por exemplo, sob a aparência de um mameluco. É verdade que, por outro
lado, ele assume o aspecto da Rainha do Céu para impedir o êxodo!
(HAUBERT, 1990, p.158).

Essas palavras evocam não apenas o clima de misticismo reinante entre os


missionários, como evidenciam ainda suas intenções de fuga, que por sua vez eram
coibidas pelo estratagema do diabo disfarçado de Rainha do Céu , visando ludibriá-los,
persuadindo-os a permanecer nas reduções, esperando pela chegada dos paulistas sem o
saber. Esse exercício contemplativo de agouros e pressentimentos espirituais, assumiu, sob
certo sentido, propensões escatológicas. Sobre isso, verifiquemos o que escreveu Haubert:
Se realmente é o apocalipse que está começando, os mamelucos fariam
parte das hordas do Anticristo: em San Miguel, o dragão derrubado pelo
92

arcanjo é transformado em estátua com os traços de um paulista...


(HAUBERT, 1990, p.170).

Aqui é mencionado o apocalipse, o início do fim dos tempos, como também a


transfiguração do dragão sob os pés de São Miguel Arcanjo, metamorfoseado em
bandeirante. Uma imagem foi talhada em madeira na redução de São Miguel,
representando um paulista onde deveria estar o dragão, abatido e encimado pelo arcanjo
guardião do céu, que brandiu sua espada contra Lúcifer e suas legiões, expulsando-os do
paraíso. Nas estátuas convencionais, o dragão é a representação imagética do demônio. Na
estátua de madeira da redução já aludida, não existe o dragão – representando o mal –, mas
sim um sertanista de São Paulo, com chifres na cabeça, representando também o mal, até
mesmo de forma mais direta, menos alegórica que o dragão. Nesse sentido, o bandeirante
nessa escultura foi conotado como o próprio Satanás. Deixada de lado essa especificidade
da escultura em madeira, notamos que os paulistas em geral são mitologicamente
considerados como sequazes do malígno, as hordas do Anticristo.
O pendor para as reflexões apocalípticas ou fantasias religiosas macabras, parece
ter sido bastante pronunciado no Guairá. Em diversas situações eram vislumbrados
prelúdios trevosos. Sinais sobrenaturais eram detectados sem muita dificuldade. Os escritos
deixados pelos jesuítas revelam um tom discursivo, que evoca a apreensão religiosa que
permeou o clero medieval europeu. Entendemos isso como uma questão de permanências
ou longa duração, já que a congregação inaciana tem suas raízes fincadas na espanha, país
onde a inquisição fora terrível, mandando milhares de pessoas para a fogueira, tendo como
embasamento os mais triviais eventos domésticos, que eram interpretados via de regra
como sinais indicativos da presença do mal. O humanismo da Europa Renascentista, que
floresceu na Itália, somente aos poucos – e com restrições – foi aceito na terra de Thomas
de Torquemada, onde boa parte da população, especialmente o campesinato, vivia
oprimida pelo poder do clero e dos senhores feudais. Na Espanha o catolicismo era rígido,
opressor e fatalista, evocando a sobrenaturalidade na posse caseira de uma coruja ou gato
preto, acusando de feiticeiros os donos desses animais. O mal espreitava por todas as
partes, disfarçado de diversas formas; sendo também vislumbrado em muitas partes, por
muitos homens que acreditavam piamente na presença satânica, diária e concreta. Esta
breve digressão sobre a Espanha Medieval, ensejou-se apenas para que possamos entender
melhor o comportamento místico dos jesuítas do Guairá, no Brasil dos seiscentos, quase
dois séculos após o auge da inquisição espanhola.
93

Os missionários que atuavam no Brasil Colônia, traziam consigo toda a


mentalidade – long duré – das tradições canônicas da Espanha Medieval, que lidavam com
as abstrações da espiritualidade em grande parte ocupando-se dos indícios do demônio.
Quando os jesuítas do Guairá contam que o próprio diabo trazia o presságio funesto sob a
aparência de um mameluco , - quando da aproximação de uma bandeira – na verdade estão
reproduzindo as tendências místicas da Espanha da Idade Média, que entreviam o demônio
travestido ou disfarçado de diversas formas. Em recente livro intitulado Ano 1000, ano
2000-na pista de nossos medos, Georges Duby analisa as permanências de diversas formas
de medo, que medeiam entre o homem medieval e o contemporâneo. Nessa obra, em
trecho que trata especificamente dos membros da Igreja no medievo, escreveu o historiador
francês:
Somente os servidores de Deus sabiam escrever e ler ... Estavam
convencidos de que não há barreiras estanques entre o mundo real e o
sobrenatural, que existem sempre passagens entre ambos (DUBY, 1999,
p. 17).

Considerando essas palavras de Duby, torna-se menos dificultoso entender de onde


provinha a mentalidade dos clérigos inaciano no Brasil do século XVII, que colonizado à
partir de sustentáculos nitidamente feudais, ainda retinha muito do pensamento
impregnado de fatalismo e superstições sinistras, característico do medievo europeu.
No livro Bandeirantes e pioneiros , ao mencionar a inevitabilidade do
antagonismo entre os inacianos e os sertanistas de São Paulo, Vianna Mog escreveu:
... A luta entre o bandeirante e o jesuíta era inevitável, pois, ao mesmo
tempo que este encarnava a contra-reforma, o desejo de retorno à
unidade espiritual da Idade Média , sob a égide do papado, o
bandeirante, na sua ânsia de riqueza e poder ... ( M OG, 1985, p. 155).

No bojo dessas palavras, implicitamente, revolve-se a idéia de manutenção de todo


o arcabouço filosófico-eclesiástico do período mediévico no Brasil setecentista, uma vez
que o anseio jesuítico, segundo o autor, era de retorno à situação de unicidade espitirual
que vicejara na Europa anteriormente. Seguindo essa ordem de raciocínio, desdobra-se
ainda o entendimento de que essa unidade espitirual está intrinsecamente amalgamada com
toda a sobrenaturalidade inquietante e aflitiva, que caracterizou o período medieval. Nesses
termos, entendemos que as superstições terrorífico-religiosas da Idade Média, integravam a
mencionada unidade espiritual do mesmo período, permeando a sociedade de forma
significativa. Destarte, ao desejar a volta à uma situação de espiritualidade considerada
94

como ideal em termos coletivos, é certo que os jesuítas do Brasil Colônia até mesmo
cultivavam intencionalmente seus valores e idéias, incluindo aí a atitude contemplativa
fatalista e entenebrecida. Se o retorno completo à espiritualidade medieval já não era
possível, fazia-se necessária a preservação, bem como a disseminação de seus dogmas
mais proeminentes, dentre eles a idéia de que o homem, em certas circunstâncias, tornava -
se títere de influências transcendentais trevosas e malfazejas.
Sendo esta uma questão de história de longa duração ou não, de permanência de
mentalidades ou não, entendemos que o elemento facilmente perceptível no Guairá foi a
presença de um acentuado terror supersticioso entre alguns missionários. Adicionado a isso
estava o medo concreto da violência concreta, o pavor quase tangível da destruição
palpável, promovida por sertanistas nada abstratos, nada extranaturais. Índios e
missionários, transidos de horror sobrenatural e horror emanado dos domínios do real.
Medo de homens e medo de entidades sinistras. Uns sobressaltados e tensamente alertas,
outros acabrunhados e sorumbáticos, à beira do desespero. As tropas de São Paulo
ressurgiriam novamente, da mesma forma que havia acontecido tantas vezes.
Das treze reduções do Guairá, os paulistas haviam destruído onze. As duas
remanescentes eram as de Loreto e San Ignácio. O clima coletivo de soturna aflição, nessas
povoações, era quase insuportável. Naqueles dias, o provincial, padre Francisco Trujillo,
havia visitado a região do Guairá, tendo presenciado pessoalmente o recente e fulminante
ataque bandeirante à redução de São Francisco Xavier, ficando estarrecido ante os atos
aberrantes lá cometidos. O provincial ordenou então aos líderes missionários, entre eles
Ruiz de Montoya, que metodicamente se organizassem para evacuar Loreto e San Ignácio,
quando da aproximação dos apresadores oriundos do planalto paulista. Imediatamente,
num posto avançado, foi colocada uma sentinela. Os aprestos para a partida foram
iniciados. Os índios dispuseram seus pertences e criações, de modo a agregá -los sem
demora, quando do limiar da jornada. Quando do aviso da sentinela, que vigiava suficiente
e estrategicamente distante das reduções, missionários e índios teria m tempo hábil para
tomar as providências necessárias para a retirada, com segurança e desafogo, segundo as
palavras de Montoya. Porém, o estado espiritual ou emocional das reduções, era
periclitante, não permitindo que ninguém agisse desafogadamente . Fatal e finalmente, o
que era um agouro angustioso e impalpável fez-se iminência de concretude, através do
aviso da sentinela, que esbaforida chegou às reduções, relatando a aproximação dos
destruidores do gênero humano 21, os bandeirantes.
21
Assim MONTOYA, Antônio Ruiz adjetivou os bandeirantes em Conquista Espiritual, p. 125.
95

O aviso da chegada dos paulistas desencadeou um afã coletivo singular, propiciado


pela certeza generalizada do grande perigo que em pouco tempo se faria presente. A
sofreguidão tomou conta de toda a população. Nada de desafogo, nada de fleuma, mas sim
afogadilho e frêmito geral. Em intensa agitação, índios e jesuítas iniciaram as atividades
indispensáveis para a partida, que se daria por navegação fluvial, descendo o Paraná.
Doravante trataremos da tentativa de explicar, em termos fisiológico-motrizes, o notável
desempenho corporal observado nesse êxodo pelos sertões do sul da colônia. Antes disso,
cumpre observar, que nessa oportunidade, o que impeliu os índios à fuga foi o sentimento
de medo. Já observamos, em mais de um ponto de nosso trabalho, que os bandeirantes
eram impelidos às marchas pela miséria, que é aqui entendida como contingência histórica.
Os bandeirantes partiam portanto como caçadores, motivados a predar e escravizar. Eram
os captores, experimentando o sentimento da procura, da busca de presas, que poderiam ser
obtidas com ou sem luta. Estavam prontos para os revezes das empreitadas. Eram os
perseguidores, não os perseguidos. O sentimento maior que os movia era retornar ao
planalto paulista com o maior número possível de cativos. Os enormes trajetos, levados a
cabo pelas bandeiras, sugerem até mesmo certa obstinação por parte dos paulistas. Muitos
chefes bandeirantes realizaram, ao longo de suas vidas, diversas incursões sertanejas,
sendo que, em não poucas oportunidades, o número de índios apresados não cobriu sequer
as despesas resultantes da organização das expedições. Entendemos que a miséria
planáltica foi o elemento histórico forjador desse comportamento contumaz, que por sua
vez revelou-se obsessivo em não poucos sertanistas. Essa obsessão, em solucionar seus
problemas econômicos, levou muitos bandeirantes a passar grande parte de suas vidas no
sertão, longe da vila de São Paulo. Para tanto, esses homens empreenderam não apenas
evidentes performances corporais. Em oportunidades diferenciadas, esses viandante s
demonstraram desempenho corporal que causou espanto aos homens de seu tempo,
inclusive ao padre Montoya. Cobiçosos da mão de obra indígena, os paulistas lançaram-se
ao sertão com irreprimível vontade, palmilhando o interior do continente com clara
dispos içào física, assassinando e escravizando os nativos da América. Em síntese, os
bandeirantes não experimentavam o sentimento de medo em primeira instância.
Experimentavam sobretudo a expectativa venatória, como captores ou predadores. E é
justamente aqui que se torna visível a diferenciação dessa situação com a vivenciada pelos
índios de Loreto e San Ignácio, quando se prepararam para fugir dos bandeirantes,
evacuando as últimas duas reduções do Guairá. Eles agiam como presas amedrontadas,
buscando o lenitivo da retirada. Quanto a isso, vejamos as palavras de Montoya:
96

... os índios já se haviam prevenido de coisas relativas à retirada ou


fuga, a fazer-se pelo Paraná abaixo ... causava espanto verem-se, por
toda aquela praia, ocupados os índios em fabricare m balsas, que
importavam na reunião de duas canoas ou de dois troncos grandes de
madeira, cavados a modo de barco ... andava a gente toda empenhada
em baixar à praia seus objetos caseiros, sua matalotagem, suas
avezinhas e demais criação! O ruído das ferra mentas, a pressa e
confusão, davam a impressão de aproximar-se o juízo final. E disso
quem podia duvidar ...? (MONTOYA, 1985, p. 134).

Ao evocar o avizinhamento do juízo final, o missionário inaciano mais uma vez


explicita o acabrunhamento apocalíptico que lhe perpassava. Aqui, o eminente padre
associa a proximidade do juízo final à pressa dos índios na confecção das embarcações. De
certa forma, o jesuíta até mesmo justifica esta pressa, sugerindo sua explicação em termos
escatológicos. Neste sentido, ao ser incisivo em sua pergunta “... Quem podia duvidar ...?”
(do juízo final), o inaciano inusitadamente revela sua convicção sobre a proximidade do
final dos tempos. A tendência mística de Montoya fez sua pena traçar frases que são
sintomáticas, no que concerne à sua peculiar apreensão na iminência da partida.
Preparando-se para a fuga e simultaneamente procurando por indícios da natureza,
o padre do Guairá chegou a mostrar-se surpreso com a impassibilidade do céu, onde não
conseguiu vislumbrar nenhum cometa pressagiador do fim do mundo. Vejamos suas
palavras:
Este espetáculo foi tão horrendo e calamitoso, que o céu não desse sinais
ele próprio de sentimentos dolorosos através de cometas, mas na Terra,
por meio de uma imagem pincelada ... essa imagem, ao mesmo tempo em
que deixávamos em desamparo os templos, chegou a suar gotas tão
grandes e abundantes, que dois padres não dessem conta de recolherem
o suor em algodões ... (MONTOYA, 1985, p. 135).

Através dessas palavras do jesuíta, torna-se fácil detectar, mais uma vez, que a sua
mentalidade era impregnada pelas permanências medievais. Ele procurou pelo cometa, mas
não o achou. Optou então por escrever sobre uma suposta sudorese observada numa
imagem. O céu não dera sinais, mas a imagem sim, suando prof usamente. O evento
derradeiro para ele estava próximo, pois o sinal havia sido dado. Em sua procura pelos
sinais, Montoya assumiu, em termos atitudinais, o arquétipo do homem da Idade Média.
Sobre as aflições advindas da observação dos sinais da natureza no medievo,
escreveu Duby:
Tudo o que parecia ser um desregramento na natureza era cnsiderado
um sinal, anunciando os tormentos que deviam preceder o fim do mundo.
97

Dou um exemplo: todo o mundo pensava que, segundo a vontade divina,


a trajetória dos astros é regular. O surgimento de um cometa, isto é, de
uma irregularidade, suscitava a inquietação (DUBY, 1999, p. 17-8).

O padre Montoya procurou pelas irregularidades. Aliás, o inaciano procurou


precisamente pelo cometa, que como exemplificou Duby, era ente ndido pelos homens
mediévicos como um sinal do fim dos tempos.
Passando à larga desses tenebrosos êxtases contemplativos, característicos e
recorrentes nos relatos jesuíticos, adentremos à área da fisiologia humana, onde o
balisamento científico coíbe os arroubos da imaginação. Trataremos da tentativa de
explicar, em termos fisiológico-motrizes, o notável desempenho corporal, observado neste
êxodo pelos sertões do sul da colônia. Antes disso, cumpre observar, que, nesta
oportunidade, o que impeliu os índios à fuga foi o sentimento de medo. Este intento visa
explicar, em termos estritamente fisiológicos, que a pressa demonstrada pelos índios no
limiar da jornada, estava subordinada às leis que regiam os padrões motores de seus
corpos, que, naquele momento preciso, estavam respondendo ao estímulo externo de risco
de vida. São diversas as mudanças observadas nos corpos das pessoas, quando expostas ao
perigo extremo. Variados mecanismos fisiológicos são desencadeados 22, entrando em
rápido funcionamento, preparando os corpos para as ações específicas exigidas pela
situação. O estado de alerta é aguçado, propiciando percepção mais eficaz no que diz
respeito à fonte do perigo, facilitando assim sua identificação em termos precisos. Uma vez
identificada a identidade do elemento ameaçador ou afrontador, os corpos respondem
empreendendo fuga ou permanecendo para a confrontação ou o combate. Em qualquer
destas duas hipóteses, os corpos entram em hiperatividade motora. No caso dos habitantes
das duas últimas reduções do Guairá, ficara claro – com os anteriores assaltos dos
paulistas, que destroçaram onze povoações – que a permanência para o confronto aberto
com os invasores era temerária, podendo resultar facilmente em baixas numerosas. A
identidade do perigo era portanto conhecida. Os opróbrios, as injúrias e sobretudo a
selvageria desmedida eram conhecidos à exaustão, por índios e missionários de Loreto e
San Ignácio. Sabedores da aproximação de tão implacável inimigo, como também
conhecedores da impossibilidade de vencê-lo em luta, os moradores do que restou do
Guairá se puseram em fuga. Vale rememorar que essa fuga foi premeditada, submetendo
os índios e os próprios padres a uma angustiante expectativa, esperando pelo aviso da

22
Por ser necessariamente minudente, a explicação sobre este desencadeamento de mecanismos fisiológicos
encontra-se em anexo às paginas 146 a 150.
98

sentinela, que quando ocorreu, deu ensejo ao irrompimento coletivo de uma intensa faina
ou azáfama, conseqüência direta do desencadeamento de mecanismos fisiológicos
específicos, que puseram aqueles corpos em sôfrega motilidade, buscando o mais rápido
possível adiantar -se em grande distância de seus ignóbeis perseguidores. Vejamos as
palavras de Taunay:
Certo que a situação no Guairá era insustentável apressara Montoya o
êxodo geral de seus índios de Loreto e Santo Inácio, únicas reduções que
ainda subsistiam das treze recentemente florescentes. E o fez
embarcando os seus gentios, nada menos de doze milhares de guaranis,
em setecentas jangadas e canoas. As onze aldeias destruídas, contavam
ao seu dizer, para cima de 33 000 habitantes (TAUNAY, 1951, p. 53).

Quanto à febricitante atividade motora dos índios, espicaçada pelo medo da


chegada dos bandeirantes, escreveu Montoya:
Fabricaram-se, em tempo brevíssimo, 700 balsas, sem contar canoas
soltas em quantidade, embarcando-se nelas mais de 12000 almas, as
quais importavam nas únicas a escaparem deste tão tempestuoso dilúvio
(MONTOYA, 1985, p. 135).

Aqui, o jesuíta usa o sentido figurado em suas palavras, adjetivando ou qualificando


a expedição de apresamento como tempestuoso dilúvio . Isso denota todo o sentido de
maligna e mordaz implacabilidade, atribuído à bandeira que se avizinhava. Como sabemos,
segundo as escrituras, o mundo foi destruído pela primeira vez sob forte tempestade,
safando-se Noé e animais diversos numa grande arca. A analogia de Montoya aqui volve-
se novamente para a alegoria da destruição final. Torna -se também curioso observar que o
jesuíta, como Noé, buscaria sua salvação e mais a de milhares de índios, através da
navegação. Estas considerações são aqui ensejadas, para que se torne mais clara a
apreensão do jesuíta, sem contudo pretender inferir a natureza mais profunda de suas
convicções, o que seria insondável. No entanto, não é difícil compreender, através de suas
palavras, que os bandeirantes eram causadores de sentimetnos ominosos, prenunciadores
de acontecimentos terríveis. As dolorosas experiências anteriores eram revivescidas pela
memória do inaciano, que evocava lembranças ruins, suscitando e mesclando
amedrontamentos diametralmente opostos, que diziam respeito ao mundo material e ao
imaterialismo da dimensão relig iosa. Os bandeirantes eram homens de carne e osso, mas
eram também os novos herodes (MONTOYA, 1985, p. 245), os então atuais sequazes do
anticristo. Disso tudo, o que resultava para o missionário era a noção de virtude heróica,
calcada na obrigação de salvar seu rebanho dos gadanhos do mal. Os índios da redução,
99

almas cristianizadas ou em processo de cristianização, deviam ser postos fora do alcance


de novos ataques. Os indígenas sentiam medo, muito medo; e entre eles esse medo era
também fruto das experiências vividas anteriormente. Esse pronunciado temor, enquanto
fonte geradora de singularidades fisiológicas, foi o elemento que provocou a intensa
atividade corpóreo-motora dos índios, fazendo-os construir as embarcações em tempo
brevíssimo , como deixou escrito Montoya. Toda a motilidade corporal dos índios estava
submetida a alterações fisiológicas significativas, causadas pelo pavor. Isso explica “o
ruído das ferramentas, a pressa e confusão...” (MONTOYA, 1985, p.134), que causaram
espanto ao jesuíta. Corpos perpassados de terror, desdobrando-se numa vasta miríade de
movimentos. Corpos em grande perigo, preparando-se para fugir do desmembramento,
apresentando um repertório gestual amplo, não hesitante; porém por vezes desrítmico e
impreciso, dada a instabil idade natural advinda da pressa e da tensão psíquica que se
traduzia somaticamente. Torna-se aqui oportuno observar o que escreveu Bárbara
Iwanowicz: “... o organismo biológico depende diretamente da estimulação externa, que o
faz funcionar e que determina as suas respostas...” (IWANOWICZ, 1986, p. 63).
A estimulação externa, que incidiu nos organismos biológicos dos índios de Loreto
e San ignácio, foi a aproximação do temível elemento invasor, que já havia subtraído
dezenas de milhares de moradores das onze reduções assaltadas, matando-os ou
escravizando-os. Esse fator externo agiu, infundindo pavor suficientem, para que os corpos
dos índios entrassesm em outros padrões fisiológicos, que acabaram por favorecer a
prestreza da fuga. Isso já mencionamos em outras palavras, porém, o recambiamos em
paráfrase, para que se torne suficientemente evidente que, na oportunidade em questão, a
fisiologia de cada fugitivo desempenhou um importante papel, empreendendo em seus
corpos um ritmo de acelerada atividade.
Dirigida pelo padre Montoya, a retirada dos índios de Loreto e San Ignácio foi um
dos mais significativos deslocamentos em massa do Brasil Colonial, senão o mais
significativo de todos. As particularidades dessa movimentação coletiva pelos sertões do
sul brasileiro, a diferem de outras constantes em outros períodos históricos, pois seu
contingente era formado por crianças, jovens, velhos, mulheres e homens adultos. Seus
integrantes não eram militares, como ocorreu por exemplo na retirada da Laguna, que
incluía soldados indígenas em suas fileiras. Ali estavam índios amedrontados, fugindo de
uma expedição de apresamento, tentando proteger não apenas a si próprios, como a seus
filhos e mulheres. A jornada envolveu navegação fluvial e marcha florestal. Dificuldades
diversas avultaram-se no trajeto, conferindo a essa empreitada características muito
100

próprias. A escassez alimentar foi por vezes extrema, quando alguns índios chegaram a
comer coisas inusitadas. Moléstias insidiosas acometeram grande quantidade de retirantes.
Mortes decorrentes da predação de felinos selvagens, afogamentos e exaustão total. Esse
rol de eventos foi a tônica do cotidiano dos fugitivos do Gauirá. Vejamos as palavras de
Haubert:
A história desse êxodo foi contada várias vezes: o abandono das terras
ancestrais, das reduções já florescentes ... o naufrágio das embarcações
improvisadas, a caminhada penosa pela floresta para contornar as
quedas do Paraná, as crianças, os anciãos, os enfermos carregados ou
arrastados por várias léguas, os ataques das jibóias e dos jaguares, a
fome, a epidemia de disenteria, os missionários magros que usam o
resto de suas forças para impedir que as ovelhas se entreguem ao
desespero, o risco de choque com os colonos, que querem impedir essa
emigração de mão de obra, e finalmente a chegada às antigas reduções
do Paraná. Mas, ainda nessas missões, a fome e a epidemia aguardam os
neófitos: são obrigados a se alimentar de pedaços de couro, sapos,
serpentes; as crianças brigam pela pouca comida ... os pais desenterram
as sementes nos campos. Dez a doze mil pessoas haviam abandonado o
Guairá; apenas quatro ou cinco mil sobreviveram à provação
(HAUBERT, 1990, p.158).

Também sobre os percalços dessa empresa, observemos o que escreveu Taunay:


Além dos perigos da navegação fluvial, receavam os jesuítas que os
espanhóis de Ciudad Real assaltassem os retirantes. E não o fizeram,
aliás, por temerem o conflito armado com que os ameaçou o ilustre
inaciano ... em desespero de causa. Terríveis calamidades trouxe aos
fugitivos a transposição do Salto das Sete Quedas. Foi preciso
abandonar as embarcações, fazendo-se a retirada a pé por 25 léguas até
um ponto onde o rio novamente dava navegação franca e onde os pobres
exilados embarcaram em canoas feitas às pressas e balsas de taquaruçu.
Destes barcos frágeis muitos soçobraram. Muita gente pereceu na
terrível marcha, morta de moléstia ou às garras dos tigres (TAUNAY,
1951, p. 53).

Fugindo dos paulistas, os retirantes do Guairá quase se viram apresados por outros
inimigos, os colonos espanhóis que habitavam a região, afixados nas proximidades das
Sete Quedas do Paraná. Uma emboscada havia sido armada, visando o assalto apresador
“...num espaço estreito e perigoso, próprio do célebre salto do Paraná ...” (MONTOYA,
1985, p. 136 e 138). Vindo a saber do caso com antecedência, para lá se adiantou sozinho o
padre Montoya, “...numa embarcação ligeira” (MONTOYA, 1985, p. 138). O inaciano
deliberou com os espanhóis, pedindo que deixassem ele e seus índios seguirem caminho,
sem nenhuma concessão conseguindo obter, sendo inclusive ameaçado com cinco espadas
101

postadas contra o seu peito. Retornando para a sua gente, o jesuíta detalhou o ocorrido,
tendo sido consensualmente decidido que dois outros padres se adiantariam até os colonos,
para convencê-los através da parlamentação, o que também se revelou infrutífero.
Aconteceu por fim uma terceira tentativa, com Montoya se fazendo acompanhar por outro
clérigo. Dessa feita o colóquio tomou outro tom, com Montoya dizendo que forçaria
passagem a qualquer custo, conduzindo seu numeroso contingente em prontidão para o
confronto. Num rompante temerário, o jesuíta praticamente fez uma declaração de guerra
aos colonos espanhóis. Naquele dilema crucial, as alternativas não eram muitas e exigiam
atitudes rígidas. Era preciso continuar fugindo do tempestuoso dilúvio. A questão era vital.
As deliberações com os espanhóis incluíram também informações sobre a aproximação dos
paulistas, que certamente destruiriam aquele núcleo apresador adversário. Já não mais
senhoriais como antes, mas temerosos e reticentes, os colonos ouviam de Montoya frases
diametralmente opostas às de sua primeira visita. Vejamos o que deixou escrito o
missionário do Guairá:
Aproximando-me de um homem, que ali tinha sua mulher, avisei-lhe que
a afastasse desse lugar, para que naquele dia não se contasse entre os
mortos uma pessoa feminina (MONTOYA, 1985, p. 138).

Convencidos , os espanhóis se retiraram do local escolhido para a emboscada,


dando fluência ao deslocamento dos índios e missionários. Em ponto bem próximo de onde
os colonos haviam desfeito a tocaia, o rio Paraná fazia -se bravio. Vejamos o que escreveu
Montoya:
... Foi preciso abandonarmos as canoas. Porque dali em diante faz-se
inavegável o rio, devido à queda d’água que forma tais redemoinhos,
que a vista se nega de observá -los pelo temor que inspiram. Mesmo
sendo assim, experimentamos lançar 300 canoas por aqueles
despenhadeiros de águas, para ver se ao menos algumas se salvavam ou
conservavam ilesas ... mas a impetuosidade da água, a profndidade
imensa e o movimento excessivo com que elas davam em escolhos
aspérrimos, faziam-nas em estilhaços (MONTOYA, 1985, p. 139).

Para contornar as violentas cachoeiras, a população de Loreto e San Ignácio


empreendeu uma marcha arriscada pelas matas espessas que margeavam o rio Paraná.
Naquelas brenhas as agruras não foram poucas. Levando às costas as crianças pequenas e
as provisões, homens e mulheres experimentaram o cansaço e a exaustão, chegando alguns
ao esgotamento físico absoluto, principalmente ao transportar enfermos, impossibilitados
de caminhar. Carregar ou arrastar enfermos por diversas léguas – como ressaltou Haubert –
102

requer um dispêndio de energia física bastante considerável, mesmo para homens robustos,
saudáveis e bem alimentados. Sabemos que a alimentação, no episódio que ora abordamos,
não era necessariamente satisfatória; pelo contrário, havia escassez de víveres. É certo que
os retirantes se exauriram significativamente nessa caminhada desolada, que Taunay, como
já vimos, qualificou como terrível marcha onde muita gente pereceu. Entre o contingente
móvel constavam anciãos e crianças, que certamente cumpriram o trajeto muito
penosamente; os primeiros pelas limitações impostas aos seus corpos pela provecta idade,
e os últimos pelos ingentes esforços exigidos de seus organismos ainda precoces. Homens
de idade avançada, marchando recurvados sob o peso dos anos, sentindo dores lancinantes
em suas articulações desgastadas, experimentando a fadiga muscular e respirando
ofega ntemente. Meninos franzinos, com suas estruturas miológicas e tendíneo-
ligamentosas em maturação, sentindo a imposição imperiosa da necessidade de continuar.
Lembremo-nos que essa marcha por terra deu-se após uma viagem fluvial de dois dias, que
levou os fugitivos desde Loreto e San Ignácio até as grandes catadupas do Paraná, onde
aconteceu o interrompimento do fluxo para que se resolvesse a questão com os colonos
espanhóis. É óbvio que, depois desta incursão fluvial de aproximadamente quarenta e oito
horas, os navegantes não desembarcaram propriamente descansados. Iniciaram a jornada
terrestre já sentindo, pelo menos, algumas das manifestações corporais próprias do
cansaço. Já estando inclusas neste texto as palavras de Taunay sobre a distância percorrida
a pé para flanquear as cachoeiras, vejamos as palavras do próprio Montoya:
... Vencidas 25 léguas à força de caminhar por terra, haveríamos de
tomar o mesmo rio e rumo ... em questão de oito dias chegamos ao fim
de nossa viagem terrestre, indo outra vez ao mesmo rio, agora já mais
benigno e navegável. Julgamos fosse o término de nossa tribulação ...
não o sendo, foi este o começo de outra provação bem grande
(MONTOYA, 1985, p. 139).

Dessa provação bem grande trataremos logo adiante. Detenhamo-nos


momentaneamente, para que possamos entender melhor essa marcha a pé pelas matas que
perlongavam o rio. Torna -se necessário evidenciar que uma légua – antiga medida
brasileira de distância – equivale a 6 600 metros. Essas 25 léguas, transmudadas em
cálculo, equivalem a 165 000 metros, ou seja 165 quilômetros. Essa distância não foi
cumprida em campo limpo, sem obstáculos, mas sim em meio a uma intrincada
aglomeração arbórea, que tornava o avanço sobremaneira dificultoso. Em muitos pontos,
onde o entrelaçamento vegetal era muito denso, a direção da caminhada precisou ser
mudada, até que nova oportunidade de reorientação no rumo anterior se apresentasse.
103

Essas mudanças de curso nas caminhadas sertanejas do Brasil Colonial, perpassam boa
parte da obra de Ségio Buarque de Holanda, que com visão acurada, busca um
entendimento mais preciso sobre as dificuldades enfrentadas pelos caminhantes. Muitas
vezes a via que se percorria era apenas uma rústica vereda, semi-aberta por animais, que
podia se tornar intransitável mais adiante. As matas que beiravam o Rio Paraná, quando da
realização da marcha em questão, eram extremamente fechadas, com características
próprias que as classificam como florestas sub-tropicais. Foi nesta labiríntica trama verde
que os índios e missionários caminharam por oito dias, percorrendo uma média de 21
quilômetros diários, distância assaz considerável levando-se em conta as implicações já
aludidas. A média diária dessa incursão florestal foi maior da que seria alcançada por
Domingos Jorge Velho no final do seçulo XVII, quando deslocou-se do Piauí a São Paulo
e retornou ao extremo norte do país (Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará) para dizimar
os tapuios e, depois investir contra Palmares. Jorge Velho e seus homens demoraram um
ano para levar a cabo essa longa caminhada de 6000 quilômetros, cumprindo uma média
de pouco mais que 16 quilômetros por dia. Nestes termos, a média percorrida pelos
retirantes das reduções, excede em quase cinco quilômetros a distância que seria percorrida
diariamente pela bandeira de Domingos Jorge Velho, muitas décadas depois. Em ambos os
casos, os padecimentos foram numerosos, como fome, doenças, mortes e ataques de feras;
porém a bandeira de Jorge Velho não fugia de ninguém, atuava sob contrato visando
benefícios posteriores. Os fugitivos do Guairá estavam amedrontados, e o resultado
fisiológico desta emoção os impelia para a frente, com energia singular, a despeito de todos
os obstáculos. Caminhar 165 quilômetros pela mataria ensombrecida que margeava o
Paraná, foi, ao nosso entendimento, uma tarefa que envolveu performance motora passível
de ser observada em destaque. O peso da matalotagem, o peso dos enfermos, o constante
estado de alerta ante a predação das feras. O andar trôpego, porém ininterrupto, dos mais
extenuados , que obstinada e instintivamente procuravam sobreviver à qualquer custo, com
a certeza de que cada passo dado os distanciava mais um pouco de seus algozes. Oito dias
serpenteando entre os obstáculos do terreno matagoso, ora avançando rápido, ora quase
parando. Oito dias que foram decisivos para a continuidade do trajeto. Oito dias onde a
morte esteve presente, fazendo a natureza impassível acolher em seu seio os corpos dos
fenecidos. Duas dezenas de quilômetros a cada um destes dias, em busca do local
alme jado, onde a navegação seria recomeçada, em águas menos impetuosas.
Quando finalmente esse posto foi alcançado, iniciou-se a outra provação bem
grande, já mencionada atrás pelo chefe da expedição. A fome e a disenteria disseminaram-
104

se largamente. Esses dois flagelos pareciam estar à espreita, apenas se insinuando durante a
marcha pelo mato, mas agora avançavam céleres, à toda brida, prostrando e causando
sofrimento a muitos. Sobre isso, vejamos o que escreveu Montoya:
A fome, a peste e a diversidade de opiniões, causou uma confusão muito
grande. E como não haveria de ter fome uma imensa chusma de
muchachos e tanta outra gente, que apenas pôde trazer comida limitada
para aquele caminho e por não ter outra ajuda de transporte que a de
suas costas e ombros?... (MONTOYA, 1985, p. 141).

Aqui o missionário menciona a epidemia e a fome, mas também observa o grande


dispêndio físico exigido dos retirantes, que a tudo transportavam nas costas. Pela
estruturação de suas palavras, é também perceptível sua intenção de atribuir a acentuação
da fome ao desgaste energético-corpóreo, advindo do transporte de pesos extras. Neste
particular, estamos plenamente cordatos com o ponto de vista do jesuíta, mas cumpre
também mencionar, que a fome se tornaria insuportável mesmo que os caminhantes
houvessem avançado de mãos vazias, sem nenhum peso às costas, pois com o esgotamento
dos víveres a fome coletiva seria insidiosa, uma vez que a pesca ou caça – tarefas para as
quais não estavam preparados – jamais seria suficiente para alimentar um contingente de
milhares de pessoas.
Esfaimados, os índios começaram novamente a fazer canoas para que a viagem
fluvial continuasse. Muitos deles fizeram embarcações de taquara, por ser este material ali
abundante. Para que se possa avaliar a flutuabilidade destas balsas, vejamos o que escreveu
Montoya:
... Outros, por fim, lançaram-se no rio em balsas de canas ou taquaras –
há as que são tão grossas como a coxa, tendo 50 pés de comprimentos,
confiando mais em sua destreza de nadar, que na segurança da
embarcação. Encheu-se de gente uma delas, a qual havia apenas
começado a movimentar-se, quando virou, despejando de si todas
aquelas pessoas, que trataram de se salvar a nado. Somente uma
mulher, tendo em seus braços à dois filhinhos gêmeos, que eram ainda
de peito, logo se afundou à vista dos padres ali presentes. Meu
companheiro chamou pelos índios, a que acorressem e se lançassem na
água, para salvá-la (MONTOYA, 1985, p. 141).

A mulher e seus dois filhos foram salvos, bem como todos os outros que caíram na
água, após a balsa soçobrar. Exceto o da mãe e seus gêmeos, o salvamento de todos
dependeu de destreza individual na água, quando o nado foi exigido. Como ficou claro nas
palavras do missionário, os índios sabiam da fragilidade das balsas, mas embarcaram
mesmo assim, confiando em suas próprias habilidades como nadadores. Eis aqui mais uma
105

atividade física realizada pelos retirantes do Guairá: a natação. Em mais uma oportunidade
foi preciso nadar para escapar à morte, como veremos logo adiante.
A viagem continuou, com as precárias embarcações conduzindo os fugitivos pelo
Paraná abaixo, deslizando famintos pelas águas caudalosas em torrentes nada afáveis, onde
desta vez a morte fez algumas presas. Sobre este incidente escreveu Montoya:
Correu ‘fortuna’ uma balsa de duas canoas muito belas, em que
embarcaram cerca de 50 pessoas. A estas dei-lhes dois índios práticos
daquele rio e lhes avisei que, nos passos perigosos, saltassem em terra,
evitando-os dessa forma ... Aventuraram-se a entrar num grande rede-
moinho, que sugou a balsa e toda a gente dela. Esta, valendo-se de seus
braços e da destreza de nadar, tratou de salvar a sua vida, jogando-a à
fúria da água, individualmente, para as mais diversas partes. ... Onze
crianças contudo felizmente se afogaram e assim se libertaram das
tribulações, que ainda as teriam esperado mais adiante (MONTOYA,
1985, p. 142).

Nesse segundo acidente, é fácil perceber que não era pouca a destreza dos índios na
água. A balsa tinha aproximadamente cinqüenta pessoas, sendo que apenas onze crianças
morreram afogadas. O primeiro incidente ocorrera logo nos primeiros movimentos da
balsa, donde se conclui que a embarcação ainda não havia se distanciado muito da
margem, acrescentando ainda, que não existe nesse caso, nenhuma menção sobre
correntes mais fortes. Em síntese, no primeiro evento, a habilidade natatória dos índios foi
mostrada, mas não em grau tão evidente. Já no segundo caso, quando um grande
redemoinho sorveu a balsa e seus tripulantes, viajava -se por um trecho de águas vigorosas.
Faz-se pertinente caracterizar aqui a ação de um redemoinho, que ao girar
concentricamente para dentro de si mesmo, arrasta para o fundo o que estiver à flor da
água. Destarte, os índios foram tragados até o fundo do rio Paraná, sendo que para salvar-
se precisaram fazer esforços vigorosos até retornar à superfície, onde correntes bravias os
aguardavam, exigindo deles novos e dispendiosos movimentos, não apenas para garantir a
flutuação, como também para vencer a força das águas e finalmente alcançar a margem. As
onze crianças, se já com idade de saber nadar, não tiveram a resistência e a força muscular
necessários para tal tarefa, por isso morreram afogadas. Estas considerações sobre a
habilidade de nado dos índios retirantes, estão subordinadas à nossa intenção de tornar
evidentes as implicações que envolveram o desempenho motor nesta empreitada de fuga.
Conhecemos a obviedade que permeia a relação de indígenas com habilidades natatórias
apuradas. Os rios, sejam eles caudalosos ou mansos, fazem parte do universo indígena.
Índios banham-se em rios, por isso aprendem a nadar bem cedo. A capa do livro Índios do
106

Brasil, organizado por Enzo Grupioni, ilustra isso muito bem. Algumas nações autóctones
são inclusive estritamente navegantes, até mesmo dormindo em suas canoas, em estirões
hidrográficos amenos. Queremos expressar com isso, o nosso entendimento de que não é
algo espantoso que um índio nade bem. Por outro lado, ressaltamos também, que acidentes
como este – onde onze crianças morreram tragadas por um redemoinho – não eram comuns
na vida cotidiana dos nativos do Brasil Colonial. O silvícola é prudente, aprende cedo a
evitar o perigo de morte e não comete erros com freqüência, principalmente em situações
arriscadas. Contudo, no caso dos índios do Guairá, um escape estava sendo empreendido,
requerendo pressa e afoiteza. Veio daí a tentativa de vencer as águas traiçoeiras, onde
foram primeiramente tragados, sendo depois salvos por suas próprias e apuradas
habilidades de nado. Em circunstâncias outras, que não a de evasão, certamente o
redemoinho teria sido evitado; porém, ao afrontar aflitivamente o perigo, os índios do
Guairá acabaram por demonstrar suas capacidades múltiplas 23 no meio líquido, safando-se
de forma notável. Vale escla recer que, quando escrevemos índios, referimo-nos a homens
e mulheres no plural, já que entre os cinqüenta ocupantes da balsa dificilmente haveria
apenas homens, apesar do fato de Montoya não mencionar a presença de mulheres na
embarcação.
Depois desse segundo imprevisto seguiu-se a navegação, que daí prá frente foi
conduzida com muito mais cautela, posto que foi percebido que a afobação excessiva em
marcar larga distância dos paulistas podia resultar em desastres significativos, com grande
número de vítimas, principalmente crianças. Tendo já descido um trecho muito longo do
rio, os tripulantes das frágeis embarcações foram socorridos por dois padres de duas
reduções antigas, que existiam nas redondezas. Esses jesuítas haviam ficado sabendo da
retirada de Montoya e acorreram até ele, esperando-o junto a um arroio que desembocava
no Paraná. Eles haviam providenciado certa quantia de alimentos, que embora considerável
não bastou para todos os retirantes, que esfalfados comeram tudo sem sentir sacieda de.
Muitos ficaram sem experimentar os víveres, permanecendo famintos como antes. A
disenteria grassava, prostrando ainda mais os corpos já exauridos pela fome e pelo

23
Neste acidente, passando à larga da fome, os índios demonstraram excelente preparo ou condicionamento
físico; grande capacidade anaeróbica, que diz respeito à movimentos intensos e de curta duração; excepcional
capacidade aeróbica, que está associada aos movimentos não intensos, mas de duração maior; significativa
capacidade pulmonar, que confere o fôlego ao organismo em movimento; notável oxigenação miológica, que
propicia aos músculos resistência contra a fadiga, além de atribuir a eles força necessária para a execução da
tarefa. Além de todas estas capacidades ou qualidades físicas, detectáveis facilmente neste acidente, os índios
receberam novas e violentas descargas de epinefrina, secretadas por suas glândulas supra-renais no momento
exato do evento, o que os propiciou uma situação de intensa motricidade, que aliadas às suas habilidades já
descritas, ensejou o salvamento individual de cada um.
107

cansaço. Estando já inclusa neste trabalho uma citação de Haubert, à página setenta e três,
onde é mencionada, em termos mais fugazes, a miserável dieta a que se submeteram os
retirantes, e onde também são tangidos os sofrimentos advindos da epidemia, verifiquemos
ora descendo a estas questões mais minudentemente, através do que escreveu Montoya:

Comiam os índios a couros velhos, laços, crinas de cavalos e, de uma


cerca nossa, feita de paus em volta de nossa casa, tiraram de noite as
correias, que eram de couro de vaca. Sapos, cobras e toda espécie de
sevandijas, vistas por seus olhos, não conseguiam escapar de suas bocas.
Sobreveio a peste, que em tais ocasiões nunca se mostra morosa. Mas
acudiram também os padres com cuidado infatigável, a fim de cuidarem
as almas e os corpos, trabalhando dia e noite. Ao céu deram suas almas
2 000 pessoas entre adultos e crianças, tendo recebido aqueles que eram
capazes os sacramentos todos. E, mesmo que a memória da grande
abundância gozada em suas terras lhes pintasse ao vivo o estado
miserável em que ora viviam, morriam eles ... repetindo: ‘mais vale
morrer o corpo, que perigar na fé a alma entre aqueles homens sem
Deus, os vizinhos de São Paulo!’ À chusminha dos pequerruchos,
desamparada pela impossibilidade de seus próprios pais, sendo não
pequena parte deles órfãos, socorreu-se com todo o cuidade, dando-se-
lhes suas porções cozinhadas ... (MONTOYA, 1985, p. 143).

Um socorro importante, apesar de também insuficiente, veio da parte do português


Manuel Cabral, proprietário de gado afixado na cidade de Corrientes, que franqueou
muitas vacas aos índios e je suítas. As bocas eram muitas e estavam ávidas. A epidemia de
disenteria matava muita gente, tornando-se, àquele ponto, uma preocupação capital. A
argúcia dos índios em encontrar remédio natural foi então posta à prova, revelando-se
frutífera, quando foi encontrada uma erva eficaz e benfazeja, denominada igau. Esse
vegetal, que recebeu dos jesuítas o nome de salsa marinha, salvou muita gente da morte
pela disenteria. A erva era cozida juntamente com a carne, sendo dada aos doentes em
pequenas porções, com resultados que surpreenderam os missionários, debelando a
moléstia que se espalhara amplamente.
Outras ajudas significativas naquelas horas difíceis, vieram através dos jesuítas
Diogo Alfaro e Diogo Boroa. Alfaro, que era reitor do Colégio Inaciano de Assunção,
enviou à Montoya boa quantidade de sementes para plantio; tendo Boroa, então provincial
da Ordem, levado pessoalmente aos índios uma esmola substancial, repartindo-a ele
mesmo entre a comunidade. Estas informações sobre os auxílios dados aos índios do
Guairá por Manuel Cabral e pelos padres Alfaro e Boroa, são aqui emanadas dos escritos
de Montoya, onde realizamos uma tarefa de paráfrase e sobretudo síntese, tamanhas as
108

minúcias ou minudências do texto. Sobre estes socorros, em História das Bandeiras


Paulistas, escreveu muito laconicamente Taunay:
Afinal chegou o socorro dos jesuítas do sul, a quem vinha prestando o
maior auxílio o mestre de campo português Cabral, morador de
Corrientes (TAUNAY, 1951, p. 53).

Sobre a disenteria que se alastrou entre os índios, expressou-se assim o mesmo


autor:
Por mal de calamidades assaltou uma epidemia aquela turba desnutrida
e tão provada, vitimando numerosíssimas pessoas. Afinal pôde Montoya
localizar os escapos a tanta miséria às margens do Iabebiri, na
Mesopotâmia Parano -Uruguaia (TAUNAY, 1951, p. 53).

Após a epidemia, verifica-se em Taunay que a bonança começava a se insinuar para


os sofridos retirantes, agora finalmente assentados próximos ao extremo sul.
Em Montoya verifica-se o início dos trabalhos cotidianos dos povoados incipientes,
com a construção de igrejas e choças, além do cultivo da terra. Não mais adoentados, os
índios ainda sofriam a escassez alimentar, mas a amainavam com a caça, que embora não
bastasse para todos, os sustinha de pé para o trabalho. Cada homem cuidava de mais de
uma roça, desdobrando-se em esforços para obter alimento em quantidade suficiente.
Vejamos as palavras do missionário:
Foi de grande provação aquele trabalho ... Voltou a primavera depois de
um rigoroso estio. Com isso começou -se a trabalhar de modo varonil,
fazendo cada qual três a quatro roças iniciando a terra a oferecer os
seus frutos, a qual, não pouco agradecida, dá colheita fértil. Encheram
os índios os celeiros de milho. A mandioca, como pão quotidiano, deu-se
de maneira excelente. Todo gênero de legumes cresceu em abundância.
Compramos ... patos, galinhas e pombas, sendo que tudo isso repartimo -
lo entre os índios principais. Foi de tal forma que, depois desse dilúvio,
aquela terra se enchesse por meio desses animais com singular
abundância. Dela hoje se servem com gozo eles mesmos e com
generosidade incomum distribuem aos necessitados de outras reduções
(MONTOYA, 1985, p. 144).

Essas palavras efusivas de Montoya refletem a estabilização que foi sendo


alcançada pelos fugitivos do Guairá. As então renascidas reduções de Loreto e San Ignácio
floresciam, distantes da assombrosa ameaça dos bandeirantes. Na longa jornada por terra e
água haviam morrido entre cinco e sete mil pessoas, vitimadas pela fome, pela doença,
predadas por onças ou extraviadas na mataria labiríntica. Caminhantes, remadores e
nadadores, os índios de Loreto e San Ignácio levaram a cabo uma empresa modelar em
109

termos de motricidade humana, cujo corolário explicitou-se nos novos assentamentos do


sul, onde os jornadeadores transmudaram-se em plantadores, lavrando a terra num labor
braçal notável, dificilmente exequível por corpos tão exauridos pelos esforços anteriores e
pela nutrição escassa. O grande percurso coberto pelos indígenas do Guairá, foi nesse caso
causado pela fuga dos bandeirantes, que por sua vez cumpriram costumeiramente grandes
distâncias, instados pelo fator econômico de grande insuficiência em São Paulo. No
vindouro capítulo, o derradeiro de nosso tabalho, trataremos do desempenho corporal dos
bandeirantes, que contribuiu para mudanças significativas na colônia.
110

CAPÍTULO IV

BANDEIRISMO: DESEMPENHO CORPÓREO-MOTOR NO BRASIL


COLONIAL

Ao fim da segunda década setecentista


novos clamores atroaram o Brasil: Ouro!
Ouro!
Affonso de E. Taunay

1. Meninos, homens e anciãos: sede, fome e cansaço na marcha sertanista

As atividades físicas que envolveram o bandeirismo, se efetivaram sob uma


considerável gama de particularidades, que culminou na envergadura por vezes
impressionante, no que diz respeito ao rendimento corpóreo-motriz em ocasiões e
expedições diferentes.
A despeito dessas proezas físicas, notadamente levadas a cabo e não obstante
tenham impressionado os indivíduos sedentários da época, relacionemo-as mais uma vez à
contingência histórica, que engendrou suas motivações concretas, analisando as palavras
de Holanda:
A verdade, escondida por essa espécie de mitologia, é que eles foram
constantemente impelidos, mesmo nas grandes entradas, por exigências
de um triste viver cotidiano e caseiro: teimosamente pelejaram contra a
pobreza, e para repará-la não hesitaram em deslocar -se sobre espaços
cada vez maiores, desafiando as insídias de um mundo ignorado e talvez
inimigo (HOLANDA, 1986, p. 26).

Tais considerações de Holanda refutam a mitologia que orbita o bandeirismo,


inserindo-o numa perspectiva concreta, onde o deslocamento por espaços cada vez
maiores foi motivado pelo amargor da penúria. Neste trabalho, já nos ocupamos da
tentativa de resgatar o bandeirante como ser humano convencional. Doravante buscaremos
elementos que possam tornar mais visíveis o desempenho físico desse homem não
extraordinário, que no entanto protagonizou feitos físicos extremos.
Holanda menciona deslocamentos sobre espaços cada vez maiores, já Volpato, a
despeito de sua ponderação e prudência, assim se expressou sobre as marchas dos
bandeirantes no século XVII:
Abriram trilhas, transpuseram rios, percorreram distâncias
inacreditáveis, devassaram o sertão. Na busca do silvícola
111

disvirginaram a mata, descobriram e divulgaram seus mistérios


(VOLPATO, 1985, p. 46).

No Capítulo II, às páginas 42 e 43, fizemos uma breve análise literal das palavras
distâncias inacreditáveis. Já aqui, o retorno de ambos os vocábulos visa a corroboração
objetiva e enfática da enormidade dos percursos bandeirantistas. Ao escrever distâncias
inacreditáveis, a autora de Entradas e Bandeiras atribui às marchas bandeirantistas
proporções ou extensões no mínimo bastante significativas. Que muitas marchas foram
extensas, atingindo regiões distantes e incógnitas, parece estar razoavelmente esclarecido.
Que tais marchas subtraíam a energia dos caminhantes, deles exigindo pronunciado
desempenho corporal, suspeitamos ser uma consideração isenta de sofismas. Vejamos as
palavras de Volpato: “A faina no sertão era dura ... pouco tempo existia para a ociosidade
na vida dura das marchas sertanistas” (VOLPATO, 1985, p. 72-3).
Lembremo-nos de que nessas marchas, não raro os sertanistas de Piratininga
padeciam sob adversidades díspares, como a fome, o calor, a frialdade, a intempérie, a
doença, a tocaia indígena, o desnorteio, a predação de animais selvagens. De imediato,
trataremos da nutrição e da hidratação, pelo motivo desses elementos estarem relacionados
diretamente ao desempenho corpóreo-motriz.
Não raro, o desespero causado pela fome intensa impunha aos caminhantes uma
dieta no mínimo esdrúxula, com alguns gêneros não ingeridos usualmente nem mesmo
pelos indígenas. Padecendo há muitos dias, esfaimados e enfraquecidos, os bandeirantes
não rejeitavam nada que se lhes apresentasse 24, não raro comendo ratos e sapos. Da
alimentação indígena nada lhes escapava: cobras, raízes de guaribá, grelos de samambaia,
saúvas, formigas içás 25 e bichos -de-taquara.
Na obra Viagem à Província de São Paulo, Auguste de Saint-Hilaire fez referências
ao bicho-de-taquara. Este botânico francês desembarcou no Brasil em 1816, visando
catalogar plantas sul-americanas, classificando-as cientificamente. Vejamos as palavras
desse pesquisador e viajante europeu:
Quando estive entre os malalis na capitania das minas, esses indígenas
me falaram freqüentemente, de um verme ... verme denominado ‘bicho -
da-taquara’, porque é encontrada nas varas dos bambus, quando os
mesmos estão em flor. Alguns portugueses que viveram entre os
indígenas, tornaram-se também apreciadores dêsses vermes ... (SAINT-
HILAIRE, 1972, p. 321).

24
As informações desta dieta dos bandeirantes se encontram em VOLPATO, L., Entradas e Bandeiras, p.
68; e em MACHADO, A. , Vida e morte do baneirante, p. 238.
25
Espécie de formiga que era ingerida após ser torrada.
112

Muitos foram os bandeirantes que morreram de inanição. Como exemplo isolado,


tomemos a bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva, que em 1722 sofreu quarenta baixas
em conseqüência da desnutrição absoluta. A grande expedição de Raposo Tavares (1648-
1651, que cumpriu de dez a doze mil quilômetros), experimentou as agruras do sertão de
forma pronunciada. Nessa bandeira, alg uns integrantes, após atingir as Missões do Guairá
e enfrentar os Paiaguás, retornaram ao planalto paulista, “não querendo se arriscar a
paragens tão longínquas” (MONTEIRO, 1994, p. 81).
O mesmo autor assim se referiu ao famoso mestre-de-campo, após seu retorno à
Vila de São Paulo:
... O Raposo Tavares que regressou a São Paulo era um homem acabado
(...) de acordo com alguns, tão desfigurado que seus próprios parentes
não o conheceram (MONTEIRO, 1994, p. 81).

Décadas antes de Monteiro, já escrevia Taunay sobre a volta de Raposo Tavares ao


povoado planáltico: “Tão desfigurado chegou à sua casa, conta -se que nem parentes nem
amigos o reconheceram” (TAUNAY, 1951, p. 100).
Parece que a fome e a exaustão extrema, experimentados rotineiramente no sertão,
deixaram suas marcas indeléveis na estrutura física desse líder sertanista. Evoquemos a
obviedade de que nenhuma atividade física branda promove a desfiguração corporal, que
segundo Monteiro e Taunay, ocorreu com Raposo Tavares. Em outras palavras, o
rendime nto corpóreo-motor evidentemente foi de uma intensidade muito significativa
nessa importante expedição bandeirantista. Homens exauridos e esfomeados, caminhando
e remando, “perdidos na imensidão da América” (MONTEIRO, 1994, p. 07). Músculos de
pernas e braços em flexões extenuantes, sentindo as dores da jornada interminável. Corpos
humanos outrora robustos, tornados escanifrados pela escassez alimentar e pela exacerbada
motricidade da viagem sem norte. Pés descalços palmilhando trilhas diversas, sob as copas
das grandes árvores amazônicas. Punhos fechados, segurando tenazmente remos
improfícuos, orientando o avanço das débeis embarcações no curso caudaloso do Rio
Amazonas.
Considerando as particularidades da bandeira de Raposo Tavares, em especial sua
grande mobilidade sob condições tão adversas, entendemos que o desempenho físico foi
primordial, para que as proximidades do extremo norte do país fossem alcançadas. Isso até
mesmo nos parece óbvio. Foram trinta e oito meses no sertão, uma viagem
verdadeiramente notável, que partindo de São Paulo, atingiu Belém do Pará, após ter
passado por Mato Grosso, pelo Paraguai e Amazonas. A fome, como mencionou
113

Monteiro, foi uma das agruras dessa expedição. Fome não saciada, energias não
recompostas. Atividade corporal acentuada, dispêndio energético profuso. Adicionados à
isso as doenças e os ataques indígenas, não parece ser difícil compreender os motivos da
desfiguração física do mestre-de-campo Antonio Raposo Tavares.
Inúmeras bandeiras padeceram também sob a inclemência da sede, enveredando-se
“muitas vezes por ermos que não dispunham de água potável” (VOLPATO, 1985, p. 69).
A alternativa, nessas circunstâncias, era aplacar a sede ingerindo frutas agrestes, seiva de
folhas e cipós e caldo de raízes. Na impossibilidade de encontrar tais gêneros e, frustrada
também a possibilidade dos índios integrados nas expedições descobrirem água, os
caminhantes sedentos concebiam uma atitude extrema ... bebiam sangue de animais 26. O
caminhar sob o sol, a sudorese exacerbada pela canícula. Sede não mitigada, perda de
líquido não reposta. Corpos humanos minimamente hidratados, que no paroxismo do
desespero sorvem sangue de animais selvagens. Hematófagos racionais dessedentando-se à
custa de seres irracionais. Homens em marcha por lu gares áridos, vertendo abundante suor,
sentindo o gosto do sal nos lábios gretados, sob o implacável sol zenital, deixando atrás de
si grandes respingos nas pedras ressequidas. A sede, quando muito intensa, figura entre as
mais torturantes sensações experimentadas por qualquer ser vivo, rompendo todas as
barreiras de repúdio, sobretudo no ser humano. Para a execução das tarefas mais simples
do dia -a-dia, o corpo necessita de água. Falamos de tarefas corriqueiras, ordinárias, como
atividades de baixo dispêndio energético. Um indivíduo, mesmo que sentado, imóvel, sente
sede diariamente. Seu corpo necessita da ingestão de líquidos, para que seus mais
elementares mecanismos fisiológicos funcionem normalmente 27. Antagonicamente a essa
situação, o homem envolvido em grande atividade física necessita de ingestão líquida
muito mais significativa, em quantidade consideravelmente maior. Isto é uma asserção
científica da medicina desportiva, calcada na lógica de equivalência de ingestão e
dispêndio. Destarte, a corroboração da obviedade que medeia a relação água-vida humana,
insere-se numa perspectiva que nos permite vislumbrar o bandeirante sedento como um
homem que caminha para a morte. Entendamos aqui a cessação da vida, como causada
pela sede que se exarcerbou, em virtude do ato físico-motriz. Entendamos também, por

26
Informação encontrada em VOLPATO, L., 1985, p. 68. e MACHADO, A., 1980, p. 238.
27
Em termos de imobilidade, evoquemos uma situação ainda mais extremada. Um homem com secção da
medula espinhal na região cervical, com fratura do osso axis (estrutura óssea localizada abaixo do atlas, na
base do crânio, encimando a primeira vértebra da região cervical), paralisado do pescoço para baixo, sem
capacidade de fala ou deglutição. Um corpo em absoluta inércia, mas que não prescinde do soro que lhe é
administrado endovenosamente. Mesmo sem qualquer ato motriz, sua fisiologia interna absorve o líquido,
dependendo estritamente dele para continuar mantendo a vida silenciosa do corpo inerte.
114

extensão natural, que a motricidade exercida em condições absurdas, levou a estrutura


corporal do caminhante além dos limites suportáveis. Em síntese, a associação exercício
físico/ausência de água configura-se aqui como um processo fatal, caso não seja
interrompido através de reidratação suficiente. Considerando que cada passo significa mais
suor expelido pelos poros, que cada flexão significa ascensão da fadiga muscular;
considerando também a incapacidade de obtenção de água, aliada ao movimento do corpo
para encontrá-la, evidencia -se um quadro de ínfima hidratação corporal, grande dispêndio
líquido e nenhuma reposição. Desta forma, sob o respaldo científico da fisiologia humana,
não julgamos inidôneo afirmar que o caminhante, nestas condições, caminha literalmente
para a morte. O corpo, nas circunstâncias mencionadas, é drenado e exaurido até não mais
agüentar, perecendo após ultrapassar as linhas limítrofes de suas capacidades funcionais.
Na obra Vida e Morte do bandeirante, Alcântara Machado aborda os sertões estéreis, os
lugares sem água, onde muitos sertanistas encontraram seu fim.
Outra característica deletéria, para a estrutura corporal dos sertanistas de
Piratininga, era a pesada atividade motora precoce. Ainda púberes, muitos indivíduos
eram integrados às bandeiras, acompanhando familiares mais velhos. Tal iniciativa
emanava do anseio de ascender rapidamente na atividade, visando apresar o maior número
possível de indígenas. Agindo assim, o garoto bandeirante tinha a possibilidade de atingir a
idade adulta já possuidor de uma grande quantidade de índios, assenhoreando-se do poder
e do status que tal posse significava. Esta lógica social era, em alguns núcleos familiares,
transmitida através das gerações. Sobre o ingresso precoce na vida sertaneja, escreveu
Volpato:
Antônio Pires de Campos e Bartolomeu Bueno da Silva (filho) contavam
quatorze anos quando acompanharam seus pais pelo sertão, e Francisco
Dias da Silva tinha dezesseis anos quando participou da bandeira de seu
tio (VOLPATO, 1985, p. 63).

Garotos de quatorze anos, pré adolescentes ainda na puberdade, enfrentando os


revezes do difícil caminhar agreste. Aos quatorze anos, o sertanista mirim é um ser
humano cuja conformação corporal é inte iramente avessa à dura mobilidade sertaneja, em
virtude de sua imaturidade biológica. 28

28
A estrutura corpórea de um indivíduo pertencente a esta faixa etária apresenta-se em fase de transição.
Recém saído da infância, sua con formação anátomo-fisiológica está distante da maturação completa, que em
média só é atingida aos vinte e um anos. Seus segmentos miológicos ainda não atingiram a hipertrofia
(aumento de tamanho estrutural) suficiente para sustentar grandes pesos, não se adequando também às
atividades aeróbicas (diz-se das atividades de longa duração), que requerem considerável resistência física,
Seus tendões e ligamentos ainda não são tão resistentes para o caminho pedregoso, para o aclive abrupto,
115

Abordemos agora outra faceta do bandeirismo, que apresenta homens idosos


devassando as matas com ímpeto inusitado.
O mestre-de-campo Fernão Dias Pais tinha sessenta e seis anos, quando deixou o
planalto paulista, em junho de 1674, comandando uma bandeira que continha em suas
fileiras os mais famosos sertanistas de seu tempo, como Manuel da Borba Gato, Matias
Cardoso de Almeida, Francisco Pires e Garcia Rodrigues Pais.
Sobre essa expedição chefiada por um homem de idade avançada, escreveu
Volpato:
A bandeira de Fernão Dias peregrinou quase oito anos no sertão,
enfrentando toda sorte de dificuldades: falta de recursos, abandono da
jornada por alguns cabos-de-tropa, perda do contingente em combates
com o gentio ou por doença e até mesmo a existência de um motim do
qual participou o filho bastardo de Fernão Dias, o qual, juntamente com
os demais amotinados, foi executado. Já bastante desfalcada, a bandeira
chegou aos cerros de Itacambira, onde encontrou pedras verdes em
grande quantidade. Porém, acometido de impaludismo, o velho
bandeirante veio a falecer em meados de 1681, possivelmente perto da
barranca do Rio das Velhas (VOLPATO, 1985, p. 92).

Como ficou claro, a bandeira de Fernão Dias defrontou-se com dificuldades


diversas. Uma expedição comandada por um homem vetusto, que morreu aos setenta e três
anos, sendo que os últimos oito anos de sua vida foram passados no sertão.
Um homem longevo, cuja estrutura corporal experimentara a ação deletéria do
encanecimento natural. O corpo humano sofre degenerações gradativamente, através das
décadas, chegando à ancianidade consideravelmente menos eficiente do que foi na
juventude. A longevidade, mesmo que sadia, traz consigo uma vasta gama de efeitos,
causados pelos eventos paulatinos ocorridos no decurso do envelhecimento corpóreo29.

para a planície que se estende no horizonte. Sua produção de testosterona, ainda insuficiente, nega -lhe a força
bruta e até mesmo o comportamento agressivo, tão importantes nas adversidades traiçoeiras das matas. Suas
epífises ósseas, em acelerada expansão, fecham-se prematuramente, furtando-lhe, anos mais tarde, seu pleno
potencial de estatura. Dores pronunciadas fustigam-lhe os grupos musculares mais exigidos, devido ao
acúmulo de ácido lático nas micro-fibras não maturadas. A grande taxa de endorfina secretada por seu
cérebro rouba-lhe a vivacidade, impondo-lhe um torpor estranho, ainda não identificado com prazer e
sossego. A baixa produção de serotonina determina-lhe atitudes instáveis, ensejando oscilações emocionais
inconvenientes ao ambiente, que requer posturas rígidas, às vezes inflexíveis. Sob a imposição da
motricidade intensa, sua pequena caixa toráxica entra em hiperatividade, visando suprir a demanda de
ventilação exigida pelos pulmões, deixando-o ofegante. As sístoles de seu miocárdio reduzido não ejetam
sangue em quantidade suficiente, aumentando-lhe a freqüência cardíaca, ofertando-lhe o desconforto da
taquicardia.
29
Observemos brevemente alguns destes efeitos: flacidez muscular generalizada, enfraquecimento do tecido
ósseo (com possibilidade do surgimento de osteoporose), desgaste das extremidades ósseas articulares,
enfraquecimento das inserções tendíneo-ligamentares, redução da produção de líquido sinovial, acentuação
das patologias da coluna vertebral (cifose, lordose e escoliose), redução do calibre periférico de vasos e
artérias, redução da elasticidade do tecido alveolar pulmonar, redução da eficiência cárdio -vascular. Algumas
116

As diversas mudanças sofridas pelo corpo, ao longo dos anos, são inexoráveis.
Neste sentido, torna -se notável a iniciativa de Fernão Dias Pais, que partiu para o sertão já
tendo adentrado a ancianidade. Quando da organização de sua bandeira, o mestre de campo
era um homem abastado, possuindo terras, gado, ouro e prata. Vendeu quase tudo que
tinha, conservando sua casa. Fernão Dias gastou seis mil cruza dos com a montagem de sua
expedição, soma bastante vultosa para a época, recebendo ainda pequena ajuda da Fazenda
real e da Câmara de São Paulo.
Desfrutando a prosperidade granjeada ao longo da vida, o experiente mestre de
campo não experimentava portanto o triste viver cotidiano (HOLANDA, 1986, p. 26) dos
homens que se fixaram primeiramente no planalto de Piratininga, ou mesmo dos mais
miseráveis de sua própria época. Destarte, o que o moveu não foi a penúria ou
dificuldades similares, que foram element os determinantes para a constituição de inúmeras
bandeiras. Fernão Dias partiu para o sertão atendendo à solicitação do Visconde de
Barbacena, então Governador da Capitania de São Vicente, que em nome do próprio
Regente, formulou-lhe o pedido de que organizasse uma expedição, visando a prospecção
de jazidas de prata e esmeraldas. Isso foi em 1671, três anos antes que sua bandeira
partisse. O velho bandeirante assentiu, atendendo o pedido e depauperando seu patrimônio
pessoal, amealhado no decurso de sua vida. Além da possibilidade do encontro de
riquezas, moveu-o a ânsia de elevar ainda mais o seu status . Efetivada a iniciativa de partir
para o sertão, configurava -se em desdobramento, o entendimento coletivo de que o
respeitado sertanista o fizera por solicitação direta do Governador da Capitania.

outras diferenciações são ainda mais perceptíveis, como a redução da capacidade visual, distúrbio auditivos,
lentidão de raciocínio (causado pela vascularização cerebral reduzida, que por sua vez determina lentidão na
dicção e nos reflexos instantâneos). Existem ainda outras particularidades anátomo-fisiológicas que se
explicitam no organismo humano no decurso do tempo. Não trataremos de todas elas, posto que para a
proposta de nosso estudo, as mais importantes são as gradações que causam maior detrimento para o
desempenho motor global. A ciência da Educação Física, no que diz respeito ao atendimento às pessoas da
terceira idade ( a tercei ra idade inicia-se aos sessenta anos), preconiza a realização de exercícios físicos de
baixa intensidade, em função das particularidades diversas que determinam a especificidade corpóreo-motora
dos indivíduos pertencentes à esta faixa etária. Todas as atividades dos professores de Educação Física que
lidam com grupos da terceira idade, são caracterizadas por vigilante comedimento, pautadas pela observância
de não ultrapassar a capacitação física global de corpos já desgastados pelas sucessão das décadas. As
caminhadas são ministradas invariavelmente entre 07:00 e 09:00 h e das 16:00 em diante, evitando a
exposição dos praticantes ao calor do sol. A ginástica, mormente visando fins de relaxamento, é realizada em
ritmo contido, envolvendo os grupos musculares mais trabalhados no cotidiano. Todas as outras modalidades
de atividade física, quando direcionadas aos indivíduos idosos, observam ditames específicos, que coíbem
exageros. Numa só frase, a ciência da Educação Física incentiva os idosos às práticas corporais, porém,
respaldada cientificamente, preconiza o cumprimento do respeito aos corpos humanos que já passaram por
gradações que o tornaram mais limitados, mormente no que concerne à motricidade. Esta breve incursão pelo
cientificismo anátomo -fisiológico, bem como as considerações sobre o que é entendido (à luz da Educação
Física) como salutar aos indivíduos da terceira idade, visaram a busca de um entendimento mais específico
sobre a inserção de um homem idoso numa rústica marcha sertanista.
117

Ressaltemos que tais solicitações pessoais eram feitas apenas aos bandeirantes de maior
projeção social. Desta forma, esses pedidos eram considerados quase como honrarias, uma
vez que denotavam a confiança do governo no sertanista que era abordado, funcionando
também como atestados informais de eficiência na lida sertaneja. Fernão Dias estava
acostumado com essas deferências, tendo anteriormente recebido uma carta de próprio
punho do Rei de Portugal, que lhe pedia apoio na prospecção de riquezas, dez anos antes
da partida da expedição solicitada pelo Visconde de Barbacena. Até títulos eram
oferecidos aos bandeirantes mais proeminentes, visando estimular -lhe a montar
expedições. Observemos as palavras de Volpato:
... o monarca era aconselhado a usar determinadas estratégias: para os
paulistas mais valiam honrarias do que riquezas. O Rei era aconselhado
a oferecer, em troca das peregrinações, títulos e mercês. Para conseguir -
lhes a adesão era importante estimular-lhe s a vaidade. Com este intuito,
o rei D. Afonso VI escreveu cartas de próprio punho aos bandeirantes
mais famosos, pedindo apoio nos trabalhos de pesquisa de riquezas.
Desse teor era a carta recebida por Fernão Dias Pais em 1664
(VOLPATO, 1985, p. 91).

Também sobre estas artimanhas da Corôa, que tinham como objetivo espicaçar o
ânimo jornadeador dos expedicionários paulistas, escreveu Taunay:
No caso de se realizarem novos descobrimentos tornava-se indispensável
que o trono distribuísse mercês, sobretudo hábitos de Cristo a gente tão
vaidosa como os paulistas, que só se lembrava de honras, desprezando
conveniências (TAUNAY, 1951, p. 25-6).

Tendo montado sua expedição motivado por vaidade, obtenção de maior status ou
encontro de esmeraldas, o certo é que Fernão Dias Pais trocou o conforto de sua vida
estável pela rusticidade da marcha sertaneja. Por qualquer dos motivos, observa-se que a
afixação na terra e o sedentarismo não o dissuadiram do intento de partir pela derradeira
vez. Os últimos oito anos de sua vida foram marcados por intensa atividade corporal, a
despeito de sua avançada idade. Fernão Dias Pais, certamente, foi um homem de grande
resistência física. Tal asserção pode ser feita de forma desassombrada, respaldada pela
ciência da Educação Física, através da anatomia e da fisiologia humanas, que deslindam as
mudanças ocorridas no organismo ao longo do tempo.
Tendo já mencionado algumas dessas mudanças, não podemos, no entanto,
mensurar em que grau o corpo de Fernão Dias as apresentava. Não podemos afirmar que
Fernão Dias apresentava todas as características anátomo-fisiológicas que são atribuídas
aos indivíduos de sua idade. Por outro lado, é certo que Fernão Dias apresentava muitas
118

características próprias de homens idosos. Para as lidas de camin heiro sertanejo, que exige
ingentes esforços físicos e consome grandes quantidades de energia, o mestre-de-campo
tinha idade demais. Fernão Dias Pais foi um ancião robusto, pois de outra forma não teria
agüentado as longas caminhadas, os combates com indígenas e o motim que ocorreu em
sua bandeira. Nos oito anos que antecederam sua morte, esse bandeirante engendrou um
exemplo modelar de desempenho físico notadamente acima da média, levando-se em conta
a sua ancianidade.

Pontuemos alguns elementos constantes na história do bandeirismo. Caminhadas


inacreditáveis, ingestão de animais insalubres para saciar a fome, batalhas sangrentas,
ingestão de sangue de animais para aplacar a sede, desnorteio, exposição ao sol e
intempéries, transposição de acidentes orográficos. A precocidade de Antonio Pires de
Campos e Bartolomeu Bueno (filho) na intensa faina física do sertão. O impressionante
rendimento físico de Domingos Jorge Velho em sua marcha de seis mil quilômetros,
buscando guerreiros para destruir o Quilombo de Palmares. Os descalabros da grande
expedição de Raposo Tavares, que cumpriu de dez a doze mil quilômetros, marchando e
remando, enfrentando índios e passando fome. O notável desempenho corpóreo-motor de
Fernão Dias, um ancião comandando uma grande bandeira, expondo seu corpo
envelhecido às agruras do sertão.

A história das bandeiras foi construída por corpos em movimento. O fenômeno


bandeirantista foi a configuração antagônica do sedentarismo.

Ao negarmos os bandeirantes como heróis, torna-se possível visualizar a verdadeira


envergadura de seus feitos físicos. Os corpos dos heróis não sentem dor ou cansaço, não
adoecem e não sentem fome ou sede. O bandeirismo mostrou homens comuns, realizando
atividades físicas impensáveis, verdadeiramente espantosas.

Todas as atividades das bandeiras (apresamento de índios, busca de ouro, busca de


pedras preciosas ou destruição de quilombos) foram concretizadas à custa de muito suor e
esforço corporal. Inexistem corpos estáticos nesse cenário de deslocamento constante. Se m
a motricidade obstinada dos sertanistas paulistas, a história do Brasil Colonial certamente
seria diferente.

Os sertanistas de Piratininga, heroicizados e mitificados pela historiografia do


bandeirismo, surgiram no discurso histórico instrumentalizados politicamente. Foram
contestadores do capitalismo, vanguardistas da democracia social e racial, descobridores de
jazidas minerais e responsáveis pela expansão das fronteiras do Brasil.
119

Inseridos numa miscelânea vocabular que os adjetivava ufanisticamente, os


sertanistas paulistas foram representados na historiografia como protagonistas de feitos
épicos, supra-humanos.

Nessa construção político-ideológica, onde os desfechos dos acontecimentos


eclipsam o processo concreto que os efetivou, as atividades físicas dos bandeirantes são
mencionadas canhestramente, sob a intangibilidade da representação multifacetada. O
herói paulista, além de suas diversas outras virtudes , foi também um homem que deslocou-
se por espaços cada vez mais amplos.

O homem planaltino comum vivenciou a mobilidade sertaneja, experimentando os


revezes oferecidos por tal deslocamento.

O desempenho corporal, tão decisivo para que muitas expedições atingissem seus
objetivos, foi inserido num alentado rol de pseudo-virtudes, diluindo-se em me io a uma
profusão de adjetivações edificantes. Entendemos que o movimento humano foi uma das
principais características do bandeirismo.

O desempenho físico foi um elemento significativo nas incursões dos sertanistas de


São Paulo, tendo sido uma das facetas mais importantes da história das bandeiras.

2. O papel da motricidade bandeirante na mudança da configuração contextual do


Brasil Colonial

No século XVII, o fortalecimento dos engenhos de açúcar no Nordeste acompanhou


a decadência pronunciada da produção açucareira na região de São Vicente, que mais
distante do litoral europeu, marginalizou-se pouco a pouco da rota comercial marítima. Os
navios provenientes da Metrópole aportavam nas capitanias do Nordeste, cumprindo
navegação menos extensa e abastecendo-se satisfatoriamente, mercê da próspera produção
canavieira.

Diferentemente da aparente solidez dos núcleos populacionais do litoral nordestino,


cuja riqueza agrária traduzia -se nos latifúndios e nas casas grandes dos senhores de
engenho, a capitania de Martim Afonso de Souza, no Brasil Colonial, caracterizava -se
ainda pela imaturidade, pela carência de recursos e pela grande distância que a separava da
movimentação mercantil escravista e açucareira.
120

A afixação na terra, o sedentarismo caracterizado pelas populações do Nordeste,


tornou-se a configuração da antítese, do antagonismo da situação vivenciada pelos
paulistas, especialmente os do planalto de Piratininga.
Impedidos de adquirir escravos africanos, devido às contingências contextuais já
descritas, os paulistas empreenderam longas marchas mata adentro, visando apresar índios,
os negros da terra , para o labor assistencial e para o comércio escravista. As bandeiras de
caça ao índio desbravaram florestas desconhecidas rumo ao sertão distante.
Sobre a sociedade paulista, escreveu Holanda:
Sua vocação estaria no caminho, que convida ao movimento; não na
grande propriedade rural, que cria indivíduos sedentários ... A
mobilidade dos paulistas estava condicionada, em grande parte, a certa
insuficiência do me io em que viviam (HOLANDA, 1990, p. 16).

Visando ressaltar os grandes esforços a que se submetiam os sertanistas de São


Paulo, Barreiros evocou a óbvia lembrança da jornada pedestre, que era cumprida
predominantemente, sob o fator agravante dos pesos extras. Vejamos as palavras de
Barreiros:
Convém lembrar que se viajava a pé, carregando a bagagem às costas,
por ínvios caminhos, representados por trilhas que se contorciam morro
abaixo e morro acima, ou por densas florestas de rumos incertos, ou
ainda, por campos infndáveis (BARREIROS, 1979, p. 20).

Analisemos as intrépidas incursões das bandeiras. Elas percorriam caminhos


rústicos, estreitas sendas, traiçoeiras picadas abertas a facão nas matas ínvias.
Atravessavam rios, transpunham morrarias, cruzavam planícies, enfrentavam a resistência
de grupos indígenas belicosos, expunham-se aos extremos climáticos no âmago da
natureza selvagem, experimentavam as inoculações de insetos e répteis peçonhentos,
sujeitavam-se aos descalabros de uma dieta inadequada e insuficiente. Para o sucesso das
empreitadas, mais do que qualquer outra característica, os paulistas expedicionários eram
compelidos a atingir as linhas limítrofes de suas capacidades físicas, que em diversas
oportunidades beiravam e até mesmo ultrapassava m a exaustão. O caminhar pela mata,
enfrentando as escabrosidades naturais e os relevos acidentados, envergando gibões 30
incômodos, levando às costas mosquetões 31 e alfanjes 32, conduzindo ainda pesadas

30
Veste de couro para resistir a flechadas, algumas de couro de anta.
31
Armamento que de tão pesado precisava ser apoiado num tripé, media 1,75m e geralmente era carregado
por dois expedicionários.
32
Sabre curto, para combates corpo a corpo.
121

correntes para o apresamento dos negros da terra, víveres rudimentares e outros acessórios
... Razoável exercício físico! Junte-se a isso os esforços corporais nos embates com os
índios, o nado improvisado para vadear cursos d’água mais profundos, o trabalho
extenuante da derrubada da vegetação visando abrir novas sendas, as fadigas adicionais das
atividades de caça e extração de alimentos nativos ... Considerável exercício físico!
Passando à larga das menções burlescas considerável exercício físico e razoável
exercício físico, penetremos no terreno formalmente racional das constatações objetivas,
emanadas das páginas da historiografia, que mostram claramente os ingentes esforços
corpóreos dos bandeirantes. Faz-se necessário mencionar a obviedade de que o discurso
histórico, em sua totalidade, narra a saga desses expedicionários sob os prismas narrativos
múltiplos da busca de pedras preciosas e do aprisionamento e morticínio de indígenas, da
expansão dos núcleos populacionais, do fracasso do Tratado de Tordesilhas, da dilatação
das fronteiras e da extração aurífera. Ressaltadas pela historicidade (no sentido literal da
palavra: qualidade do que é histórico), estão contidas na historiografia, reiteradas vezes, as
variações rítmicas ou cíclicas do que é entendido como progresso, com suas debreagens e
deslanches. Conf erindo salutar inteligibilidade aos fatos, num sentido mais amplo, o
entendimento do desenvolvimento ou progresso insere-se numa perspectiva que oportuniza
o deslindar de certos contextos regionais interdependentes. O atraso de São Paulo, em
relação ao Nor deste no século XVII, era proeminente. Os sólidos engenhos nordestinos,
alicerçados no poder dos grandes senhores de terras e na conveniente teia clientelista,
tecida politicamente na cúpula da sociedade, configurava à exatidão as teorias do
historiador holandês J. Romein:
El progresso realizado en el pasado es suscetible de actuar como un
freno, a costa de nuevos progressos. Por la atmósfera de
autosatisfacción se oponen obstáculos a nuevos progresos que
implicariam un desmonstje de las instituiciones y de los equipos (J.
ROMEIN apud CHESNEAUX, 1995, p. 112).

Tal atmosfera de auto-satisfação não foi experimentada pelos paulistas, que


vivenciavam um cotidiano rudimentar, habitando toscas edificações de taipa, onde não
havia camas (os paulistas dormiam em redes) nem banheiros. O atraso de São Paulo foi
ilustrado por Holanda:
... A lentidão com que, no Planalto Paulista vão se impor costumes,
técnicas ou tradições vindos da Metrópole terá profundas
conseqüências: só muito aos poucos, embora com extraordinária
consistência, consegue o europeu implantar formas de vida que já lhe
eram familiares no Velho Mundo (HOLANDA, 1990, p. 16).
122

Em ¿ Y que és la Hstória?, Prieto cita também a tese de Romein sobre Los llegados
tarde da história , que se ajusta, à perfeição, ao progresso atingido por São Paulo, quando
do advento da extração aurífera, encetado pelas bandeiras e posteriormente robustecido
pelas monções:

... El progreso viene muchas veces de otros pueblos atrasados, los


“llegados tarde” a la história ... La línea general de este argumento es
demostrar que el retraso, en ciertas condiciones, es una ventaja que
espolea hacia nuevos esfuerzos, mientras que un avance más rápido
constituye un freno es la dialética del progresso (PRIETO, 1995, p. 112).

Nossa incursão pela análise do progresso visou abrir linhas essenciais para
enfocarmos a importância das bandeiras, que eram expedições que partiam de um lugar
sem recursos, levando-se em conta os padrões coloniais.

Doravante, pretenderemos demonstrar, que o progresso de São Paulo teve sua


configuração embrionária nas bandeiras rumo às paragens mais remotas do Centro-Oeste
brasileiro. Os nuevos esfuerzos dos bandeirantes impressionaram muita gente, como o
padre jesuíta Antônio Ruiz de Montoya (1585-1652), que escreveu que os paulistas, a pé e
descalços, andavam mais de dois mil quilômetros por vales e montes como se passeassem
pelas ruas de Madri. Para o religioso inaciano, crescido e educado num ambiente
civilizado, a extensão de tal marcha denotava capacitação física muito acima da média. O
espanto transparece claramente em suas palavras, principalmente quando traça o paralelo
comparativo da caminhada sertanista com um simples passeio pelas ruas da capital
espanhola. Tal analogia revela seu pasmo, concernente à singularidade do desempenho
corporal dos homens rudes que compunham as bandeiras. Enfoquemos brevemente a
lexicologia, ressaltando algumas acepções da palavra passeio e do verbo passear, visando
coibir detrimento no ato de interpretar a frase do padre Montoya. Segundo o Novo
Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, passeio significa: 1. Ato ou efeito de passear; 2.
O percurso de certa extensão de caminho, para exercício ou por divertimento; 5. Distância
curta; 7. Aquilo que se conquista sem nenhum esforço, em que se obtém vitória facílima. O
verbo passear , ainda segundo o dito dicionário, significa: 1. Ir a algum lugar, ou mover-se,
andar a passo, com o fim de entreter-se, divertir-se, tomar ar ou fazer exercício.

A fala do jesuíta, indubitavelmente inculca ênfase na performance motora dos


paulistas, dando ares de passeio a um percurso de 2000 quilômetros. Ficou claro, em nossa
incursão lexicológica, que passeio ou passear não implicam de forma alguma em cansaço
123

físico. Isso entendido, faz-se nítida a intenção do jesuíta em comunicar -se procurando
expressar a negação de qualquer fadiga experimentada pelos sertanistas.
O assombro do padre Montoya emprestou cromatismos épicos à caminhada dos
bandeirantes, pintalgando-a com nuanças que sugerem uma proeza mitológica.
Expliquemo-nos melhor: é óbvio que não existem seres humanos que não se cansem ao
cumprir 2000 quilômetros de marcha, por lugares florestosos e de relevo acidentado. O
cansaço, a fadiga e a exaustão obviamente eram sentidos pelos paulistas, de forma que
deve ser levada em consideração certa densidade alegórica nas palavras do jesuíta, que
induziram a um entendimento de performance física no mínimo sobrenatural. Por outro
lado, é também óbvio o grande desempenho corpóreo-motor dos expedicionários
sertanistas, que cumpriram, em outras diversas oportunidades, percursos portentosamente
maiores do que este enfocado pelo religioso espanhol. Adiante, abordaremos alguns destes
percursos cumpridos pelas bandeiras.
No que diz respeito aos reveses enfrentados pelos pa ulistas, escreveu Holanda:
A capacidade de resistir longamente à fome, à sede, ao cansaço; o senso
topográfico levado a extremos ... são algumas das imposições feitas aos
caminhantes, nessas veredas estreitas e rudimentares. Delas aprende o
sertanista a abandonar o uso de calçados, a caminhar em “fila índia’, a
só contar com as próprias forças durante o trajeto ( HOLANDA, 1990,
p. 17).

Instadas ao movimento constante, percorrendo regiões até então indevassadas, as


bandeiras configuraram-se como agregações de homens, que apresentaram performance
corpóreo-motora no mínimo notável. Mitificadas pela aura épica do desbravamento de
áreas infreqüentadas, pelo descobrimento de riquezas e pelo apresamento e morticínio de
indígenas, as bandeiras são, via de regra, ressaltadas na historiografia pelos resultados de
seus feitos ou atos, ou seja, pelos seus efeitos.
Evoquemos aqui as palavras de Prieto:
... Son las relaciones causa-efecto, en bloque, las que deben analizarse,
ya que son las que nos muestran el proceso histórico y possibilitan su
comprensión (PRIETO, 1995, p. 90).

Sob o prisma dessa concepção de Prieto, parece tornar -se nítida a percepção de que
a historiografia, muitas vezes, debruça-se sobre o desfecho dos fatos. Não raro são
preteridos os processos de construção desses fatos, com seus avanços e debreagens. Os
meandros da história, por vezes tortuosos, são eclipsados em benefícios dos desenlaces. No
caso das bandeiras, as relações causa-efeito foram, em sua literal totalidade, mediadas pelo
124

desempenho físico-motriz. A historiografia, no entanto, não ressalta essa mediação de


forma significativa, ofertando versões de resultados finais. Senão, vejamos as ênfases: o
aprisionamento dos negros da terra, a expansão populacional, a expansão lindeira, a
descoberta das minas auríferas, a busca de pedras preciosas, a destruição de quilombos.
Para nós, a obviedade do papel desempenhado pelas atividades físicas à época das
bandeiras extrapola as fronteiras da investigação científica, levando-se em conta as grandes
evidências de suas implicações. Queremos dizer, com isso, que a proeminente relevância
do desempenho físico no período em questão faz-se muito clara, sendo, portanto passível
de ser abordada sob uma ótica que lhe confira contornos mais nítidos.
O episódio do desmanche do Quilombo dos Palmares nos parece ser ilustrativo, no
que diz respeito ao preterimento das atividades físicas nas páginas da história. O
protagonismo do Governador de Pernambuco, Cunha Souto, do bandeirante Jorge Velho e
do líder palmarin o Zumbi, trespassa e domina todo o episódio da destruição do maior
núcleo de escravos refugiados do Brasil Colonial. A historiografia salienta essencialmente
a batalha travada na Serra da Barriga, em 06 de fevereiro de 1694, quando as tropas de
Jorge Velho dizimaram a principal cidadela de Palmares, matando 200 homens e
aprisionando outros 509, tendo o líder Zumbi conseguido escapar. Mais ressaltada ainda é
a consumação final do esfacelamento do mocambo 33 palmarino, em 20 de novembro de
1695, quando o líder bandeirante e seus comandados finalmente emboscaram e mataram o
líder negro. O cruento embate se deu na garganta da Serra Dois Irmãos. Zumbi estava
acompanhado de vinte negros, remanescentes do confronto na Serra da Barriga. Desses
homens, apenas um foi capturado vivo. Após a refrega, o corpo de Zumbi apresentava
quinze perfurações de bala e muitos pontaços de lança. Seus algozes ainda esmeraram-se
em requintes de crueldade, tirando-lhe um olho, amputando-lhe a mão direita, castrando-
lhe e enfiando-lhe o pê nis na boca. A quintescência do tétrico ainda estava por vir: o corpo
inanimado foi degolado, sendo a cabeça acondicionada em sal fino e enviada ao Recife,
para ser exibida como exemplo aos negros, que julgavam Zumbi imortal.
Torna-se aqui oportuno determo-nos, momentaneamente, no que concerne ao
espetáculo macabro de um corpo barbaramente mutilado. O corpo de um revoltoso. Um
corpo que catalisara os anseios de liberdade dos negros. Um corpo que em vida recusara-se
a escravizar -se. Um corpo que em vida for a são e perfeito, mas que ao antagonizar a
servidão tombara inerte, trucidado, decapitado.

33
A palavra Quilombo ainda não havia sido inventada no século XVII.
125

A cabeça de Zumbi, exposta em praça pública, foi um aviso funesto, um alerta aos
cativos africanos.
O corpo sente dor ... sente muita dor. As pessoas querem ser livres ... mas não
desejam ser imoladas.
A barbarização imposta ao corpo do líder palmarino, surtiu efeitos satisfatórios
dentro do sistema colonial escravista. Que grande importância teve um corpo mutilado no
Brasil de então ... que mórbida eficácia!
Em outras palavras, um corpo transfigurado, que pela hediondez de sua
configuração, abateu o ânimo latente dos escravos, minando-lhes as intenções de luta pela
liberdade. Após a morte de Zumbi, não consta na historiografia outro foco de resistência
negra de pr oporções semelhantes. Depois da martirização de Zumbi, não consta nas
páginas da história uma tão significativa organização coletiva de escravos. Um corpo
martirizado ... um silencioso aviso ... tétrica eficiência!
É válido lembrar, que o desmembramento corporal e a degola aparecem na História
do Brasil através dos séculos. O sofrimento corporal imposto aos inimigos do status quo
sempre foi instrumentalizado, senão vejamos: Zumbi, em 1695; Felipe dos Santos, em
1720; Tiradentes, em 1789 e Lampião, em 1938. As atrocidades cometidas pelos regimes
instituídos contra líderes subversores, sempre visaram a exemplificação, que por sua
natureza repugnante, invariavelmente surtiu seus ignóbeis efeitos.
O degredo ou a prisão, mesmo que perpétuos, não são exemplos tão eficientes ...
que assombroso exemplo é o corpo inanimado do subversor, exposto publicamente! Como
é importante o corpo!
Ao abordarmos o episódio do desmanche de Palmares, oportunizou-se esta breve
incursão reflexiva sobre as implicações de um corpo tr ucidado, exibido como exemplo. Tal
evasão foi intencional, objetivando pautar a enormidade da importância do corpo, mesmo
que morto, neste significativo fato da História do Brasil.
Ainda no que diz respeito à destruição de Palmares, doravante trataremos da
notável performance motora de corpo vivos , performance esta efetivada bem antes de 1694
(batalha da Serra da Barriga) e 1695 (massacre dos remanescentes na Serra Dois Irmãos).
Em 1687, Domingos Jorge Velho foi contactado pela primeira vez para assumir o
comando da luta contra os palmarinos. O contato foi feito pelo então Governador de
Pernambuco, João da Cunha Souto Maior. Na época, Jorge Velho estava com sua tropa no
Piauí, onde o levara a extraordinária mobilidade dos paulistas caçadores de índios, que se
126

espalhavam pelo Brasil inteiro. Diante do exposto, o arguto mestre-de-campo34 exigiu


sesmarias 35 em Palmares para ele e seus oficiais, posse de todos os negros capturados,
armas, munições e alimentos. O acordo foi feito, sendo firmado através de contrato
ratificado pelo Rei de Portugal.
Meticuloso e experiente, Jorge Velho optou por engrossar suas tropas
arregimentando homens no lugar em que confiava: São Paulo. Para tanto, o mestre-de-
campo empreendeu uma espantosa caminhada de seis mil quilômetros, que o levou do
Piauí a São Paulo, e de lá novamente ao Nordeste. A impressionante marcha durou um ano,
custando 396 baixas às tropas do intrépido sertanista. Em requerimento ao Rei de Portugal,
o próprio Jorge Velho escreveu: “... 196 homens morreram de fome ou doença e 200
desertaram dessa caminhada, a mais trabalhosa, faminta, sequiosa e desamparada que até
hoje houve no sertão, ou quiçá haverá” ( GRYZINSKI 1995, p. 75).
Ao voltar de São Paulo, o mestre-de-campo tinha sob seu comando 1000 homens de
arco, 200 de espingarda e 84 brancos com atribuições minoritárias de mando. Tal
regimento estava pronto para destruir os aquilombados, quando foi recebida uma contra-
ordem emitida pelo Governador Geral do Brasil, Matias da Cunha: desviar a rota e
combater os índios rebelados na Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
Naquele momento, os caribis (ou tapuias) representavam uma ameaça muito
maior do que os palmarinos. Os indígenas haviam matado mais de 100 colonos e dizimado
30 000 cabeças de gado, em reação ao movimento expansionista pastoril, que os desalojava
de suas terras.
Numa exibição cruenta de sua habilidade predatória, Jorge Velho literalmente
destroçou os focos revoltosos tapuios, combatendo-os com incêndios, flechas e balas,
durante quatro dias e quatro noites. A torpeza da decapitação foi praticada de forma
sistemática durante a peleja. Observemos as palavras efusivas do Governador Geral do
Brasil, Matias da Cunha, tecendo louvores ao sertanista paulista:
penetrando lá com a sua gente no interior da campanha, queimou as
principais aldeias e degolou toda a nação que nelas estava ... pelejou
com elas sempre em fogo vivo, além do sem-número de arcos e seta...
(GRYZINSKI, 1995, p. 75).

34
Mestre-de-campo era o nome dado na época aos chefes das bandeiras.
35
Terreno inculto ou abandonado, que os reis de Portugal distribuíam a colonos ou cultivadores.
127

A exaltação da torpitude praticada contra os índios teve ainda a part icipação do


arcebispo da Bahia, que tempos depois cumprimentou Jorge Velho pessoalmente: “felicito-
o por haver Vossa Mercê degolado 260 tapuias” (GRYZINSKI, 1995, p. 75).
Não é preciso ter imaginação exacerbada para evocar o cenário onde a luta (ou
chacina) se desenvolveu. O que pode ter restado após a contenda, senão ocas enegrecidas
pela incineração e uma grande profusão de corpos decapitados?
A glorificação da violência no Brasil Colonial faz-se aqui facilmente constatável,
através das tendências discursivas altamente elogiosas a Jorge Velho, formuladas por dois
homens de grande projeção social. Um deles, encarapitado em alto nicho hierárquico
eclesiástico, e o outro, ocupante de cargo político de majoritário escalão. Destacada
isoladamente de suas implicações contextuais, a felicitação do arcebispo baiano ao mestre-
de-campo configura-se como a antítese de todos os princípios que regem o cristianismo.
Ao cumprimentar o responsável pela decapitação coletiva de 260 pessoas, o religioso
promove a negação literal do quinto mandamento36 da Lei de Deus. Não pretendemos
avançar as linhas limítrofes do controvertido e complexo campo da religião. Tal
observação foi tão somente motivada, para que se evidencie que, na sociedade do Brasil
Colonial, os fins justificava m os meios. Para que a ordem estabelecida fosse mantida, até
mesmo os mais selvagens e cimérios atos eram aprovados sem reservas ou pudores. Na
verdade, o arcebispo da Bahia e o Governador Geral do Brasil foram panegiristas
explícitos de Domingos Jorge Velho.
Na chacina dos tapuios revoltosos, a degola praticada em larga escala antecedeu os
eventos modelares de líderes subversivos já mencionados, efetivados posteriormente na
história: Zumbi, Felipe dos Santos, Tiradentes e Lampião. Assassinatos perpetrados,
corpos destroçados, corpos decapitados. Martírios exemplificados, corpos vivos ... temor
disseminado, ideais silenciados.
Inebriado pela vitória contra os índios, coroado de glória pelos panegíricos tecidos
pelo Governador Geral e pelo Arcebispo baiano, Jorge Velho marchou diretamente para o
Quilombo dos Palmares, comandando suas tropas com o mais exaltado dos brios. As
batalhas que então se seguiram (Serra da Barriga e Serra Dois Irmãos), já foram abordadas
anteriormente, quando mencionamos a predominância do protagonismo, sempre presente
nos anais historiográficos. Corroborando em síntese, observamos que o episódio do
desmanche do Quilombo dos Palmares é narrado sobre três pináculos salientados:

36
Não Matarás.
128

Pináculo 1: um núcleo de escravos prófugos, liderados por Zumbi, um homem radical, com
anseios intransigentes de liberdade.
Pináculo 2: um sistema ainda rigidamente escravista, que, afrontado pela ameaça
palmarina, faz-se representar pelo Governador pernambucano Cunha Souto, contratando
os serviços de um sertanista com grande experiência em morticínio, visando a extinção do
mocambo.
Pináculo 3: um bandeirante tenaz, um comandante sanguinário – Domingos Jorge Velho –
que, em troca de benesses, aniquila o Quilombo dos Palmares.
Nota-se, nitidamente, que este prisma narrativo – que é o que consta na
historiografia – enfoca primeiramente as partes envolvidas de forma fragmentária para, em
seguida, partir em busca da objetivação final, da consumação do fato em pauta.
Entendemos ser isto nada mais nada menos que a Histoire Événementielle (História dos
Acontecimentos), tão desdenhosamente criticada pelo historiador alemão Karl Lamprecht,
ainda no início do século XX, portanto, antes que Lucien Febvre e Marc Bloch viessem
também a rechassá-la duramente. A histó ria brasileira, mormente nos livros didáticos,
denota uma grande gama de elementos do paradigma tradicional ou rankeano. No episódio
da destruição do mocambo palmarino, são pautadas em ênfase as refregas entre os
comandados de Zumbi e as tropas de Jorge Ve lho, ou seja, são relatados os
acontecimentos. Fernand Braudel, em Mediterranean, rejeita a história dos
acontecimentos, como não mais que a espuma nas ondas do mar da história. Entendemos
a derrocada final de Palmares tão somente como as espumas das ondas de um fato extenso,
multifacetado e complexo, onde facetas de importante relevância jazem no mais recôndito
fundo do mar , mergulhadas no ostracismo.
A queda do núcleo palmarino, da mesma forma que outros episódios vultosos do
bandeirismo, parece-nos estar na superfície do oceano da história, encimando e
obscurecendo elementos estruturais importantes, no que tange à mobilidade sertão adentro.
Senão vejamos: desde os primórdios da Vila de Piratininga, acossados por um viver
marcado por necessidades variadas, os paulistas empreenderam incursões sertanejas à cata
de índios. Lembremo-nos que estas primeiras expedições ocorreram ainda no início da
segunda metade do século XVI, logo após a afixação dos iniciadores do povoado
planáltico. Já a campanha palmarina de Jorge Velho teve seu fecho na última década do
século XVII, em 1695, portanto quase no alvorecer dos oitocentos. Cronologicamente,
aproximadamente cento e cincoenta anos separam as marchas sertanejas iniciais da
empreitada contra o núcleo de escravos instalado na Serra da Barriga. Pretendemos dizer
129

com isso, ao evocar este considerável espaço de tempo, que o deslocamento corporal
através da jornada a pé, constitui-se aqui (no episódio de Palmares) como conseqüência de
elementos estruturais provindos do modus vivendi do planalto de São Paulo. Observemos
o que escreveu Braudel:
La larga duración es la historia interminable e indesgastable de las
estruturas. Para el historiador una estrutura no es solamente
arquitectura, ensamblaje. Es permanencia; com frecuencia, más que
secular (el tiempo es estructura) (BRAUDEL apud PRIETO, 1995, p.
96).

Ao empurrar os primeiros sertanistas para o interior do continente, a miséria


planáltica contribuiu para a instalação de um modo de vida específico, onde a formação de
bandeiras e as jornadas a pé passaram a integrar o cotidiano dos moradores. Brancos,
índios e mamelucos partiam para regiões cada vez mais longínquas, visando o apresamento
dos negros da terra ou o encontro de jazidas minerais.
A Câmara de São Paulo, enquanto poder político constituído, por sua vez, apoiava
de forma nítida as expedições bandeirantistas. Desta forma, uma vez fazendo parte dos
hábitos da população, e ainda alicerçadas pela oficialidade formal do poder constituído, as
incursões florestais configuraram-se como iniciativas apoiadas por elementos estruturais 37,
considerando-se aqui como elementos estruturais a aquiescência e icentivo dado às
expedições pelo poder político paulista. Entendendo ainda que el tiempo es estructura,
como observou Prie to, podemos considerar a própria marcha de Jorge Velho como
elemento estrutural propriamente dito, uma vez que o caminhar agreste era costume más
que secular entre os paulistas.
Natural de Santana do Parnaíba, Jorge Velho cresceu e viveu no universo
bandeirantista do século XVII, absorvendo os conceitos e referências daquela sociedade
onde o sertanismo era praticado não apenas como necessidade de subsistência, mas
também como alternativa para a obtenção de prestígio social. Até mesmo a ancestralidade
de Jorge Velho aponta para os dois elementos étnicos constantes nas bandeiras, ou seja, o
europeu e o índio brasileiro. Quanto a isso, escreveu Holanda em Raízes do Brasil:
... Domingos Jorge Velho, o vencedor dos Palmares e desbravador do
Piauí. Na ascendência do grande régulo parnaibano o elemento
português predomina francamente, embora, para acompanhar a regra,
não isento de mestiçagem com o gentio, pois se não falham os
genealogistas, foi tetraneto, por um lado, da filha de Piquerobi e, por
outro, da tapuia anônima de Pedro Afonso (HOLANDA, 1981, p. 91).

37
Refiro-me aqui não à estrutura de longo tempo, mas à estrutura específica da sociedade do planalto.
130

Jorge Velho, possuía, portanto, sangue mameluco, assim como uma enorme parcela
dos bandeirantes. Contudo, isso não é o fator principal que pretendemos enfocar no
momento. Queremos sobretudo evidenciar que este mestre -de-campo foi produto de sua
própria época, um homem de seu tempo, que absorveu os determinismos da estrutura
social em que estava inserido. Nessa estrutura social, como primitiva contingência
histórica impulsionada pela miserabilidade, despontavam as extensas marchas sertanejas,
que com o escoar do tempo (long duré), configuraram-se, elas próprias, como elementos
estruturais, presentes na mentalidade do povo paulista e na cúpula de seu poder político.
Jornadear pelas matas, seja apresando autóctones ou buscando minérios preciosos, era algo
tão profundamente assimilado pelos paulistas, que em algumas ocasiões o altiplano
vicentino ficava com uma notável parcela de sua população ausente. Sobre isso, vejamos
as palavras de Taunay:
Nada mais expressivo do que certos tópicos de atas de vereança como
por exemplo, a de 20 de fevereiro de 1666, onde se fala da notificação
feita a ‘alguns capitães que vão para o sertão’ ou a de 29 de novembro
do mesmo ano, em que o escrivão municipal nos conta que ‘a maior
parte dos moradores desta vila estava no Sertão’ (TAUNAY, 1951, p.
109).

Em 1666, grande parte do povo de São Paulo estava no sertão. Em outras palavras,
grande parte do povo de São Paulo estava em atividade física no sertão, experimentando as
fadigas corporais no meio selvagem.
Sessenta e quatro anos antes, 1602 portanto, ainda no prorromper do século XVII,
já havia sido verificado um considerável esvaziamento populacional no planalto de
Piratininga. Nessa oportunidade, diversos homens de significativa importância política
deixaram seus postos de trabalho para palmilhar as matas. Vejamos as palavras de
Azevedo:
Praticamente, a vila ficou despejada de seus moradores, como então se
dizia. Quase todos os oficiais da câmara – Baltazar Gonçalves,
vereador, Ascenso Ribeiro e Henrique da Cunha, juízes ordinários, e
Jorge de Barros Fajardo, procurador do conselho – deixaram os seus
cargos para listar -se na tropa do capitão Nicolau Barreto. Tanto assim
que a 08 de setembro de 1602 se realizavam eleições para a substitu ição
dos ausentes (AZEVEDO, 1971, p. 17).

Entendemos que isso sugere que a formação de bandeiras, e conseqüentemente o


caminhar pelo sertão, inseria -se numa perspectiva de evidentes implicações estruturais,
uma vez que não poucos homens revestidos da oficialidade do poder – e por conseguinte
131

ocupantes de não baixos patamares na estratificação social do planalto – não apenas eram
cordatos com a organização de expedições, como também participavam, eles próprios, dos
avanços a pé pelo interior da América. Homens de funções burocráticas, que se lançavam à
mobilidade em paragens selváticas.
As marchas continente adentro, sejam elas consideradas primitivamente como
contingências históricas, ou como propriamente – num tempo posterior – desdobramentos
de elementos estruturais, são por nós também entendidas, em termos nítidos e simples,
como desempenho corporal intenso.
O bandeirismo foi um histórico fenômeno de irrefragável movimentação corpórea,
a despeito de trazer consigo várias facetas, como já o dissemos. Ente ndemos já ter
abordado algumas destas facetas, como a contingência histórica e os elementos estruturais.
Fizemos isso, buscando um entendimento mais eficaz no tocante à campanha de Jorge
Velho ante o núcleo de Palmares. Nesse episódio do bandeirismo avultou-se sobremaneira
uma importante particularidade ou faceta, e que também é a que postulamos: as atividades
físicas.
Salientamos, no entanto, que parece-nos evidente que não se trata apenas de uma
questão de postulado, já que o rendimento corpóreo-motor efetivamente desempenhou um
papel muito aparente, no mínimo majoritário, no que concerne a Palmares.
Observemos portanto: um grupo de homens incultos e rudes caminhando pela mata,
liderado por um mestre-de-campo acostumado à dura mobilidade sertaneja. Um grupo de
homens vencendo os mais escabrosos acidentes geográficos e as mais espessas brenhas.
Um grupo de homens reduzido pelas baixas, chegando a São Paulo, tendo partido do Piauí.
Um grupo de homens que, engrossado por novos arregimentados, regressa ao Nor deste,
recebe uma contra-ordem e estende a marcha até o Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.
Um grupo de homens que, após combater os tapuios por quatro dias nos extremos do
Nordeste, marcha até a Serra da Barriga, para dizimar os negros aquilombados! Um
percurso certamente exaustivo de seis mil quilômetros, adicionado aos esforços das
pelejas. Tudo isso em um ano ... Que ano sedentário para Jorge Velho e seus comandados!
Caminhar, caminhar, caminhar ... Passar noites e noites, em cercos 38 aos núcleos
adve rsários. Combater, combater, combater ... Empunhando mosquetes, facões, lanças,
flechas e alfanjes. Razoável esforço físico!

38
O cerco à cidadela de Zumbi, na Serra da Barriga, durou 21 dias; e o confronto com os índios tapuios
durou 4 dias e 4 noites.
132

Para nós, a performance corporal foi fator importante para que o desmoronamento
do mocambo de Palmares se consumasse. Nos preparativos para os combates, as atividades
de recrutamento - que foram seletivas e buscaram os homens de guerra mais aptos (os
paulistas) - propiciaram uma marcha que passou por vários estados brasileiros. Vale
ressaltar, que a nutrição inadequada e insuficiente foi um dos percalços significativos dessa
caminhada verdadeiramente notável. Somemos a isso as doenças tropicais, a natureza
selvagem, o peso dos víveres e equipamentos, os dispêndios energéticos com as atividades
de coleta e caça ... Racionalmente, acreditamos ter sido essa empreitada um feito físico de
envergadura impressionante, tendo também, corroboremos ainda uma vez mais, sido
evidentemente decisivo, e não merecedor de estar submergido, muitas braças abaixo da
espuma nas ondas do mar da história, como escreveu Fernand Braudel.
Se o jesuíta Ruiz de Montoya expressou seu assombro com uma marcha
bandeirante de dois mil quilômetros, – como se passeassem na ruas de Madri – o que diria
ele da caminhada de Domingos Jorge Velho, que cobriu o triplo dessa extensão?
Mencionemos outro passeio : entre 1648 e 1651, a bandeira de Antônio Raposo
Tavares percorreu de dez a doze mil quilômetros, a pé e de canoa, de São Paulo ao
Paraguai, e de lá até Mato Grosso, Amazonas e Pará. Como se expressaria o civilizado
padre sobre essa marcha sertaneja, que cobriu talvez o sêxtuplo da extensão daquela que o
assombrou? Não sabemos o que diria Montoya, porém vejamos o que escreveu Monteiro:
Em 1651, após uma longa marcha pelos sertões, alguns remanescentes
da grande expedição do mestre-de-campo Antonio Raposo Tavares
chegaram a Belém do Pará, tão castigados por doenças, fome e ataques
de índios que, segundo o Padre Antonio Vieira, ‘os que restavam mais
pareciam desenterrados que vivos’. No entanto, acrescentava o mesmo
padre, a viagem ‘verdadeiramente foi uma das mais notáveis que até
hoje se tem feito no mundo’: durante três anos e dois meses os
integrantes da tropa haviam realizado um ‘grande rodeio’ pelo interior
do continente, embora nem mesmo soubessem por onde andavam.
Perdidos na imensidão da América, só descobriram que haviam descido
o grande rio Amazonas quando sua precárias e improvisadas
embarcações alcançaram o entreposto militar do Gurupá, na foz do
Xingu, sendo disto informados pelos estarrecidos soldados do forte
(MONTEIRO, 1994, p. 07).

Observemos agora, sobre a mesma bandeira, as palavras de Cortesão:


A maior e mais árdua de quantas expedições ... se realizaram em toda a
América, não só até sua data, mas ainda até aos começos do século XIX.
Pondo de parte o trajeto andino e considerando apenas o percurso
fluvial, do Tietê ao Paraguai, e daí por terra ao Guapaí, e, baixando por
ele, o Mamoré, o Madeira e o Amazonas até Belém, esse vasto périplo
133

mede 10 000 quilômetros ... se lhe acrescentarmos a travessia do Chaco,


as explorações desde os morros chiquitanos para oriente e os desvios e
flutuações da grande aventura na região andina, ela terá excedido, por
certo e de muito, os 12 000 quilômetros (CORTESÃO, 1958, p. 400).

Pela peculiaridade da bandeira de Raposo Tavares, que além de marchar utilizou-se


da navegação, oportuniza-se aqui a citação das palavras de Holanda, aludindo aos
devassadores do sertão:
Sóbrios, tenazes, afeitos à fadiga (...) A energia física, necessária a
muitos destes empreendimentos, dispensava de ordinário qualquer ajuda,
a não ser em face de obstáculos mais poderosos. Assim, diante dos rios
maiores, rios de canoa, como se chamavam, era forçoso interromper a
marcha a pé. E também não faltavam ocasiões em que os rios, deixando
de ser um estorvo para o caminhante, se transformavam eles próprios em
caminhos – ‘os caminhos que andam’ (HOLANDA, 1990, p. 18).

Doravante, buscando nossas considerações derradeiras no que diz respeito à intensa


mobilidade do bandeirantismo no Brasil, mencionaremos as expedições que marcaram o
crepúsculo das grandes marchas a pé, antes do advento das monções.
Em 1718, a bandeira de Pascoal Moreira Cabral descobriu ouro no rio Coxipó -
Mirim, no centro geográfico de Mato Grosso. Em 1722, portanto quatro anos depois, os
índios meleiros de Miguel Sutil encontraram o ouro de aluvião, que brotava à flor da terra,
no local onde nasceria a Vila de Cuiabá. Também em 1722, Bartolomeu Bueno da Silva
(filho) experimentava o sofrimento da fome, em um remota chapada goiana, assistindo à
morte de quarenta de seus homens, por inanição absoluta. Três anos depois, em 1725, o
próprio Bueno da Silva (filho) liderando a última bandeira típica de que se tem notícia 39,
descobria minas auríferas em Goiás. A descoberta ensejou um grande afluxo populacional
para o Planalto Central, propiciando a abertura de um caminho terrestre para Goiás, mais
tarde prolongado em mil quilômetros até Cuiabá. Iniciou-se assim, o que alguns autores
chamam de ciclo do muar: as expedições partiam de São Paulo com mulas carregadas,
passando por Goiás e por fim chegando à Mato Grosso, onde as mercadorias transportadas
eram comercializadas.
Por essa época, as monções, expedições sertanistas que se utilizavam da navegação
fluvial, robusteciam-se e tornavam-se prioritariamente a alternativa de locomoção rumo a
Cuiabá. As monções partiam do Planalto Paulista pelo rio Tietê, transpondo 113 (cento e
treze) cachoeiras, antes de chegar ao seu destino final, o Arraial do Ouro de Aluvião.

39
FILHO, S., Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas, p. 04.
134

Muitas dessas quedas d’águas eram perigosas, catadupas vertiginosas, repletas de pedras
avolumadas e cobertas de limo. Nesses pontos, que não eram raros, “fazia-se necessário
passar por terra, arrastando as canoas ou guindando-as com cordas, no que se gastava
muito tempo e trabalho” (HOLANDA, 1990, p. 76).
Em alusão específica a certo trecho do caminho, onde as quedas são quase
ininterruptas, próximo à Barra do Orelha de Onça, Holanda escreveu:
... uma série de rochedos, de cerca de dez metros de altura, que cortam
transversalmente o rio. Neste ponto era indispensável esvaziar
completamente as canoas e transportar a carga por terra, num
varadouro de quinhentos metros ... Os trabalhos eram efetuados sobre o
barranco íngreme da margem oriental, à custa de grande esforço, e
ainda hoje não se apagou de todo o sulco ali deixado pelos serviços de
varação durante mais de um século (HOLANDA , 1990, p. 80).

Parecem ser bem nítidos os grandes esforços corporais realizados pelos


monçoeiros, que também combatiam a resistência dos índios Payaguás, Caiapós e
Guaicurus, silvícolas de grande ânimo guerreiro e famosos pelo seu porte físico avantajado
e desempenho motriz acima da média.
As monções setecentistas desempenharam um papel importantíssimo para a nova
configuração político-demográfica do Brasil Colonia l, posto que ensejaram uma nova
movimentação mercantil, distante do Nordeste, região que retinha o poder econômico na
época.
A descoberta do ouro pelas bandeiras – pouco antes das monções – em Mato
Grosso, Goiás e Minas Gerais, provocou aos poucos um deslocamento populacional muito
grande para essas regiões. Vejamos as palavras de Ellis:
Localizado o ouro, terminavam as entradas, substituídas pelo
povoamento propriamente dito em torno das lavras, dos arraiais e das
vilas, atraído pelos interesses que a mineração proporcionava e que
inauguram na história do Brasil uma nova época ( ELLIS, 1989, p. 296).

Cerca de oitocentas mil pessoas deslocaram-se da Metrópole atraídas pelo ouro


brasileiro, e dentro da própria Colônia, houve um imenso movimento migratório , em que
as populações do Nordeste e do Extremo Sul dirigiram-se para as proximidades das minas
auríferas, mormente as de Minas Gerais.
Destarte, em outras palavras, o eixo populacional do Brasil transferiu-se do
Nordeste para o Sudeste e Centro-Oeste. Com o tempo, o próprio centro político da
135

Colônia aproximou-se da região mineira, com a transferência da capital, de Salvador para o


Rio de Janeiro, em 1763. Sobre a estreita relação entre densidade populacional e poder
político, escreveu Vilar: “... A demografia é um fenômeno fundamental e influi no destino
político dos diferentes países” (Vilar apud Dáléssio, 1998, p. 36).
Atualmente, vivemos a herança desse deslocamento populacional ocorrido no
século XVIII, traduzido na densamente povoada região Sude ste.
Observemos o que escreveu Volpato: “os bandeirantes devassaram o sertão e
descobriram riquezas, que foram o móvel da fixação do povoamento nas regiões mais
centrais do continente” (VOLPATO, 1985, p. 101).
Simulando neste momento ignorar o desbravame nto encetado pelo bandeirismo,
formulamos as seguintes perguntas: O deslocamento demográfico, político e mercantil no
Brasil-Colônia ocorreu em conseqüência do ouro ... Mas quem descobriu o almejado
metal? E de que forma aconteceu a descoberta? O ouro esta va no quintal das casas de seus
descobridores? Terá sido encontrado num regato próximo, onde era coletada a água para o
consumo?
À guiza de resposta à nossa ignorância hipotética ou virtual, entendemos ser lícito,
além de óbvio, afirmar que todas essas t ransformações - política, mercantil e demográfica -
tiveram suas configurações embrionárias na extrema mobilidade dos componentes das
bandeiras, que trouxeram à luz as minas auríferas, que jaziam desconhecidas nas mais
inospitaleiras regiões dos sertões.
Fadiga, exaustão extrema, fome, doença e combates com silvícolas propiciaram
uma situação germinal, que atingiria sua culminância na verdadeira metamorfose
demográfico-política, observada na configuração contextual do Brasil Colonial.
Entendemos ser ilibada a afirmação de que, a intensa migração para as regiões
mineiras teve como causa primordial as marchas bandeirantes.
Em outras palavras, acreditamos que a acentuada mudança na configuração
contextual do Brasil Colônia ocorreu em conseqüência do bandeirantismo. Acrescentamos
ainda, em apêndice, que a herança dessa transformação é atualmente por nós vivenciada,
como o atesta a densa demografia da região Sudeste.
Entendemos ter sido a espantosa mobilidade dos bandeirantes uma das causas
principais (senão a causa das causas, causa causorum) da transferência do poder político
colonial, da Bahia para o Rio de Janeiro. Numa só frase, as caminhadas sertanejas dos
bandeirantes mudaram a face do país e os ecos dessa mudança reverberam até hoje. O que
136

é o progresso de São Paulo atualmente senão um de “los llegados tarde a la historia?”


(PRIETO, 1995, p. 112).
Embora evidente, o papel do desempenho corporal carece de contornos mais
nítidos na historiografia, que lhe confiram a justa e merecida relevância.
O historiador Edward Hallet Carr, citado por Prieto, ironiza a ausência de estudo
das causas, que invariavelmente traduz-se num entendimento simplista e dissociado dos
fatores determinantes mais profundos, abaixo da superfície dos fatos históricos.
Observemos sua s ácidas palavras:
... puede leerse o escribirse acerca de los acontecimientos del passado
sin tratar de saber por qué ocurrieron, o decir sólo que la Segunda
Guerra Mundial tuvo lugar porque Hitler la queria, lo que es
perfectamente cierto, pero no explica nada. Pero no entonces debe uno
abstenerse de cometer la idiotez de llamar -se estudiante de historia o
historiador ... El estudio de la historia es un estudio de causas, ...
(CARR apud PRIETO, 1995, p. 85-6).

Causa entre causas, causa das causas ou causa causorum ... No palmilhar a mata
virgem, no apresar índios, no vadear corredeiras ameaçadoras, no dispersar mocambos, no
transpor morrarias, no trazer à luz o ouro, os bandeirantes causaram muita coisa. Porém, o
aspecto de rendimento físico de seus feitos jaz escondido nos anais da história, quase tão
oculto quanto o ouro que encontraram nos mais recônditos grotões do Brasil.
137

CONCLUSÃO

A pretensa contribuição deste trabalho buscou abranger partes específicas de duas


áreas distintas: a História e a Educação Física. Desta forma, constituiu-se uma abordagem
historiográfica interdisciplinar, que naturalmente orientou-se pelas diretrizes da História
Nova.
Os aspectos conclusivos deste estudo, em nosso entendimento, apontam para um
contexto histórico muito rico em termos de atividade corporal humana. Tal contexto, o do
Brasil do século XVII, obviamente não explorado por nós até seu esgotamento, oferece
ainda muitas possibilidades de produção historiográfica, enfocando a motricidade do
homem.
As extensas marchas dos bandeirantes, que foram pautadas pelo aprendizado de
técnicas corporais indígenas, propiciaram o alcance de regiões à época desconhecidas pelos
europeus. Guias experimentados, conhecedores das matas, os nativos coloniais facilitaram
o cumprimento de longos percursos bandeirantistas, onde o desempenho motor foi intenso.
Antes disso, a transposição da Serra do Mar já revelava os extenuantes esforços
físicos exigidos dos ascencionistas. Muitos dos escaladores da grande montanha morreram,
caindo das escarpas quase retas. Outros deles desistiram, não suportando a exaustão
orgânica.
As expedições de préia, por sua vez, forçaram uma fuga em massa de milhares de
índios do Guairá, que cumpriram um trajeto tortuoso, ora fluvial, ora terrestre, até alcançar
a segurança temporária nos limites do sul brasileiro.
Já no início do século XVIII, com o apresamento quase fenecido, as bandeiras de
prospeção mineral encontraram as jazidas auríficas de Mato Grosso, lugar então
considerado distante de São Paulo. Por essa época, já havia sido encontrado o ouro de
Minas Gerais. A população da colônia então se deslocou para as regiões mineiras,
juntamente com uma grande leva de migrantes oriunda de Portugal. Resultou desse grande
deslocamento uma mudança político-social no Brasil, cujas conseqüências são perceptíveis
até hoje, se lançarmos vistas para a região Sudeste, densamente povoada e robusta
financeiramente.
As expedições paulistas encarnaram a motricidade humana, contraponto extremo do
sedentarismo nordestino. A motricidade bandeirante possibilitou o descobrimento da
138

riqueza mineral, enfraquecendo o poder sedentário do pecúnio proveniente da monocultura


canavieira. Em outras palavras, tendo possibilitado a descoberta do ouro, a motricidade
bandeirante deu um novo norte econômico ao contexto do Brasil Colonial, o que acabou
por minar as bases da aristocracia rural, contribuindo para a diluição da hegemonia
latifundiária exercida pelos senhores de engenho.
Em síntese, neste estudo encontramos o sertanista paulista mítico, tentamos
vislumbrar nele o sertanista humano comum. Esse homem necessitado viveu intensamente
sua corporeidade. Neste estudo, encontramos também o indígena expedicionário,
extremamente hábil em atividades corporais múltiplas. Encontramos também os índios e
missionários guairenhos, que aterrados pelos bandeirantes e afligidos por inquietações
sobrenaturais, empreenderam uma jornada de espantoso rendimento físico, do Guairá ao
ponto mais meridional do Brasil. Neste estudo, encontramos também bandeirantes
descobrindo o ouro, cujas conseqüências, corroboramos, mudou o contexto do Brasil
Colonial.
A história colonial do século XVII é pontilhada profusamente por corpos humanos
em motilidade. Paulistas caçando índios e procurando ouro. Índios guiando paulistas e
fugindo deles. Jesuítas pamilhando o sertão, evangelizando índios e arrebatando-os para o
catolicismo, guiando-os para fugir dos paulistas. Tudo isso envolveu muita atividade
corpóreo-motora. Amplas distâncias foram vencidas de pé posto , como se expressou
Holanda. Situações distintas em empresas distintas, mas com a predominância evidente da
motricidade corporal, uma vez que a própria conjuntura favorecia a isso. Num tempo em
que o próprio cavalo ainda não era utilizado largamente, uma vez que não eram muitos e
que as matas fechadas não sugeriam o cavalgar.
No Brasil do século XVII, homens diferentes se movimentaram intensamente por
motivações diferentes. Corpos humanos em esforços ingentes. A história não nos parece
negar que essa motricidade se torne evidente.
Impassível como a natureza que foi percorrida por essa gente, a história espera que
os historiadores tornem tal motilidade mais aparente.
139

FONTES E BIBLIOGRAFIA

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145

ANEXO
146

A fisiologia do medo: a adrenalina exacerbando a motricidade

LINDGREN e BYRNE (1982), abordando a ação da estimulação externa do meio


em relação à fisiologia humana, enfocando especificamente os motivos que levam à defesa
e à fuga, afirmam:
O medo ... tem início na percepção de estímulos perigosos, nocivos ou
irratantes. O sistema nervoso simpático é ativado e as glândulas supra -
renais lançam na corrente sangüínea quantidades diferentes de
epinefrina e de norepinefrina, que por sua vez, ocasionam mudança no
ritmo do coração. O sistema nervoso central e o sistema nervoso
simpático, funcionando em conjunto, produzem as mudanças ocorridas
na respiração (LINDGREN; BYRNE, 1982, p. 223).

Para que possam se tornar mais inteligíveis estas asserções de Lindgren e Byrne,
cumpre esclarecer que a epinefrina é um hormônio que tem importante atividade na
elevação da excitação emocional, com pr opriedades que se desdobram e modificam a
movimentação corporal, tornando-a mais ágil. A epinefrina é também conhecida como
adrenalina, sendo sua primeira denominação utilizada em círculos estritamente científicos,
ao passo que a segunda é mais amplamente divulgada em termos comerciais. Já a
norepinefrina é mais conhecida como noradrenalina. Estes dois hormônios produzem
efeitos diferentes no corpo humano, quando secretados pela glândulas supra-renais.
Visando distinguir com mais exatidão o princípio ativo de ambos os elementos fisiológicos
mencionados, vejamos as palavras de Funkenstein:
Enquanto a adrenalina provoca modificações fisiológicas profundas em
quase todos os sistemas do corpo, a noradrenalina aparentemente tem
apenas um efeito primário importante, a saber: estimula a contração de
pequenos vasos sangüíneos e aumenta a resistência ao fluxo de sangue
(FUNKENSTEIN, 1970, p. 210).

Décadas antes das afirmativas de Funkeinstein e Lindgren e Byrne, Walter B.


Cannon já relatava seus experimentos sobre a fisiologia do medo e da raiva. Cannon
descobriu que as reações fisiológicas observadas em suas experiências com animais
estavam diretamente relacionadas à adrenalina. Estas reações punham suas cobaias em
alerta, prontas para a fuga ou o combate, externando portanto pavor ou cólera (a cólera nos
147

animais é consensualmente entendida em termos científicos como equivalente à raiva em


seres humanos). Este cientista, que foi um precursor do estudo das implicações fisiológicas
do medo, revelou que quando o córtex cerebral processa a percepção da ameaça, envia um
estímulo através do ramo simpático do sistema nervoso autônomo, tendo como fim atingir
as glândulas supra-renais, que por sua vez secretam a adrenalina. Sobre o conjunto das
reações fisiológicas da adrenalina, escreveu Cannon:
A respiração se aprofunda; o coração bate mais rapidamente; a pressão
arterial sobe; o sangue é deslocado do estômago e intestinos para o
coração, o sistema nervoso central e os músculos; cessam os processos
no canal alimentar; o açúcar é liberado das reservas do fígado; o baço
contrai -se e descarrega seu conteúdo de corpúsculos concentrados ... a
chave dessas maravilhosas transformações corporais encontra-se no
relacionamento com os acompanhantes naturais do medo e da raiva –
fugir para escapar ao perigo ou atacar para dominá-lo. Qualquer que
seja a ação, pode seguir-se um combate de vida ou morte ... são
ajustamentos que, na medida do possível, colocam o organismo em
prontidão para enfrentar as exigências que lhe serão feitas. A adrenalina
secretada coopera com os impulsos nervosos simpáticos na liberação do
glicogênio armazenado no fígado, irrigando, assim, o sangue com o
açúcar necessário para os músculos em trabalho; auxilia na distribuição
do sangue em abundância para o coração, o cérebro e os membros (isto
é, para as partes essenciais do esforço físico intenso) ... elimina
rapidamente os efeitos da fadiga muscular, de forma que o organismo,
que pode juntar adrenalina no sangue, pode restaurar aos seus músculos
cansados a mesma prestreza de ação que tinham quando em repouso, e
torna mais rápida a coagulação sangüínea. A respiração acelerada, a
redistribuição do sangue impulsionado por alta pressão e o maior
número de glóbulos vermelhos liberados pelo baço respondem pela
oxigenação essencial e pelo desembaraço do excessos de acidez,
preparando para a ação suprema e instantânea. Em resumo, todas essas
modificações são diretamente úteis em tornar o organismo mais eficiente
no violento dispêndio de energia que o medo e a raiva podem envolver
(CANNON apud FUNKEINSTEIN, 1970, P. 209).

No caso dos indígenas de Loreto e San Ignácio, o medo produziu todas essas
modificações fisiológicas em seus corpos. A informação da chegada dos bandeirantes foi o
estímulo externo, a gênese deste extenso rol de transformações orgânico-funcionais
processado nos índios, que reagiram de forma óbvia, regidos pelas leis naturais de seus
corpos. Observemos algumas lacônicas palavras de Lindgren e Byrne: “O medo implica
em movimento de afastamento da situação ameaçadora ...” (LINDGREN; BYRNE, 1982,
p. 253).
Entendemos como importante ressaltar que no caso dos habitantes das duas
reduções em questão, o medo propriamente dito foi antecedido por um período de
148

torturante expectativa, gerando grande ansiedade. Isso fic ou claro em nosso texto,
especialmente através das citações de Haubert. Essa ansiedade, que precedeu o medo
ulterior, propiciou uma situação fisiológica latente e constante, nos limites do
prorrompimento abrupto do fisiologismo específico do comportamento fugitivo. Os índios
estavam alertas. Os mecanismos fisiológicos de seus corpos estavam alterados. A linha
tênue que distingue a fisiologia da ansiedade e do medo estava prestes a ser ultrapassada. E
quando isso se deu a movimentação corporal de todos se revelou de forma desabrida,
incontida. Eles esperavam o perigo. Seus corpos já estavam sub-preparados para a retirada
ou escape. A fuga já estava praticamente gestada em termos fisiológicos. Estava contida,
latente, esperando pelo estímulo externo, cuja natureza já era conhecida. Neste sentido,
faz-se necessário distinguir esta situação de outra qualquer, onde o estímulo externo não é
esperado, revelando-se de surpresa. Neste último caso o medo não tem a ansiedade como
prelúdio, gerando uma situação de motric idade não tão extrema quanto a dos indígenas em
questão, uma vez que inexistiu qualquer elemento denunciador da ameaça concreta, que
somente ao se manifestar provocou as mudanças nos padrões fisiológicos corporais,
anteriormente inalterados (ao passo que no caso dos índios já existiam as alterações
causadas pela ansiedade). Em síntese: no caso dos índios engendrou-se uma situação onde
a fisiologia do medo, mesmo antes do estímulo externo, já se processara em seus corpos,
aguardando o ensejo da vazão total; diferentemente de quando o estímulo externo abate-se
sobre um indivíduo desavisado e relaxado. Aqui a fisiologia do medo não estava nem
mesmo em seu estado germinal, ela inexistia antes da percepção da ameaça explícita, pois
somente à partir do evento estimulador foram processadas as transformações nos padrões
fisiológicas. Observemos estes quadros:

Índios de S. Ignácio/Loreto
Conhecimento anterior e espera pelo
estímulo externo.
ANSIEDADE + MEDO = FUGA

Situação padrão de estímulo externo abrupto


Desconhecimento anterior do estímulo
externo
MEDO = FUGA
149

Os índios de Loreto e San Ignácio experimentaram, e por tempo considerável, a


sensação de ansiedade, como já parece ter ficado bastante detalhado. Uma emoção à mais,
cujas implicações de ordem fisiológica potencializaram toda a ação da fisiologia específica
do medo, suscitada depois. Em termos estritamente fisiológicos, os índios estavam na
antecâmara, no vestíbulo do próprio medo, com muitos mecanismos fisiológicos inerentes
a esta emoção já suscitados. A ansiedade e o medo são emoções muito próximos. Vejamos
as palavras de Lindgren e Byrne:
Ela (a ansiedade) se parece com o medo em várias formas diferentes,
sendo que, às vezes, a distinção entre essas duas emoções não pode ser
estabelecida claramente. De maneira geral, entretanto, o medo é uma
emoção mais intensa e é provocada por uma situação ameaçadora,
percebida como imediata e potencialmente esmagadora. A ansiedade
costuma ser mais difusa ... (LINDGREN; BYRNE, 1982, p. 25)

Ainda sobre ambas as emoções, escreveram laconicamente os mesmos autores: “A


ansiedade parece-se com o medo ... é mais vaga e passível de abranger acontecimentos
futuros” (LINDGREN; BYRNE, 1982, p. 269).
A ansiedade dos habitantes das duas últimas reduções do Guairá abrangiam
acontecimentos futuros terrificantes.
Os corpos dos índios de Loreto e San Ignácio já estavam, antes da partida,
produzindo taxas elevadas de adrenalina (epinefrina), uma vez que este hormônio atua
tanto no medo quanto na ansiedade. Quanto a isso, escreveram Lindgren e Byrne: “Embora
a epinefrina, por si só, esteja associada à excitação em geral, ela parece acentuar o setor
medo-ansiedade do comportamento (LINDGREN; BYRNE, 1982, p. 264).
Buscando esclarecimentos derradeiros no que diz respeito à ação da adrenalina,
vejamos estas outras valiosas considerações de Lindgren e Byrne:
O hormônio epinefrina, uma secreção da medula supra -renal, é há muito
conhecido como acompanhante, ou mesmo causador, da excitação.
Quando Cannon (1927) injetou apinefrina em diversos sujeitos, alguns
deles disseram: ‘sinto-me como se estivesse com medo’, enquanto outros
mostraram sintomas característicos da aflição. Em estudo mais recente,
as amostras do sangue de sujeitos que viram filmes agressivos, sexuais,
dramáticos e de horror apresentaram aumento de epinefrina
(LINDGREN; BYRNE, 1982, p. 261).

Os índios de Loreto e San Ignácio não viram filmes agressivos ou de horror. Eram
conhecedores da realidade, que muitas vezes havia se revelado cruel e assassina, através
das investidas dos bandeirantes. Não viram filmes sexuais ou dramáticos. Eram sabedores
150

das sevícias, dos estupros e da agressividade praticados pelos sertanistas paulistas. Sabiam
do perigo nada inverídico, e seus corpos responderam fisiologicamente a ele.
151

Autorizo a reprodução deste trabalho.


Dourados,_____de________de 2002.

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MANUEL PACHECO NETO
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