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Manuel Pacheco Neto - Palmilhando o Brasil Colonial
Manuel Pacheco Neto - Palmilhando o Brasil Colonial
Dourados, MS
– 2002 –
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MANUEL PACHECO NETO
Dourados, MS
– 2002 –
MANUEL PACHECO NETO
COMISSÃO JULGADORA
Presidente e orientador______________________________________________________
2° Examinador_____________________________________________________________
3° Examinador_____________________________________________________________
Dourados,________ de______________de _________.
DADOS CURRICULARES
Ao Prof. Dr. Paulo Roberto Cimó Queiroz, pelos ensinamentos precisos sobre
as penetrações bandeirantes no oeste, abordados na disciplina Mato Grosso do
Sul: história e historiografia, bem como pelas prestimosas sugestões quando fez
parte da banca de qualificação que examinou este estudo.
À Profª Drª Luiza Rios Ricci Volpato, pela gentileza e amistosidade com que
me recebeu em Cuiabá, bem como pelos valiosos esclarecimentos sobre o
período colonial brasileiro.
À minha irmã, Profª Doutoranda Rita Pacheco Limberti, por ter me incentivado
a me inscrever no processo seletivo para o curso de Mestrado em História,
fazendo a revisão gramatical de meu anteprojeto de pesquisa e dando dicas
importantes em termos de construção do texto inicial.
In Colonial Brazil of the century XVII the existence of the corporal motricity was daily,
assuming notedly per times configurations significant.
Members of the flags, indians and jesuits, some more other ones minus, they moved for
forests, looking for to reach its specific objectives.
The motricity of the flags, whose members advanced the on foot, became notorious for the
enslavement of indians, for the discovery of mineral wealth and for the territorial expansion.
The present study search to evidence the referring implications to the physical acting of the
members of the flags, expert as historical consequence of the shortage of the villa os São Paulo.
Very big distances were executed by these men, that looked for to solve its economic problems.
We looked for to also analyze the physical acting of the indians, natural men of the earth,
that demonstrated in the period in admirable subject and multiple corporal abilities, that involved
hunt techniques and of search of victuals. Engaged in the flags, many indigenous they contributed
so that the settlers unknown points were reached. Bom in the forests, the indians were therefore in
its element, being revealed precise guides, never guiding before the expeditions for trails and
sidewalks roamed for the members of the flags.
The capture flags, extremely offensives, put many indians in escape, especially in the area of
Guairá, where the jesuits had established several reductions. In termsof physical performance we
looked for to evidence the escape in mass driven by the jesuits guairenhos, that in involved
thousands of natives in na advancement heading for the south of Brazil, by waterways and
terrestrial.
We also worried in relating the motricity member of the flags to the change of context
happened in the colony after the discovery of the gold.
For so much, everywhere of this study, we researched in bibliographical material belonging
to the areas of the History and Physical Education, with predominance in the use of material
historiographic.
The conclusions suggest the confirmation of our primeval presuppositions. The human
motricity was as important characteristic in Colonial Brazil,involving men of groups and different
motivations, having still contributed to the new brasilian socioeconomic orientation, that subtracted
the dominant prosperity of its sugar park of the northeast, that was characterized by the antonym of
the movement: the affixation.
SUMÁRIO
Resumo vi
Abstract vii
Lista de ilustrações x
INTRODUÇÃO xi
CAPÍTULO I
O BANDEIRANTE E O BANDEIRANTISMO 30
1. Do mito ao homem comum 30
CAPÍTULO II
ÍNDIOS: CICERONES E MESTRES DO SERTÃO 56
CAPÍTULO III
FUGINDO DO “TEMPESTUOSO DILÚVIO” : ÍNDIOS E
JESUÍTAS NAVEGANDO E MARCHANDO NO SERTÃO 72
1. Vivendo bandeirantemente e morrendo cristamente: a remissão dos predadores
de gente 72
2. Capelães, beatões e padres: cúmplices da violência bandeirantista
80
3. A fuga do Guairá: medo historicamente construído e terror supersticioso
determinam sôfrega motricidade humana 88
CAPÍTULO IV
BANDEIRISMO: DESEMPENHO CORPÓREO-MOTOR NO BRASIL
COLONIAL 110
1. Meninos, homens e anciãos: sede, fome e cansaço na marcha sertaneja 110
2. O papel da motricidade bandeirante na mudança da configuração contextual do
Brasil Colonial 119
CONCLUSÃO 137
ANEXOS 145
LISTA DE FIGURAS
SUSTENTAE O FOGO................................................................................................. 51
DE TAUNAY............................................................................................................. 54
DE CONFERÊNCIAS................................................................................................... 55
INTRODUÇÃO
Desde nossos tempos de faculdade, nos anos oitenta do século passado, sentíamo-nos
atraídos pelo papel exercido pela motricidade humana na história. Por aquela época,
freqüentávamos com assiduidade a biblioteca da Universidade Metodista de Piracicaba, buscando
genericamente nos livros de história episódios onde as atividades físic as se mostravam aparentes,
apresentando-se como relevantes em diversos contextos interdependentes. Por conta desta
pesquisa de caráter informal, logramos com o tempo acumular uma considerável compilação de
textos, dentre os quais extraímos diversas configurações contextuais onde o papel das atividades
corporais nos parecia ressaltado. Torna -se válido mencionar a obviedade de que nossa pesquisa
era aleatória, posto que carente das diretrizes científicas formais da academia. Ainda na
graduação, aquela pesquisa bibliográfica acabou por nos nortear em termos mais específicos, no
sentido de que desenvolvêssemos nossa monografia de final de curso abordando o papel do
desporto como elemento alienante, auxiliador nas ações ditatoriais impostas pelo governo militar,
no contexto histórico brasileiro de 1970. Julgamos ser oportuno mencionar, que comumente as
monografias de graduação em Educação Física enfocam diversas modalidades desporto-
recreativas, levando em conta seus aspectos técnicos, táticos, competitivos, pedagógicos ou
didáticos. A pesquisa histórica não aparece com freqüência entre os graduandos em Educação
Física, que predominantemente abordam os desportos e as atividades corporais entendidos como
metodologia de trabalho, seja ela ligada à docência ou ao treinamento. Esta observação visa
esclarecer que nosso entendimento acerca do movimento humano transcende a concepção de que
as práticas corporais encerram-se em si mesmas, circunscritas aos dogmatismos doutrinários de
suas atribuições clássicas, como a promoção da saúde, a sociabilização e a alta performance. As
atividades corporais estão inseridas num universo incomensurável, que oferta possibilidades
inesgotáveis de análise. Desde que o homem existe sobre a Terra, configura-se sua situação
motriz. Desassombrados, expressamos nossa convicção de que a história é uma extensa crônica
de corpos em movimento, destacando a obviedade da não negação do psiquismo, uma vez que
entendemos o homem como ser uno, indivisível, na esteira das teorias de Santim, Morais, Rizzo e
Medina, que promovem desde os anos oitenta uma discussão filosófica humanista, dialetizando o
pensamento de Descartes e Platão, que divide o homem ao meio, fragmentando-o
dicotomicamente. Já na nossa monografia de Pós-Graduação Lato
Sensu (Metodologia do Ensino Superior), que cursamos em 1997, revisitamos o mesmo tema
desenvolvido oito anos antes, agora sob a orientação da Profª Drª Marina Evaristo Wenceslau,
que contribuiu muito para que melhorássemos nossa pesquisa, revestindo-a de uma conotação
científica mais acentuada. Dessa monografia, extraímos alguns elementos e os inserimos em nosso
anteprojeto de pesquisa, apresentado em 1999 à comissão de seleção do programa de Mestrado
em História da UFMS, Câmpus de Dourados. Nesse anteprojeto, aberto e abrangente, constava a
jornada a pé do bandeirante Domingos Jorge Velho, visando dar fim ao Quilombo de Palmares.
Há muito, em nossas leituras informais, havíamos nos dado conta da possibilidade de abordagem
do bandeirismo sob a ótica do desempenho corporal, mercê das grandes distâncias cumpridas em
marcha sob condições não raro adversas. Com o estudo da bibliografia para a prova seletiva do
Mestrado, vislumbramos essa possibilidade de forma mais nítida, sobretudo por conta de Holanda
e Monteiro, que descrevem incursões bandeirantistas onde o desempenho corpóreo motriz se fez
verdadeiramente intenso. Com leituras posteriores – já cursando o Mestrado – de Nemésio,
Vasconcelos, Ellis, Volpato, Haubert, Ricardo e Taunay, definimos as bandeiras como objeto de
estudo em nossa dissertação de mestrado, que ora apresentamos. Nossa pesquisa, em seus
primeiros escritos, apresentou uma conotação um tanto quanto desconectada da história.
Alertados pelo Prof. Dr. Cláudio Alves de Vasconcelos, nosso orientador, passamo s a entender
de forma menos unilateral as incursões dos bandeirantes, que foram empreendidas em
conseqüência da penúria verificada na Vila de Piratininga, configurando-se portanto como frutos
de uma contingência histórica. Reorientamos nossa redação neste sentido, buscando o
entendimento das atividades físicas dos bandeirantes como desdobramentos desta contingência
histórica, observada no contexto do Brasil Colonial. Outra orientação relevante do Prof.
Vasconcelos foi no sentido de que abordássemos o papel do índio nas bandeiras. Vale dizer que
essa orientação específica ensejou maior respaldo teórico ao nosso estudo, pois possibilitou novos
prismas de análise e observação, que ressaltam naturalmente a contribuição indígena – inclusive em
termos de desempenho corporal – para que as bandeiras alcançassem pontos longínquos do
continente. No trabalho que ora se apresenta buscamos enfocar prioritariamente o
bandeirismo do século XVII, por ser o recorte temporal onde despontam inúmeras incursões que
percorreram grandes distâncias, configurando as situações de maior desempenho físico-motor dos
sertanistas de São Paulo. No entanto, visando não causar detrimento na explicitação dos
resultados primários de nossa pesquisa, não pretendemos omitir algumas expedições de grande
percurso, observadas fora dos seiscentos. Para tanto, servimo-nos dos esteios de Braudel no que
respeita ao tempo das mentalidades, que aborda as permanências atitudinais e comportamentais,
transcendendo a cronologia. Alicerçamo-nos também em Bloch, que postula o tempo histórico
como a possibilidade de entendimento dos fenômenos, pautando a temporalidade como algo
flexível, que possa assegurar, num sentido mais amplo, a inteligibilidade da produção
historiográfica. A postura destes dois historiadores encontramos em Prieto, que por sua vez
buscou resolver essa questão com maestria, enfatizando que “ el tiempo histórico, hemos señalado
antes, no es el tiempo cronológico.” Prosseguindo com seu arrazoado contundente, o historiador
espanhol escreveu: “... la estructuración positivista de la historia aprisionó el pasado de los
hombres y mujeres en las mallas de la cronologia y prescindió – no podia ser de outra maneira –
de los ritmos próprios de cada formación social histórica, de sus latidos” (PRIETO, 1995, p. 105-
6). Considerando o tempo cronológico como sendo “... el único tiempo de los historiadores
positivistas;” o mesmo autor observa que “tiempo vivido y tiempo cronológico son dos aspectos
diferentes.”
As incursões dos bandeirantes no século XVII configuraram um tiempo vivido que teve
sua gênese nos primeiros anos de fundação da Vila de São Paulo, tendo por outro lado a
predecessão de outras expedições posteriores ao recorte temporal da décima sétima centúria.
Nosso recorte temporal portanto não é estanque, posto que imprescinde de algumas abordagens
que tangem incursões sertanistas já no século XVIII, principalmente aquelas que devassaram o
sertão oeste, culminando com a descoberta do ouro cuiabano em 1718.
Entendemos as expedições do século XVII como elementos de um histórico fenômeno
caminheiro, que iniciou-se quando os primeiros homens do altiplano paulista penetraram as matas à
caça de índios, estendendo-se até princípios do século XVIII, quando as expedições fluviais
Araritaguaba-Cuiabá tornaram-se a principal via de acesso rumo às jazidas auríferas do oeste.
Centramos portanto o foco de nosso estudo nas bandeiras do século XVII, tendo esta
centúria como recorte temporal, cuidando no entanto para que algumas indispensáveis conexões
com a cronologia anterior não fossem lançadas no limbo, em detrimento da compreensão da
atividade corporal como elemento relevante na história do bandeirismo e no contexto do Brasil
Colonial.
Doravante trataremos das considerações sobre o teor de cada um dos capítulos deste
trabalho, buscando explicar as motivações e intencionalidades que lhes ensejaram.
O Capítulo I, intitulado O Bandeirante e o Bandeirantismo, divide-se em duas partes,
que são: Do mito ao homem comum e A luta contra a natureza. No primeiro destes texto s,
dedicamo-nos à tentativa de desconstruir a imagem apologética dos sertanistas de São Paulo,
tangendo a gênese da representação histórico-ideológica que acabou por elevar o andrajoso
piratiningano, paupérrimo e carente, à condição de destemido herói épic o, portador de inúmeras
adjetivações enaltecedoras. O marchador das matas da América do Sul, ricamente paramentado e
profundamente religioso, foi uma representação histórica forjada com fins políticos, visando
garantir a manutenção do poder conquistado pelos paulistas no prorromper da proclamação da
República. Líderes natos de perigosas incursões sertanejas, responsáveis pela miscigenação racial
democrática, alargadores das fronteiras do Brasil e patriotas por excelência, os bandeirantes
haviam palmilhado boa parte do continente com suas botas de cano alto, povoando paragens
remotas e gestando cidades.
Donos do poder nos primórdios da República, os cafeicultores paulistas foram os
mentores da empreitada de alçar os bandeirantes à condição sobranceira de líderes ancestrais,
cujos descendentes deviam continuar sua saga de chefiar a nação. A obra de Cassiano Ricardo,
uma de nossas fontes principais neste capítulo, apresenta-se como um expoente em termos de
representação épico-heroística dos bandeirantes que, envergando escupis e portando arcabuzes,
arrostaram os perigos indisíveis das solidões e dos desertos sul-americanos.
Não apenas nos textos produzidos pela historiografia ufanista, mas também na iconografia
que os acompanha, os bandeirantes posam altivos para a posteridade. De suas faces barbadas,
sombreadas por grandes chapéus de feltro, emanam inquestionáveis liderança e irredutibilidade. O
sertanista paulista concebido imageticamente é também sempre branco, erguendo-se racialmente
incólume de uma população profundamente miscigenada. Nesta urdidura ideológica não o
mameluco era sugerido como chefe apto a governar o Brasil, mas o branco de ancestralidade
portuguesa, o descendente puro do europeu.
Eficazmente arraigada no imaginário brasileiro, sobretudo no paulista, a figura do herói
bandeirante paira como um paradigma histórico, passível de ser revista, revisitada e analisada sob
outros ângulos. Grande parte da obra de Sérgio Buarque de Holanda é dedicada à isso. A
contribuição deste historiador é sobremaneira digna de nota, pois foi iniciada nos anos 30 do
século XX, uma época em que o convencionalismo apontava predominantemente para o sentido
de pujança e desassombro ao tratar dos bandeirantes, que eram por sua vez apresentados como
membros da raça de gigantes. Holanda mobilizou a abordagem do
bandeirismo efetivamente ligando-a ao fator econômico de São Paulo, onde imperava a
adversidade diária da miserabilidade, de onde certamente não haviam saído sertanistas
faustosamente vestidos, mas homens trajando modestas indumentárias, buscando amainar a
situação periclitante de suas vidas. O caminhante de Sérgio Buarque foi o contraponto do
bandeirante de Cassiano Ricardo. Ao furor épico deste último, contrapunha -se a pesquisa
histórica detetivesca do primeiro. A produção historiográfica destes dois autores foi
contemporânea, tendo gerado posturas ferreamente defendidas por ambas as partes. A famosa
controvérsia em torno da noção de homem cordial foi suscitada por Ricardo na obra Marcha
para Oeste, onde discorda enfaticamente das afirmações de Holanda em Raízes do Brasil. Esta
celeuma foi iniciada em 1940, com diversas argumentações divergentes entre os dois
interlocutores, estendendo-se até o ano de 1959, quando Ricardo, ainda de forma pertinaz,
explicita sua discordância ante Holanda, que já tinha escrito em 1948 sobre o seu receio de que
“que já tenha gasto muita cera com esse pobre defunto” (Holanda apud Robert Wegner, 2000, p.
54), mesmo tendo mudado a estruturação de suas assertivas na edição de Raízes do Brasil do
mencionado ano. Este acirrado antagonismo foi aqui evocado para que possamos avaliar
melhor a reação provocada pela metodologia historiográfica de Holanda. Vale lembrar que
Cassiano Ricardo era, antes de historiador, literato reconhecido. Entendemos ser esta observação
aqui necessária, para que se evidencie que este autor era, em primeira instância, mais passível de
enveredar-se pela inobservância das intrincadas minúcias da pesquisa histórica, quedando-se
perante sua inclinação de imaginativo e hábil romanceador, que muitos dilemas resolvia apenas
com o bico da pena, passando à larga das contingências e determinismos históricos. Já Holanda,
seu desafeto e contendor intelectual, dedicara sua vida ao labor historiográfico, fazendo disso sua
principal atividade e sendo reconhecido por muitos de seus pares como um pesquisador
equilibrado e incansável. A trajetória das obras de Holanda foi acompanhada por historiadores
como Affonso Taunay (que publicou o undécimo último volume de História Geral das Bandeiras
Paulistas em 1950, cinco anos após a primeira edição de Monções, de Holanda) e Alfredo Ellis
Júnior, que não demonstraram oponência ante o então novo viés historiográfico proposto pelo
autor, que apresentava os sertanistas paulistas como homens impelidos ao sertão pela carestia da
vida cotidiana na vila de Piratininga. A obra de Holanda, aqui mencionada, embora não tendo sido
utilizada na elaboração do texto que no momento enfocamos, sedimentou de forma efetiva o nosso
entendimento, em termos mais ordinários, sobre a dimensão humana, não mítica, dos
componentes das bandeiras. Utilizamo-nos dos escritos de Holanda em outra parte de nossa
pesquisa, como ficará exposto adiante. Encontramos na obra Entradas e Bandeiras, de
Luiza Rios Ricci Volpato, uma elaboração textual clara e precisa sobre o bandeirismo. Essa obra
foi por nós utilizada como fonte na redação do texto que ora anunciamos, sobretudo por abordar
a situação embrionária que gestou a construção da representação mítico-épica do bandeirante na
historiografia, que remonta ao século XIX, quando do advento da proclamação da república do
Brasil. A recém instaurada república abrigava em suas cúpulas os representantes da cafeicultura
paulista, elite agrária que pretendia permanecer no poder. O mando no Br asil emanava portanto
dos homens de São Paulo, dos homens que então lideravam as terras ancestrais dos bandeirantes
e também toda a nação. A figura do bandeirante neste contexto foi então utilizada como
instrumento ideológico, como elemento de afirmação política. Neste sentido, o sertanista paulista,
herói e chefe magno, figurou como uma referência, uma alusão histórica que sugeria de onde
deveria emanar o poder não apenas naquele momento, como também no futuro. São Paulo era o
berço dos bandeirantes, abrigando em seu seio os descendentes destes comandantes natos. Nesta
ordem de argumentações, estava presente a idéia – ora implícita, ora explícita – de que os
paulistas eram herdeiros de aptidões naturais de comando. Além de tanger aspectos
significativos da construção da figura do bandeirante, Volpato faz afirmações que podem ser
entendidas como antíteses das assertivas constantes na historiografia apologética, sobretudo a
produzida por Cassiano Ricardo, a qual a autora evoca criticamente mais de uma vez. O homem e
a mulher nativos do Brasil, que na obra de Ricardo figuram como elementos secundários de uma
guerra de conquista encetada pelos bandeirantes, são enunciados por Volpato como atores
históricos, presentes inclusive nas expedições (neste caso os homens), mas passíveis dos mais
torpes aviltamentos e violências advindos dos paulistas. A idéia da bandeira como instituição
democrática, que perpassa a obra de Ricardo, foi antagonizada consistentemente por Volpato em
Entradas e Bandeiras, onde a presença de índios, mamelucos e até mesmo brancos de menor
prestígio – nas expedições – é explicada remetendo ao entendimento de que estes integrantes
estavam submetidos à ascendência dos mestres de campo e seus auxiliares, que não raro agiam
arbitrariamente, cometend o desmandos desbragados. Ressaltemos que muitas expedições
apresentavam características militares, organizadas sob rígida concepção hierárquica, onde
certamente não reinavam os prncípios democráticos, como pretendeu difundir Ricardo.
Ainda na primeira parte do primeiro capítulo, ocupamo-nos da procura de demonstrar
como o mito do bandeirante – gestado com fins político-ideológicos no final do século XIX –, foi
novamente evocado com intenções parecidas na terceira década da centúria seguinte, quando do
deflagrar da Revolução Constitucionalista de 1932, oportunidade em que o estado de São Paulo,
tendo à testa seus dirigentes, pretendeu, sob o pretexto da reinstauração dos princípios
democráticos, mudar os rumos do poder nacional, então excercido ditatorialme nte por Getúlio
Vargas. Na iminência da luta armada, bem como em seu trasncurso, a ancestralidade bandeirante
figurou massivamente na propaganda feita pelos representantes do poder paulista. O passado de
glória dos bravos piratininganos foi revivescido em hinos, jornais, panfletos e através da imprensa
falada. Mandatários do progresso no passado, os habitantes de São Paulo precisavam demonstrar
sua força novamente, agora não com mosquetes ou arcabuzes, mas com baionetas e fuzis calibre
44, configurando-se como os vanguardistas, os iniciadores de um novo tempo para o Brasil. O
povo que já desbravara os sertões da colônia agora devassaria as brenhas fechadas da ditadura
getulista. Para buscar demonstrar esse ressurgir do mito bandeirantista com
finalidades políticas, pesquisamos em livros impressos no estado de São Paulo, cujos autores
foram homens que se envolveram pessoalmente na Epopéia Constitucionalista de 1932.
Exploramos também o valioso arquivo pessoal do Sr. Pedro Toffoli, único combatente vivo dos
66 integrantes do Batalhão XX de Agosto, hoje com 92 anos de vida. Desse arquivo, extraímos
alguns jornais antigos e material propagandístico da Revolução, contendo representação
iconográficas e textos de conteúdo claramente ufanista, que visavam inspirar sentimentos épicos de
coragem e altivez nos componentes do Exército Bandeirante. Também na primeira
parte do capítulo que ora enunciamos, fizemos algumas considerações sobre como a figura do
sertanista herói está alojada no imaginário do senso comum, mercê principalmente da forma de
abordagem do tema bandeirismo no ensino fundamental.
Nossa intenção primordial, no primeiro texto deste
estudo, foi a de procurar encontrar o homem comum atrás do pesado e arraigado aparato
heroístico que reveste o bandeirante, uma vez que o objeto de nosso estudo situa-se na
perspectiva de uma construção historiográfica onde será mostrado o desempenho físico acentuado
do habitante piratiningano, que atormentado pela carestia que campeava em São Paulo, tornou-se
o maior viajor caminhante das matas coloniais.
Na segunda parte do primeiro capítulo, nomeada A luta contra a natureza,
procuramos abordar um aspecto pouco lembrado na historiografia do bandeirantismo, que foi a
dificultosa transposição da Serra do Mar pelos primeiros homens que alcançaram os campos de
Piratininga. A subida deste grande acidente geográfico é mencionada por vários historiadores, mas
de forma fugaz, sem o devido detimento que parece merecer. Autores tanto da historiografia
crítica, quanto da apologética, são convergentes sobre as grandes dificuldades enfrentadas pelos
escaladores dos hostis rochedos, que quase perpendiculares, empertigavam-se como obstáculos
que por muito tempo haviam impedido o avanço dos habitantes da orla oceância para o interior da
colônia. Os ascencionistas da Serra do Mar foram
submetidos a esforços físicos extremos. O desempenho corporal deles exigido pela montanha
impassível foi brutal. No livro A economia paulista no século XVIII,
Alfredo Ellis Júnior, ao tratar da incipiência dos assentamentos dos vicentinos em Piratininga,
afirma que existe uma lacuna na historiografia que trata do passado paulista, pois esta o descreve
como se a Serra do Mar não existisse. Nesta obra de Ellis, que usamos como fonte para a
elaboração do texto que estamos anunciando, a Serra do Mar é entendida como um imponente
elemento da natureza, que somente foi vencido pelos homens mais aptos fisicamente. O autor se
preocupa em deixar expressa a sua percepção de que a montanha, silencio sa e inerte,
desencadeou uma triagem seletiva natural, de onde saíram vitoriosos os escaladores com maiores
predicados de motricidade e força, ou seja: os mais ágeis e os mais fortes.
Foram três as motivações que nos levaram a escrever um texto específico sobre a Serra
do Mar: a primeira delas é a evidente performance corpóreo-motora ensejada na transposição
deste acidente topográfico, já que o desempenho físico é nosso objeto de estudo; a segunda está
ligada ao nosso entendimento de que a situação germinal do bandeirismo estava ali sendo gestada,
já que num primeiro momento era preciso transpor a montanha, e noutro era necessário caminhar à
caça de índios; a terceira motivação foi a tentativa de demonstrar a condição de isolamento
imposta pela serra aos habitantes do planalto de São Paulo, que após transpô-la arduamente
romperam ligações com a região praiana, iniciando a história das bandeiras propriamente dita,
mercê da miséria econômica de Piratininga.
Trataremos agora do Capítulo II, intitulado Índios: cicerones e
mestres do sertão. Neste texto, procuramos mostrar o importante papel desempenhado pelo
índio nas bandeiras. Na historiografia apologética, a figura do homem natural da terra é
ensombrecida pelo vultoso protagonismo do bandeirante, que a tudo ordena e dá fluxo. O índio
literalmente ensinou ao sertanista paulista os segredos da sobrevivência no meio natural, garantindo
o cumprimento de grandes marchas pelo interior do continente. No entanto, a despeito disso, seu
notável papel apresenta-se ora esmaecido, ora quase apagado ou até mesmo ausente ou omitido
na produção historiográfica mais convencional. Na caça, na coleta de alimentos, na procura de
água e sobretudo no guiar os paulistas por trilhas desconhecidas, o índio descortinou um novo
modo de vida àqueles homens ignorantes das técnicas nativas da América. Em termos de
desempenho físico, o indígena ensinou aos primeiros sertanistas, singularidades importantes para
atenuar o desgaste das marchas, revelando-lhes novas formas de pisadura, que não concentravam
esforços excessivos em poucas junturas ósseas, propiciando um trabalho mais generalizado das
articualções dos pés, diminuindo assim as possibilidades de surgimento de lesões tendíneo-
ligamentosas, bem como das dores que as acompanha m, o que por fim favorecia o aumento das
distâncias percorridas. As adaptações corporais dos sertanistas às técnicas
indígenas não se restringiram à forma de pisar, requereram aprendizados significativamente mais
complexos, que envolveram remodelações e substituições importantes em seus padrões de
coordenação motora. Nas práticas de caça, os sertanistas aprenderam a usar o arco e a flecha,
instrumentos que até então não haviam utilizado. Para que se tornassem arqueiros ou flecheiros
eficientes, precisaram reordenar, reorientar seus padrões corpóreo-motrizes, ajustando-os à arma
indígena. Especificamente sobre este aprendizado, fizemos uma lacônica análise cinesiológica no
texto que ora enunciamos. A
contribuição dos índios nas bandeiras era sobremaneira aparente nas paragens carentes de caça.
Nessas oportunidades o índio assumia inteiramente o protagonismo, se assim pode ser dito.
Famintos, os paulistas dependiam inteiramente da perícia nativa em encontrar mel. Muitos índios
eram extremamente hábeis nesta tarefa, que consistia em avistar a abelha e correr atrás dela pela
mata, portando machados e cabaças, até que o vôo do inseto finalmente se finasse nos favos. Essa
destreza indígena, que impressionou muita gente no Brasil Colonial, envolvia dispêndio energético
acentuado, denotando apurado desempenho físico global, uma vez que exigia capacitações
múltiplas: relativas à resistência aeróbica, à coordenação motriz e à percepção espaço-temporal,
além da óbvia acuidade visual.
Nos sertões pobres de caça, a habilidade de prospecção melífera dos índios amainou a
fome de muitos bandeirantes, não apenas permitindo que continuassem seus avanços, como
também salvando muitos deles da morte por inanição.
Os índios foram importantes atores históricos da época bandeirantista, sobretudo no
século XVII, quando, segundo Monteiro, tornaram-se bem mais numerosos nas expedições. A
destreza em encontrar água foi outra grande contribuição dos indígenas engajados nas bandeiras.
Tal perícia, que envolvia técnicas diversas, favoreceu o caminhar das expedições pelos sertões
sem água.
Para a elaboração desse Capítulo II servimo-nos da produção de dois autores da
historiografia crítica, Luiza Volpato e Sérgio Buarque de Holanda, utilizando respctivamente como
fontes suas obras Entradas e Bandeiras e Caminhos e Fronteiras.
O Capítulo III, que no momento passamos a comentar, intitula-se Fugindo do
tempestuoso dilúvio: índios e jesuítas navegando e marchando no sertão. O texto subdivide-
se em três partes: Vivendo bandeirantemente e morrendo cristamente: a remissão dos
predadores de gente (parte 1); Capelães, beatões e padres: cúmplices da violência
bandeirantista (parte 2) e A fuga do Guairá: medo historicamente construído e terror
supersticioso determinam sôfrega motricidade humana (parte 3).
Utilizamos como fontes bibliográficas as obras Índios e jesuítas nos tempos das missões
– de Maxime Haubert; Marcha para o Oeste – de Cassiano Ricardo e sobretudo A conquista
espiritual – de Antônio Ruiz de Montoya. Além destas obras, qualificadas como fontes, outras
duas também foram utilizadas de forma significativa: Negros da terra – de John Monteiro e
História das bandeiras paulistas – de Affonso Taunay.
Na primeira parte do texto, já nomeada, tratamos da questão da violência dos ataques
bandeirantes às reduções inacianas. Extremamente ofensivas, as expedições apresadoras
promoveram a matança de muitos índios reduzidos no Guairá, revelando uma situação de
agressividade repetitiva e contumaz, já que os ataques foram ocorrendo ao longo do te mpo, na
primeira metade do século XVII, até que onze povoações fossem destruídas.
A ofensividade intensa dos sertanistas de São Paulo, com todas as suas implicações
predatórias, ressaltou-se como técnica militar nas bandeiras do século XVII. Matava -se parte do
contingente inimigo para capturar sua outra fração, que nem sempre era pequena. Chacinas para
obter a escravização, esta era a essência dos objetivos dos bandeirantes, que se organizavam
como regimentos de combate, caminhando pelas matarias à procura de índios. Desta forma, muitos
sertanistas atravessavam a vida, promovendo a violência e a devastação, derramando farto sangue
indígena no Brasil Colonial, principalmente no século XVII, quando o apresamento adensou-se
nitidamente. A despeito disso, a religiosidade fez-se presente entre os componentes das bandeiras.
Não aquela religiosidade estritamente cumpridora dos ditames católicos, mas uma religiosidade
profundamente temerosa, consciente de suas abominávies faltas e preocupada com o perdão
formal dos homens do clero. É recorrente na historiografia a singular mudança de maneiras
observada em muitos bandeirantes idosos. Já se aproximando do fenecimento, o violento caçador
de índios buscava redimir-se perante Deus, deixando bens em espólio para confrarias religiosas,
comungando freqüentemente, solicitando a visita do padre quando doente e finalmente
reconhecendo filhos bastardos, frutos de cópulas (muitas vezes forçadas) com índias. Procuramos
portanto demonstrar essa devoção peculiar, que não sofreava a agressividade desabrida, mas que
atormentava os sertanistas por toda a vida, tornando-os na velhice obsecados com a salvação
eterna. Na segunda parte do texto, cujo título também já mencionamos,
buscamos o entendimento acerca da função dos capelães que acompanhavam as bandeiras. Estes
homens receberam do padre Montoya o depreciativo epíteto de beatões, dadas as particularidade
de suas maneiras condescendentes ao presenciar os assassinatos e os apresamentos dos indígenas.
Essa condescendência não era explí cita, mas sim atitudinal, uma vez que esses capelães buscavam
conversar sobre a devoção a Deus com os jesuítas das reduções no próprio momento do
apresamento, com a barbárie campeando à sua volta. Levar padres nas expedições fazia parte das
necessidades dos bandeirantes, especificamente visando obter perdão por seus atos.
Ainda nesta segunda parte do
Capítulo III, julgamos também importante buscar informações adicionais sobre a conduta dos
clérigos coloniais antes e depois do século XVII, visando sobretudo apurar se os falsos devotos –
como os adjetivou Haubert –, se fizeram presentes apenas nas expedições bandeirantistas. Nessa
procura, encontramos na obra A Companhia de Jesus e o plano português do Brasil, de
Vitorino Nemésio, importantes menções sobre a chegada do padre Manuel da Nóbrega ao Brasil,
na metade do século XVI, quando este sacerdote ficou estupefato com o desregramento e a
licenciosidade dos padres da Bahia e de São Vicente, que mantinham relações sexuais com índias,
sendo que alguns deles dispunham de seis delas para tal prática. Foram muitos os filhos naturais
advindos destas relações, valendo observar que vários padres se tornaram pais seis ou sete vezes.
Já na obra História Geral das Bandeiras Paulistas, de Affonso Taunay,
encontramos valiosas informações sobre as iniqüidades do clero no início do século XVIII, após a
descoberta das minas auríficas. Religiosos de diversas ordens afluíram para os locais de
mineração. Estes clérigos de má vida, como os alcunhou Taunay, iam para as áreas mineiras para
fugir às penas impostas pelas cúpulas católicas, ou até mesmo buscando evadirem-se das garras da
justiça real. Dessa forma, é fácil entender que estes homens não tinham um passado sem máculas.
Agindo em contrariedade às ordens de seus superiores clericais, que reiterada e oficialmente os
admoestavam a retornar a seus conventos e paróquias, esses padres teimavam em permanecer nas
minas, onde levavam vida livre, inseridos num ambiente heterogêneo, onde pessoas de conduta
suspeita não eram necessariamente raras. Buscando a síntese desse texto,
esclarecemos que nosso intento primordial foi analisar a função dos capelães nas bandeiras, os
quais entendemos também como elementos apresadores passivos, já que não sofreavam, em
nenhum momento, as atividades destrutivas dos bandeirantes. Porém não nos furtamos de
pesquisar um pouco mais amplamente sobre a conduta do clero no período colonial, pesquisa essa
que nos propiciou a compreensão de que as atitudes condenáveis – aos olhos da igreja – dos
capelães paulistas não foram isoladas, não estando portanto circunscritas apenas ao bandeirismo.
Se os beatões de Montoya – que são os mesmos falsos devotos de Haubert – faziam vista grossa
à chacina e à escravização de índios no século XVII, os padres que indignaram Nóbrega na
centúria anterior já se regalavam sexualmente com mulheres indígenas, sendo que também no
começo dos oitocentos os clérigos de má vida, abordados por Taunay, viviam em notório
desregramento ao redor das minas de ouro. Revela -se, portanto, a notável incidência de religiosos
que contrariavam os dogmas da Igreja no Brasil dos séculos XVI, XVII e XVIII, avultando-se os
capelães bandeirantistas, pelos atos bárbaros que presenciaram sem nada fazer.
Na terceira parte do Capítulo III, cujo título já teve sua enunciação, tratamos da
abordagem de alguns aspectos significativos da retirada dos doze mil índios de San Ignácio e
Loreto, as duas últimas reduções dentre as treze anteriormente existentes no Guairá. Dirigida pelo
padre Ruiz de Montoya, essa fuga em massa para o extremo sul teve implicações singulares. Antes
da partida, onze povoados haviam sido devastados pelos bandeirantes. A face mais fria da vilania
havia se revelado portanto inúmeras vezes. Destarte, os índios de Loreto e San Igná cio
experimentavam uma profunda sensação de perigo iminente, presas do medo historicamente
construído. Entre os missionários, além do medo de homens, iniciou-se um processo de
exacerbação mística, onde as inquietações advindas de especulações sobrenaturais associavam os
bandeirantes ao diabo. Essas aflições religiosas forma naturalmente passadas para os índios, já que
estes estavam ali sendo doutrinados pelos jesuítas. Indícios malígnos eram entrevistos pelos
missionários, como estátuas suando ou chorando, aparições do diabo disfarçado de mameluco ou
até mesmo ardilosamente sob a forma da Rainha do Céu.
Estava presente no Guairá, de forma evidente, todo o arcabouço
dogmático espiritual da Idade Média européia, especialmente respeitante à Espanha, ber ço da
Companhia de Jesus. A permanência da mentalidade religiosa medieval, com todo o seu fatalismo
e sobrenaturalidade, delineou-se detalhadamente em Loreto e San Ignácio. Os escritos de
Montoya deixam isso muito claro, pois anunciam a proximidade do final dos tempos, associando-a
ao determinismo da passagem de um cometa. Em recente obra, intitulada Ano 1000, ano 2000:
na pista de nossos medos, Georges Duby aborda esta questão dos sinais da natureza, que eram
entendidos no medievo como anunciadores do juízo final. O historiador francês inclusive cita as
aparições de cometas entendidas como presságios, prelúdios do fim do mundo. Montoya, em
certo trecho de A conquista espiritual, na iminência da partida para fugir dos bandeirantes,
expressa-se como alguém que teme a proximidade inadiável do juízo final, exteriorizando, pelo
teor ou conotação de suas palavras, sua convicção acerca do avizinhamento deste evento. Os
bandeirantes chegariam espalhando a devastação. Estátuas haviam suado ou chorado. Aparições
sob a forma de mamelucos haviam sido observadas ... As hordas anticristãs1 , os destruidores
do gênero humano2 irromperiam em breve das matas, abatendo-se implacavelmente sobre as
duas derradeiras povoações guairenhas. Os índios, doutrinandos dos missionários, absorveram
todo esse denso imaginário apocalíptico, experimentando portanto não apenas o medo do
bandeirante cruel e palpável, mas também do sertanista avatar do mal, impregnado de
malevolência satânica. Para as intenções primordiais de nossa pesquisa,
que centram-se na análise do desempenho corporal humano, a abordagem dessa situação de
medo profundo e coletivo foi fundamental, pois abriu perspectivas coerentes, em termos
estritamente científicos, de entendimento sobre a fuga dos doze mil índios do Guairá, liderada pelo
padre Montoya.
A fisiologia humana, ciência que trata do funcionamento e das funções orgânicas,
possibilitou-nos o respaldo necessário para escrever com segurança sobre a intensa motricidade
evidenciada pelos retirantes. O temor é uma sensação que desencadeia uma grande gama de
modificações fisiológicas no corpo humano. Tendo sido os habitantes guairenhos submetidos ao
medo historicamente construído (onze reduções haviam sido devastadas), bem como ao terror
supersticioso (disseminado pelo s jesuítas), torna -se evidente que em seus corpos operou-se uma
importante mudança de padrões fisiológicos, cujas especificidades determinaram uma situação de
motricidade intensa. Em outros termos, pode ser dito sem reservas, que o desempenho corporal
durante a fuga foi intensificado pelo medo. Um desempenho corporal sôfrego e obviamente
1
Maxime Haubert, aludindo ao misticismo reinante no Guairá, escreveu que os mamelucos “ fariam parte das hordas do
anticristo” (Haubert, 1990, p. 170).
notável, que fez com que os fugitivos alcançassem os limites do sul brasileiro, depois do
padecimento da fome, da epidemia de disenteria e da exaustão física advinda da marcha e da
navegação.
As implicações fisiológicas advindas do medo são muitas. Pesquisamos na literatura
específica da fisiologia do medo, buscando informações precisas sobre a relação medo-
motricidade humana, visando sobretudo entender mais esmiuçadamente acerca do desempenho
motor dos retirantes do Guairá. Dessa pesquisa resultou um rol de informações indispensável para
as intenções desta dissertação. Dessa forma, muitas explicações de ordem fisiológica estão
inseridas no próprio texto que ora introduzimos, mas outras, necessariamente detalhadas, forma
introduzidas ao final do trabalho, em forma de anexo. As explicações fisiológicas contidas no
próprio texto, em nosso entendimento não reompem seu fluxo em termos historiográficos. Porém
as outras, que estão em anexo, se inseridas no texto causariam um hiato na sucessão dos eventos
analisados. Fazemos aqui estas considerações para justificar a presença das laudas em anexo, que
não obstante saibamos não ser procedimento ordinário em trabalhos científicos, foram apensas
motivadas precisamente por duas razões que emanam puramente do cientificismo. A primeira
dessas razões é a preservação do entendimento histórico, que como já dissemos seria prejudicado
por explicações fisiológicas detalhadas no próprio texto, uma vez que tais informações são
compactas e extensas. A segunda razão reside na imprescindibilidade, na indispensabilidade de
constar nesta dissertação todas as implicações fisiológicas do sentimento de medo, pois este
assunto está relacionado, de forma indissociável, ao desempenho físico dos retirantes do Guairá,
que é o que buscamos evidenciar no texto. A
caminhada para contornar as grandes quedas do rio Paraná, bem como a navegação em
cachoeiras e correntes pedregosas, exigiu dos guairenhos um dispêndio energético muito grande,
que exauriu seus corpos inopinadamente. Além da marcha e da navegação, mostrou-se também,
de forma evidente, a grande habilidade de nado dos índios, quando algumas embarcações
soçobraram. Muitos retirantes morreram pelo caminho, obstados pelas adversidades da disenteria,
da falta de alimentos e do esgotamento corporal advindo do caminhar e do navegar. Os que
alcançaram o sul do Brasil, alquebrados e esfalfados, ainda se puseram a reconstruir San Ignácio e
Loreto, edificando prédios e templos, amainando e lavrando a terra.
O êxodo dos índios e missionários do
Guairá foi, em nosso entendimento, um episódio histórico onde a atividade corpóreo-motora se fez
2
Montoya, sobre os bandeirantes, escreveu “É seu instituto ... destruir o gênero humano” (Montoya, 1985, p. 125).
intensa, ensejada pelo medo de sertanistas agressivos e escravocratas, que humanos ou inumanos,
por sua vez também se movimentaram muito pelo Brasil Colonial, buscando aplacar a carestia de
suas vidas. Comentemos agora o Capítulo IV: Bandeirismo: desempenho corpóreo-motor
no Brasil Colonial. Este capítulo, o último de nossa pesquisa, divide-se em duas partes. Na
primeira delas, intitulada Meninos, homens e anciãos: sede, fome e cansaço na marcha
sertaneja, abordamos as implicações de notáveis adversidades verificadas nas caminhadas das
bandeiras, buscando demonstrar que nessas oportunidades a performance física revelou-se de
forma intensa, sobretudo pelos grandes percursos levados a termo. Milhares de quilômetros foram
vencidos em situações distintas, onde a exaustão, a fome e a sede não raro se fizeram presentes.
Nessas expedições, a presença de meninos ainda púberes, bem como a de homens idosos, foi por
nós entendida como passível de mais detida análise, já que em extremos opostos da vida, em
termos de idade, tais expedicionários denotaram ainda mais a performance física intensa, devido às
características anátomo -fisiológicas próprias dessas faixas etárias, comprovadas cientificamente
como limitantes em atividades que reivindicam esforços acentuados e constantes. Visando
propiciar melhor entendimento sobre a inclusão de meninos e anciãos nas bandeiras, em termos de
desempenho físico, lançamos mão de explicações fisiológicas e anatômicas, que esclarecem, em
termos precisos, as particularidades das limitações impostas ao corpo pela meninice e pela velhice.
Tais explicações, para não romper o fluxo do texto, foram colocadas em forma de notas de
rodapé.
No mesmo texto, tecemos também algumas considerações sobre a motivação primeva de
nosso estudo, que busca o entendimento acerca da atividade física do bandeirante não concebido
como herói, mas enfocado sob o prisma da historiografia crítica. Nesse sentido, julgamos ser
necessário dizer que a construção da figura do bandeirante herói, ao invés de ressaltar as evidentes
performances corpóreo-motrizes levadas a cabo nas marchas, acabou por ocultá-las, já que as
diluíram em partículas infinitesimais, inseridas em textos pomposos e empolados, onde profusos
adjetivos eruditos concorrem para alçar o viandante planáltico à categoria de personagem
epopéico. As marchas dos heróis, nesta representação apologética repleta de interfaces, padecem
sob o domínio das motivações ideológicas, calcadas predominantemente na sugestão de liderança
nata dos paulistas. Em outras palavras, o mito bandeirante, de certa forma e curiosamente, não se
detém na particularidade mais espantosa de seu pretenso protagonista: o desempenho corporal
evidentemente acentuado. A historiografia ufanista não se detém nisto pelo perigo daí decorrente
em evidenciar demais a pobreza de São Paulo, fator econômico que ensejou as grandes jornadas.
Se percebidos como miseráveis, os paulistas iniciariam a ser entendidos como homens comuns,
começariam a ser despidos de suas vestes de heróis, perdendo sua aura mítica. O homem
ordinário seria então vislumbrado ... mas o Brasil está cheio de homens ordinários. A nação não
precisaria portanto de um paulista para governá -la. Poderia ser um mineiro, um pernambucano ou
um matogrossense, já que o paulista nada tinha de diferente. Estaria assim desconstruída a
representação heroística do bandeirante, caso a historiografia apologética o apresentasse como
homem envergado e condicionado pelos determinismos históricos de seu tempo. Para nós,
que procuramos visualizar o bandeirante sob o viés da historiografia crítica, evidencia -se ainda
mais a faceta do paulista viandante, que buscando se safar da carestia denotou notável rendimento
motriz, percorrendo áreas grandes não apenas no interior da colônia portuguesa, como também na
América espanhola. Entendemos que qualquer outra característica
construída do bandeirante não consegue, mesmo que tantas vezes reiterada na historiografia
apologética, sobrepujar a faceta mais significativa do homem piratiningano, que foi a de cumpridor
de extensas e extenuantes jornadas a pé, oprimido pela carestia do planalto paulista.
Na segunda parte do último capítulo, intitulada O papel da
motricidade bandeirante na mudança da configuração contextual do Brasil Colonial,
procuramos mostrar como a motilidade dos paulistas causou modificações significativas na
sociedade colonial. Nessa tarefa, a obra ¿ Y que és la História ?, de Saturnino Sanches Prieto,
de imediato descortinou importantes possibilidades de aplicação objetiva em nosso estudo,
apresentando-se como satisfatório respaldo teórico-metodológico. Utilizamos também os
conceitos de Romein citados na obra de Prieto sobre “ El Progreso”, ao abordar a prosperidade
dos engenhos nordestinos, em contraposição à penúria vivenciada em Piratininga, berço do
bandeirismo. Prieto, citando Romein, escreveu que a “ atmosféra de la autosatisfaccion es
suscetible de actuar como un freno a nuevos progresos”, observando ainda que “ el progreso
viene muchas veces de otros pueblos atrasados ...” , e ainda que “ ... el retraso, en ciertas
condiciones, es una vantaja que espole hacia nuevos esfuerzos” . O atraso de São Paulo em
relação ao Nordeste no século XVII era evidente. Nos sólidos engenhos nordestinos, alicerçados
no poder dos grandes senhores de terras, a “ atmosféra de autosatisfaccion” se fazia presente. Na
Vila de Piratininga, cujo cotidiano se fazia repleto de privações e adversidades, tal “atmosféra”
não era experimentada, ensejando condições onde a população buscou soluções práticas para
seus problemas, configurando os “ nuevos esfuerzos” de um “ pueblo atrasado”, que devassou
as brenhas à cata de índios e minerais de valor. A leitura da obra de Prieto, além de ter sido útil em
termos de aplicação prática em nossa pesquisa, facilitou, através das teorias do historiador J.
Romein, um entendimento mais específico do que é entendido como progresso em termos
historiográficos, contribuindo sobretudo para que pautássemos, de forma mais embasada, a
situação econômica díspar verificada entre o planalto de São Paulo e as capitanias do nordeste.
Após feitas as considerações sobre os
fatores que determinaram as marchas dos bandeirantes, fatores esses entendidos como
contingências históricas, partimos para a análise de algumas expedições bandeirantistas do século
XVII, que por suas peculiaridades variadas configuraram-se como situações onde a faina física
avultou-se de forma perceptível. Abordamos a expedição de Domingos Jorge Velho, que cumpriu
seis mil quilômetros de percurso antes de assaltar o Quilombo dos Palmares. Enfocamos também a
bandeira de Antônio Raposo Tavares, que caminhou de dez a doze mil quilômetros pela América
Colonial. Nessas duas oportunidades as dificuldades foram extremas,com muitas baixas
registradas em seus respectivos contingentes.
Agruras significativas foram também vivenciadas pelas expedições do início do século
XVIII, que trouxeram à luz o ouro de Cuiabá, no Centro-Oeste brasileiro, afastado
aproximadamente dois mil quilômetros de São Paulo. Pululam na historiografia – tanto crítica
quanto apologética – os revezes enfrentados pela prospecção aurífica no oeste, à época em
muitos pontos intocado por homens não naturais daquela extensa área. A bandeira de Pascoal
Moreira Cabral jornadeou por caminhos incógnitos, antes de encontrar incrustações de ouro nas
barrancas do Coxipó-Mirim. Não menores adversidades enfrentou Miguel Sutil, que graças a dois
indígenas coletores de mel, encontrou o ouro de aluvião, no lugar onde germinaria a vila de
Cuiabá. Contemporaneamente, em terras goianas, a expedição de Bartolomeu Bueno da Silva
Filho perdeu quatro dezenas de integrantes, mercê do esgotamento corporal imposto pela fome.
Depois desse infortúnio, em nova arremetida, o próprio Bueno da Silva acabou por liderar outra
expedição, desta feita encontrando os jazigos auríferos de Goiás. Essa expedição, para Synésio
Sampaio Góes Filho – que publicou em 1999 a obra Navegantes, bandeirantes, diplomatas –
foi a última bandeira típica de que se tem notícia. Não faz parte de nossas intenções embasar
demoradamente nossa concordância ou discordância em relação às palavras deste autor, já que o
foco central de nosso estudo não procura tanger essa questão. Contudo, expressamos nosso
entendimento de que a passagem da época bandeirantista para a monçoeira não se deu de forma
compartimentada, abrupta ou estanque. As monções foram gestadas no bojo do bandeiriamo, cujo
princípio primário era a locomoção, que entre estes dois períodos utilizou-se de vias de
penetração distintas: as veredas das matas e a rede hidrográfica.
A descoberta do ouro no Centro-Oeste deu-se no ocaso do bandeirismo. As últimas
expedições a pé propiciaram então, pelo sucesso de suas prospecções minerais, um afluxo de
grande contingente para a proximidade das minas. Essa migração envolveu não apenas os
moradores da colônia, como também os de alé m-oceano. Em face disso, foi aberto um caminho
pedestre para Goiás, ao mesmo tempo em que as expedições fluviais Porto Feliz-Cuiabá foram se
tornando a preponderante via de acesso para as paragens do ouro de aluvião. Esmaecia o
bandeirismo propriamente dito, que em primeira instância causara essa nova dinâmica na colônia,
uma nova época, no dizer de Alfredo Ellis Júnior. A transmigração acentuada,
que envolveu milhares de pessoas, acabou por deslocar as populações do nordeste para o
sudeste, ponto de partida para alcançar as minas recém-descobertas. Dessa forma, a
prosperidade que antes se associava ao cultivo canavieiro nordestino, passou a ser relacionada à
mineração. O rush do ouro no século XVIII acabou por adensar demograficamente outras áreas
do Brasil, que atraíram – com o correr do tempo – para si, até mesmo o poder político central,
que transladou-se da Bahia para o Rio de Janeiro em 1763. As monções partiam de São Paulo,
pelo rio Tietê, atraindo aventureiros provindos de diversos lugares. A capitania de São Vicente
aumentou drasticamente sua demografia, tornando-se paulatinamente a mais populosa da colônia,
característica que – guardadas as devidas proporções – ainda é observada no estado de São
Paulo do Brasil atual.
Estas últimas observações, quase um exercício parafraseático de alguns trechos da última
parte do Capítulo IV, foram ensejadas para que evidenciemos nosso entendimento de que a
motricidade corporal dos integrantes das bandeiras, tendo como fator desencadeante a pobreza
paulista, contribuiu, de forma importante, para a mudança da configuração contextual do Brasil
Colonial. O ouro estava no interior do continente, no hinterland, distante e escondido. Os
bandeirantes o encontraram, após uma miríade de expedições desvestidas de êxito. Marcharam
não raro exaustos, ultrapassando os limites de seus próprios corpos, acossados pela sede, pela
fome e pelo sentido de alerta ante as matas desconhecidas. O desempenho físico desses andejos
possibilitou o encontro do almejado metal, que por sua vez determinou as significativas mudanças
ocorridas no Brasil Colonial, já aludidas preliminarmente.
CAPÍTULO I
O BANDEIRANTE E O BANDEIRANTISMO
O marco inicial da colonização efetiva do Brasil foi a fundação da Vila de São Vicente, por
volta de 1532. Situado em estreita faixa litorânea, o núcleo populacional nascente, instituído por
Martim Afonso de Souza, voltava-se para a Metrópole de além-mar. Já no princípio do
povoamento, foi construído o primeiro engenho de açúcar da Colônia, sob o nome de São Jorge
dos Erasmos, tendo o segundo surgido quase simultaneamente, denominado Madre de Deus.
Distante duas léguas, nascia também a Vila de Santos, erigida por Brás Cubas.
A Serra do Mar foi transposta duas décadas depois da fundação de São Vicente, a 08 de
setembro de 1553, ensejando a ocupação do planalto paulista. Estava lançada a semente de uma
sociedade que viria a se distinguir daquela que vivia na orla marítima. No lugar onde era a aldeia
Inhapuambuçú, do líder indígena Tibiriçá, os jesuítas Manuel da Nóbrega e José de Anchieta
fizeram germinar a Vila de Piratininga, a 25 de janeiro de 1554, referência decisiva para o
engrossamento da ocupação planaltina.
Do povoado que então se formou surgiria a figura do sertanista, do andejo que viria a
adentrar as matas visando apresar índios para, num primeiro momento, escravizá -los no labor
assistencial e, posteriormente, com a demanda de mão-de-obra dos engenhos, comercializá-los.
Essa relevante faceta do bandeirante, caçador e traficante de indígenas, é minimizada
sobremaneira na obra de Ricardo, que engendra uma concepção identitária do homem planáltico
representado predominantemente como um desbravador heróico e cristão, em busca de ouro e
pedras de valor.
O autor de Marcha para Oeste ainda confere aos bandeirantes as qualidades de arautos
da democracia, de opositores do capitalismo mercantilista europeu e de promotores da
miscigenação racial.
Essas palavras de Vasconcelos são lapidares, uma vez que propiciam um entendimento
mais crítico acerca do tergiversar de Ricardo, que busca evasivas para ocultar a característica do
bandeirante como caçador de indígenas. Evidenciando não apenas o apresamento, como também
o engajamento do próprio índio nas expedições apresadoras, Vasconcelos contribui notadamente
para protrairmos a intencionalidade presente no discurso de Ricardo, que simplesmente
fundamenta a mobilidade bandeirantista na perspectiva de obtenção de minérios valiosos, lançando
mão de um vocabulário exageradamente épico, evocando até mesmo seres mitológicos, guardiães
de riquezas naturais ignoradas pelos paulistas. Vejamos as palavras de Ricardo sobre as
motivações das marchas bandeirantistas:
... Atrás daqueles mataréos trágicos que pareciam querer contar-lhes o
segredo de uma fortuna escondida por dragões exclusivistas e odiosos.
Esses mitos, sim – arrastaram os grupos terra adentro. Naquela
mobilidade dramática e estrepitosa que ainda nos enche de espanto ...
(RICARDO, 1942, p. 46).
Panegirista do bandeirismo, Ricardo afirma, na mesma obra, que o objetivo principal das
expedições era a busca de pedras preciosas, chegando a mencionar que “uma esmeralda valia
mais que um latifúndio” (RICARDO, 1942, p. 51). Nota-se claramente a tendência antagônica de
suas assertivas, posto que na mesma obra o autor atribui aos bandeirantes a característica de
opositores do capitalismo mercantilista europeu. Parece-nos que quem parte para os mataréos
trágicos em busca de algo de grande valor, está em verdade raciocinando sob a lógica capitalista,
ansiando por lucro pecuniário. Expedições que buscavam unicamente riquezas minerais realmente
existiram, porém a maioria das bandeiras tinha como objetivo principal o apresamento de índios,
visando o labor escravo assistencial e o tráfico escravista para os engenhos canavieiros, o que
também era uma atividade mercantil do capitalismo, em sua fase de acumulação primitiva. Algumas
dessas expedições, ao mesmo tempo que apresavam aborígenes, não se furtavam de promover
também a prospecção de jazidas minerais, com as atenções de seus integrantes também voltadas
para este fim.
MONTEIRO (1994) explica que o ciclo bandeirantista de apresamento de índios só
findou-se no final do século XVII, quando a busca de jazidas auríferas robusteceu-se
notadamente.
No que tange à miscigenação, a representação mítica do bandeirismo engendrou a idéia de
igualdade e democracia racial. A igualdade inter-racial inexistiu nas bandeiras. Exemplo modelar é
o de Fernão Dias Pais, que para seus dois filhos dispensava atenções díspares. Um deles, Garcia,
“legítimo branco”, recebia atenções paternais convencionais; o outro, José, “mestiço-bastardo”,
experimentou o detrimento imposto por sua hibridez.
A última expedição de Fernão Dias partiu do planalto paulista em 1674. Já no sertão
houve um motim, que foi debelado com a execução dos amotinados. Entre os assassinados estava
José, o filho mestiço do chefe bandeirante.
Domingos Jorge Velho extinguiu definitivamente o Quilombo de Palmares em 1695,
quando matou o líder negro Zumbi. Tempos depois, instalado na propriedade que recebeu como
recompensa pelo feito, foi visitado pelo Bispo Dom Francisco de Lima. O religioso horrorizou-se,
quando Jorge Velho apresentou-se com suas sete concubinas índias.
Ao Bispo horrorizavam particularmente as ‘barbaridades, costumes e
vícios’ do paulista, que andava ‘metido pelas matas à caça de índios e
índias, estas para o exercício de suas torpezas e aqueles para o granjeio de
seus interesses.’ (GRYZINSKI, 1995, p. 74)
Relações sexuais forçadas, onde a aquiescência das índias era obtida através da violência.
Estas são as situações mais recorrentes na história do sertanismo, sendo bem mais esporádicas as
ocasiões onde a cópula era precedida por cortejos, ou após o consentimento do autóctone
progenitor da mulher desejada.
Neste sentido, a democratização biológica que Ricardo atribuiu aos bandeirantes não
parece ter sido construída em bases essencialmente democráticas. Contudo, vejamos as palavras
desse autor: “... A mestiçagem é uma reação bio -democrática da raça contra uma condição social
anti-democrática” (RICARDO, 1942, p. 63, Vol. 2).
Conforme ficou claro em Gryzinski, Volpato e Montoya, o uso sexual das mulheres
naturais da terra era encetado pela vontade inflexível dos sertanistas. Em outras palavras,
parafraseando Ricardo, pode ser dito que a mestiçagem é uma reação bio-ditatorial contra
uma condição social democrática. Arriscamos essa paráfrase entendendo que em qualquer
condição social democrática a mulher é livre para escolher seu parceiro sexual, situação essa que
não era comum na conjunção física entre bandeirantes e índias. Parece-nos até que Ricardo
comete um anacronismo, ao perspectivar a análise da mestiçagem sob o prisma da democratização
racial, uma vez que aos atos cotidianos do Brasil Colonial não parece ser adequada a evocação
dos valores da democracia, como ela era entendida nos anos quarenta do século XX, quando foi
publicada sua obra Marcha para Oeste, onde reiteradas vezes ele tange a miscigenação como
elemento fomentador da democracia racial.
A quintescência da antítese da democracia racial foi protagonizada por João Leme. Tal
sertanista mantinha uma índia como concubina, vindo a descobrir que ela era amante de um índio.
Aviltado em seus brios, João Leme mandou prender os dois, torturou-os, providenciou a
castração do rival e finalmente consumou a dupla execução. João Leme era um dos legendários
irmãos Leme, que mesmo inseridos no universo violento do bandeirismo, lograram granjear fama
de facínoras temíveis.
Os diversos crimes desses homens façanhudos3 acabaram por levar suas cabeças a
prêmio. Tais criminosos foram mortos, tendo sido o juiz Godinho Manso quem instituiu a
recompensa. Panegirista proeminente do bandeirismo, Taunay apelidou Godinho Manso como
abutre forense (Taunay apud Ricardo, 1942, p. 238).
A história do bandeirismo é sobretudo impregnada do derramamento de sangue indígena,
do despovoamento das matas e da exploração do homem pelo homem. Os núcleos populacionais
ensejados pelas expedições, em suas características iniciais, configuravam-se como pequenas
agregações humanas, próximas ou mesmo insinuadas nos perímetros então esvaziados, onde antes
aldeias inteiras existiram, povoando desde há muito o interior do continente. Arrancado de sua
vida tribal, o homem natural da terra tornou-se trabalhador escravo nos engenhos e nas lavouras
de cana, sendo também utilizado sobretudo como flecheiro, em novas expedições de apresamento.
Teríamos muitos exemplos para corroborar as mazelas impostas aos índios no Brasil Colonial. No
entanto, basta evocar dentre tantos outros, o caso da bandeira de Domingos Jorge Velho, que
promoveu o assassinato em massa de aproximadamente 300 tapuios no Nordeste, devastando
suas principais aldeias. Em 1638, o rei Felipe IV nomeou uma comissão de espanhóis e
portugueses, visando a apuração das denúncias feitas pelos jesuítas contra os bandeirantes. Tal
comissão acusou os andejos paulistas do apresamento ou morte de 300 000 (trezentos mil) índios.
Volpato, contudo, esclarece que não se sabe ao certo a quantidade de silvícolas arrancados das
matas e missões jesuíticas: “ Grande parte deste contingente se perdia nas longas caminhadas a pé
desde o local de apresamento até São Paulo” (VOLPATO, 1985, p. 14).
Levando-se em conta o que escreveu Monteiro, no que diz respeito ao fechamento
3
Adjetivo aplicado aos irmãos Leme por RICARDO, C., Marcha para Oeste, p. 237.
do ciclo de caça ao índio no final do século XVII, conclui-se que após a apuração da comissão
mista em 1638, as muitas outras expedições de apresamento promoveram escravização e morte
de um número não estimado de indígenas, que elevou a estimativa calculada pelos portugueses e
espanhóis nomeados por Felipe IV. O próprio bandeirismo de contrato de Domingos Jorge Velho,
que devastou os tapuios no Nordeste, passando à larga do apresamento e praticando o assassinato
em larga escala, ocorreu já no último decênio dos seiscentos.
Com as bandeiras de busca ao ouro a
utilização de mão-de-obra indígena não se extinguiu, mas orientou-se de outras formas. O índio
continuou a servir os sertanistas em labores diversos, embora já não mais fossem objeto de tráfico
intensivo. Nas roças, na coleta de alimentos, na caça de subsistência, o homem natural da terra
continuava vivendo sob o despotismo de seus mandantes. O mel era alimento particularmente
apreciado pelos expedicionários paulistas, que para obtê -lo se serviam dos silvícolas, hábeis em
encontrar colméias seguindo as abelhas com os olhos. Em outubro de 1722, o sertanista Miguel
Sutil dirigiu-se do Arraial de Coxipó até a localidade onde hoje se ergue a cidade de Cuiabá,
visando observar uma roça já iniciada. Lá chegando, ordenou que dois índios saíssem à cata de
mel, munidos de machados e cabaças. Os índios demoraram a retornar, só o fazendo já noite
avançada, tendo Sutil os recebido com rispidez. Os meleiros haviam falhado na procura de
colméias, mas apresentaram ao irritado paulista um embrulho feito com folhas, contendo vinte e
três granitos de ouro, que pesavam cento e vinte oitavas. Assim, ao acaso, foi descoberto o ouro
em Cuiabá, por dois indígenas destros nos rastreamento melífico. Ocupamo-nos, até o
presente momento, em evidenciar alguns aspectos básicos do universo bandeirantista, emanados
das páginas da historiografia. Fez parte deste intuito divisar os bandeirantes como homens comuns,
que premidos pelas circunstâncias contextuais de seu tempo, buscaram alternativas práticas para a
solução de seus problemas diários. A conotação heróica do sertanista paulista foi iniciada pela
historiografia produzida no final do século XIX, tornando-se alentada no início do século XX.
Essas palavras de Ricardo são emblemáticas tanto no que diz respeito à instrumentalização
política do bandeirante, como no que tange à sua representação heroicizante. Para o autor, o
bandeirante não é apenas herói - “O costume de só vermos o herói ...” -, mas também possuidor
de características administrativas que o qualificam a gerir expedições sertanistas ou nações:
“Ninguém como o chefe da bandeira encarna tão bem a concepção de governo forte.”
(RICARDO apud VOLPATO, 1985, p. 20)
As características de comando e capacidade administrativa são aqui atribuídas ao
bandeirante em adição à sua condição de herói. Ao mencionar que o sertanista paulista possui
outros atributos, em adendo à sua probidade heroística, Ricardo conota como inalienável esta sua
última faceta. Destarte, torna-se clara a insinuação do bandeirante como detentor de óbvio,
legítimo e irrefutável heroísmo. Ora, se o costume nos leva a só ver o herói em alguém, é porque
este alguém é supostamente herói em primeira instância. Se acaso este alguém possui ainda outras
qualidades, as possui além de sua condição primordial de herói. Em Ricardo, a historiografia do
bandeirismo engendrou um indivíduo que detém não apenas heroicidade, mas ainda inúmeras
outras qualificações em apêndice.
A própria hibridez racial do bandeirante, anteriormente desprezada e lançada no limbo das
etnias, passou a ser exaltada pelos panegiristas do bandeirismo, considerada como a forjadora de
um homem com características especiais. Um homem que reunia a inteligência do branco e as
habilidades físicas do índio. Este homem novo, apontado como privilegiado, era o mameluco, o
bandeirante mestiço. Em síntese, a mestiçagem, antes considerada degenerescente, passou a ser
apresentada como fator de aprimoramento racial, que propiciou o surgimento de um ser humano
excepcional, o mameluco, membro da raça de gigantes.
O interesse pelo estudo do bandeirismo, ensejado no fim do século XIX pelos próceres da
cafeicultura, e robustecido pelo governo paulista nos anos 20 do século XX, propiciou uma vasta
bibliografia sobre o tema. Autores como Taunay, Ricardo e Alcântara Machado tornaram-se
referências, em conseqüência de suas alentadas obras no que tange o assunto.
Bem antes dessas publicações, ainda no século XVIII, Pedro Taques de Almeida Paes
Leme escrevia sua Nobiliarquia Paulistana, Histórica e Genealógica. Essa obra, publicada
juntamente com outros trabalhos na década de 20 do século XX, já enaltecia os feitos
bandeirantes, porém não em proporções tão desbragadas quanto à produção bibliográfica que foi
estimulada primeiramente pelas cúpulas da cultura cafeeira, e posteriormente pelo governo do
estado de São Paulo.
Desde então, intermitentemente, o mito do bandeirantismo ressurgiu como insuflador de
sentimentos de varonilidade e tenacidade entre o povo paulista. Ressalta-se como exemplo
modelar a Revolução Constitucionalista de 1932 4 , quando São Paulo insurgiu-se ante a ditadura
de Getúlio Vargas, empunhando armas sob o argumento da reinstauração da democracia. O
Governo Federal apontou tal movimento como separatista. São Paulo contava inicialmente com o
apoio de Minas Gerais e Mato Grosso. Em dado momento, com o confronto bélico já deflagrado,
Minas Gerais inusitadamente aderiu às tropas governistas. A contribuição matogrossense foi um
batalhão de menos de uma centena de homens, comandado por Bertholdo Klinger. Nosso
objetivo, ao abordar essa luta armada, não é o de penetrar no âmago de suas implicações, mas tão
somente o de evidenciar a evocação da ancestralidade bandeirante 5 , num momento que
particularmente reivindicava a afirmação de sentimentos altaneiros e desassombrados. Atentemo-
nos para a letra do Hino da Revolução Constitucionalista, de autoria de Octávio Médice:
Marchai Paulistas
Bandeirantes da nova cruzada!
Paulistas da terra de glória!
Erguei-vos pela Pátria sagrada,
Que o Brasil quer a nossa victória!
Piratininga! A tradição!
Dos nossos filhos corajosos
E a desejada salvação
4
Tal movimento é também conhecido como Guerra Cívica de 1932 ou Epopéia Constitucionalista de 1932.
5
Às páginas 49, 50 e 51 estão apensas representações imagéticas identificando os combatentes paulistas de 1932 com seus
ancestrais naturais, os bandeirantes. Trata-se de material comemorativo da Epopéia Paulista.
Dos brasileiros bravos e gloriosos!
Marchai, Paulistas!
Fortes soldados da lei!
Marchai, altivos!;
Nosso Brasil defendei!
Bandeirantes de valor!
Vede o nosso céu de anil!
Vossos peitos e a altivez do nosso amor,
São trincheiras da vitória do Brasil!
6
OLIVEIRA, F., Elementos para a história de São Simão, p. 339 e 340.
nos para o fato de que o autor da letra de Marchai Paulistas era um professor, um educador, que
no transcurso de sua própria formação escolar assimilara (e até muito bem, pelo conteúdo das
quadras escritas) a conotação heroicizante do bandeirante.
Até mesmo a concepção imagética dos livros didáticos atuais apresenta o sertanista
paulista como um homem alto, forte e viril, paramentado com chapéu de abas largas, botas altas,
gibão acolchoado e mosquetão. A expansão territorial lhe é atribuída em primeira instância,
qualificando-o como responsável pelas dimensões geográficas do Brasil. O corajoso desbravador
das matas é a figura primordial que se aloja no universo cognitivo dos educandos do ensino
fundamental, desdobrando-se no senso comum, onde se reproduz em dimensões consideráveis. A
reportagem publicada pela Revista Superinteressante (Abril/ 2000), aborda as bandeiras sob a
ótica acadêmica atual. O texto publicado apresenta como referências John Manuel Monteiro e
Sérgio Buarque de Holanda, enfocando os massacres de índios e missões jesuíticas, bem como o
apresamento e tráfico dos negros da terra. A capa da revista exibe mestiç os maltrapilhos,
encardidos e descalços, empunhando rústicas armas de fogo, encimados pelos dizeres:
Bandeirantes, a verdadeira cara dos conquistadores8 . Parece-nos óbvio que tal chamada de
capa não seria necessária, caso o grande público tivesse conhecimento dessa configuração dos
bandeirantes. Em outras palavras, a concepção dos bandeirantes como heróis agrestes e bem
paramentados parece estar bem disseminada na sociedade brasileira9.
Entendemos que negligenciar a aura mitológica que envolve o bandeirismo seria uma
omissão de nossa parte, embora não seja necessariamente o fulcro de nosso objeto de estudo. Por
esse motivo, detivemo-nos neste assunto até agora. Nossa intenção essencial foi desalojar o
bandeirante de seu nicho de glória, onde se torna difícil lobrigar o ser humano convencional.
7
À página 52, se encontra o brasão do estado de São Paulo, que à época da Revolução Constitucionalista sofreu uma
interessante modificação.
8
À página 53, capa da revista Superinteressante, edição de abril de 2000.
Fomos movidos pelo cientificismo, uma vez que nossa postulação centra-se na atividade física
proeminente do bandeirante-homem, não do bandeirante extra-humano, situado num patamar
onde seus feitos são exaltados e glorificados, em detrimento de sua condição não extraordinária.
As duas décadas que separam as fundações das vilas de São Vicente e Piratininga, são
fundamentais para que possamos entender claramente o surgimento do bandeirismo. Em São
Vicente, como já vimos no início deste trabalho, a navegação mercantil, estabelecida com a
Metrópole, supria a população de suas necessidades mais prementes. A cultura canavieira
propiciava poder de barganha aos vicentinos, ensejando uma rotina livre de carências profundas.
O açúcar garantia aos litorâneos mais abastados, proprietários de engenhos, a obtenção de artigos
importados e de escravos africanos.
Já a comunidade que se estabeleceu no planalto, experimentou desde o início um viver
adverso, que apresentava dificuldades novas, inexistentes na orla oceânica. Assim, os paulistas de
Piratininga praticavam a lavoura trigal de subsistência, produziam seu próprio vinho,
manufaturavam seu próprio tecido e apresavam índios para o trabalho escravo.
As características antagônicas dos povoados praiano e planáltico geraram sociedades
díspares. Os habitantes de São Vicente, em virtude da ausência de necessidades básicas,
vocacionaram-se para a afixação, para o sedentarismo; enquanto os planaltinos foram instados ao
movimento.
Na obra Caminhos e Fronteiras, Holanda aborda em minúcias o viver cotidiano na
Capitania de Martim Afonso, resgatando detalhes que revelam as adversidades enfrentadas pelos
paulistas, bem como as adaptações de costumes que ensejaram um universo misto, onde hábitos
indígenas e europeus se interpenetraram.
Na sociedade que se formou em Piratininga, nasceu o movimento bandeirantista, que
iniciou a adentrar as matas apresando índios. Nestas incursões iniciais, os caminhantes exploravam
9
Às páginas 54 e 55 capas de dois livros considerados clássicos do bandeirismo: História das Bandeiras Paulistas, ,de
Affonso Taunay e Curso de Bandeirologia, compilação de conferências de diversos autores.
as florestas relativamente próximas ao povoado, uma vez que seu objeto de caça, o indígena, era
suficientemente fácil de ser encontrado. Esta é a gênese oficialmente veiculada e aceita no que diz
respeito ao bandeirismo, com a qual somos cordatos, considerando que bandeiras foram
expedições organizadas com objetivos específicos. Por outro lado, no que tange ao movimento
humano, lançando vistas para os tempos da ocupação do planalto, percebe-se que os homens
que galgaram a Serra do Mar já haviam empreendido intensa atividade corporal. A região serrana,
durante vinte anos, fora obstáculo considerado quase intransponível, impedindo aos vicentinos o
avanço para o interior do continente. Vários autores já escreveram sobre a grande montanha, que
por duas décadas manteve completa inacessibilidade. No que diz respeito a este acidente
orográfico, os escritos transcritos abaixo parecem ser convergentes:
10
A escalada das escarpas da Serra do Mar envolveu quase a totalidade dos segmentos musculares dos corpos dos
caminhantes. Braços e pernas em movimentos díspares, mãos que agarravam tenazmente nos galhos, com a força imposta
pelo medo da morte. Pés que tateavam o solo, buscando o apoio mais seguro, evitando os elementos soltos. Cabeças que se
voltavam para cima e para os lados, esquadrinhando o ambiente, procurando o caminho menos perigoso. Alta secreção de
adrenalina, exacerbada sudorese, elevada freqüência cardíaca, grande ventilação pulmonar, fortes contrações miológicas,
acentuadas vascularização e oxigenação muscular, pronunc iado dispêndio energético. Todos estes mecanismos fisiológicos
levaram os homens que galgavam a serra a atingir seu objetivo, chegar ao altiplano.
Estamos abordando a transposição da Serra do Mar para evidenciar que o movimento
físico, foi na oportunidade realizado por indivíduos que ainda não eram considerados bandeirantes,
portanto homens desprovidos da aura épica do bandeirismo. Destarte, parece aclarar-se a
concepção de que o rendimento físico, presente nas bandeiras, foi um desdobramento natural de
dois espaços de tempo diferentes: num deles era preciso transpor a montanha, no outro era
necessário caminhar em busca de índios. Curioso é observar que os escaladores da grande serra
não são considerados pela historiografia ufanista do bandeirismo como membros da raça de
gigantes, mesmo tendo sido muitos deles bandeirantes posteriormente. A historiografia aponta o
movimento corporal como vocação específica do homem já instalado no planalto, atribuindo
notadamente tal peculiaridade ao bandeirantismo, desconsiderando a escalada da região serrana,
com todas as suas adversidades naturais. Corroborando estas reflexões, numa só frase
explicitamos nosso entendimento de que a mobilidade não é atributo apenas dos sertanistas do
planalto paulista. A história não é carente de exemplos que respaldam esta asserção. Em diversos
contextos históricos o desempenho corpóreo-motriz se fez proeminente, envolvendo homens de
tempos e etnias diferentes.
O movimento bandeirantista no Brasil Colonial insere-se como mais um elemento neste
extenso rol, que abarca uma vasta gama de etnias e motivações variadas. Os homens que
venceram a escabrosidade da Serra do Mar, na iminência do prorrompimento da ocupação
planáltica, não premeditavam a organização de bandeiras. Eram migrantes vicentinos, não heróis,
não bandeirantes, eram indivíduos que deixavam para trás o caranguejar no litoral – no
conhecido dizer de frei Vicente de Salvador –, buscando os cumes da penedia imponente.
Inusitados alpinistas coloniais, desprovidos de acessórios que lhes conferisse maior segurança na
escalada, confiando unicamente na força e destreza de seus braços e pernas. Pretendemos com
estas considerações, alhear os bandeirantes já assentados no Planalto da condição de detentores
de características físicas especiais. Vejamos o que escreveu Volpato: “A grande mobilidade das
bandeiras não pode ser explicada a partir de condições físicas especiais dos paulistas.”
(VOLPATO, 1985, p. 21)
Por bandeiras entende-se expedições organizadas visando o apresamento de índios e a
procura de minérios valiosos. Nestas expedições a intensa azáfama corpórea fez-se notória, porém
sem que isso possa facultar-nos a possibilidade de alçar o bandeirismo ao zênite da escala das
proezas físicas constantes na historiografia.
A gloriosa pujança da raça de gigantes provém em parte dos vicentinos que arranhavam
a costa como caranguejos, mas que acabaram por subir a Serra do Mar, usando suas frágeis
quelíceras 11 na admirável escalada.
Entendemos que a Serra do Mar foi um obstáculo extremamente difícil de ser transposto,
arriscando-nos ainda a refletir que talvez muito poucas vezes as bandeiras propriamente ditas
tenham enfrentado formações orográficas tão ásperas. Neste sentido, parece-nos razoável dizer
que os esforços físicos necessários para a ascenção em local tão abrupto e fragoso foram dos
mais notáveis do período colonial brasileiro, em face da diversificada performance motora que
envolveu a estrutura corporal dos ascensionistas, em termos literalmente globais. Não-bandeirantes
que lograram realizar uma tarefa que muitos bandeirantes jamais viriam a realizar, posto que em
tempos posteriores as expedições piratininganas já partiam do Planalto rumo ao interior do
continente, de costas para a Serra do Mar, uma grande muralha natural já vencida.
Na obra A economia paulista do século XVIII, Alfredo Ellis Júnior dedica o segundo
capítulo inteiramente ao propósito de ressaltar a existência de um lapso na historiografia que trata
dos primórdios de Piratininga, onde a Serra do Mar não é levada em conta, mesmo tendo sido um
elemento da natureza que influiu de forma suficientemente perceptível no contexto da Capitania de
São Vicente. Nesse texto, o autor faz observações enfáticas e extensas sobre a ausência de uma
abordagem que denote a relevância da Serra do Mar, enquanto elemento dificultador do acesso
ao Planalto.Inexiste na historiografia um trabalho que trate dessa questão a fundo, conferindo a ela
a significação devida. Citemos as palavras de Ellis:
Infelizmente, ao se estudar o passado paulista, não tem sido atribuída à
Serra do Mar a importantíssima função por este arestoso acidente
geográfico exercida na evolução do agregado humano localizado em
Piratininga. O estudo do passado da nossa terra vem sendo feito, como se
essa muralha orográfica não existisse (ELLIS, 1979, p. 65).
Embora a muralha orográfica tenha imposto esforços físicos acentuados aos primeiros
povoadores da Vila de São Paulo, a historiografia faz menções vagas sobre isso. A confragosa
cordilheira, que por vinte anos vedou o acesso dos litorâneos para o interior do continente,
aparece quase que obliterada na hist ória. Para isso contribuíram muito as enormes marchas
sertanejas, realizadas pelas bandeiras após a fundação de Piratininga. Tais empreendimentos, pela
característica recorrente de grandes distâncias percorridas a pé, ensombreceram a notável faina
11
Nome dado às patas dianteiras dos caranguejos, que são usadas para capturar suas presas.
física levada a cabo quando da transposição da montanha. Ao ascender à crista da grande serra,
os vanguardistas dos assentamentos planálticos venceram uma adversidade natural implacável, que
no entendimento de Ellis funcionou como elemento selecionador, que só permitiu aos homens mais
vigorosos chegar ao término da tarefa bruta:
Ellis aponta, de forma nítida e incisiva, para o importante papel desenvolvido pela
performance corporal na escalada das escarpas inclementes. O grande desempenho físico exigido
pelos paredões abruptos extrapolou os limites de não poucos homens, que se abateram pelo
desânimo, desistindo em algum ponto do traiçoeiro trajeto. Também não raros foram os que
despencaram das ravinas alcantiladas, encontrando a morte ao final da queda. Não aquinhoados
com elevadas qualidades corpóreo-motrizes, indispensáveis para o cumprimento completo do
escalamento, esses homens foram retidos pelo agigantado filtro seletivo da natureza. Ao escrever
que só saíram vencedores os mais bem dotados de músculos e de agilidade, Ellis tange uma
nota crua, incomum na historiografia, posto que as passagens históricas onde o corpo se ressalta,
via de regra padecem sob o dogmatismo acadêmico das explicações derivativas, que deslocam a
estrutura física humana para a orla dos fatos, como se ela não atuasse como fator significativo para
a mudança dos contextos sociais, que por sua vez são partes integrantes das contingências ou dos
processos históricos. Cabe aqui esclarecer nosso entendimento de que a historiografia necessita,
obviamente, dos elementos contingenciais, para alcançar a compreensão dos processos históricos
ou das conformações contextuais. Contudo, isso não se eleva como concepção antagônica ao
nosso viés de percepção dos fatos ou episódios históricos, onde vislumbramos o trabalho corporal
atuando como fator de relevante importância. A subida da Serra do Mar, abordada por Ellis de
forma minuciosa, promove o entendimento insofismável de que o rendimento dos corpos dos
escaladores foi fator determinante, para que o intento de chegar ao planalto fosse atingido. Mais
ainda, não apenas o rendimento dos corpos, como também suas particularidades individuais, de
caráter não apenas anatômico, mas também motriz.
Corpos ágeis e corpos fortes, arrostando a impassibilidade inerte dos vultosos penedos,
das enganosas anfratuosidades dos paredões retos, correndo o risco da queda, da precipitação no
vazio. Corpos inábeis e corpos débeis, drenados pelo suor profuso, extenuados pelas contrações
musculares sequenciais ... corpos que não chegaram ao fim da ascenção, perdendo a vida ou
desistindo.
Dadas as particularidades da áspera escalada, os homens que chegaram ao topo da serra
certamente sofreram escoriações corporais diversas. Trabalhando simultaneamente com braços e
pernas, arrastando o abdômen e tórax nas encostas, avançando como quadrúpedes no aclive
rochoso, os escaladores da montanha não escaparam de esfoladuras nos joelhos e cotovelos,
arranhaduras na parte frontal do tronco, cortes e luxações, devido a situações de contrações
musculares em posições anti-anatômicas.
As grandes escarpas, depois de vencidas, voltaram a obstar o caminho dos homens que as
haviam transposto, agora em sentido contrário. Vejamos as palavras de Ellis:
Dificultando pela sua aspereza o livre trânsito entre o planalto e o litoral,
fez com que a vila de Piratininga se voltasse inteiramente para o sertão,
onde o paulista ia buscar ‘o remédio para a sua pobreza’: o índio. Ou
pesquisar tesouros naturais de pedras e metais preciosos ... (ELLIS, 1989,
p.277).
CAPÍTULO II
ÍNDIOS: CICERONES E MESTRES DO SERTÃO
indígenas. Dessa forma, em primeira instância, a expansão das bandeiras foi auxiliada
pelas atividades caminheiras anteriores dos homens naturais da terra. Essas vias, por vezes
meros arremedos de acesso, serviam aos índios não apenas para sua locomoção em busca
de água, caça ou coleta de frutos, mas ainda para alcançar outras aldeias que pontilhavam a
mata. As andanças pelo continente começaram, portanto, muito tempo antes que as
embarcações dos portugueses atingissem as praias do Brasil. Não apenas os cascos do tapir
ou as patas da onça, mas muitos pés descalços já haviam pisado o húmus da floresta ou a
fragosidade dos campos, bem antes que a frota de Cabral zarpasse da Europa.
Especificamente sobre os Guarulhos, andejos do Planalto Paulista, observou Holanda:
Desses índios sabemos, por mais de uma referência, principalmente das
atas da Câmara paulistana, que eram andantes e sem pouso certo. Muito
caminho pisado mais tarde pelas bandeiras foi aberto e trilhado
inicialmente por eles, e assim terão contribuído para marcar de modo
definitivo a fisionomia da terra onde vagaram (HOLANDA, 1957, p.
33).
Caminhando com as pontas dos pés voltadas para frente e com os dedos
dos pés voltados para baixo, os índios conseguiam uma distribuição mais
uniforme do peso do corpo sobre as juntas dos pés e, com isso
conseguiam evitar o cansaço precoce e alongar mais as caminhadas
diárias. Estas transcorriam entre a madrugada e o entardecer
(VOLPATO, 1985, p. 66).
Também sobre a maneira indígena de caminhar, bem como sua eficácia ante a
exaustão, observou Holanda:
Pela metade do século XVII, profusa mataria cobria a região do atual estado de
Minas Gerais. Essa área, na época considerada sertão fechado e distante do Planalto
Paulista, apresentava, à semelhança dos arredores de Piratininga, significativo
entrelaçamento de veredas antigas, trilhadas pelos índios em tempos primevos. Respeitante
a isso, escreveu Barreiros:
Povoada por dezenas de tribos indígenas, essa área, que integra hoje o
Estado de Minas Gerais, era certamente cortada por trilhas infindáveis,
palmilhadas por ‘nações’ nômades de Tapuias, Pataxós, Tupimaés, e do
famoso Cataguá, além de tantos outros, em suas constantes andanças.
Sem a cooperação do chamado gentio manso, conhecedor desse
intrincado emaranhado de caminhos incipientes, teria sido difícil a
penetração do civilizado por aqueles sertões (BARREIROS, 1979, p.
05).
Destarte, suspeitamos estar claro que o avanço dos bandeirantes pelo sertão
incógnito contou com a importante colaboração dos indígenas, que familiarizados com as
tortuosidades, bifurcações e paralelismos das sendas , guiaram as expedições pelas brenhas
ínvias, por muitas vezes evitando que as marchas perdessem o norte. Por ignorar a
localização das sendas mais facilmente transitáveis, não raro as bandeiras enveredaram por
trilhas quase fechadas, nas quais perdiam tempo desbastando a galharia que obstava o
avanço, diminuindo o ritmo da marcha. No desbaste destes caminhos arremedados, o
trabalho físico era considerável. Usando facões e machados, os sertanistas, especialmente
os vanguardistas da expedição, empreendiam de sgastante atividade braçal, que aumentava
consideravelmente o cansaço corporal até ali advindo do caminhar. Para as muitas
bandeiras que contavam com índios conhecedores da trama formada pelas trilhas, o
avançamento era mais regular, uma vez que os caminhos menos incultos eram escolhidos,
sendo preteridos os menos batidos ou semi-abandonados.
A conformação das matas era familiar aos silvícolas, que sabiam onde estavam pela
observação das espécies vegetais e outros elementos. Sendo assim, se por vezes ocorria
adentrarem trilhas intransitáveis no ciceronear expedições, os índios, via de regra, não
tardavam muito em conduzir as tropas para uma via menos rústica. Uma determinada
árvore, uma pedra mais avultada, um toco à beira do carreiro ou um cipoal mais espesso; o
avistar de qualquer destes elementos comumente orientava os indígenas, não raro
indicando a proximidade de um trilheiro de melhor fluxo. Nessas oportunidades, os índios
guiavam as expedições no ato de abandonar a vereda, adentrando o mato fechado, onde
60
depois de caminhar desbastando certo trecho, apresentava -se uma trilha mais espaçosa do
que a anterior, possibilitando a marcha regular, sem interrupções12.
Em carta ao rei de Portugal, em 26 de outubro de 1725, já quando os sertões haviam
sido pa lmilhados nas mais diversificadas direções, escrevia Rodrigo César de Menezes: “É
certo senhor, que sem o gentio não podem os paulistas talhar os sertões”
(NDIHR/Documentos Ibéricos – Mfcha 15 – Doc. 750 – Anexo 02). Cumpre observar que
essa missiva ao rei foi escrita já no fim do primeiro quartel do século XVIII, mais de um
século e meio após as primeiras entradas.
Servindo-se da submissa assistência dos índios, os bandeirantes obtiveram
preciosas facilitações em seus deslocamentos pelos sertões. Destit uídas desta assistência
calcada na experiência agreste, as jornadas das bandeiras muito provavelmente sofreriam
importantes ações deletérias em seus avanços, ao revelar inabilidade em situações díspares.
Muito mais numerosos teriam sido os desnorteios na trama das matas, mercê da ausência
do conhecimento necessário para avançar, utilizando os referenciais naturais do meio
agreste.
A colaboração indígena nas expedições paulistas foi de fundamental importância.
No entanto, faz-se necessário salientar que muitos grupos nativos do Brasil empreendiam
suas andanças circunscritos à satisfação de suas necessidades, ou seja, locomoviam-se por
sendas específicas, que os conduziam à caça, à água e aos frutos nativos, essenciais à
sobrevivência. Em outras palavras, es tes grupos indígenas caminhavam por áreas restritas,
prescindindo de avanços maiores, uma vez que nenhuma necessidade os impelia. Quando
escrevemos áreas restritas não queremos dizer necessariamente áreas pequenas, mas
procuramos promover o entendimento de que as andanças de muitos grupos indígenas
ligavam-se diretamente ao abastecimento de víveres, restringindo-se a paragens
específicas, onde a obtenção era certa.
Dissociadas das bandeiras, as caminhadas indígenas eram reguladas pelo senso
tribal, obedecendo a fundamentos que visavam o sustento coletivo, que por sua vez era
configurado como nítida linha limítrofe em termos de distância. Nesse sentido, parece-nos
razoável observar que as marchas dos índios apresentavam padrões de finitude. Obtendo
água e alimento, encerrava -se o estímulo para a continuidade da locomoção. Já as
expedições bandeirantistas, especialmente as que buscavam riquezas minerais,
12
Apenas para avançar caminhando, excetuando-se outras situações de esforço físico, os bandeirantes,
guiados pelos ínidios, empreendiam atividade física que envolvia trabalho de membros superiores e
inferiores, ora simultâneo, ora alternado.
61
movimentavam-se muitas vezes sem padrões de finitude , uma vez que o objeto de sua
procura jazia desconhecido em algum lugar do sertão. Diferentemente dos indígenas - que
sabiam onde estava o regato para coletar água, onde era o carreiro do veado para caçá-lo -,
os bandeirantes concebiam previamente a possibilidade de percorrer extensões incertas,
ignorando a área onde seus objetivos poderiam ser eventualmente atingidos. Destarte, a
finitude do caminhar só se dava quando do encontro dos sertanistas com seu objeto de
busca. As expedições, portanto, operavam com a noção de distâncias desmedidas. As
longas jornadas a pé, empreendidas pelas bandeiras, de certa forma fizeram com que os
silvícolas nelas inseridos cobrissem distâncias maiores do que costumavam cobrir, quando
anteriormente palmilhavam determinadas áreas do sertão, buscando os elementos que sua
sobrevivência reivindicava. Ao trilhar distâncias mais amplas com as bandeiras, os índios
ultrapassavam os limites de seu primitivo território de ação, quando então os carreiros e
trilhas não mais lhes eram conhecidos. Nessa situação ulterior, onde sua faceta de
c icerones quase desaparecia, os indígenas continuavam contribuindo com o avanço das
expedições, especialmente com suas habilidades de encontrar água e alimento no ambiente
florestal.
A possibilidade de ficar sem água em suas incursões era uma das grandes
preocupações dos bandeirantes. Valendo-se da habilidade indígena, muitos paulistas foram
poupados de morrer de sede, mormente em regiões que não apresentavam minas ou
ribeirões. Os habitantes naturais da terra propiciavam aos expedicionários piratininganos a
presencialidade de situações inusitadas, onde técnicas aparentemente rústicas denotavam
grande eficácia. Como aprendizes ante doutos mestres, ainda que não o demonstrando em
termos atitudinais, os bandeirantes assimilaram ensinamentos valiosíssimos provindos dos
índios. No que diz respeito às maneiras utilizadas pelos indígenas para obter água,
escreveu Volpato:
... foi de valor extraordinário para os sertanistas as habilidades
desenvolvidas pelos índios em descobrir olhos d’água ou mesmo
córregos e algumas vertentes. Desde cedo os silvícolas aprendiam a
descobrir a existência da água pela configuração e coloração do
terreno, pela temperatura do vento e por outros sinais só perceptíveis
àqueles que tinham uma vida toda passada no sertão... (VOLPATO,
1985, p. 69).
A perícia indígena em encontrar água potável não se restringia apenas a minas que
afloravam da terra ou de rochas, bem como a riachos ou ribeirões. Outras possibilidades,
perceptíveis apenas aos sentidos apurados dos nativos, se revelavam em meio aos profusos
62
Vale aqui ressaltar a agudeza e a sutileza desta técnica nativa, que pela
reverberação do impacto no chão, captava através da percepção tátil, no empunhar o
cajado, a exata localização da raiz do umbuzeiro.
Em síntese, no que tange à obtenção de água e líquidos de efeito fisiológico
congênere, os homens naturais da terra foram de relevante importância para as bandeiras.
Não fossem os índios, muitos sertanistas, em especial os precursores, teriam cambaleado
nas matas ou pradarias do Brasil, antes de fenecerem vitimados pela sede.
Quanto à alimentação, a contribuição indígena para o avanço das expedições não
terá sido de menor monta. Falemos a princípio do mel, gênero que teve singular
importância para a manutenção da energia física dos sertanistas, mormente quando da
carestia de outros víveres. Muitos índios eram pronunciadamente experimentados nos
métodos de obter mel, sendo conveniente ressaltar que tal destreza não era generalizada.
Aqueles que demonstravam habilidade em localizar colméias eram denominados meleiros.
O rastreamento melífero era uma atividade notável, sobretudo aos olhos dos europeus.
Vejamos as palavras de Holanda:
64
Com o foco do olhar centrado na abelha, o índio servia -se da visão periférica para
aperceber-se dos troncos ou galhos maiores, dos quais desviava-se com notável destreza.
As ramarias mais finas eram ignoradas, sendo vencidas pelo próprio corpo em
deslocamento. A entomologia nos ensina que uma abelha pode se afastar vários
quilômetros de sua colônia, buscando o pólen para a feitura do mel. Considerando esta
asserção científica, faz-se razoável concluir que o meleiro por vezes empreendia corridas
de proporções significantes pela mata, ou seja, carreiras de proporções quilométricas.
Vale mencionar, sem contudo pretender inferir que isso configurasse grande
estorvo, que os meleiros levavam consigo machados e cabaças, instrumentos utilizados na
coleta do mel. Concernente a isso, escreveu Holanda:
Embora tais apetrechos não sejam necessariamente pesados, cumpre observar que o
volume por eles representado certamente contribuía para o aumento da dificuldade da
corrida, uma vez que a trama das matas não raro oferecia exíguos espaços úteis à passagem
do meleiro. Em síntese, corroboremos nosso entendimento de que a procura do mel era
uma atividade corporal notável, que exigia do índio destreza e agilidade. Entre o lobrigar a
abelha e o achado da colméia, desenvolvia-se uma situação de considerável desempenho
físico, singular percepção espaço-temporal e espantosa coordenação motora. Retornando
do âmago da mata, os meleiros entregavam aos paulistas não apenas o mel encontrado, mas
também um pouco de seu suor. Ao saciar-se com o precioso alimento produzido pelos
apídeos, os bandeirantes sorviam também uma parcela do suor dos índios, cujas mãos
molhadas haviam, a golpes de machado, retirado os favos dos ocos de pau.
Nos lugares ermos de caça, raízes comestíveis ou frutos, o mel manteve muitos
paulistas de pé, viabilizando a continuidade das marchas sertanejas. Sobre as áreas
desprovidas de outras opções alimentares, vejamos as palavras de Holanda: “Nesses casos,
66
o mel tornava -se o único remédio para a fome e a sua ausência significou muitas vezes a
última penúria” (HOLANDA, 1957, p. 58).
Os índios meleiros salvaram muitos bandeirantes da última penúria. Livraram
muitos paulistas da mais atroz das fomes, quando até mesmo sapos eram ingeridos sem
repúdio.
Além do mel, os índios ensinaram os bandeirantes a consumir uma grande
diversidade de gêneros vegetais e animais. Insetos, vermes e raízes faziam parte dessa
dieta, esdrúxula aos olhos dos europeus. Para sobreviver no sertão, os paulistas foram se
ajustando aos hábitos alimentares indígenas. Sobre isso observemos o que escreveu
Holanda:
... a acomodação à dieta alimentar dos primitivos moradores do país,
que constitui certamente resultado de um longo esforço de adaptação ao
seu clima e às suas condições materiais, terá favorecido qualidades de
energia e resistência, as mesmas qualidades que assinalariam os antigos
paulistas, por exemplo, em todos os recantos do Brasil (HOLANDA,
1957, p. 63). (o gifo é nosso)
estática de seu outro braço, que retém o arco à frente. Este antagonismo de movimentos,
propiciado por contrações musculares díspares, requer coordenação motora específica, que
só é adquirida com a prática constante. A assimilação deste trabalho motriz é fundamental
para que a flecha seja lançada certeiramente. O alvo na verdade só será atingido quando da
automatização destes movimentos opostos. Fazer pontaria, mirar a presa, torna-se
improfícuo se a oposição dos movimentos não se harmonizar, propiciando estabilidade à
arma nativa.
A harmonização do antagonismo miológico14 somente é obtida após a repetição
sucessiva, ou seja, é resultado de treinamento. Um arqueiro não treinado, ao fazer pontaria,
não sustém a arma com estabilidade, comprometendo a direção da flecha. A coordenação
motora dos membros superiores deverá estar destra, para que no ato de mirar, a flecha
parta com destino certo.
Esta concisa análise cinesiológica sobre o uso do arco e flecha ensejou-se, devido à
evidente situação de aprendizado corpóreo-motor vivenciada pelos bandeirantes. Buscando
a eficácia venatória, os bandeirantes, até então acostumados ao uso das armas européias,
submeteram seus corpos a novos padrões motrizes, adaptando-os ao manuseio do arco e da
flecha.
Pode-se dizer dos métodos indígenas de caça, que além de serem mais eficientes do
que os europeus, contribuíram para que pontos distantes do sertão fossem alcançados.
Expressemo-nos melhor: os bandeirantes conduziam a pólvora – necessária para municiar
armas de fogo – em caixas encouradas. Quando do esgotamento dessas reservas, ou mesmo
da deterioração decorrente da umidade, o uso dos métodos venatórios indígenas, já
largamente utilizados, tornavam-se a única opção no predar animais para a alimentação. Se
dependessem exclusivamente de mosquetes ou mosquetões, as expedições bandeirantistas
não teriam atingido paragens tão remotas.
Muitas bandeiras permaneciam meses e até anos no sertão, sendo que nessas
oportunidades não raro os artigos de munição acabavam, quando então, em exclusividade,
as armadilhas e armas indígenas obtinham a caça, alimentando os expedicionários e
propiciando a continuidade da caminhada.
Suspeitamos que as linhas escritas acima denotem certa redundância de nossa
parte, apesar das diferenças vocabulares. No entanto, nossa intenção foi a de corroborar em
13
Respeitante à Cinesiologia, ciência que estuda o movimento humano.
14
Relativo à Miologia – estudo dos músculos.
70
ressalto a significativa contribuição dos métodos de caça nativos, fundamental para que as
mais extensas marchas fossem cumpridas.
Se nas práticas de caça os índios foram de fundamental importância, o mesmo não
pode ser dito quanto à pesca. Os estratagemas nativos incluíam espinhos e plantas tóxicas.
Ambos os procedimentos foram suplantados pelo anzol e pela rede, mais eficientes,
trazidos do Velho Mundo. Dos espinhos curvos os peixes escapavam com relativa
facilidade, sendo que a intoxicação ictiológica com tirigui e timbó foi restringida, pelo fato
de matar um número de peixes muito maior do que o necessário para o consumo.
Na alimentação frugívora, os nativos da terra ensinaram aos paulistas a utilização
do palmito, do pinhão, do araçá, do ananás, da guabiroba, do araticum, da jabuticaba, do
jataí,etc. Impelidos para o viver agreste, os bandeirantes foram viandantes de significativa
performance corpóreo-motora, vencendo distâncias espantosas. O desempenho físico dos
sertanistas de São Paulo, ainda que considerado o contexto em que estava inserida a Vila
de Piratininga, parece-nos ter sido no mínimo notável. Quanto à regularidade cotidiana das
marchas bandeirantistas, escreveu Taunay: “Descontadas as falhas, a bandeira poderia
facilmente caminhar 40 quilômetros diários” (TAUNAY, 1950, p. 61).
John Manuel Monteiro comenta, na obra Negros da Terra, a expedição de Raposo
Tavares, que cumpriu dez mil quilômetros, saindo de São Paulo, atravessando o Mato
Grosso e o Paraguai, adentrando novamente o Brasil pela Amazônia e alcançando
finalmente Belém do Pará, nas extremidades do norte do país. Domingos Jorge Velho,
antes de atacar Palmares, deslocou-se seis mil quilômetros do Piauí a São Paulo (visando
recrutar homens), e de lá retornando ao Nordeste, onde após dizimar aldeias tapuias iniciou
as investidas contra o quilombo liderado por Zumbi.
Fernão Dias Paes, passou os últimos oito anos de sua vida no sertão, morrendo na
barranca do Rio das Velhas, já longevo, aos 73 anos.
Incontáveis outros exemplos de ingentes esforços corporais constam na
historiogra fia do bandeirismo. A história do bandeirismo é sobretudo uma extensa crônica
de corpos em movimento. Nessa cena de intensa motricidade são escassos os corpos
estáticos. O movimento era a regra dos paulistas, sendo o sedentarismo a exceção.
De finitude imprevisível, as marchas bandeirantistas encontraram nos silvícolas
inestimáveis orientadores. Observemos as palavras de Holanda:
Em São Paulo, cuja população, particularmente a população masculina,
se distinguiu durante todo o período por uma excessiva mobi lidade, a
mistura étnica e também a aculturação, resultante do convívio assíduo e
obrigatório, seja durante as entradas, seja nos sítios de roça, deram ao
71
Sem os índios, as bandeiras não teriam realizado marchas tão notáveis. Sem os
índios, as bandeiras não teriam concretizado feitos de grande envergadura, tão decantados
na historiografia ufanista. Mais ainda, entendemos que em situações diversas os índios
foram os protagonistas de muitos devassamentos, colocando os paulistas como
coadjuvantes ou meros expectadores, ante a argúcia e a prática de quem sempre viveu nos
sertões.
72
CAPÍTULO III
15
Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa.
73
16
Onças pintadas, onças negras e suçuaranas (onças pardas).
74
Essas palavras, escritas na terceira década do século XVII, expõem de forma clara
que os assaltos dos sertanistas de Piratininga se caracterizavam predominantemente pelo
viés da aniquilação inicial de índios e padres, num furor predatório que imolava
considerável número de pessoas, antes que o apresamento propriamente dito se
consumasse. Sobre isso, na obra Capítulos de História Colonial, escreveu Capistrano de
Abreu:
... À primeira investida morrem muitos dos assaltados e logo desmaia -
lhes a coragem;os restantes, amarrados, são conduzidos ao povoado e
distribuídos segundo as condições em que se organizou a bandeira
(ABREU, 1982, p. 114).
Esta citação de Monteiro aqui é feita tão somente visando a elucidação das
características fortemente tendentes ao militarismo, presentes nas bandeiras de
apresamento até aproximadamente 1640. Milícias armadas e estratificadas
hierarquicamente invadiam as reduções, observando o cumprimento de estratégias
previamente elaboradas, empunhando bandeiras18 e tocando caixas de guerra. Eram
regimentos de combate em primeira instância, que chacinavam primeiramente um
determinado contingente do inimigo, incutindo pavor nos sobreviventes, que eram o
objetivo principal do ataque. Na obra Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens
de São Paulo, Monteiro escreveu sobre o triste destino de alguns índios no trajeto entre o
17
A gente do povo são os índios da redução em questão.
18
Aqui o termo tem seu significado mais usual.
75
local de apresamento e o planalto paulista. Quanto a isso faremos menção adiante. Ainda
sobre o ataque dos bandeirante s à redução de Jesus Maria, vejamos a continuidade da
narrativa de Montoya: “Resolveram os inimigos queimar a igreja ... por três vezes atiraram
setas inflamadas ... o fogo fez, na quarta tentativa, a presa irremediável na palha da igreja”
(MONTOYA,1985, p. 244).
Lembremo-nos que a igreja estava apinhada, acolhendo a gente do povo em seu
interior, que para lá havia confluído quando do início da sanha assassina dos
expedicionários de São Paulo. O ato de incendiar o edifício propiciaria sua evacuação
forçada ou mesmo queimaria vivas as não poucas pessoas que lá se abrigavam do caos
exterior. Acuados pela fumaça e pelo calor que se adensavam, religiosos e índios foram
tomados pelo mais paroxístico desespero. No desnorteio coletivo, um impasse implacável
se apresentava: lá fora estavam à espera o chumbo, o aço ou na melhor das hipóteses o
apresamento; cá dentro as labaredas se avultavam rapidamente, cascatas de palhas
chamejantes caíam do teto, onde as vigas eram já de um vermelho vivo e incandescente.
As toras das paredes em pouco seriam grossos cilindros em brasa, que tombariam ao chão.
A morte por incineração seria uma amarga escolha, uma escolha praticamente impossível
de ser feita, dado seu caráter indizivelmente doloroso. A opção pelo abandono da igreja se
deu causada pela fuga do fogo. A porta principal do templo estava em chamas, restando
aos apavorados índios e jesuítas a saída por um baixo portão secundário. Destramelando-o
e passando em fila pela estreita abertura, muitos indígenas encontraram um hediondo fim
do lado de fora. Vejamos as palavras de Montoya:
Abriram então um portãozinho, pelo qual saíram os índios ... Com isso
acudiram ao mesmo portãozinho, como possessos pelo demônio, aqueles
tigres ferozes 19 e começaram, com espadas, facões e alfanges, a derrubar
cabeças, matando com a maior brutalidade ou barbaridade já vista no
mundo (MONTOYA, 1985, p. 244 e 245).
Fugindo do fogo, saindo em fila pela exígua passagem que conduzia para o exterior
da igreja, os índios foram trucidados pelos bandeirantes. A cena descrita pelo autor de A
conquista espiritual não nos sugere nenhuma espécie de confronto, nenhuma espécie de
refrega ou batalha. Aponta sim para um episódio onde vários assassinatos foram cometidos
por homens armados, cujas vítimas – adultos 20 e crianças – saíam desnorteados de um
19
Aqui MONTOYA (1985) se refere aos bandeirantes como tigres ferozes, numa alusão alegórica a
predação e violência presenciada por ele na redução de Jesus Maria.
20
Sendo os índios adultos de ambos os sexos mercadorias valiosas no planalto paulista, é provável que
fossem muitos deles poupados da morte, sem que isso possa conferir segurança para que afirmemos que não
foram muitos os assassinados.
76
que medeia entre os setecentos e o início do século XXI, requerem uma postura científica
cautelosa quanto à essa questão da terminologia e suas concepções, que se flexibilizam no
decurso dos anos, apesar de, via de regra, as acepções literais das palavras serem mantidas.
Fazemos estas reflexões tão somente para evidenciar nossa preocupação no que
concerne ao cuidado em não lançarmos insinuações atemporais, desprovidas das
indispensáveis implicações históricas que envolveram as bandeiras, neste caso as
específicas de caça ao índio. Imiscuir qualquer conceito ou juízo de valor contemporâneo
ao abordar o Brasil Colonial, certamente resultaria num desmonte de qualquer arremedo de
compreensão do período em pauta. Nesta tarefa, a inserção desavisada de qualquer código
de conduta hoje concebido coletiva e tacitamente, ainda que não expresso na formalidade
das leis, evocaria, mesmo que involuntariamente, o anacronismo. Neste caso, o embuste
historiográfico se consumaria, ao limitar os atos dos homens do passado entre as raias que
balizam o comportamento dos homens de hoje. A mentalidade – mesmo levadas em conta
as permanências – é outra, os padrões sociais não são iguais, e o mais importante: os
contextos hitóricos não são similares, com toda a sua carga multifacetada de contingências
e fatores determinantes.
Os bandeirantes eram homens de sua própria época, regidos por peculiaridades
históricas específicas, onde o fator econômico desempenhou um papel preponderante. Os
maltrapilhos que habitavam a vila de São Paulo, logrando superar a carestia profunda de
suas vidas, lançaram-se ao sertão, tornando-se caminhantes de inusitadas longitudes. A
mentalidade dos bandeirantes também apresentava traços singulares, produto do
antagonismo entre a violência desenfreada e o catolicismo dogmático. Tementes a Deus,
mas descumpridores dos principais ditames do cristianismo, escoavam suas vidas de forma
mundana, escravizando, torturando, estuprando e matando. Escreveu Montoya: “Não há
dúvida que tenham fé em Deus, mas são do diabo as suas obras” (MONTOYA, 1985, p.
244).
Essa dialética traduzia -se na presença de capelães nas expedições. Estes não se
apresentavam trajados para confrontos, mas sim envergando hábitos religiosos, com
alentados terços e cruzes pendentes a cingirem-lhes as cinturas. Abordaremos adiante, em
maiores comentários, a função desses clérigos nas bandeiras. Em Entradas e Bandeiras ,
Volpato faz comentários interessantes sobre a relação dos sertanistas paulistas com a
espiritualidade cristã. A síntese das palavras dessa autora aponta os paulistas como homens
que pareciam buscar a reconciliação com Deus já à beira da morte. Exauridos da
juventude, rememorando as vilezas cometidas ao longo dos anos, os bandeirantes
78
assim: “O próprio João Leme da Silva (um dos irmãos Leme) não morreu no cadafalso mas
cristãmente?” (RICARDO, 1942, p. 211). Sobre Jorge Velho, o homem que chefiou a
matança e a degola de quase três centenas de tapuios, além de literalmente reduzir a
pedaços o corpo de Zumbi, dizimando ainda nas refregas de Palmares mais de duzentos
negros, escreveu Ricardo:
... o próprio Domingos Jorge doando, em testamento, trinta das suas
fazendas de criar em favor dos jesuítas do Colégio da Baía, com o ônus,
verdadeiramente cristão, de que as rendas se destinassem, também, ao
amparo das viúvas indigentes (RICARDO, 1942, p. 220).
Aqui, o autor de A conquista espiritual, afirma que o capelão procede não apenas
de forma alheada ao que ocorre à sua volta. O saque após a abordagem hostil é feito pelos
bandeirantes, ao mesmo tempo em que o beatão se aproxima de um padre da redução,
iniciando um colóquio sobre as coisas de Deus. A vilania do assalto dos paulistas, em
pleno curso, parece não lhe dizer respeito. A ação que se desenrola em sua presença, com
todas as suas implicações anti-cristãs, não tolhe sua iniciativa de conversar com o padre da
redução sobre práticas religiosas e espirituais, que em seus propósitos doutrinários
promovem a asce nção do homem. Abstraído do ataque promovido por seus companheiros
de marcha sertaneja, o capelão age com placidez em meio ao apresamento que se consuma.
O germe da escravização está sendo gestado em concomitância com a palestra sobre os
ditames divinos, iniciada pelo capelão ante o desconfiado e estupefato jesuíta da redução
invadida. Além desta postura nada clerical, que aparentemente ignora atos condenáveis –
aos olhos da Igreja – acontecendo ao derredor, o beatão mencionado por Montoya ainda
finge que reza o terço, quando na verdade está contando os índios que estão sendo
aprisionados, para então calcular quantos escravos terá para si na hora da partilha. Vale
observar, portanto, que Montoya imputa ao capelão o desonroso procedimento de religioso
que anseia pela mão-de-obra indígena. Um homem com o rosário nas mãos, passando as
contas com os dedos ávidos ... cada conta um índio, cada conta um escravo. Quanto mais
peças aprisionadas, maior sua fração quando da distribuição delas entre os membros da
expedição.
Não sendo propriamente um agente ativo do apresamento, o capelão bandeirantista,
82
com seu procedimento conveniente, apresenta -se como um elemento apresador passivo,
uma vez que não denota, de forma alguma, estar em discordância com os objet ivos
elementares dos bandeirantes. Isto num primeiro momento, pois ao receber sua cota de
presas após os ataques, o beatão demonstra de forma explícita sua concordância ou
anuência em relação à captura e escravização dos silvícolas. Analisando por outro pr isma,
considerando sua participação como membro efetivo da expedição, que tendo partido de
São Paulo, marchou pelas matas e deu caça aos índios, julgamos razoável o entendimento
de que ele – o beatão ou capelão – era também um expedicionário apresador, posto que
figurava nas fileiras de uma corporação organizada, que tinha como único fim o
apresamento dos autóctones. Em qualquer das duas proposituras, percebe-se às escâncaras,
que a presença formal da figura do religioso não inibia a atitude comumente atroz,
verificada no bandeirismo apresador.
A inclusão do capelão nas bandeiras foi concebida em estreita relação com a
necessidade de conciliar os sertanistas com Deus, a despeito de seus atos reprováveis
perante a doutrina da Igreja Católica. Destarte, torna -se compreensível – lembrando que
aqui nosso propósito não se alicerça no julgamento – a postura do beatão, quando
demonstra em suas maneiras aparentemente não notar os crimes perpetrados em sua
presença. Sua função não era sofrear a ação dos paulistas através de palavras ou ações. Na
verdade, em termos práticos, qualquer cerceamento ao comportamento dos expedicionários
implicaria em procedimento antagônico ao objetivo primordial da empresa. Os
bandeirantes embrenhavam-se pelas matarias para capturar índios, considerando
previamente todos os aspectos concretamente tangíveis da jornada. Não estava inclusa nas
deliberações dos paulistas todo o sentido abstrato da fé cristã, quando da organização de
uma bandeira escravizante. O que precisasse ser feito seria feito, desde que a mão de obra
silvícola fosse trazida do sertão. Nenhuma outra implicação sobrepujava esta ordem de
idéias, bastando para isso constatar na historiografia as abundantes chacinas que vitimaram
os indígenas à época das bandeiras, sobretudo no século XVII. Conhecedores dos
principais preceitos do cristianismo, mas também sabedores de que esses preceitos
limitariam suas práticas homicidas e escravocratas, os paulistas encontraram uma saída
singular, um escape pelo viés do perdão posterior , formalmente concedido por um homem
de Deus. A presença do capelão nas expedições foi engendrada desta forma, onde ficou
estabelecido entre os homens de armas e o representante de Deus o entendimento tácito de
que os primeiros eram caçadores de gente, sendo o último responsável pelo ato da
reconciliação dos primeiros com Deus. Pacificar as mentes atormentadas por muitas e
83
implacáveis culpas, esse era o trabalho do capelão nas bandeiras. Isso fica muito claro em
Ricardo, onde o apologismo aos bandeirantes mescla -se indissoluvelmente à uma
desvelada hostilidade ante a religiosidade propalada pelos jesuítas, carregada de
conotações limitantes à violência. É nítida a aversão desse autor, no que concerne ao
balisamento da liberdade de ação apregoado pelas convenções cristãs.
Nada de rédeas, nada de freios dos beatões , capelães ou padres. Interessava aos
paulistas apenas o arrefecimento de seus tumultuosos conflitos interiores, gerados por uma
vida contumazmente sanguinária. Quanto a isso, observemos os escritos de Ricardo:
Precisava o bandeirante de alguém que lhe passasse esponjas na alma e
recorria ao capelão como quem recorre àquele que nascera pra esse fim:
perdoar em nome de Cristo. Si o padre não tivesse essa função
misericordiosa de perdoar, então que fosse às urtigas. Sua função
obrigatória era ‘descarregar a consciência’ ao sertanista atormentado.
Fizesse isso e teria cumprido o seu dever (RICARDO, 1942, p. 222) (o
grifo é nosso).
Sobre a sanha dos bandeirantes quando dos ataques às reduções de Santo Antônio e
são Miguel, deixou escrito o padre Montoya:
...Entraram a som de caixa e em ordem militar nas duas reduções de
Santo Antônio e são Miguel, destroçando índios a machadadas. Os
pobres dos índios com isso se refugiaram na igreja, onde os matavam –
como no matadouro se matam vacas - , tomaram por despojo as
modestas alfaias litúrgicas e chegaram mesmo a derramar os santos
óleos pelo chão (MONTOYA, 1985, p. 126).
Se o modo de vida dos padres da Bahia já não era muito aprovado por Nóbrega em
1549, menos ainda dignificante era o modus vivendi dos religiosos afixados em São
Vicente, como teve oportunidade de constatar o mesmo e iminente Nóbrega em 1553,
86
portanto cinco anos depois de seu estarrecimento ante os padres do Nordeste. Observemos
o que escreveu Nóbrega:
Dos dez padres de missa que lá havia, ‘só dois ou três não tem sete ou
oito filhos como os outros’, e esses mesmos dispunham de serralhos de
‘cinco índias ou seis índias de má vida’. Havia dez anos que um deles
não subia ao altar; outro, idem, há coisa de três ou quatro, e aos outros
mais lhe valia não celebrar (NÓBREGA apud NEMÉSIO, 1971, p. 271)
Observa -se aqui que tais clérigos tinham débitos anteriores não apenas com a
Igreja, mas também com a justiça majestática. Esses homens de sotaina aportavam no
Brasil em número cada vez maior. Para verificarmos isso, observemos ainda estes escritos
de Taunay:
A imigração de clérigos maus chegou a tomar tais proporções que em
1709 motivaria uma carta régia de Dom João V proibindo a passagem
ao Brasil desses homens sem licença real ‘pelo grande dano e
pertubação por eles causados nas minas para onde logo passavam’.
Uma vez lá zombavam das ordens de despejo que lhes eram intimadas
pelos governadores do Rio de Janeiro. Assim se exigiria de todos os
mestres de embarcações partidas do reino e das ilhas a decalração
formal de que não transportavam religioso clandestino, sob pena de
multa de dois mil cruzados (TAUNAY, 1936 p. 279).
No que diz respeito aos ataques paulistas e à condução dos cativos ao planalto
vicentino, escreveu o mesmo autor: “... seu rastro sendo reconhecido pelas aldeias
incendiadas e pelos cadáveres que juncam a floresta” (HAUBERT, 1990, p.157).
Montoya escreveu sobre os padres Simão Masseta e Justo Mansilla, que em janeiro
de 1629 acompanharam os bandeirantes e os índios apresados em Santo Antônio e São
Miguel, quando da marcha rumo a São Paulo. Observemos suas palavras:
Aos mortos que ficavam pelos caminhos, não era possível enterrá-los.
Tendo percorrido quase trezentas léguas a pé, chegaram à Vila de São
Paulo... (MONTOYA, 1985, p. 127).
Sobre o retorno desta mesma bandeira ao planalto paulista, acompanhada pelos dois
jesuítas já mencionados escreveu Volpato: “... não restam dúvidas sobre a grande perda de
prisioneiros pelo caminho” (VOLPATO, 1985, p. 82).
As expedições de apresamento, quando de retorno ao planalto e bem sucedidas em
termos de quantidade de apresados, deixavam nas matas uma trilha onde pontilhavam
homens mortos. Isso fica claro em Montoya, Volpato e Haubert. Uma trilha fúnebre,
lúgubre. Uma trilha de defuntos, um caminho de cadáveres.
Também sobre a triste marcha dos índios escravizados, citando partes do relato de
um jesuíta de nome não mencionado, escreveu Monteiro:
A longa caminhada até São Paulo prometia horrores adicionais, ‘como
matar os enfermos, os velhos, aleijados e ainda crianças que impedem os
pais ou parentes a seguirem viagem com a pressa e expediência que eles
pretendem e procuram às vezes com tanto excesso que chegaram a
cortar braços a uns para com eles açoitarem os outros’. Outro padre
denunciou que os paulistas se comportavam com tanta crueldade que
91
Todos estes horrores até aqui abordados – desde as chacinas dos ataques, passando
pela omissão dos beatães e culminando com a jornada até São Paulo –, incutiram um
sentimento de medo profundo nos silvícolas das missões, como também em muitos dos
missionários inacianos. A expectativa e tensão, ante a iminência ou irrompimento
inesperado de uma investida paulista era um sofrimento diário. A qualquer momento podia
acontecer o pior. Uma sombra de pressaga aflição pairava sobre as reduções do Guairá. De
uma hora para outra podia ser desencadeada a desolação completa, trazendo a morte e a
escravidão. Vejamos sobre isso as palavras de Haubert:
Durante muitos anos, a vida cotidiana das famílias reunidas pelos
jesuítas é dominada pelo medo dos mamelucos, pelo terror das
pilhagens, pelo horror das aldeias incendiadas. A vida cotidiana se
resume em neófitos fugindo precipitadamente para a floresta e que, para
evitar ser capturados, amarram o focinho dos animais domésticos e
cortam a língua dos galos. A vida cotidiana é aquela velha que ficou
sazinha em sua aldeia e se enforca de desespero (HAUBERT, 1990,
p.158).
Esse denso suspense, além de pôr os índios em sobressaltos, serviu para alimentar
as tendências místicas de não poucos jesuítas, que passaram a conotar os bandeirantes
como asseclas de Satã. No que concerne a essa questão, escreveu Haubert:
Alguns missionários contam que, à aproximaçao dos mamelucos, viram
lágrimas ou suor aflorarem nos quadros e estátuas da igreja. Por vezes,
o próprio diabo se encarrega de trazer o presságio funesto, aparecendo,
por exemplo, sob a aparência de um mameluco. É verdade que, por outro
lado, ele assume o aspecto da Rainha do Céu para impedir o êxodo!
(HAUBERT, 1990, p.158).
como ideal em termos coletivos, é certo que os jesuítas do Brasil Colônia até mesmo
cultivavam intencionalmente seus valores e idéias, incluindo aí a atitude contemplativa
fatalista e entenebrecida. Se o retorno completo à espiritualidade medieval já não era
possível, fazia-se necessária a preservação, bem como a disseminação de seus dogmas
mais proeminentes, dentre eles a idéia de que o homem, em certas circunstâncias, tornava -
se títere de influências transcendentais trevosas e malfazejas.
Sendo esta uma questão de história de longa duração ou não, de permanência de
mentalidades ou não, entendemos que o elemento facilmente perceptível no Guairá foi a
presença de um acentuado terror supersticioso entre alguns missionários. Adicionado a isso
estava o medo concreto da violência concreta, o pavor quase tangível da destruição
palpável, promovida por sertanistas nada abstratos, nada extranaturais. Índios e
missionários, transidos de horror sobrenatural e horror emanado dos domínios do real.
Medo de homens e medo de entidades sinistras. Uns sobressaltados e tensamente alertas,
outros acabrunhados e sorumbáticos, à beira do desespero. As tropas de São Paulo
ressurgiriam novamente, da mesma forma que havia acontecido tantas vezes.
Das treze reduções do Guairá, os paulistas haviam destruído onze. As duas
remanescentes eram as de Loreto e San Ignácio. O clima coletivo de soturna aflição, nessas
povoações, era quase insuportável. Naqueles dias, o provincial, padre Francisco Trujillo,
havia visitado a região do Guairá, tendo presenciado pessoalmente o recente e fulminante
ataque bandeirante à redução de São Francisco Xavier, ficando estarrecido ante os atos
aberrantes lá cometidos. O provincial ordenou então aos líderes missionários, entre eles
Ruiz de Montoya, que metodicamente se organizassem para evacuar Loreto e San Ignácio,
quando da aproximação dos apresadores oriundos do planalto paulista. Imediatamente,
num posto avançado, foi colocada uma sentinela. Os aprestos para a partida foram
iniciados. Os índios dispuseram seus pertences e criações, de modo a agregá -los sem
demora, quando do limiar da jornada. Quando do aviso da sentinela, que vigiava suficiente
e estrategicamente distante das reduções, missionários e índios teria m tempo hábil para
tomar as providências necessárias para a retirada, com segurança e desafogo, segundo as
palavras de Montoya. Porém, o estado espiritual ou emocional das reduções, era
periclitante, não permitindo que ninguém agisse desafogadamente . Fatal e finalmente, o
que era um agouro angustioso e impalpável fez-se iminência de concretude, através do
aviso da sentinela, que esbaforida chegou às reduções, relatando a aproximação dos
destruidores do gênero humano 21, os bandeirantes.
21
Assim MONTOYA, Antônio Ruiz adjetivou os bandeirantes em Conquista Espiritual, p. 125.
95
Através dessas palavras do jesuíta, torna-se fácil detectar, mais uma vez, que a sua
mentalidade era impregnada pelas permanências medievais. Ele procurou pelo cometa, mas
não o achou. Optou então por escrever sobre uma suposta sudorese observada numa
imagem. O céu não dera sinais, mas a imagem sim, suando prof usamente. O evento
derradeiro para ele estava próximo, pois o sinal havia sido dado. Em sua procura pelos
sinais, Montoya assumiu, em termos atitudinais, o arquétipo do homem da Idade Média.
Sobre as aflições advindas da observação dos sinais da natureza no medievo,
escreveu Duby:
Tudo o que parecia ser um desregramento na natureza era cnsiderado
um sinal, anunciando os tormentos que deviam preceder o fim do mundo.
97
22
Por ser necessariamente minudente, a explicação sobre este desencadeamento de mecanismos fisiológicos
encontra-se em anexo às paginas 146 a 150.
98
sentinela, que quando ocorreu, deu ensejo ao irrompimento coletivo de uma intensa faina
ou azáfama, conseqüência direta do desencadeamento de mecanismos fisiológicos
específicos, que puseram aqueles corpos em sôfrega motilidade, buscando o mais rápido
possível adiantar -se em grande distância de seus ignóbeis perseguidores. Vejamos as
palavras de Taunay:
Certo que a situação no Guairá era insustentável apressara Montoya o
êxodo geral de seus índios de Loreto e Santo Inácio, únicas reduções que
ainda subsistiam das treze recentemente florescentes. E o fez
embarcando os seus gentios, nada menos de doze milhares de guaranis,
em setecentas jangadas e canoas. As onze aldeias destruídas, contavam
ao seu dizer, para cima de 33 000 habitantes (TAUNAY, 1951, p. 53).
próprias. A escassez alimentar foi por vezes extrema, quando alguns índios chegaram a
comer coisas inusitadas. Moléstias insidiosas acometeram grande quantidade de retirantes.
Mortes decorrentes da predação de felinos selvagens, afogamentos e exaustão total. Esse
rol de eventos foi a tônica do cotidiano dos fugitivos do Gauirá. Vejamos as palavras de
Haubert:
A história desse êxodo foi contada várias vezes: o abandono das terras
ancestrais, das reduções já florescentes ... o naufrágio das embarcações
improvisadas, a caminhada penosa pela floresta para contornar as
quedas do Paraná, as crianças, os anciãos, os enfermos carregados ou
arrastados por várias léguas, os ataques das jibóias e dos jaguares, a
fome, a epidemia de disenteria, os missionários magros que usam o
resto de suas forças para impedir que as ovelhas se entreguem ao
desespero, o risco de choque com os colonos, que querem impedir essa
emigração de mão de obra, e finalmente a chegada às antigas reduções
do Paraná. Mas, ainda nessas missões, a fome e a epidemia aguardam os
neófitos: são obrigados a se alimentar de pedaços de couro, sapos,
serpentes; as crianças brigam pela pouca comida ... os pais desenterram
as sementes nos campos. Dez a doze mil pessoas haviam abandonado o
Guairá; apenas quatro ou cinco mil sobreviveram à provação
(HAUBERT, 1990, p.158).
Fugindo dos paulistas, os retirantes do Guairá quase se viram apresados por outros
inimigos, os colonos espanhóis que habitavam a região, afixados nas proximidades das
Sete Quedas do Paraná. Uma emboscada havia sido armada, visando o assalto apresador
“...num espaço estreito e perigoso, próprio do célebre salto do Paraná ...” (MONTOYA,
1985, p. 136 e 138). Vindo a saber do caso com antecedência, para lá se adiantou sozinho o
padre Montoya, “...numa embarcação ligeira” (MONTOYA, 1985, p. 138). O inaciano
deliberou com os espanhóis, pedindo que deixassem ele e seus índios seguirem caminho,
sem nenhuma concessão conseguindo obter, sendo inclusive ameaçado com cinco espadas
101
postadas contra o seu peito. Retornando para a sua gente, o jesuíta detalhou o ocorrido,
tendo sido consensualmente decidido que dois outros padres se adiantariam até os colonos,
para convencê-los através da parlamentação, o que também se revelou infrutífero.
Aconteceu por fim uma terceira tentativa, com Montoya se fazendo acompanhar por outro
clérigo. Dessa feita o colóquio tomou outro tom, com Montoya dizendo que forçaria
passagem a qualquer custo, conduzindo seu numeroso contingente em prontidão para o
confronto. Num rompante temerário, o jesuíta praticamente fez uma declaração de guerra
aos colonos espanhóis. Naquele dilema crucial, as alternativas não eram muitas e exigiam
atitudes rígidas. Era preciso continuar fugindo do tempestuoso dilúvio. A questão era vital.
As deliberações com os espanhóis incluíram também informações sobre a aproximação dos
paulistas, que certamente destruiriam aquele núcleo apresador adversário. Já não mais
senhoriais como antes, mas temerosos e reticentes, os colonos ouviam de Montoya frases
diametralmente opostas às de sua primeira visita. Vejamos o que deixou escrito o
missionário do Guairá:
Aproximando-me de um homem, que ali tinha sua mulher, avisei-lhe que
a afastasse desse lugar, para que naquele dia não se contasse entre os
mortos uma pessoa feminina (MONTOYA, 1985, p. 138).
requer um dispêndio de energia física bastante considerável, mesmo para homens robustos,
saudáveis e bem alimentados. Sabemos que a alimentação, no episódio que ora abordamos,
não era necessariamente satisfatória; pelo contrário, havia escassez de víveres. É certo que
os retirantes se exauriram significativamente nessa caminhada desolada, que Taunay, como
já vimos, qualificou como terrível marcha onde muita gente pereceu. Entre o contingente
móvel constavam anciãos e crianças, que certamente cumpriram o trajeto muito
penosamente; os primeiros pelas limitações impostas aos seus corpos pela provecta idade,
e os últimos pelos ingentes esforços exigidos de seus organismos ainda precoces. Homens
de idade avançada, marchando recurvados sob o peso dos anos, sentindo dores lancinantes
em suas articulações desgastadas, experimentando a fadiga muscular e respirando
ofega ntemente. Meninos franzinos, com suas estruturas miológicas e tendíneo-
ligamentosas em maturação, sentindo a imposição imperiosa da necessidade de continuar.
Lembremo-nos que essa marcha por terra deu-se após uma viagem fluvial de dois dias, que
levou os fugitivos desde Loreto e San Ignácio até as grandes catadupas do Paraná, onde
aconteceu o interrompimento do fluxo para que se resolvesse a questão com os colonos
espanhóis. É óbvio que, depois desta incursão fluvial de aproximadamente quarenta e oito
horas, os navegantes não desembarcaram propriamente descansados. Iniciaram a jornada
terrestre já sentindo, pelo menos, algumas das manifestações corporais próprias do
cansaço. Já estando inclusas neste texto as palavras de Taunay sobre a distância percorrida
a pé para flanquear as cachoeiras, vejamos as palavras do próprio Montoya:
... Vencidas 25 léguas à força de caminhar por terra, haveríamos de
tomar o mesmo rio e rumo ... em questão de oito dias chegamos ao fim
de nossa viagem terrestre, indo outra vez ao mesmo rio, agora já mais
benigno e navegável. Julgamos fosse o término de nossa tribulação ...
não o sendo, foi este o começo de outra provação bem grande
(MONTOYA, 1985, p. 139).
Essas mudanças de curso nas caminhadas sertanejas do Brasil Colonial, perpassam boa
parte da obra de Ségio Buarque de Holanda, que com visão acurada, busca um
entendimento mais preciso sobre as dificuldades enfrentadas pelos caminhantes. Muitas
vezes a via que se percorria era apenas uma rústica vereda, semi-aberta por animais, que
podia se tornar intransitável mais adiante. As matas que beiravam o Rio Paraná, quando da
realização da marcha em questão, eram extremamente fechadas, com características
próprias que as classificam como florestas sub-tropicais. Foi nesta labiríntica trama verde
que os índios e missionários caminharam por oito dias, percorrendo uma média de 21
quilômetros diários, distância assaz considerável levando-se em conta as implicações já
aludidas. A média diária dessa incursão florestal foi maior da que seria alcançada por
Domingos Jorge Velho no final do seçulo XVII, quando deslocou-se do Piauí a São Paulo
e retornou ao extremo norte do país (Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará) para dizimar
os tapuios e, depois investir contra Palmares. Jorge Velho e seus homens demoraram um
ano para levar a cabo essa longa caminhada de 6000 quilômetros, cumprindo uma média
de pouco mais que 16 quilômetros por dia. Nestes termos, a média percorrida pelos
retirantes das reduções, excede em quase cinco quilômetros a distância que seria percorrida
diariamente pela bandeira de Domingos Jorge Velho, muitas décadas depois. Em ambos os
casos, os padecimentos foram numerosos, como fome, doenças, mortes e ataques de feras;
porém a bandeira de Jorge Velho não fugia de ninguém, atuava sob contrato visando
benefícios posteriores. Os fugitivos do Guairá estavam amedrontados, e o resultado
fisiológico desta emoção os impelia para a frente, com energia singular, a despeito de todos
os obstáculos. Caminhar 165 quilômetros pela mataria ensombrecida que margeava o
Paraná, foi, ao nosso entendimento, uma tarefa que envolveu performance motora passível
de ser observada em destaque. O peso da matalotagem, o peso dos enfermos, o constante
estado de alerta ante a predação das feras. O andar trôpego, porém ininterrupto, dos mais
extenuados , que obstinada e instintivamente procuravam sobreviver à qualquer custo, com
a certeza de que cada passo dado os distanciava mais um pouco de seus algozes. Oito dias
serpenteando entre os obstáculos do terreno matagoso, ora avançando rápido, ora quase
parando. Oito dias que foram decisivos para a continuidade do trajeto. Oito dias onde a
morte esteve presente, fazendo a natureza impassível acolher em seu seio os corpos dos
fenecidos. Duas dezenas de quilômetros a cada um destes dias, em busca do local
alme jado, onde a navegação seria recomeçada, em águas menos impetuosas.
Quando finalmente esse posto foi alcançado, iniciou-se a outra provação bem
grande, já mencionada atrás pelo chefe da expedição. A fome e a disenteria disseminaram-
104
se largamente. Esses dois flagelos pareciam estar à espreita, apenas se insinuando durante a
marcha pelo mato, mas agora avançavam céleres, à toda brida, prostrando e causando
sofrimento a muitos. Sobre isso, vejamos o que escreveu Montoya:
A fome, a peste e a diversidade de opiniões, causou uma confusão muito
grande. E como não haveria de ter fome uma imensa chusma de
muchachos e tanta outra gente, que apenas pôde trazer comida limitada
para aquele caminho e por não ter outra ajuda de transporte que a de
suas costas e ombros?... (MONTOYA, 1985, p. 141).
A mulher e seus dois filhos foram salvos, bem como todos os outros que caíram na
água, após a balsa soçobrar. Exceto o da mãe e seus gêmeos, o salvamento de todos
dependeu de destreza individual na água, quando o nado foi exigido. Como ficou claro nas
palavras do missionário, os índios sabiam da fragilidade das balsas, mas embarcaram
mesmo assim, confiando em suas próprias habilidades como nadadores. Eis aqui mais uma
105
atividade física realizada pelos retirantes do Guairá: a natação. Em mais uma oportunidade
foi preciso nadar para escapar à morte, como veremos logo adiante.
A viagem continuou, com as precárias embarcações conduzindo os fugitivos pelo
Paraná abaixo, deslizando famintos pelas águas caudalosas em torrentes nada afáveis, onde
desta vez a morte fez algumas presas. Sobre este incidente escreveu Montoya:
Correu ‘fortuna’ uma balsa de duas canoas muito belas, em que
embarcaram cerca de 50 pessoas. A estas dei-lhes dois índios práticos
daquele rio e lhes avisei que, nos passos perigosos, saltassem em terra,
evitando-os dessa forma ... Aventuraram-se a entrar num grande rede-
moinho, que sugou a balsa e toda a gente dela. Esta, valendo-se de seus
braços e da destreza de nadar, tratou de salvar a sua vida, jogando-a à
fúria da água, individualmente, para as mais diversas partes. ... Onze
crianças contudo felizmente se afogaram e assim se libertaram das
tribulações, que ainda as teriam esperado mais adiante (MONTOYA,
1985, p. 142).
Nesse segundo acidente, é fácil perceber que não era pouca a destreza dos índios na
água. A balsa tinha aproximadamente cinqüenta pessoas, sendo que apenas onze crianças
morreram afogadas. O primeiro incidente ocorrera logo nos primeiros movimentos da
balsa, donde se conclui que a embarcação ainda não havia se distanciado muito da
margem, acrescentando ainda, que não existe nesse caso, nenhuma menção sobre
correntes mais fortes. Em síntese, no primeiro evento, a habilidade natatória dos índios foi
mostrada, mas não em grau tão evidente. Já no segundo caso, quando um grande
redemoinho sorveu a balsa e seus tripulantes, viajava -se por um trecho de águas vigorosas.
Faz-se pertinente caracterizar aqui a ação de um redemoinho, que ao girar
concentricamente para dentro de si mesmo, arrasta para o fundo o que estiver à flor da
água. Destarte, os índios foram tragados até o fundo do rio Paraná, sendo que para salvar-
se precisaram fazer esforços vigorosos até retornar à superfície, onde correntes bravias os
aguardavam, exigindo deles novos e dispendiosos movimentos, não apenas para garantir a
flutuação, como também para vencer a força das águas e finalmente alcançar a margem. As
onze crianças, se já com idade de saber nadar, não tiveram a resistência e a força muscular
necessários para tal tarefa, por isso morreram afogadas. Estas considerações sobre a
habilidade de nado dos índios retirantes, estão subordinadas à nossa intenção de tornar
evidentes as implicações que envolveram o desempenho motor nesta empreitada de fuga.
Conhecemos a obviedade que permeia a relação de indígenas com habilidades natatórias
apuradas. Os rios, sejam eles caudalosos ou mansos, fazem parte do universo indígena.
Índios banham-se em rios, por isso aprendem a nadar bem cedo. A capa do livro Índios do
106
Brasil, organizado por Enzo Grupioni, ilustra isso muito bem. Algumas nações autóctones
são inclusive estritamente navegantes, até mesmo dormindo em suas canoas, em estirões
hidrográficos amenos. Queremos expressar com isso, o nosso entendimento de que não é
algo espantoso que um índio nade bem. Por outro lado, ressaltamos também, que acidentes
como este – onde onze crianças morreram tragadas por um redemoinho – não eram comuns
na vida cotidiana dos nativos do Brasil Colonial. O silvícola é prudente, aprende cedo a
evitar o perigo de morte e não comete erros com freqüência, principalmente em situações
arriscadas. Contudo, no caso dos índios do Guairá, um escape estava sendo empreendido,
requerendo pressa e afoiteza. Veio daí a tentativa de vencer as águas traiçoeiras, onde
foram primeiramente tragados, sendo depois salvos por suas próprias e apuradas
habilidades de nado. Em circunstâncias outras, que não a de evasão, certamente o
redemoinho teria sido evitado; porém, ao afrontar aflitivamente o perigo, os índios do
Guairá acabaram por demonstrar suas capacidades múltiplas 23 no meio líquido, safando-se
de forma notável. Vale escla recer que, quando escrevemos índios, referimo-nos a homens
e mulheres no plural, já que entre os cinqüenta ocupantes da balsa dificilmente haveria
apenas homens, apesar do fato de Montoya não mencionar a presença de mulheres na
embarcação.
Depois desse segundo imprevisto seguiu-se a navegação, que daí prá frente foi
conduzida com muito mais cautela, posto que foi percebido que a afobação excessiva em
marcar larga distância dos paulistas podia resultar em desastres significativos, com grande
número de vítimas, principalmente crianças. Tendo já descido um trecho muito longo do
rio, os tripulantes das frágeis embarcações foram socorridos por dois padres de duas
reduções antigas, que existiam nas redondezas. Esses jesuítas haviam ficado sabendo da
retirada de Montoya e acorreram até ele, esperando-o junto a um arroio que desembocava
no Paraná. Eles haviam providenciado certa quantia de alimentos, que embora considerável
não bastou para todos os retirantes, que esfalfados comeram tudo sem sentir sacieda de.
Muitos ficaram sem experimentar os víveres, permanecendo famintos como antes. A
disenteria grassava, prostrando ainda mais os corpos já exauridos pela fome e pelo
23
Neste acidente, passando à larga da fome, os índios demonstraram excelente preparo ou condicionamento
físico; grande capacidade anaeróbica, que diz respeito à movimentos intensos e de curta duração; excepcional
capacidade aeróbica, que está associada aos movimentos não intensos, mas de duração maior; significativa
capacidade pulmonar, que confere o fôlego ao organismo em movimento; notável oxigenação miológica, que
propicia aos músculos resistência contra a fadiga, além de atribuir a eles força necessária para a execução da
tarefa. Além de todas estas capacidades ou qualidades físicas, detectáveis facilmente neste acidente, os índios
receberam novas e violentas descargas de epinefrina, secretadas por suas glândulas supra-renais no momento
exato do evento, o que os propiciou uma situação de intensa motricidade, que aliadas às suas habilidades já
descritas, ensejou o salvamento individual de cada um.
107
cansaço. Estando já inclusa neste trabalho uma citação de Haubert, à página setenta e três,
onde é mencionada, em termos mais fugazes, a miserável dieta a que se submeteram os
retirantes, e onde também são tangidos os sofrimentos advindos da epidemia, verifiquemos
ora descendo a estas questões mais minudentemente, através do que escreveu Montoya:
CAPÍTULO IV
No Capítulo II, às páginas 42 e 43, fizemos uma breve análise literal das palavras
distâncias inacreditáveis. Já aqui, o retorno de ambos os vocábulos visa a corroboração
objetiva e enfática da enormidade dos percursos bandeirantistas. Ao escrever distâncias
inacreditáveis, a autora de Entradas e Bandeiras atribui às marchas bandeirantistas
proporções ou extensões no mínimo bastante significativas. Que muitas marchas foram
extensas, atingindo regiões distantes e incógnitas, parece estar razoavelmente esclarecido.
Que tais marchas subtraíam a energia dos caminhantes, deles exigindo pronunciado
desempenho corporal, suspeitamos ser uma consideração isenta de sofismas. Vejamos as
palavras de Volpato: “A faina no sertão era dura ... pouco tempo existia para a ociosidade
na vida dura das marchas sertanistas” (VOLPATO, 1985, p. 72-3).
Lembremo-nos de que nessas marchas, não raro os sertanistas de Piratininga
padeciam sob adversidades díspares, como a fome, o calor, a frialdade, a intempérie, a
doença, a tocaia indígena, o desnorteio, a predação de animais selvagens. De imediato,
trataremos da nutrição e da hidratação, pelo motivo desses elementos estarem relacionados
diretamente ao desempenho corpóreo-motriz.
Não raro, o desespero causado pela fome intensa impunha aos caminhantes uma
dieta no mínimo esdrúxula, com alguns gêneros não ingeridos usualmente nem mesmo
pelos indígenas. Padecendo há muitos dias, esfaimados e enfraquecidos, os bandeirantes
não rejeitavam nada que se lhes apresentasse 24, não raro comendo ratos e sapos. Da
alimentação indígena nada lhes escapava: cobras, raízes de guaribá, grelos de samambaia,
saúvas, formigas içás 25 e bichos -de-taquara.
Na obra Viagem à Província de São Paulo, Auguste de Saint-Hilaire fez referências
ao bicho-de-taquara. Este botânico francês desembarcou no Brasil em 1816, visando
catalogar plantas sul-americanas, classificando-as cientificamente. Vejamos as palavras
desse pesquisador e viajante europeu:
Quando estive entre os malalis na capitania das minas, esses indígenas
me falaram freqüentemente, de um verme ... verme denominado ‘bicho -
da-taquara’, porque é encontrada nas varas dos bambus, quando os
mesmos estão em flor. Alguns portugueses que viveram entre os
indígenas, tornaram-se também apreciadores dêsses vermes ... (SAINT-
HILAIRE, 1972, p. 321).
24
As informações desta dieta dos bandeirantes se encontram em VOLPATO, L., Entradas e Bandeiras, p.
68; e em MACHADO, A. , Vida e morte do baneirante, p. 238.
25
Espécie de formiga que era ingerida após ser torrada.
112
Monteiro, foi uma das agruras dessa expedição. Fome não saciada, energias não
recompostas. Atividade corporal acentuada, dispêndio energético profuso. Adicionados à
isso as doenças e os ataques indígenas, não parece ser difícil compreender os motivos da
desfiguração física do mestre-de-campo Antonio Raposo Tavares.
Inúmeras bandeiras padeceram também sob a inclemência da sede, enveredando-se
“muitas vezes por ermos que não dispunham de água potável” (VOLPATO, 1985, p. 69).
A alternativa, nessas circunstâncias, era aplacar a sede ingerindo frutas agrestes, seiva de
folhas e cipós e caldo de raízes. Na impossibilidade de encontrar tais gêneros e, frustrada
também a possibilidade dos índios integrados nas expedições descobrirem água, os
caminhantes sedentos concebiam uma atitude extrema ... bebiam sangue de animais 26. O
caminhar sob o sol, a sudorese exacerbada pela canícula. Sede não mitigada, perda de
líquido não reposta. Corpos humanos minimamente hidratados, que no paroxismo do
desespero sorvem sangue de animais selvagens. Hematófagos racionais dessedentando-se à
custa de seres irracionais. Homens em marcha por lu gares áridos, vertendo abundante suor,
sentindo o gosto do sal nos lábios gretados, sob o implacável sol zenital, deixando atrás de
si grandes respingos nas pedras ressequidas. A sede, quando muito intensa, figura entre as
mais torturantes sensações experimentadas por qualquer ser vivo, rompendo todas as
barreiras de repúdio, sobretudo no ser humano. Para a execução das tarefas mais simples
do dia -a-dia, o corpo necessita de água. Falamos de tarefas corriqueiras, ordinárias, como
atividades de baixo dispêndio energético. Um indivíduo, mesmo que sentado, imóvel, sente
sede diariamente. Seu corpo necessita da ingestão de líquidos, para que seus mais
elementares mecanismos fisiológicos funcionem normalmente 27. Antagonicamente a essa
situação, o homem envolvido em grande atividade física necessita de ingestão líquida
muito mais significativa, em quantidade consideravelmente maior. Isto é uma asserção
científica da medicina desportiva, calcada na lógica de equivalência de ingestão e
dispêndio. Destarte, a corroboração da obviedade que medeia a relação água-vida humana,
insere-se numa perspectiva que nos permite vislumbrar o bandeirante sedento como um
homem que caminha para a morte. Entendamos aqui a cessação da vida, como causada
pela sede que se exarcerbou, em virtude do ato físico-motriz. Entendamos também, por
26
Informação encontrada em VOLPATO, L., 1985, p. 68. e MACHADO, A., 1980, p. 238.
27
Em termos de imobilidade, evoquemos uma situação ainda mais extremada. Um homem com secção da
medula espinhal na região cervical, com fratura do osso axis (estrutura óssea localizada abaixo do atlas, na
base do crânio, encimando a primeira vértebra da região cervical), paralisado do pescoço para baixo, sem
capacidade de fala ou deglutição. Um corpo em absoluta inércia, mas que não prescinde do soro que lhe é
administrado endovenosamente. Mesmo sem qualquer ato motriz, sua fisiologia interna absorve o líquido,
dependendo estritamente dele para continuar mantendo a vida silenciosa do corpo inerte.
114
28
A estrutura corpórea de um indivíduo pertencente a esta faixa etária apresenta-se em fase de transição.
Recém saído da infância, sua con formação anátomo-fisiológica está distante da maturação completa, que em
média só é atingida aos vinte e um anos. Seus segmentos miológicos ainda não atingiram a hipertrofia
(aumento de tamanho estrutural) suficiente para sustentar grandes pesos, não se adequando também às
atividades aeróbicas (diz-se das atividades de longa duração), que requerem considerável resistência física,
Seus tendões e ligamentos ainda não são tão resistentes para o caminho pedregoso, para o aclive abrupto,
115
para a planície que se estende no horizonte. Sua produção de testosterona, ainda insuficiente, nega -lhe a força
bruta e até mesmo o comportamento agressivo, tão importantes nas adversidades traiçoeiras das matas. Suas
epífises ósseas, em acelerada expansão, fecham-se prematuramente, furtando-lhe, anos mais tarde, seu pleno
potencial de estatura. Dores pronunciadas fustigam-lhe os grupos musculares mais exigidos, devido ao
acúmulo de ácido lático nas micro-fibras não maturadas. A grande taxa de endorfina secretada por seu
cérebro rouba-lhe a vivacidade, impondo-lhe um torpor estranho, ainda não identificado com prazer e
sossego. A baixa produção de serotonina determina-lhe atitudes instáveis, ensejando oscilações emocionais
inconvenientes ao ambiente, que requer posturas rígidas, às vezes inflexíveis. Sob a imposição da
motricidade intensa, sua pequena caixa toráxica entra em hiperatividade, visando suprir a demanda de
ventilação exigida pelos pulmões, deixando-o ofegante. As sístoles de seu miocárdio reduzido não ejetam
sangue em quantidade suficiente, aumentando-lhe a freqüência cardíaca, ofertando-lhe o desconforto da
taquicardia.
29
Observemos brevemente alguns destes efeitos: flacidez muscular generalizada, enfraquecimento do tecido
ósseo (com possibilidade do surgimento de osteoporose), desgaste das extremidades ósseas articulares,
enfraquecimento das inserções tendíneo-ligamentares, redução da produção de líquido sinovial, acentuação
das patologias da coluna vertebral (cifose, lordose e escoliose), redução do calibre periférico de vasos e
artérias, redução da elasticidade do tecido alveolar pulmonar, redução da eficiência cárdio -vascular. Algumas
116
As diversas mudanças sofridas pelo corpo, ao longo dos anos, são inexoráveis.
Neste sentido, torna -se notável a iniciativa de Fernão Dias Pais, que partiu para o sertão já
tendo adentrado a ancianidade. Quando da organização de sua bandeira, o mestre de campo
era um homem abastado, possuindo terras, gado, ouro e prata. Vendeu quase tudo que
tinha, conservando sua casa. Fernão Dias gastou seis mil cruza dos com a montagem de sua
expedição, soma bastante vultosa para a época, recebendo ainda pequena ajuda da Fazenda
real e da Câmara de São Paulo.
Desfrutando a prosperidade granjeada ao longo da vida, o experiente mestre de
campo não experimentava portanto o triste viver cotidiano (HOLANDA, 1986, p. 26) dos
homens que se fixaram primeiramente no planalto de Piratininga, ou mesmo dos mais
miseráveis de sua própria época. Destarte, o que o moveu não foi a penúria ou
dificuldades similares, que foram element os determinantes para a constituição de inúmeras
bandeiras. Fernão Dias partiu para o sertão atendendo à solicitação do Visconde de
Barbacena, então Governador da Capitania de São Vicente, que em nome do próprio
Regente, formulou-lhe o pedido de que organizasse uma expedição, visando a prospecção
de jazidas de prata e esmeraldas. Isso foi em 1671, três anos antes que sua bandeira
partisse. O velho bandeirante assentiu, atendendo o pedido e depauperando seu patrimônio
pessoal, amealhado no decurso de sua vida. Além da possibilidade do encontro de
riquezas, moveu-o a ânsia de elevar ainda mais o seu status . Efetivada a iniciativa de partir
para o sertão, configurava -se em desdobramento, o entendimento coletivo de que o
respeitado sertanista o fizera por solicitação direta do Governador da Capitania.
outras diferenciações são ainda mais perceptíveis, como a redução da capacidade visual, distúrbio auditivos,
lentidão de raciocínio (causado pela vascularização cerebral reduzida, que por sua vez determina lentidão na
dicção e nos reflexos instantâneos). Existem ainda outras particularidades anátomo-fisiológicas que se
explicitam no organismo humano no decurso do tempo. Não trataremos de todas elas, posto que para a
proposta de nosso estudo, as mais importantes são as gradações que causam maior detrimento para o
desempenho motor global. A ciência da Educação Física, no que diz respeito ao atendimento às pessoas da
terceira idade ( a tercei ra idade inicia-se aos sessenta anos), preconiza a realização de exercícios físicos de
baixa intensidade, em função das particularidades diversas que determinam a especificidade corpóreo-motora
dos indivíduos pertencentes à esta faixa etária. Todas as atividades dos professores de Educação Física que
lidam com grupos da terceira idade, são caracterizadas por vigilante comedimento, pautadas pela observância
de não ultrapassar a capacitação física global de corpos já desgastados pelas sucessão das décadas. As
caminhadas são ministradas invariavelmente entre 07:00 e 09:00 h e das 16:00 em diante, evitando a
exposição dos praticantes ao calor do sol. A ginástica, mormente visando fins de relaxamento, é realizada em
ritmo contido, envolvendo os grupos musculares mais trabalhados no cotidiano. Todas as outras modalidades
de atividade física, quando direcionadas aos indivíduos idosos, observam ditames específicos, que coíbem
exageros. Numa só frase, a ciência da Educação Física incentiva os idosos às práticas corporais, porém,
respaldada cientificamente, preconiza o cumprimento do respeito aos corpos humanos que já passaram por
gradações que o tornaram mais limitados, mormente no que concerne à motricidade. Esta breve incursão pelo
cientificismo anátomo -fisiológico, bem como as considerações sobre o que é entendido (à luz da Educação
Física) como salutar aos indivíduos da terceira idade, visaram a busca de um entendimento mais específico
sobre a inserção de um homem idoso numa rústica marcha sertanista.
117
Ressaltemos que tais solicitações pessoais eram feitas apenas aos bandeirantes de maior
projeção social. Desta forma, esses pedidos eram considerados quase como honrarias, uma
vez que denotavam a confiança do governo no sertanista que era abordado, funcionando
também como atestados informais de eficiência na lida sertaneja. Fernão Dias estava
acostumado com essas deferências, tendo anteriormente recebido uma carta de próprio
punho do Rei de Portugal, que lhe pedia apoio na prospecção de riquezas, dez anos antes
da partida da expedição solicitada pelo Visconde de Barbacena. Até títulos eram
oferecidos aos bandeirantes mais proeminentes, visando estimular -lhe a montar
expedições. Observemos as palavras de Volpato:
... o monarca era aconselhado a usar determinadas estratégias: para os
paulistas mais valiam honrarias do que riquezas. O Rei era aconselhado
a oferecer, em troca das peregrinações, títulos e mercês. Para conseguir -
lhes a adesão era importante estimular-lhe s a vaidade. Com este intuito,
o rei D. Afonso VI escreveu cartas de próprio punho aos bandeirantes
mais famosos, pedindo apoio nos trabalhos de pesquisa de riquezas.
Desse teor era a carta recebida por Fernão Dias Pais em 1664
(VOLPATO, 1985, p. 91).
Também sobre estas artimanhas da Corôa, que tinham como objetivo espicaçar o
ânimo jornadeador dos expedicionários paulistas, escreveu Taunay:
No caso de se realizarem novos descobrimentos tornava-se indispensável
que o trono distribuísse mercês, sobretudo hábitos de Cristo a gente tão
vaidosa como os paulistas, que só se lembrava de honras, desprezando
conveniências (TAUNAY, 1951, p. 25-6).
Tendo montado sua expedição motivado por vaidade, obtenção de maior status ou
encontro de esmeraldas, o certo é que Fernão Dias Pais trocou o conforto de sua vida
estável pela rusticidade da marcha sertaneja. Por qualquer dos motivos, observa-se que a
afixação na terra e o sedentarismo não o dissuadiram do intento de partir pela derradeira
vez. Os últimos oito anos de sua vida foram marcados por intensa atividade corporal, a
despeito de sua avançada idade. Fernão Dias Pais, certamente, foi um homem de grande
resistência física. Tal asserção pode ser feita de forma desassombrada, respaldada pela
ciência da Educação Física, através da anatomia e da fisiologia humanas, que deslindam as
mudanças ocorridas no organismo ao longo do tempo.
Tendo já mencionado algumas dessas mudanças, não podemos, no entanto,
mensurar em que grau o corpo de Fernão Dias as apresentava. Não podemos afirmar que
Fernão Dias apresentava todas as características anátomo-fisiológicas que são atribuídas
aos indivíduos de sua idade. Por outro lado, é certo que Fernão Dias apresentava muitas
118
características próprias de homens idosos. Para as lidas de camin heiro sertanejo, que exige
ingentes esforços físicos e consome grandes quantidades de energia, o mestre-de-campo
tinha idade demais. Fernão Dias Pais foi um ancião robusto, pois de outra forma não teria
agüentado as longas caminhadas, os combates com indígenas e o motim que ocorreu em
sua bandeira. Nos oito anos que antecederam sua morte, esse bandeirante engendrou um
exemplo modelar de desempenho físico notadamente acima da média, levando-se em conta
a sua ancianidade.
O desempenho corporal, tão decisivo para que muitas expedições atingissem seus
objetivos, foi inserido num alentado rol de pseudo-virtudes, diluindo-se em me io a uma
profusão de adjetivações edificantes. Entendemos que o movimento humano foi uma das
principais características do bandeirismo.
30
Veste de couro para resistir a flechadas, algumas de couro de anta.
31
Armamento que de tão pesado precisava ser apoiado num tripé, media 1,75m e geralmente era carregado
por dois expedicionários.
32
Sabre curto, para combates corpo a corpo.
121
correntes para o apresamento dos negros da terra, víveres rudimentares e outros acessórios
... Razoável exercício físico! Junte-se a isso os esforços corporais nos embates com os
índios, o nado improvisado para vadear cursos d’água mais profundos, o trabalho
extenuante da derrubada da vegetação visando abrir novas sendas, as fadigas adicionais das
atividades de caça e extração de alimentos nativos ... Considerável exercício físico!
Passando à larga das menções burlescas considerável exercício físico e razoável
exercício físico, penetremos no terreno formalmente racional das constatações objetivas,
emanadas das páginas da historiografia, que mostram claramente os ingentes esforços
corpóreos dos bandeirantes. Faz-se necessário mencionar a obviedade de que o discurso
histórico, em sua totalidade, narra a saga desses expedicionários sob os prismas narrativos
múltiplos da busca de pedras preciosas e do aprisionamento e morticínio de indígenas, da
expansão dos núcleos populacionais, do fracasso do Tratado de Tordesilhas, da dilatação
das fronteiras e da extração aurífera. Ressaltadas pela historicidade (no sentido literal da
palavra: qualidade do que é histórico), estão contidas na historiografia, reiteradas vezes, as
variações rítmicas ou cíclicas do que é entendido como progresso, com suas debreagens e
deslanches. Conf erindo salutar inteligibilidade aos fatos, num sentido mais amplo, o
entendimento do desenvolvimento ou progresso insere-se numa perspectiva que oportuniza
o deslindar de certos contextos regionais interdependentes. O atraso de São Paulo, em
relação ao Nor deste no século XVII, era proeminente. Os sólidos engenhos nordestinos,
alicerçados no poder dos grandes senhores de terras e na conveniente teia clientelista,
tecida politicamente na cúpula da sociedade, configurava à exatidão as teorias do
historiador holandês J. Romein:
El progresso realizado en el pasado es suscetible de actuar como un
freno, a costa de nuevos progressos. Por la atmósfera de
autosatisfacción se oponen obstáculos a nuevos progresos que
implicariam un desmonstje de las instituiciones y de los equipos (J.
ROMEIN apud CHESNEAUX, 1995, p. 112).
Em ¿ Y que és la Hstória?, Prieto cita também a tese de Romein sobre Los llegados
tarde da história , que se ajusta, à perfeição, ao progresso atingido por São Paulo, quando
do advento da extração aurífera, encetado pelas bandeiras e posteriormente robustecido
pelas monções:
Nossa incursão pela análise do progresso visou abrir linhas essenciais para
enfocarmos a importância das bandeiras, que eram expedições que partiam de um lugar
sem recursos, levando-se em conta os padrões coloniais.
físico. Isso entendido, faz-se nítida a intenção do jesuíta em comunicar -se procurando
expressar a negação de qualquer fadiga experimentada pelos sertanistas.
O assombro do padre Montoya emprestou cromatismos épicos à caminhada dos
bandeirantes, pintalgando-a com nuanças que sugerem uma proeza mitológica.
Expliquemo-nos melhor: é óbvio que não existem seres humanos que não se cansem ao
cumprir 2000 quilômetros de marcha, por lugares florestosos e de relevo acidentado. O
cansaço, a fadiga e a exaustão obviamente eram sentidos pelos paulistas, de forma que
deve ser levada em consideração certa densidade alegórica nas palavras do jesuíta, que
induziram a um entendimento de performance física no mínimo sobrenatural. Por outro
lado, é também óbvio o grande desempenho corpóreo-motor dos expedicionários
sertanistas, que cumpriram, em outras diversas oportunidades, percursos portentosamente
maiores do que este enfocado pelo religioso espanhol. Adiante, abordaremos alguns destes
percursos cumpridos pelas bandeiras.
No que diz respeito aos reveses enfrentados pelos pa ulistas, escreveu Holanda:
A capacidade de resistir longamente à fome, à sede, ao cansaço; o senso
topográfico levado a extremos ... são algumas das imposições feitas aos
caminhantes, nessas veredas estreitas e rudimentares. Delas aprende o
sertanista a abandonar o uso de calçados, a caminhar em “fila índia’, a
só contar com as próprias forças durante o trajeto ( HOLANDA, 1990,
p. 17).
Sob o prisma dessa concepção de Prieto, parece tornar -se nítida a percepção de que
a historiografia, muitas vezes, debruça-se sobre o desfecho dos fatos. Não raro são
preteridos os processos de construção desses fatos, com seus avanços e debreagens. Os
meandros da história, por vezes tortuosos, são eclipsados em benefícios dos desenlaces. No
caso das bandeiras, as relações causa-efeito foram, em sua literal totalidade, mediadas pelo
124
33
A palavra Quilombo ainda não havia sido inventada no século XVII.
125
A cabeça de Zumbi, exposta em praça pública, foi um aviso funesto, um alerta aos
cativos africanos.
O corpo sente dor ... sente muita dor. As pessoas querem ser livres ... mas não
desejam ser imoladas.
A barbarização imposta ao corpo do líder palmarino, surtiu efeitos satisfatórios
dentro do sistema colonial escravista. Que grande importância teve um corpo mutilado no
Brasil de então ... que mórbida eficácia!
Em outras palavras, um corpo transfigurado, que pela hediondez de sua
configuração, abateu o ânimo latente dos escravos, minando-lhes as intenções de luta pela
liberdade. Após a morte de Zumbi, não consta na historiografia outro foco de resistência
negra de pr oporções semelhantes. Depois da martirização de Zumbi, não consta nas
páginas da história uma tão significativa organização coletiva de escravos. Um corpo
martirizado ... um silencioso aviso ... tétrica eficiência!
É válido lembrar, que o desmembramento corporal e a degola aparecem na História
do Brasil através dos séculos. O sofrimento corporal imposto aos inimigos do status quo
sempre foi instrumentalizado, senão vejamos: Zumbi, em 1695; Felipe dos Santos, em
1720; Tiradentes, em 1789 e Lampião, em 1938. As atrocidades cometidas pelos regimes
instituídos contra líderes subversores, sempre visaram a exemplificação, que por sua
natureza repugnante, invariavelmente surtiu seus ignóbeis efeitos.
O degredo ou a prisão, mesmo que perpétuos, não são exemplos tão eficientes ...
que assombroso exemplo é o corpo inanimado do subversor, exposto publicamente! Como
é importante o corpo!
Ao abordarmos o episódio do desmanche de Palmares, oportunizou-se esta breve
incursão reflexiva sobre as implicações de um corpo tr ucidado, exibido como exemplo. Tal
evasão foi intencional, objetivando pautar a enormidade da importância do corpo, mesmo
que morto, neste significativo fato da História do Brasil.
Ainda no que diz respeito à destruição de Palmares, doravante trataremos da
notável performance motora de corpo vivos , performance esta efetivada bem antes de 1694
(batalha da Serra da Barriga) e 1695 (massacre dos remanescentes na Serra Dois Irmãos).
Em 1687, Domingos Jorge Velho foi contactado pela primeira vez para assumir o
comando da luta contra os palmarinos. O contato foi feito pelo então Governador de
Pernambuco, João da Cunha Souto Maior. Na época, Jorge Velho estava com sua tropa no
Piauí, onde o levara a extraordinária mobilidade dos paulistas caçadores de índios, que se
126
34
Mestre-de-campo era o nome dado na época aos chefes das bandeiras.
35
Terreno inculto ou abandonado, que os reis de Portugal distribuíam a colonos ou cultivadores.
127
36
Não Matarás.
128
Pináculo 1: um núcleo de escravos prófugos, liderados por Zumbi, um homem radical, com
anseios intransigentes de liberdade.
Pináculo 2: um sistema ainda rigidamente escravista, que, afrontado pela ameaça
palmarina, faz-se representar pelo Governador pernambucano Cunha Souto, contratando
os serviços de um sertanista com grande experiência em morticínio, visando a extinção do
mocambo.
Pináculo 3: um bandeirante tenaz, um comandante sanguinário – Domingos Jorge Velho –
que, em troca de benesses, aniquila o Quilombo dos Palmares.
Nota-se, nitidamente, que este prisma narrativo – que é o que consta na
historiografia – enfoca primeiramente as partes envolvidas de forma fragmentária para, em
seguida, partir em busca da objetivação final, da consumação do fato em pauta.
Entendemos ser isto nada mais nada menos que a Histoire Événementielle (História dos
Acontecimentos), tão desdenhosamente criticada pelo historiador alemão Karl Lamprecht,
ainda no início do século XX, portanto, antes que Lucien Febvre e Marc Bloch viessem
também a rechassá-la duramente. A histó ria brasileira, mormente nos livros didáticos,
denota uma grande gama de elementos do paradigma tradicional ou rankeano. No episódio
da destruição do mocambo palmarino, são pautadas em ênfase as refregas entre os
comandados de Zumbi e as tropas de Jorge Ve lho, ou seja, são relatados os
acontecimentos. Fernand Braudel, em Mediterranean, rejeita a história dos
acontecimentos, como não mais que a espuma nas ondas do mar da história. Entendemos
a derrocada final de Palmares tão somente como as espumas das ondas de um fato extenso,
multifacetado e complexo, onde facetas de importante relevância jazem no mais recôndito
fundo do mar , mergulhadas no ostracismo.
A queda do núcleo palmarino, da mesma forma que outros episódios vultosos do
bandeirismo, parece-nos estar na superfície do oceano da história, encimando e
obscurecendo elementos estruturais importantes, no que tange à mobilidade sertão adentro.
Senão vejamos: desde os primórdios da Vila de Piratininga, acossados por um viver
marcado por necessidades variadas, os paulistas empreenderam incursões sertanejas à cata
de índios. Lembremo-nos que estas primeiras expedições ocorreram ainda no início da
segunda metade do século XVI, logo após a afixação dos iniciadores do povoado
planáltico. Já a campanha palmarina de Jorge Velho teve seu fecho na última década do
século XVII, em 1695, portanto quase no alvorecer dos oitocentos. Cronologicamente,
aproximadamente cento e cincoenta anos separam as marchas sertanejas iniciais da
empreitada contra o núcleo de escravos instalado na Serra da Barriga. Pretendemos dizer
129
com isso, ao evocar este considerável espaço de tempo, que o deslocamento corporal
através da jornada a pé, constitui-se aqui (no episódio de Palmares) como conseqüência de
elementos estruturais provindos do modus vivendi do planalto de São Paulo. Observemos
o que escreveu Braudel:
La larga duración es la historia interminable e indesgastable de las
estruturas. Para el historiador una estrutura no es solamente
arquitectura, ensamblaje. Es permanencia; com frecuencia, más que
secular (el tiempo es estructura) (BRAUDEL apud PRIETO, 1995, p.
96).
37
Refiro-me aqui não à estrutura de longo tempo, mas à estrutura específica da sociedade do planalto.
130
Jorge Velho, possuía, portanto, sangue mameluco, assim como uma enorme parcela
dos bandeirantes. Contudo, isso não é o fator principal que pretendemos enfocar no
momento. Queremos sobretudo evidenciar que este mestre -de-campo foi produto de sua
própria época, um homem de seu tempo, que absorveu os determinismos da estrutura
social em que estava inserido. Nessa estrutura social, como primitiva contingência
histórica impulsionada pela miserabilidade, despontavam as extensas marchas sertanejas,
que com o escoar do tempo (long duré), configuraram-se, elas próprias, como elementos
estruturais, presentes na mentalidade do povo paulista e na cúpula de seu poder político.
Jornadear pelas matas, seja apresando autóctones ou buscando minérios preciosos, era algo
tão profundamente assimilado pelos paulistas, que em algumas ocasiões o altiplano
vicentino ficava com uma notável parcela de sua população ausente. Sobre isso, vejamos
as palavras de Taunay:
Nada mais expressivo do que certos tópicos de atas de vereança como
por exemplo, a de 20 de fevereiro de 1666, onde se fala da notificação
feita a ‘alguns capitães que vão para o sertão’ ou a de 29 de novembro
do mesmo ano, em que o escrivão municipal nos conta que ‘a maior
parte dos moradores desta vila estava no Sertão’ (TAUNAY, 1951, p.
109).
Em 1666, grande parte do povo de São Paulo estava no sertão. Em outras palavras,
grande parte do povo de São Paulo estava em atividade física no sertão, experimentando as
fadigas corporais no meio selvagem.
Sessenta e quatro anos antes, 1602 portanto, ainda no prorromper do século XVII,
já havia sido verificado um considerável esvaziamento populacional no planalto de
Piratininga. Nessa oportunidade, diversos homens de significativa importância política
deixaram seus postos de trabalho para palmilhar as matas. Vejamos as palavras de
Azevedo:
Praticamente, a vila ficou despejada de seus moradores, como então se
dizia. Quase todos os oficiais da câmara – Baltazar Gonçalves,
vereador, Ascenso Ribeiro e Henrique da Cunha, juízes ordinários, e
Jorge de Barros Fajardo, procurador do conselho – deixaram os seus
cargos para listar -se na tropa do capitão Nicolau Barreto. Tanto assim
que a 08 de setembro de 1602 se realizavam eleições para a substitu ição
dos ausentes (AZEVEDO, 1971, p. 17).
ocupantes de não baixos patamares na estratificação social do planalto – não apenas eram
cordatos com a organização de expedições, como também participavam, eles próprios, dos
avanços a pé pelo interior da América. Homens de funções burocráticas, que se lançavam à
mobilidade em paragens selváticas.
As marchas continente adentro, sejam elas consideradas primitivamente como
contingências históricas, ou como propriamente – num tempo posterior – desdobramentos
de elementos estruturais, são por nós também entendidas, em termos nítidos e simples,
como desempenho corporal intenso.
O bandeirismo foi um histórico fenômeno de irrefragável movimentação corpórea,
a despeito de trazer consigo várias facetas, como já o dissemos. Ente ndemos já ter
abordado algumas destas facetas, como a contingência histórica e os elementos estruturais.
Fizemos isso, buscando um entendimento mais eficaz no tocante à campanha de Jorge
Velho ante o núcleo de Palmares. Nesse episódio do bandeirismo avultou-se sobremaneira
uma importante particularidade ou faceta, e que também é a que postulamos: as atividades
físicas.
Salientamos, no entanto, que parece-nos evidente que não se trata apenas de uma
questão de postulado, já que o rendimento corpóreo-motor efetivamente desempenhou um
papel muito aparente, no mínimo majoritário, no que concerne a Palmares.
Observemos portanto: um grupo de homens incultos e rudes caminhando pela mata,
liderado por um mestre-de-campo acostumado à dura mobilidade sertaneja. Um grupo de
homens vencendo os mais escabrosos acidentes geográficos e as mais espessas brenhas.
Um grupo de homens reduzido pelas baixas, chegando a São Paulo, tendo partido do Piauí.
Um grupo de homens que, engrossado por novos arregimentados, regressa ao Nor deste,
recebe uma contra-ordem e estende a marcha até o Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.
Um grupo de homens que, após combater os tapuios por quatro dias nos extremos do
Nordeste, marcha até a Serra da Barriga, para dizimar os negros aquilombados! Um
percurso certamente exaustivo de seis mil quilômetros, adicionado aos esforços das
pelejas. Tudo isso em um ano ... Que ano sedentário para Jorge Velho e seus comandados!
Caminhar, caminhar, caminhar ... Passar noites e noites, em cercos 38 aos núcleos
adve rsários. Combater, combater, combater ... Empunhando mosquetes, facões, lanças,
flechas e alfanjes. Razoável esforço físico!
38
O cerco à cidadela de Zumbi, na Serra da Barriga, durou 21 dias; e o confronto com os índios tapuios
durou 4 dias e 4 noites.
132
Para nós, a performance corporal foi fator importante para que o desmoronamento
do mocambo de Palmares se consumasse. Nos preparativos para os combates, as atividades
de recrutamento - que foram seletivas e buscaram os homens de guerra mais aptos (os
paulistas) - propiciaram uma marcha que passou por vários estados brasileiros. Vale
ressaltar, que a nutrição inadequada e insuficiente foi um dos percalços significativos dessa
caminhada verdadeiramente notável. Somemos a isso as doenças tropicais, a natureza
selvagem, o peso dos víveres e equipamentos, os dispêndios energéticos com as atividades
de coleta e caça ... Racionalmente, acreditamos ter sido essa empreitada um feito físico de
envergadura impressionante, tendo também, corroboremos ainda uma vez mais, sido
evidentemente decisivo, e não merecedor de estar submergido, muitas braças abaixo da
espuma nas ondas do mar da história, como escreveu Fernand Braudel.
Se o jesuíta Ruiz de Montoya expressou seu assombro com uma marcha
bandeirante de dois mil quilômetros, – como se passeassem na ruas de Madri – o que diria
ele da caminhada de Domingos Jorge Velho, que cobriu o triplo dessa extensão?
Mencionemos outro passeio : entre 1648 e 1651, a bandeira de Antônio Raposo
Tavares percorreu de dez a doze mil quilômetros, a pé e de canoa, de São Paulo ao
Paraguai, e de lá até Mato Grosso, Amazonas e Pará. Como se expressaria o civilizado
padre sobre essa marcha sertaneja, que cobriu talvez o sêxtuplo da extensão daquela que o
assombrou? Não sabemos o que diria Montoya, porém vejamos o que escreveu Monteiro:
Em 1651, após uma longa marcha pelos sertões, alguns remanescentes
da grande expedição do mestre-de-campo Antonio Raposo Tavares
chegaram a Belém do Pará, tão castigados por doenças, fome e ataques
de índios que, segundo o Padre Antonio Vieira, ‘os que restavam mais
pareciam desenterrados que vivos’. No entanto, acrescentava o mesmo
padre, a viagem ‘verdadeiramente foi uma das mais notáveis que até
hoje se tem feito no mundo’: durante três anos e dois meses os
integrantes da tropa haviam realizado um ‘grande rodeio’ pelo interior
do continente, embora nem mesmo soubessem por onde andavam.
Perdidos na imensidão da América, só descobriram que haviam descido
o grande rio Amazonas quando sua precárias e improvisadas
embarcações alcançaram o entreposto militar do Gurupá, na foz do
Xingu, sendo disto informados pelos estarrecidos soldados do forte
(MONTEIRO, 1994, p. 07).
39
FILHO, S., Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas, p. 04.
134
Muitas dessas quedas d’águas eram perigosas, catadupas vertiginosas, repletas de pedras
avolumadas e cobertas de limo. Nesses pontos, que não eram raros, “fazia-se necessário
passar por terra, arrastando as canoas ou guindando-as com cordas, no que se gastava
muito tempo e trabalho” (HOLANDA, 1990, p. 76).
Em alusão específica a certo trecho do caminho, onde as quedas são quase
ininterruptas, próximo à Barra do Orelha de Onça, Holanda escreveu:
... uma série de rochedos, de cerca de dez metros de altura, que cortam
transversalmente o rio. Neste ponto era indispensável esvaziar
completamente as canoas e transportar a carga por terra, num
varadouro de quinhentos metros ... Os trabalhos eram efetuados sobre o
barranco íngreme da margem oriental, à custa de grande esforço, e
ainda hoje não se apagou de todo o sulco ali deixado pelos serviços de
varação durante mais de um século (HOLANDA , 1990, p. 80).
Causa entre causas, causa das causas ou causa causorum ... No palmilhar a mata
virgem, no apresar índios, no vadear corredeiras ameaçadoras, no dispersar mocambos, no
transpor morrarias, no trazer à luz o ouro, os bandeirantes causaram muita coisa. Porém, o
aspecto de rendimento físico de seus feitos jaz escondido nos anais da história, quase tão
oculto quanto o ouro que encontraram nos mais recônditos grotões do Brasil.
137
CONCLUSÃO
FONTES E BIBLIOGRAFIA
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TAUNAY, Affonso de E. História Geral das Bandeiras Paulistas .São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, T. XI, 1950.
WIRHE D, Rolf. Atlas de Anatomia do Movimento. São Paulo: Editora Manole, 1986.
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ANEXO
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Para que possam se tornar mais inteligíveis estas asserções de Lindgren e Byrne,
cumpre esclarecer que a epinefrina é um hormônio que tem importante atividade na
elevação da excitação emocional, com pr opriedades que se desdobram e modificam a
movimentação corporal, tornando-a mais ágil. A epinefrina é também conhecida como
adrenalina, sendo sua primeira denominação utilizada em círculos estritamente científicos,
ao passo que a segunda é mais amplamente divulgada em termos comerciais. Já a
norepinefrina é mais conhecida como noradrenalina. Estes dois hormônios produzem
efeitos diferentes no corpo humano, quando secretados pela glândulas supra-renais.
Visando distinguir com mais exatidão o princípio ativo de ambos os elementos fisiológicos
mencionados, vejamos as palavras de Funkenstein:
Enquanto a adrenalina provoca modificações fisiológicas profundas em
quase todos os sistemas do corpo, a noradrenalina aparentemente tem
apenas um efeito primário importante, a saber: estimula a contração de
pequenos vasos sangüíneos e aumenta a resistência ao fluxo de sangue
(FUNKENSTEIN, 1970, p. 210).
No caso dos indígenas de Loreto e San Ignácio, o medo produziu todas essas
modificações fisiológicas em seus corpos. A informação da chegada dos bandeirantes foi o
estímulo externo, a gênese deste extenso rol de transformações orgânico-funcionais
processado nos índios, que reagiram de forma óbvia, regidos pelas leis naturais de seus
corpos. Observemos algumas lacônicas palavras de Lindgren e Byrne: “O medo implica
em movimento de afastamento da situação ameaçadora ...” (LINDGREN; BYRNE, 1982,
p. 253).
Entendemos como importante ressaltar que no caso dos habitantes das duas
reduções em questão, o medo propriamente dito foi antecedido por um período de
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torturante expectativa, gerando grande ansiedade. Isso fic ou claro em nosso texto,
especialmente através das citações de Haubert. Essa ansiedade, que precedeu o medo
ulterior, propiciou uma situação fisiológica latente e constante, nos limites do
prorrompimento abrupto do fisiologismo específico do comportamento fugitivo. Os índios
estavam alertas. Os mecanismos fisiológicos de seus corpos estavam alterados. A linha
tênue que distingue a fisiologia da ansiedade e do medo estava prestes a ser ultrapassada. E
quando isso se deu a movimentação corporal de todos se revelou de forma desabrida,
incontida. Eles esperavam o perigo. Seus corpos já estavam sub-preparados para a retirada
ou escape. A fuga já estava praticamente gestada em termos fisiológicos. Estava contida,
latente, esperando pelo estímulo externo, cuja natureza já era conhecida. Neste sentido,
faz-se necessário distinguir esta situação de outra qualquer, onde o estímulo externo não é
esperado, revelando-se de surpresa. Neste último caso o medo não tem a ansiedade como
prelúdio, gerando uma situação de motric idade não tão extrema quanto a dos indígenas em
questão, uma vez que inexistiu qualquer elemento denunciador da ameaça concreta, que
somente ao se manifestar provocou as mudanças nos padrões fisiológicos corporais,
anteriormente inalterados (ao passo que no caso dos índios já existiam as alterações
causadas pela ansiedade). Em síntese: no caso dos índios engendrou-se uma situação onde
a fisiologia do medo, mesmo antes do estímulo externo, já se processara em seus corpos,
aguardando o ensejo da vazão total; diferentemente de quando o estímulo externo abate-se
sobre um indivíduo desavisado e relaxado. Aqui a fisiologia do medo não estava nem
mesmo em seu estado germinal, ela inexistia antes da percepção da ameaça explícita, pois
somente à partir do evento estimulador foram processadas as transformações nos padrões
fisiológicas. Observemos estes quadros:
Índios de S. Ignácio/Loreto
Conhecimento anterior e espera pelo
estímulo externo.
ANSIEDADE + MEDO = FUGA
Os índios de Loreto e San Ignácio não viram filmes agressivos ou de horror. Eram
conhecedores da realidade, que muitas vezes havia se revelado cruel e assassina, através
das investidas dos bandeirantes. Não viram filmes sexuais ou dramáticos. Eram sabedores
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das sevícias, dos estupros e da agressividade praticados pelos sertanistas paulistas. Sabiam
do perigo nada inverídico, e seus corpos responderam fisiologicamente a ele.
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MANUEL PACHECO NETO
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