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ARTHUR KAUFMANN FILOSOFIA DO DIREITO 3 ior) ii i Preféicio e Traducao Antonio Ulisses Cortés SERVICO DE EDUCACAQ B BOLSAS FUNDACAO CALOUSTE GULBENKIAN LISBOA Tradugio do original alemio intitulade RECHTSPHILOSOPHIE: Arthur Kaufmann © Verlag C. H. Beck oHG, Miinchen, 1997 Reservados todos os direitos de acordo com a lei Edigio da FUNDACAO CALOUSTE GULBENKIAN Av. de Berna — Lisboa 2004 ISBN 972-31-1003-6 Depésito Loyal n® 208 740/04 CAPITULO 10 AIDEIA DE DIREITO - A JUSTIGA como IGUALDADE (JUSTIGA COMUTATIVA) - JUSTIGA E EQUIDADE Bibliografia: A bibliografia sobre a questi da justica, uma questio vita! da buma- nidade desde ha séculos, é imensa. Em seguida, apenas se indica uma pequena parte tlesea bibliografia: a relacionada com o direito ¢ especialmente a de data mais re- cante, A lista vale para os capitulos 10, 11 ¢ 12, que estio estreitamente relaciona- los, Nao vamos repetir a bibliografia geral dada no ponto LUT da introduczo, em due, {quase sem excepgio, também se discute o tema da justica, Bagolini, L., Justice et Société, 1995; Baruzzi, A., Frejheit, Recht und Gemeinwohl; Gamafragen einer Rechisphilosophie. 1990; Baratta, A., Phitosophie und Steal recht, 1985; Baumann, M., RechuGerechtigkeit in Sprache und Zeit, 1991; Bausch 'T, Ungleichheit und Gerechtigkeit; Eine kritische Reflexion des Rawisschen Unter- schiedsprinzips in diskursethischer Perspektive, 1993; Binder, 1, Rechtsbegrift und Rechtsidee, 1915 (reimpressio 1967); Botticher, E., Gleichbehandlung und Waffen- pleichheit, Uberlegungen um Gleichheitssatz, 1979: Brieskom, N Menschen- Fechte: Eine histrisch-philosophische Grundlegung, 1996; Broekman, Af., Recht und Anthropologie, 1979: Bruner, E., Gerechtigkeit, 3” ed, 1981; Dreier, R.. Recht teat - Vernunfi, 1991, p. 8 88. Recht und Gerechtigkeit; idem, Was ist Gerech- tigkeit?, em: JuS 1996, 580 ss.; Engisch, K, Auf der Suche nach der Gerechtigkeit; Haupithemen der Rechtsphilosophic, 1971: Fikentscher, W., Wirtschafliche Ge- rechiigheit und kultorelle Gorechtigkeit; Vom Sinn der Kulturvesgleichung in AAmtvopologie, Wirtschatt und Recht, 1997; Gallas, H.-U., Grundrechte, 1985: Gramsch, W., Billigkeit im Recht, 1921; Habermas, J, Faktizitit und Geltung; B trie zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats, 1992; Hilgendor, E., Der ethische Usiitarismus und das Grundgesetz, em: Brugger Ww. (org), Legitimation des Grundgesetzes aus Sicht von Rechisphilosophie und Gesell- schalistheorie (IStwdRuG, vol. 4), 1996, p. 249 ss.i Haffe, O., Politische Gerech- Gekeit; Grondlegung einer kritischen Philosophie von Recht und Staat, 1987: Hol- lerbach, A., Reflexionen Uber Gerechtigkeit, em: Brieskom, NJMiller: J. 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Serd cla um axioma, uma hipétese, uma norma fundamental, um principio regulativo ou uma condigao transcendental do Direito? Em minha opiniao, nao de- veria colocar-se a ideia de Direito demasiado alto, e sim com- preendé-la como “modelo” da ideia de Homem na sua tripla confi- guragao: 0 homem como ser auténomo (como criador do Direito), 0 homem como fim do seu mundo (e portanto também do Direito) e o homem como ser heteronomo (isto é, vinculado ao Direito). (O es- quema 5 nao tem necessariamente que ser lido “a partir de cima”, sendo mais apropriada a leitura “a partir de baixo”: 0 principal é 0 Homem, a ideia de Direito é secundaria). De qualquer modo, existe um consenso alargado no sentido de que a ideia de Direito é 0 mais elevado valor do Direito. E este mais elevado valor é a Justia. O que serd entdo a Justiga? O que seja a justiga nio € algo que se possa dizer ~- e menos ainda do que 0 conceito de direito — numa exacta € conclusiva defi- niggo. absolutamente irredutt- vel, da ética, da filosofia social ¢ j i f- tiga, social, religiosa c_juridica A-justiga surge no entendimento filos6fico e teolégico como a segunda das quatro virtudes cardinais: \prudéncia a, coragem € tem 4 virtudes seguintes as antecedentes). Muito em especial a democracia 226 est4 ligada a forma fundamental da Justiga: o principio da igualdade enquanto sua mais elevada ideia directiva. A igualdade é 0 ethos da democracia. Pense-se nos clissicos do pensamento democritico, Péricles, Sdlon, Tocqueville... Tradicionalmente distingue-se: 1. {a justica objectiva Senquanto instituigdes € sistemas sociais (Direito. Estado, Economia, Fami; lia...); 2.fa justiga subjectivd enqua ana formula | ‘do diréito romano ¢ de Cicero: “Iustitia est constans et perpetua Yoluntas suum cuique tribuens.”' — No que se segue tratamos em primeira linha da Justica objectiva. A pergunta o que é a Justiga responde-se frequentemente: a jus- tiga € no seu cere igualdade. Mas se a justica é essencialmente igualdade, isso significa também, como é 6bvio, que a justica nao € apenas igualdade. Porém, na época posterior a Kant, especialmente ‘AO positivismo, a justica foi reduzida exclusivamente ao principio da igualdade, isto é, 4 proposi¢éo segundo a qual o igual deve ser tra- tado de forma igual ¢ o diferente de modo proporcionalmente dife- rente. Apenas este princ{pio totalmente formal era tido por cientifi- camente seguro, gs contetidos da Justiga, ao invés, ndo poderiam ser objectos da ciéncia, mas pertenceriam, como sobretudo Kelsen ensi- nou, a politica. Caracteristica é a pergunta retérica de Kelsen: O que € a Justiga? — nfo o sabemos nem nunca o saberemos?. A filosofia do Direito, a doutrina da Justiga, limitava-se ao formal. Com Gustav ruch deu-s fio. Ele voltou a filoso- far sobref€ontetidos| Mas também ele — Radbruch era neokantiano — apenas considerava seguras as afirmagdes sobre formas. No que res- peita aos contetdos defendia o relativismo juridico filoséfico ou axiolégico: acerca das diferentes vertentes e dimensdes da ideia de Direito (ver esquema 5, pagina 229) e das suas relagdes reciprocas nao h4, segundo Radbruch, conhecimentos mas apenas conviccdes (mais exactamente: a ciéncia deve mostrar quais sao as proposigées * Uipiano, 1. 1, 1, prs Ctcero, De officiis 1. V. Esta férmula foi mais tarde retomada, em parte literalmente, por Tomds de Aquino, Summa theologica Il, II, 58, 1. 2H, Kelsen, Was ist Gerechtigkeit?, 2° ed. 1975. 227 racionalmente posstveis, por exemplo sobre os contetidos da Justiga, ¢ prepard-las para a decisdo). De inicio, Radbruch falava expressa- mente das “antinomias da ideia de Direito”>. Também segundo Rad- bruch a justiga é igualdade. Mas ele nao se deixa ficar por af. Visto que o principio da igualdade tem uma natureza meramente formal, é necessério um princfpio material, que Radbruch contudo nao conce- bia como imanente A Justiga, mas antes colocava, sob a designagio de “adequacdo”, ao lado da justiga e da seguranga juridica — que se tora necessaria dado que a adequac4o material apenas vale rela- tivamente e estd, por isso, dependente do poder que estabelece 0 que nao pode ser cientificamente estabelecido. Mais tarde Radbruch mo- dificou a sua doutrina sobre a ideia de Direito de forma nao irre- Tevante, caracterizando a justica (igualdade), a adequagao e a segu- ranga Juridica como Ftrés faces da ideia de direitof’ que “dominam c dito em todas as suas vertentes” e cujas contra- digdes nao se devem entender antinomicamente mas antes como um “conflito da justiga consigo mesma”; a partir daqui Radbruch viu-se compelido a apresentar uma “ordem de prevaléncia dos valores da ideia de direito”*. Como resulta do que foi dito e do que se pode ver no esquema S, ica (em sentido amplo) ter a igualdade (justica em sentido estrito), a adequagdo (segundo outra terminologia: justica social ou do bem comum) e a seguranca juridica 2 juridies) Na igualdade est usa a forma lequi deja e-nasegrana julia, fend da ga. Deve, em consequéncia, ser revisto 0 que acima se disse. A dife- renga entre forma, contetido e fungao da Justiga radica na necessi- dade de andlise sistemdtica das diferentes vertentes da Justica. Na > G. Radbruch, Rechtsphilosophie, 8° ed. 1983, p. 1648s. = GRGA, vol. 2, 1993, p. 302 ss. © No original alemao: “ZweckmaBigkeit”. (N. 7.) * G. Radbruch, Vorschule der Rechtsphilosophie, 3.° ed. 1965, p. 32 s. = GRGA, vol. 3, 1990, p. 149, tanabém jé antes idem, Die Problematik der Rechtsidee (1924) = GRGA, vol. 2, 1993, p. 460 ss. 1A tradugdo nao € literal. No original alemio usu-se “Rangordnung der Wer- tideen’”. Radbruch refere-se a este respeito, nomeadamente, &s hipéteses em que a seguranga deve prevalecer sobre a justiga e as hipsteses em que deve suceder 0 inverso: a justiga deve prevalecer sobre a seguranga. (N. T)] 228 verdade, a justiga é sempre simultaneamente forma, contetido e fun- cdo. A realizagdo da igualdade e do bem comum ¢ fungiio da justiga; © principio da igualdade nao é pensdvel sem contetido; o maximo bem comum n&o é determindvel sem forma; e a seguranga juridica nao subsiste por si, pois s6 sera seguro o direito que respeite o prin- cipio da igualdade e a justiga do bem comum. A divisdo aqui seguida nao significa portanto uma diferenga de natureza da justiga, mas an- tes uma diferente acentuagao. Tl. A JUSTICA COMO IGUALDADE, 1. Objecto ou processo? A questao da Justiga move-se em duas direcgdes: 1. O que éa justiga? e 2. Como conht tao Ontolégica ¢ gnosiolégica. Pen: ¢ durante muito tempo, & muitos pensam ainda, que se podia tratar ¢ responder a estas duas questdes, a relativa ao que é 0 contetide_da justica e a relativa a0 modo conto se conhece a justiga, de forma totalmente separada. A justiga apresentava-se como uma realidade substancial exterior, como um “objecto” que se contraporia ao nosso pensamento e€ que deveria ser recebido na sua pura objectividade pelo “sujeito”. No co- nhecimento nao interviria, segundo se julgava, nada do sujeito cog- noscente, De acordo com tal ideia, ainda hoje se ensinam e escrevem “filosofias do direito”, por um lado, e “metodologias”, por outro, praticamente sem qualquer interligagao. Mas 0 esquema cognitivo sujeito/objecto pertence ao passado, mesmo nas ciéncias explicativas da natureza, ¢ mais ainda nas cién- cias hermenéuticas da compreensao. Por isso, nos tltimos tempos tém-se desenvolvido cada vez mais as zcorias processuais da justica, que concebem a justiga, ¢ portanto também “direito justo”, como produto do processo de determinacao de.dieito — pergunta-se “ape- nas” se exclusivamente como produto de um tal processo ou se [pelo contr4rio] este processo tera um fundamento material (“ontolégico”, © que nao significa necessariamente: “ontolégico-substancial”). ({seatoxa09} seoxpynl seuou Sep oUyEUNSOP) ouroug.a1o4 198 oWoo 229 wauleH apopinqsy apepynqosueld — apMPIBOd omy qouotoung vapoadstag GouNquE o aNAd as anb esed sepeyniar 49s saginquord ‘sagsuaio1d “sproug8ixe Se manap sora anb 4og sopSuny (eaippinf 22d ‘onan op apepsgerss owioo edusnf) vorpunf nduninSog. wawoy vossad eURUINE apeprudigy {feiGawepung {oy ep £2 Tt ‘ef O8TMP) OUFOUSINE 395 OOD wawoH stoacayn?® ——_(woytjod woo) sa100a 9p 20pEN9 12}208 $13 enpraspu ‘owoo WaWOH wos wewop] omenbue weWoH apeprunino pepIOL, apeparos sreamyjno saxopeA sopod peps2qr] pwossodsuvs, visqonprepu-pedhig accra ee sanoyay po4a8 aquauomposay opnamog op wanoadssag soone sus sopepissaaou ‘searreizadxa “sassauo1uy {opeynitas 29s anap anb ( sopmauo:> (qe1208 eSnsal ‘winuzos wag op esnsnt “w1)-P190T) opdonbepy pousoyy vapivadsaag aninna wang ‘ovtautp op apeprTrauad Bp 177] our op OFA, {iepta ep sopraumuadusos 50 sopelnfla) 498 woaap ounor) ‘mag (ous opnuss we ednsny) | apopjon’ (oidum opnuas uto winsng) ones ts VAENDSA 230 Sobre as teorias processuais da justiga, tema central da actual filosofia do direito, falar-se-4 mais em pormenor no capitulo 18 (leiam-se também as referéncias feitas na “introdugdo”). 2. Igualdade, semelhanca, equiparacao O principio da igualdade é, como se viu, antes de mais pura- mente formal. Ele afirma tdo-somente o igual deve ser tratado de forma igual ¢ o diferente de modo proporcionalmente diferente. Nao didlo que € iguallou diferente (o que € importante para a configura- ¢ao das previsdes legais) nenfcomo ke deverd tralar o que é igual ou diferente (o que importa sobretudo para a determinagdo das con: quéncias juridicas). Ora acontece que nada no mundo é absoluta- mente igual ou diferente, sendo sempre apenas, por referéncia a um termo de comparagio (tertium comparationis, porventura a “ratio iuris”), mais ou menos semelhante e dissemelhante (por isso é sem- pre logicamente possivel em vez da analogia a conclusao @ contra- rio). Aigualdade é abstracc4o da diferenca e esta, por sua vez, é abs- tracgao da igualdade. Nao ha uma fronteira légica entre igualdade ¢ semelhanga, a igualdade material é sempre apenas semelhanga_por Assim, a igualdade é sempre um acto de eguiparacdo ¢ este acto nao assenta apenas no conhecimento racionat, implicando sempre, ¢ antes de mais, uma decisdo de poder*. Um exemplo. O legislador es- tabelece por forga da sua autoridade que, em relagdo 4 capacidade de exercicio, as criangas desde o nascimento até aos sete anos de idade, as dos sete até aos dezoito anos e os maiores a partir dos dezoito anos de idade so sempre iguais entre si, apesar de uma crianca de sete anos se diferenciar por regra consideravelmente dum menor de de- zassete anos; € na distingdo entre estes trés grupos também se veri- ficam desigualdades: uma pessoa de dezassete anos um dia antes ¢ 5 Sobre a equiparagio, segundo um ponto de vista tido por essencial, do que € diferente, ver, mais em pormenor, A. Kaufmann, Analogie und “Natur der Sache”, 2." ed. 1982, p. 18 ss., esp. p. 26 ss. Sobre o principio da igualdade, em especial sobre a igualdade e a justica social, ver antes de mais H. F Zacher, Soziale Gleichheitssatz und Sozialstaatsprinzip, em: AGR 93 (1968), 341 ss 21 uma outra de dezoito anos um dia depois de fazerem dezoito anos sio legalmente diferenciadas. Ou: nenhum assassin é igual_a outro, mas todos si0 equiparados ao serem punidos com prisiio perpétua. Ou mais um exemplo: fala-se hoje muito dos “direitos da natureza” e em especial dos animais; em que medida e sob que perspectiva (porventura, a capacidade de sofrimento) sao os animais (e quais ani- mais?) semelhantes ou dissemelhantes do Homem?® Ainda hoje o Livro V da “Btica a Nicémaco” de Aristételes € 0 ponto de partida para qualquer reflexao séria sobre a questio da jus- tiga. O cerne da justiga é, ensinava ele, a igualdade. Mas enquanto muito mais tarde (por exemplo Kant) ainda concebeu a justiga como algo formal e numérico (Kant: “se assassinou, tem de morrer..., assim 0 exige a justiga enquanto ideia do poder judicial segundo. leis gerais fundadas a priori”)’, Aristételes compreendeu-a, muito mais adequadamente, como algo proporcional, geométrico, analé- gico. O igual € um meio termo ¢ portanto a justica é o proporcional. A proporgao exige contudo um critério; a analogia, um termo de comparaciio. Aristételes chamou a este critério “valor”. F claro que com isso se convocou 0 ponto cardinal, mas também toda a proble- matica da questio da justiga®. A igualdade é portanto umaljgualdade de relagdes ‘uma corres- pondéncia, uma analogia. O cardcter analégico do ser (que nao se funda necessariamente na doutrina teoldgica da analogia entis problema de Deus) é 0 pressuposto para que possamos alcangar uma ‘ordem no nosso saber e nas nossas relagdes. Se tudo fosse idéntico, se ndo houvesse quaisquer diferengas, entdo seria despropositado, sendo mesmo impossivel, formar diferentes palavras ¢ diferentes normas, Se nao houvesse conexdes entre as coisas, entio terfamos de ter um nome especffico para cada coisa e uma norma especifica para SCE_A. Kaufmann, Gibt es Rechte der Natur?, em: Festschrift fir Giinther Spendel, 1992, p. 59 4s, também em: idem, Uber Gerechtigkeit, 1993, p. 369 ss. Sobre isso, ver também, in- fra p. 447-453, 7 Kant, Metaphysik der Sitten, Edigio da Academia, p. 333 8 # Aristételes, Btica a Nicémaco, 1130b a 1133*. Sobre isto, ver M. Salomon, Der Begriff der Gerechtigkeit bei Aristoteles, 1937. — Ja Plardo se tinha pronunciado de forma sagaz so- bre semelhanga ¢ dissemelhanga no “Parménides”; 144a ss., esp. 147c, 149¢, LOLa-d. 232 cada acgfo. 86 existe ordem com base na analogia do ser, que é algo intermédio entre identidade e diferenga, entre absoluta igualdade e absoluta diversidade (relembrem-se mais uma vez as palavras de Goethe anteriormente citadas na pagina 119). 3. Os tipos de justica J4 Axistételes distinguia, como ainda hoje se faz, dois tipos de justia em que a igualdade se manifestava de duas formas diversas: a justiga comutativa ja commutativa) € a justica di. is quela € a justia entre os dk or natu- reza. mas iguais perante a lei; ela implica a absoluta igualdade entre prestagdo e contraprestacdo, entre aquilo que_a lei considera _equi- valente (mercadoria ¢ prego. dano_e indemnizacdo). Esta, por seu lado, exige a igualdade proporcional no tratamento de uma plurali- dade _de pessoas: a repartigao de direitos ¢ deveres de acordo com critérios de merecimento, capacidade, necessidade, culpa como 6:3 = 4:2, também o assassinio esté para o furto como a pena de prisdo perpétua para a prisdo temporaria). A justiga distributiva é a forma primordial da justiga, pois a justiga comutativa do direito privado pressupée um acto ptiblico da justica distrib itiva, por exe! plo a atribuigio de um status especifico como sejam a pel jade juridica ou a capacidade de exercicio. Por isso, a f6rmula “swan cui- que tribuere” nao pode ser entendida de acordo com um igualita- rismo uniformizante; nao significa, a todos o mesmo, mas a cada um aque € seu, isto é, a oportunidade de se tornar naquilo que tem em si de possibilidades positivas. Tomds de Aquino completou 9 ° sistema aristotélico com uma ter- ceira forma de j a: aJu titia legalis)®, que poe em \+® relevo ofdever no indi por exemplo dever de. votar, deveres judiciais, dever ‘le uso social da propriedade. Ilus- tram-se os trés tipos de justica (igualdade) nos esquemas 6 e 7 (pa- ginas 234 e 235). Como se depreende do esquema 7, a justica distri- butiva propria do direito publico ¢ a justiga comutativa € propria ° Tomas de Aquino, Summa theologica I, U1, 57 $8. 233 do direito privado. Em ambos se impée e vincula a justica legal, o mesmo sucedendo duma forma especffica no direito social. esté intimamente relacionado com um importante imperativo ético, ‘ou seja, com o mandamento de tolerdncia, e & um principio anti- quissimo. Jé na época dos pré-socraticos, imandro _ensinava: tudo o que é, 6-0 enquanto ente na ordem. E isso significa que com aexisténcia se d4 também _um direito a ser e a ser como se é. um di- reito de afirmacio do seu prdéprio ser, e que portanto também se deve deixar o outro ser o que ¢ ¢ como 41°, Isto ouve-se € lé-se tao simplesmente e é contudo tio dificil como o préprio mandamento de tolerancia. Deve deixar-se 0 conde- nado penal ser 0 que € ¢ como €? Certamente nao, mas ele apenas pode ser responsabilizado com estrita: as juridi cesso justo (“in dubio pro reo”). Em todo 0 caso tem de se deixar as personalidades “fora do normal” (se é que ainda hoje se pode ver al- if guém como “fora do normal”), por exemplo aqueles que tém dispo- sigdes homossexuais, serem 0 que so e como sio, quando nao lhes be & possivel identificarem-se com o “normal”. TIL JUSTICA E EQUIDADE Aristoteles também reflectiu sobre a relagao entre justiga e equi- dade, € Com grande acerto, A equidade € apresentada como “justiga do caso concreto” |. Na pratica ela desempenha um papel nao negli- “ genciavel. No direito anglo-americano, que é predominantemente direito casuistico e nao direito legal, a jurisprudéncia da equidade desenvolveu-se como uma instituig&éo de enorme importancia no in- terior da ordem juridica global. O problema estd ent&o em saber como € que a equidade pode ser colocada em campo contra a justia, sendo a justica o valor juridico '® Mais em pormenor, Erik Wolf, Griechisches Rechtsdenken, vol. 1, 1950, p. 226 ss, esp. 233 s. 8 Aristételes, Etica a Nicémaco, 1137a a 1138a. 234 (eonpundejeurs ednsnp) vannemuoo eSnsny Stenprarpul seossag. > sienprarpul seossag paprorrunwon vpIsny apepais0s. (2poppondy vp ordsouped sonuisa opuiuas wa vdysne) (ennsny osusnp y +9 VINANOSA 235 ayminuauos puNsAy (opeang onan) vpeaud eSnsng ‘19 “TeIDOS OrfaaTC] ‘ouLeqeLL, Op OMI bauinquisip onusny eSnsng Coomang onana) [p190s eSusnp 1089] Dysny 4 VINENOSA 236 mais elevado — ou sera que afinal nZo 0 é? Aristdteles deparou-se com este dilema. Por um lado, a equidade seria melhor do que o di- Teito legal, mas, por outro Jado, nao o seria no sentido de pertencer a um género diverso. Vejam-se aqui literalmente as passagens deci- sivas: “A raza i lade esté em que a equidade. t direito, nao é direito legal. mas sim a sua correccdo. Esta pode justi- ficar-se pelo facto de toda a lei ser geral e nao ser possivel, em mui- tos casos, obter uma decisao justa através duma regra geral. Por ve- 125 T HeLeTETG gue e elaelega uma Tegra geral. que no poders ser sempre justa, pois apenas considera a maioria dos casos, 0 que nio significa que se ignorem as omissdes decorrentes desse procedi- mento. E tal procedimento nao deixa de ser correcto. Pois as omis- sdes nao resultam nem da Jei nem do legislador,mas-danatureza do caso’... Assim, quando a lei se pronuncia de forma geral e, segui- damente, surge um caso particular a que essa regra geral nao se ade- qua, é justo, visto que o legislador, pronunciando-se de forma geral, nao teve em vista este caso e 0 ignorou, suprir tal omissdo, tal como 9 proprio legislador teria feito se tivesse 0 caso diante de si e, tendo tomado conhecimento dele, o tivesse contemplado na lei 3. Nao é partante-certe-dizer-que-a equidade é a “‘justica da.caso concreto”. Toda a norma tem de generalizar'*. Uma “norma” indivi- dualizante, uma “norma” especificamente para este, aquele ou aque- loutro caso é uma autocontradigio, nado é uma norma. E evidente que a generalizacdo pode ter diferente amplitude, a norma nao tem de va- ler sempre para todas as pessoas, mas sim para todos os menores, para todos os comerciantes, para todos os assassinos. E neste ponto se distinguem justica e equidade. E uma diferenga de pontos de vista, "2 To gur humartema ouk en to nomo oud en io nomothetei all’ en te physei tou pragmaios estin. No original alemo, as palavras utilizadas para traduzir a expressdo grega “physel tou Ppragmatos” foram: “Natur der Sache”. 13 Este dltimo enunciado também veio a ter um ressurgimento que se tornou célebre, no antigo 12, seco 2, do Cédigo Civil suigo de 1907, onde se diz que, em caso de lacuna (quando lei e 0 direito consuetudindrio sdo omissos), o juiz deve “decidir segundo 2 regra que criaria se Fosse legislador’’ O juiz como legislador! Veja-se também, supra p. 128, esquems 3 '4 Mais em pormenor A. Kaufmann, Generalisierung und Individualisierung ira Rechis- denken, erm: ARSP-Beiheft 45 (1992), p. 77 ss., também em: idem, Uber Gerechtigkeit, 1993, p. 3275s. 237 paradigmaticamente do ponto de vista do legislador, por um lado, e do ponto de vista do juiz, por outro lado: aquele parte da norma ge- ral para 0 caso concreto (dedugdo), este, do caso concret a norma geral (indugao). Também a equidade nao pode portanto considerar e valorar um resultado singular, uma pessoa individual totalmente por si. S6 o poder4 0 arbitrio e - paradoxalmente — a graga, na qual a justiga é efectivamente superada, pois a graca deixa a sua luz brilhar da mesma forma sobre justos e injustos, enquanto a justiga, e nado me- nos a equidade, tém de repartir o que é de cada um em relagdo aos outros (com 0 que se confirma mais uma vez a ideia do caracter re- 'acional do direito). TV. EXCURSO: A PENA JUSTA Sobre a “justiga em geral” poderia ainda dizer-se algo mais, sendo certo que tais desenvolvimentos sempre teriam um considerd- vel grau de abstracgao. Em vez de continuar com este tipo de consi- deragoes, irei, para terminar, ilustrar, através de um exemplo, o modo como se interligam as formas de justiga. Escolho o exemplo da “pena justa” pois, por muito diferentes que as diversas teorias da pena pos- sam ser, todas convergem na tentativa de fundamentar a “pena justa”. Além disso pode explicitar-se através deste exemplo, de forma espe- cialmente impressiva, a doutrina classica da justiga. Nao se deve con- tudo entender isto como se Aristételes tivesse j4 resolvido todos os nossos actuais problemas. Pois tal nfo é verdade. Mas esses modelos cldssicos podem eventualmente servir para ordenar os argumentos ¢ contra-argumentos das miltiplas discussdes quotidianas, tornando claro para cada um € para os outros, a que nivel se estd a argumentar. As consideragdes seguintes nao constituem uma solugao magica para todos os problemas, mas poderao, segundo penso, trazer luz a actual discussio sobre as teorias da pena. A base est4 no esquema 8 (pré- xima pagina), que se pode compreender sem maiores explicagées. Como 0 leitor jd sabe, Kant ainda concebeu a igualdade de modo formal _e numérico, ¢ portanto no espirito do principio de taliao. 238 sootppant suaq ap oySoaio1g teyoos edbnsng I renpiaipur eSnsne pp908 onSopnanuy mspeau yns08 opSuanaid (4 Czorppat wapio rp esayap,,) apapeq08 np opsoriiqnisg zeanisod [e128 opsuaaaig (F jonas opsvndoy SSeuRyUNUNOD sPIDueTIKa se EpENbapE rudd (eroos opssnaradoy aia oysuuanaig apepisogviod wp oyssaidng (9 mioupnsoapy (@ opdnzyoizossoy (e awo8e op apepreuosiad g epenbope rug (onbino wnns) anejar apepjendy prvedsa opsuatarg (umaaoad au anand) miad np soannja souoay paungeeisip vnIsHT eanngunsip sSnisay vdusny nist ouad y (edna vp oxdestodaroy) ovbinginsy (C-oujo sod oufo) euad 2 vdqno anua ‘enjosqe apeprendy opyot ap odyotaeg (280 wnyoo2ad vynb anmund) ‘owed up sormyosqn souoay 8 VAGNOSA 239 O igual tem de ser retribufdo com algo exactamente igual: olho por olho, dente por dente - “Se matou, entio deve morter; nfo existe aqui qualquer outra possibilidade que satisfaga a justiga.”'S Sobre isso Avistétefestivera uma concep¢ao muito diferente e mais ajus- tada da justia como igualdade: nao é a igualdade numérica que re- leva decisivamente mas sim a igualdade proporcional, geométrica, telacional’*. O igual é um meio, diz ele, um meio termo entre 0 ex- cesso e a falta. E visto que o igual é algo intermédio, também o di- teito é algo intermédio e portanto algo proporcional. Para Aristételes a forma decisiva da justiga € a justiga distri- butiva enquanto igualdade proporcional no tratamento duma plu- ralidade de pessoas: a reparti¢ao de direitos e deveres segundo um critério de merecimento, capacidade, necessidade... A justiga dis- tributiva & por outras palavras-0-PrLiciplo suum cuiquetribuere. Ela é a forma primordial da justi¢a, Concordando com Aristdteles em que no direito esté essencial- mente em causa a justiga distributiva e portanto a igualdade propor- cional (e ha argumentos de peso nesse sentido), o principal fim da pena serd a prevencao especial e, dentro desta, em primeira linha a ressocializacao, Ao agente é atribuido “o seu”, aquilo de que precisa Para_que te viver na comuni juridica, para que nao reincida, “Nemo prudens punit, quia peccatum est sed ne pecce- tur’, diz-se em Séneca; todos os juristas conhecem esta frase, mas poucos saberdo que Platdo tinha jé antes dito o mesmo'’. Necess4- ris ua ressocializagéo pode ser precisamente uma rentincia a pena_ou pelo-menos 4 sua execugdo, o que sob o ponto de vista da justiga (da retribuig&o) pareceré_injusto e portanto inadmissivel. ‘ant acentuou alids isso com todo a énfase. 'S Kant, Metaphysik der Sitten (n. 7}, p. 333. A pena de morte no encaixa no sistema das penas de multa ¢ prisio, é uma reliquia de tempos muito passados. Incompreensivelmente ainda se mantém mesmo em sociedades contempordineas como alguns dos Estados federados dos BUA € no Jupio. onde o velho mestre da ciéncia jur{dico-criminal japonesa, Shigemitsu Dando, wer propugnado insistentemente pela sa aholigdo, infetizmente sem ter tido até #0 momento qualquer sucesso (por ultimo, evidentemente em Lingua japonesa: “Towards the Abolition of the Death Penalty”, 1997), 'S Aristételes, Etica a Nicémaco, 11334 ss. ° Séneca, De ira, Liv. 1. cap. xix; Platéo, Leis, 934a. 240 Hoje a palavra de ordem € “estabilizagdo da sociedade”. Com isto ficamos diante da justiga legal que Aristételes tinha pensado integrada na justiga distributiva. A sua autonomizacao torna con- tudo claro.o m culacdo do individuo em face do todo: a propriedade é disy mbém vinculada. Sem dévi que quem viola o direito tem também deveres em face da comuni- dade, devendo suportar encargos que, sob o ponto de vista da so- cializagao, se mostram desnecessdrios ou até mesmo manifesta- mente prejudiciais. O melhor para a ressocializagao do delinquente penal sera muito frequentemente uma pena moderada e nao raras vezes deixé-lo mesmo em liberdade. Mas isto nao pode ser assim, pelo menos, nos crimes mais graves. Af a sociedade nao compactua. O sentimento de fidelidade ao direito das pessoas cumpridoras corromper-se-ia com a absolvicdo ou punicio_ligeira, diz-se. E por isso devem “para defesa da ordem juridica” (§§ 47 I, 56, III, ¢ 59, I, todos do Cédigo Penal), impor-se também aquelas penas, e mesmo penas muito severas, que na perspectiva do agente nao so necessdrias ou sdo até prejudiciais (“prevengdo geral positiva”). Mas o que recomenda aqui 0 “equili- brio”? Precisamente a origindria exigéncia de uma propor¢do: tanto entre virtude ¢ recompensa como entre delito e pena. Pois é precisa- mente “o que exige a justica... de acordo com leis gerais fundadas a priori”. Esta frase de Kanr'® mantém a sua validade, ainda que no com 0 rigorosismo com que ele a pensou. Lancemos ainda um olhar pelo esquema da pagina 238. A pena € em primeira linha um acto da justia distributiva: deve atribuir-se ag agente “o seu”, aquilo que Ih Mas este nao pode ser 0 tinico principio, pois o agente nao existe isolado e ¢ sempre mem- bro duma comunidade. Por isso, a pena tem também de ter em consi- deragao aquilo que é necessdrio 4 comunidade (justicalegal), e aquilo que lhe é necessario, nomeadamente para a manutencio e estabiliza- go da confianga juridica, é antes de mais a certeza de que, a0 facto culpavel, é aplicada a “correspondente” pena (justiga comutativa). ** Kant, Metaphysik der Sitten (n. 7), p. 344. 241 Para a comunidade & necessdrio, como dizem as palavras de Kant, que “se actue em relagio a todos de acordo com 0 valor dos seus ac- tos’”!9. Por isso, aquilo que da “prevengdo geral positiva”’ pertence @ justiga Jegal, chamaria eu antes “reparagdo social”, pois assim fica mais claramente expresso que 0 agente deVE ISSA sawiedade. Tendo em conta que a “prevenco geral positiva” € um acto da justiga Co- motativa, no vejo nenhuma razdo para nao utilizar a expressio tra- dicional “retribuieae>- O princip: (Jim da pena, portanto, a prevencdo especial, e par- ticularmente a ressocializagao. A ela acrescem os outros fins da pena: retribuigdo (compensagao da culpa) e reparagdo social delimitando e moditicando (podenias deixar de parte a intimidagao). A tutela de bens juridicos, que esta fundamentalmente sempre em causa na pena estadual, nao é um fim auténomo ao lado dos outros trés, ndo é um aspecto parcial da.pena endo antes © resultado duma articulagdo 6ptima entre elite fins da pends Uma das numerosas consequéncias politico-criminais que resul- tam do que foi dito respeita & pena de prisio perpéta. O problema central é o de saber se uma pena, que do ponto de vista da preven- ¢fo_social nunca se justificaria, pode ainda considerar-se defens4- vel em nome da estabilizagdo da sociedade. Talvez tenhamos que responder afirmativamente rebus sic stantibus, isto é, no quadro de relagdes actualmente existente. Mas certamente chegard o dia em que a sociedade mantenha 0 seu equilibrio, mesmo sem reagir ao as- sassinio com prisao perpétua, Também a “pena justa” tem uma me- dida histérica. Ela tem de ser constantemente redefinida. Todavia, sem um ponto de orientagao cai-se facilmente no efémero e desvin- culado. 18 Kant, Metaphysik der Sitten (n. 7), p. 333. CAPITULO 11 A IDEIA DE DIREITO - A JUSTIGA COMO JUSTIGA SOCIAL (JUSTIGA DO BEM COMUM, ADEQUAGAO) Bibliografia: Ver capitulo 10. 1A DOUTRINA DOS BENS ETICOS 1. Socializacao: a comunista ¢ a crista O princy mal. mate! do direito. Importa saber 0 que corresponde ao maximo bem comum. Esta questio é objecto tanto da doutrina dos bens éticos como da justiga social, que, apesar de se interligarem de varias formas, néo se identificam (sobre a delimitagdo ver, mais em pormenor, infra, capitulo 14: Direito e Moral). Desempenha af um papel de relevo 0 principio da universalizagao: 0 que é o bem, 0 justo para todos?! Varias correntes tentaram uma resposta: 0 hedonismo, o eudemonismo, da igualdade é predominantemente de natureza for- © No original alemao: “Zweckmiigheit”. (N. 7.) © No original alemao: “Zweckidee”. (¥. 7.) Toda a norma tem de universalizar mesmo quando também possa especializar. Uma “norma” que pretenda valer apenas para determinados individuos, para determinados casos concretos, nao é uma norma, Por isso, as generalizagdes (como ja antes se disse) sao “equipa- rages de realidades diferentes segundo @ medida dum termo de comparago” e, portanto, exercicio do poder. Nao hd aqui nada de errado, s6 temos de o saber e estar preparados para isso. Cf., detalhadamente sobre isso, A. Kaufinann, Generalisicrung und Individualisierung im Rechtsdenken, em: ARSP- Beiheft 45 (1992), 77 ss., também idem, Uber Gerechtigkeit, 1993, p. 327 ss. 244 © pragmatismo, o utilitarismo, o perfeccionismo ético... Ao longo de todos os tempos os grandes filésofos perguntaram pelo “bem su- premo” que deve ser 0 objectivo de todo o agir moral: Aristételes (Etica a Nicémaco), Cicero (De finibus bonorum et malorum), Agostinho (De beata vita), Kant (Metafisica dos Costumes). Mas 0 bonum commune nao € apenas um tema para os filésofos, ele apela para todos os que se encontram na vida ptiblica. Em ultima andlise, os Programas dos Partidos Politicos sao sempre tentativas de dar res- posta a quest&o de saber como é que se pode realizar o bem comum. A ordem é uma das mais elementares necessidades da humanidade; o homem pode (provisoriamente) viver sem medicina cientifica, mas nao sem ordem?. O “Manifesto Comunista” de Marx e Engels (1872) constitui precisamente o projecto dum modelo de bem comum, ¢ 0 mesmo sticede com as Enciclicas papais desde a “Rerum Novarum” de Ledo X#if (1891) até a “Centesimus annus” de Jodo Paulo IT (1991). Apesar das enormes diferengas que existem entre o “Mani- festo Comunista” e as Enciclicas dos Papas, ha também convergén- cias que a primeira vista provavelmente nao se imaginam. Por alguns leitores da anterior edigdo deste livro terem achado que deviam nele ser incluidos os textos a que esta afirmagio se refere, eles serdo aqui transcritos. — Do “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, 1872: Toda a sociedade se divide cada vez mais em dois grandes cam- pos inimigos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado... A burguesia... substituiu a exploragao velada, por ilusées religiosas e politicas, por uma exploragdo desca- rada, directa e brutal... A burguesia suprime cada vez mais a repar- tigdo dos meios de produgdo, da propriedade e da populagdo. Aglo- merou a populagao, centralizou os meios de producdo e concentrou a propriedade num pequeno nimero de mdos... A medida que cresce @ burguesia, quer dizer, 0 capital, desenvolve-se também o proteta- 7 A questo do interesse individual ¢ do interesse comum & até um tema para sistemas 50- ciais do tipo dos das abelhas. Ver, W. Fikentscher, Oikos und Polis und die Moral der Bienen ~ eine Skizze 21 Gemein-und Eigenmutz, em: F Haft et al. (org.), Suafgerechtigkeit; Fest- schrift fr Arthur Kaufmann, 1993, p. 71 ss. 245 riado, a classe dos operdrios modernos que ndo vivem sendo na con- digdo de encontrarem trabalho... Estes operdrios, obrigados a ven- der-se dia a dia, so uma mercadoria, um artigo de comércio como qualquer outro... Eles ndo sdo apenas os escravos da classe bur- guesa... eles sdo, diariamente a todas as horas, os escravos da md- quina, do contramestre e sobretudo do préprio burgués fabricante... O proletariado passa por diferentes etapas de desenvolvimento... OS conflitos entre operdrio individual e burgués individual assumem cada vez mais o cardcter de conflitos entre duas classes. Os operd- rios comecam por formar coaliz6es contra os burgueses; juntam-se para defesa dos seus saldrios... O Lumpenproletariado™, esse apo- drecimento passivo das camadas mais baixas da vetha sociedade pode ser arrastado para o movimento por uma revolugdo proletdria... Todas as sociedades anteriores... se basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas... Os comunistas sdo... 0 sector mais resoluto dos partidos operdrios de todos os paises... O objectivo imediato dos comunistas é 0 mesmo que o de todos os outros par- tidos proletdrios: constituigdo dos protetdrios em classe, derruba- mento da dominagdo burguesa, conquista do poder politico pelo proletariado... Q que caracteriza o comunismo ndo é 4 aboligdo da propriedade em geral_ mas antes 4. aboligdoda, propriedade bur- _guesa.. Vos {a burguesia] ficais horrorizados por querermos abolir a propriedade privada. Mas na vossa sociedade actual @ proprie- dade privada esté abolida para nove décimas dos seus membros... O comunismo nao tira a ninguém a faculdade de se apropriar dos produtos sociais, tira apenas o poder de subjugar 0 trabalho alheio por meio dessa apropriagdo... Jd acima vimos que 0 primeiro passo da revolucao operdria é a elevagao do proletariado a classe domi- nante, a conquista da democracia... O proletariado servir-se-a da sua supremacia politica para retirar pouco a pouco Q burguesia todo o capital, para centralizar todos os instrumentos de produgéo nas maos do Estado... Os comunistas declaram abertamente que os seus objectivos sé podem ser alcangados através da subversdo ©) No original alemdo: “Lumpenproletariat”. E 0 proletariado sem consciéncia de classe. (.T) 246 violenta de toda a ordem social actual... Proletdrios de todos os paises, uni-vos! — Da Enciclica “Populorum Progressio”, do papa Paulo VI, 1967 (n°*23 ¢ 24): A propriedade privada ndo constitui para ninguém um direito in- condicional ¢ absoluto. Ninguém tem direito de reservar para seu uso exclusive aquilo que é supérfluo, quando a outros falta 0 neces- sdrio. Numa palavra, “o direito de propriedade nunca deve exercer- -se em detrimento do bem comum, segundo a doutrina tradicional dos padres da Igreja e dos grandes teélogos”. Surgindo algum con- flito “entre os direitos privados adquiridos ¢ as exigéncias comuni- térias primordiais”, é ao poder piiblico que 0 compete “resolver, com a participagdo activa das pessoas e dos grupos sociais” [aqui € citado Santo Ambrosio]. O bem comum exige por vezes a expropria- ¢do [11], se certos dominios formam um obstdculo a prosperidade colectiva, pelo facto da sua extenséo, da sua exploragdo fraca ou nula, da miséria que dat resulta para as populagées, do prejuizo considerdvel causado aos interesses do pais. — Da Enctclica “Laborem Exercens” do papa Jodo Paulo Ul, 1981 (n2 14): Por outras palayras, a propriedade, segundo o ensino da Igreja, nunca foi entendida de maneira a poder constituir motivo de con- traste social no trabalho. Conforme jd foi recordado acima, a pro- priedade adquire-se primeiro que tudo pelo trabalho e para servir ao trabalho. E isto diz respeito de modo particular & propriedade dos meios de produgdo, Considerd-los isoladamente, como um con- junto a parte da propriedade, com o fim de os contrapor, sob a forma do “capital”, ao “trabalho” e, mais ainda, com o fim de explorar 0 trabalho, é contrdrio a prépria natureza de tais meios e 4 sua posse. Estes néio podem ser possuidos contra 0 trabalho, como ndo podem ser possutdos apenas para serem possuidos, porque o unico titulo le- gitimo para a sua posse — ¢ isto tanto sob a forma da propriedade privada como sob a forma da propriedade piblica ou colectiva — é que eles sirvam ao trabalho; e que, consequentemente, servindo ao trabalho, tornem posstvel a realizagao do primeiro principio desta ordem, que é o destino universal dos bens e o direito ao seu uso 247 comum. Sob este ponto de vista, em consideragdo do trabalho hu- mano e do acesso comum aos bens destinados ao homem, nao é de excluir a socializacao de certos meios de produgao, contanto que se verifiquem as condigées opertunas. Vimmos 0 “Manifesto Comunista” e duas Enciclicas sociais dos Papas. Nao se pode negar que existem pontos de contacto. Tal nao nos permite naturalmente ignorar que entre Marx e Engels, por um lado, e os Papas, pot outro lado, existe uma profunda divergéncia ou até antagonismo. Muito provavelmente ambos os lados, os marxis- tas-comunistas e os Papas, iriam, desde logo, lamentar o facto de ser aqui feita uma comparacao. Os autores do “Manifesto Comunista” opunham-se tenazmente 2 m “socialismo clerical”, que pretenda “dar a0 ascetismo cristio uma matriz socialista”, e, como que pretendendo condenar as enci- clicas sociais dos Papas antes mesmo de elas serem escritas, acres- centavam: “Nao levantou também o Cristianismo a sua voz contra a propriedade privada, contra o casamento, contra o Estado?... O so- cialismo cristao € apenas a 4gua benta com que o clero consagra a irritacdo dos aristocratas.” E o que sucede do outro lado? Em que medida se pretende mesmo seriamente a expropriagdo ¢ socializagdo em caso de mau uso da propriedade? Sem diivida alguma que elas nao sao defendi- das com a mesma énfase com que se reclamam os mandamentos e proibigdes no Ambito da familia, sexualidade, contracepgiio, aborto, métodos de inseminag4o artificial... Diferentemente de Jesus (Lucas 6,24: “Pobres de v6s que sois ricos”), no ha indignagao perante o luxo dos excessivamente ricos. Em que medida leva realmente a sé- tio o Papa a sua afirmacao, de que a justificagdo da propriedade pri- vada e do patrim6nio é unicamente 0 trabalho, sendo certo que a rea- lidade faz dela tabua rasa. Ser4 realmente pior a contracepcao do que a injustiga social? Melhor do que através de muitas palavras, pode caracterizar-se 0 conhecimento que se tem das Encicticas sociais do Papa através dum acontecimento. De acordo com uma noticia saida no jornal Siiddeutsche Zeitung, aconteceu, em Junho de 1996 no Parlamento alemfo, o seguinte: quando o deputado do Partido Social Democratico (SPD), Hans-Jochen Vogel (catolico), leu em voz alta 0 248 texto de Jodo Paulo LH! acima citado, sem antes nomear 0 autor, di- fundiu-se na bancada democrata-crista uma notéria sensagio de in- tranquilidade — especulou-se se seria “socialismo” ou até “comu- nismo” —, a penosa consternagiio sé se desvaneceu quando Vogel nomeou a fonte. Nao estarfio as Encielicas sociais dirigidas antes de mais aos politicos cristéos? Estes, porém, no as conhecem. As oposigGes so invencivelmente amplas. Tanto mais sendo no- tério que, no 4mbito da economia, trabalho e propriedade, ha exi- géncias 140 elementares que mesmo forgas reciprocamente opostas ou até hostis estio dispostas a reconhecé-las de igual modo ainda que apenas no plano verbal. E precisamente o que sucede com os direitos humanos. O que aqui se mostrou confirma-se também de outro modo: a escolha das palavras é por vezes muito diversa. Enquanto a ética tra- dicional fala de “bonuwm” e portanto também de “bonum commune” (sendo verdade que ainda hoje se utiliza na ciéncia juridica a palavra “bem juridico”), a tendéncia de tempos mais recentes é no sentido de se colocar, no seu lugar, o “fim” (Rudolf v. Jhering) ou o “interesse” (Philipp Heck). E aqui especialmente de mencionar Weber ea —¥p Sua distingao entre racionalidade finalistica ¢ racionalidade valara- tiva™. O acento ténico esta na racionalidade finalistica, que € alheia a valores; a racionalidade valorativa, que nao est4 ao alcance dum processo cientifico, tem apenas 0 significado restrito de um correc- tivo. Em Max Weber 0s valores sip reconduzidos_a0 relativismo. Nessa medida, verifica-se um paralelo com Gustav Radbruch que fala também de “fins” ¢ de “adequagiio”. Mas para Radbruch os fins nao sao valorativamente neutros; ele equipara até com relativa fre- quéncia valor e fim. Ele é, evidentemente, como Weber, um defensor do relativismo axiolégico, mas os valores sio, segundo Radbruch, pass{veis, ainda que apenas limitadamente, duma discussao cienti- fica (j4 na proxima parte deste capitulo se falara disso). Deve ainda chamar-se a atengdo para 0 seguinte: existe actual- mente um vivo debate sobre a questdo de saber, se a ética deve ser empreendida como ética dos bens e da virtude (€tica objectiva e sub- No original alemdo: “Zweckrationalitit” e “Wertrationalitat”. (N. T.) 249 ou antes como ética orientada por regras (ética essual, ética do Giscurso), Sobre 4 tica do discurso, algo se diré no capitulo 18. Ela no excluia ética dos hens, O principal erro neste debate esti em se considerar a relagdo entre os dois tipos de éticas como uma re- lagdo de exclusdo (“ow..., ow...”); sendo certo que na. yerdade elas. pdose excluem. A ética processual, especialmente_a_ética do.dis- curso, nao pode, por si 6 chegar a nenhuma afirmagiio sobre.0.que se deve fazer, quando, apesar disso, faz tais afirmagGes, elas sao sub- -repticias. Por outro lado, uma pura ética dos bens conduz facilmente Ahipostasiago _e ontologizagao do “bem supremo”. Assim, nao existe qualquer incongruéncia em, neste capitulo, nos dedicarmos um pouco 2 ética dos bens ¢ mais tarde, noutro contexto, falarmos da ética do discurso?. 2.A doutrina tripartida de Radbruch sobre os fins supremos do direito e 0 relativisme jusfilosofico A teoria da adequagao do direito de Radbruch nao é seguramente a Gltima palavra sobre esta matéria. Mas ela constitui um marco no desenvolvimento duma concep¢aio material de justiga, que nao se pode deixar de lado. A discussio deverd sempre ponderar seriamente esta tentativa. Radbruch expos a sua teoria da adequagio do direito, primeiro, nos Grundziigen der Rechtsphilosophie [Principio de Filosofia do Direito] de 1914 e, depois, na Rechtsphilosophie [Filosofia do di- reito] de 19324. Aqui seguimos as Vorschule der Rechtsphilosophie [Curso Elementar de Filosofia do Direito] de 1947, quer por se tratar duma exposigao muito condensada, quer por ser a expressao auténtica ultima de Radbruch sobre esta questio*. Transcrevemos literalmente as respectivas passagens, pois nao é possivel ser a0 rigoroso de forma mais sucinta: 5 Informative: U. Steinvorth, Klassische und modeme Ethik; Grundlinien einer materia- len Moraltheorie, 1990. 4G, Radbruch, Grurdlztige der Rechtsphilosophie, 1914, p. 82 ss.; idem, Rechtsphiloso- phie, 32 ed. 1932, p. 50 ss. (8. ed. 1983, p. 142 ss.). Ambos agora em GRGA, vol. 2, 1993. 5G, Radbruch, Vorschule der Rechtsphilosophie, 1947, p. 26 ss. (3.* ed. 1965, p. 27 ss.) =GRGA, vol. 3, p. 145 55. > 250 Para a dedugdo de proposigées juridicas, a justiga teré de ser complementada pela adequagao a fins. Por “fim do direito” nao se deve.entender uma determinacdo empirica de fim, mas sim a devida ideia-fim. Enquanto o conceito de justiga pertence 4 filosofia do direito, a ideia-fim tem que se procurar na ética. A ética integra a doutrina do dever e a doutrina dos bens. Deve entender-se por bens éticos os valores que constituem o contetido dos deveres éti- cos. Q fim do direito tanto pode estar referido aos bens éticos como aos deveres éticos, ‘Na doutrina dos bens éticos podem distinguir-se trés grupos de valores em fungado da natureza dos seus portadores: 0 portador do primeiro é a personalidade individual, do segundo a personalidade colectiva, do terceiro a obra cultural, Consoante a ordem de preva- léncia destes trés tipos de valores, distinguimos trés sistemas de va- lores: para o sistema individualista os bens supremos sdo os valores da personalidade individual, para o sistema supra-individualista sdo os valores da personalidade colectiva e para o sistema trans- personalista séo as 1 ‘ais. [As formas de convivéncia hue correspondem aos trés portado- res de valores sdo a “sociedade” individualista, a “colectividade” supra-individualista e a “comunidade” transpessoal. Para ilustra- ¢ao da ideia, pense-se na sociedade como uma relagao contratual, na colectividade como um organismo do tipo do corpo humano e na comunidade de criagdo de obras culturais como um_consércio de construtores em que os seus membros nao estdo ligados directa- mente pessoa a pessoa, mas sim indirectamenie através de uma obra comum. O ideal de cada uma dessas trés_ forma, jaisde con. vivéncia pode exprimir-se sucintamente:berdade, poder. cultura. O ideal individualista é a liberdade e ele encontra forma politico- -partiddria nos partidos liberais, democrdticos e socialistas. Se- gundo a concep¢ao liberal, o valor da personalidade é — matemati- camente falando — um valor infinito e, portanto, ndo multiplicdvel, e que tem o direito de se impor mesmo face a relevantes interesses da maioria. O pensamento demacrdtice, ao invés, apenas lhe atribui um valor finito, ou seja, a soma dos valores da personalidade duma maioria prevalecem sobre os duma minoria. Enquanto a democracia 251 apenas garante uma liberdade juridica formal, 0 socialismo exige uma democracia material, ou seja, a liberdade individual de facto ou econ6mica, sem contudo se afastarem do objectivo final individua- lista. A doutrina orgénica, supra-individualista é, por seu lado, a base dos partidos autoritérios ou conservadores, de acordo com os quais nao é o Estado, o Todo, que existe por causa dos seus membros, mas sim os membros que existem por causa do Todo e as tarefas do Estado estéo acima dos préprios interesses da maioria dos cidadiios do Estado. Por fim, a concepgdo transpessoal ndo encontrou expres- so em nenhuma doutrina partiddria. Ela constitui porém o unico padrdo para a valoracao histérica posterior dos povos ja desapare- cidos, pois apenas sobrevivem as obras culturais desses povos. A ordem de prevaléncia das trés classes de valores nao se pode univoca e comprovadamente determinar. Os fins e valores supremos do direito néo variam apenas em fungdo das condigées sociais dos diferentes povos e épocas, variando também subjectivamente de pes- soa para pessoa, consoante o sentimento jurtdico, a concepgao do Estado, a posigéo partiddria, a religido, a mundividéncia. A decisao apenas pode provir das profundezas da propria personalidade, sé pode ser decisdo de consciéncia, a ciéncia deve limitar-se a prepa- rar estes trés grupos de valores para a decisdo. Ela serve esta deci- sdo de trés formas diversas; 1. Ao expor de forma sistematicamente completa as valoracées possiveis; 2. ao apresentar os meios para a sua realizagdo e, assim, as exigéncias delas resultantes; 3. ao des- vendar os pressupostos mundividencionais de cada tomada da po- sigdo valorativa. Este relativismo ensina de trés formas diversas 0 individuo, néo a reconhecer aquilo que deve, mas aquilo que ver- dadeiramente quer, ou seja, aquilo que de forma consciente tem de querer caso se submeta a lei da congruéncia. Até agora escutamos Gustav Radbruch. No seguimento do texto citado, Radbruch aborda a doutrina dos deveres éticos que, segundo © seu parecer, conduz a exigéncias absolutas face a0 direito, Ele menciona aqui sobretudo os direitos humanos que toda a ordem ju- ridica, qualquer que seja a sua cor, tem de garantir (daqui resulta uma importante limitag’o do relativismo que nfo se encontra com esta forma nas primeiras publicagées sobre o tema). - 252 A conhecida teoria jusfiloséfica dos partidos apenas esté muito sucintamente reflectida no texto acima citado; seria aqui proveitosa a leitura das passagens esclarecedoras da “Filosofia do Direito”® (vale também a pena dizer que esta doutrina nao é seguramente a uil- tima palavra, mas até ao momento dificilmente se encontra algo do mesmo nivel), Accritica a Radbruch devera dirigir-se sobretudo 4 sua concepgao de que individuo, colectividade e obra suprema estao desligados en- tre si, podendo portanto cada um deles, por si, determinar o contetido do direito. Na verdade, 0 que provavelmente sucede é que os trés va- lores supremos do direito (admitindo que apenas existam esses trés) s6 na sua actuagao conjunta conformam o direito. Assim sendo, co- loca-se a tarefa de determinar, sem arbitrariedade, tal actuagdo con- junta, tarefa esta de extraordindria dificuldade, pois os trés valores juridicos nao estéo numa harmonia preestabelecida e reciproca (af tem Radbruch total razio), cles nfio s6.se complementam como tam- los aspectos, Bastarao aqui dois exem- plos da realidade, que néo sendo de modo nenhum muito excepcio- nais, sio contudo bem demonstrativos de como sao especialmente importantes e probleméaticas as regras de prevaléncia’: a promogao de um funciondrio parece extraordinariamente “adequada” a uma de- sejdvel reconciliagéo entre o Governo e a Igreja, mas “injusta” ou até “iniqua” tendo em vista os méritos do funcionario. A iseng&o fiscal da venda das accdes Flick ao Deutsche Bank demonstra-se muito “atl”, mas “injusta” na perspectiva da igualdade de tratamento. Util, mas nao justa! Cicero acreditava, todavia, poder superar esta tensiio, através de constatag&o: “est enim nihil utile, quod idem nom honestum, nec, quia utile, honestum, sed quia honestum, utile”®. Assim, verdadeiramente util € apenas o que € justo; aquilo que contraria o principio da igualdade nado pode ser itil. Que isto seja efectivamente sempre assim é algo que se pode fundadamente pér °G_ Radbruch, Rechtsphilosophie (n. 4), p. 58 ss. e p. 152 ss. 290 ss, 7 Mais exemplos em K. Engisch, Einfuthrung in das juristische Denken, 8. ed, (eimp. 1989), p. 130 ss. * Cicera, De officiis, Liv. 3, XXX, 110. RGA, vol. 2, 1993, p. 253 em dtivida. Mas toda a filosofia do direito substantiva terd que se por a prova nessa questao. 3. De Aristételes a Kant: a questao do bem supremo A ética aristotélica, que culmina e teve 0 seu auge na ética to- mista, baseava-se no princfpio duma “vida boa”. A felicidade, diz Aristételes, 6.0 bem supremo no ambito da acgao, e, por isso, o “bem viver”, o “bem agir” e o “ser feliz” sio uma s6 coisa’. As virtudes, e em primeiro lugar a phronesis, a prudéncia, esto ao servico da rea- lizago da “vida boa”. E assim, segundo Agostinho, a prudéncia nao é nem mais nem menos do que o “conhecimento daquilo a que se dewe aspirar e daquilo gue se deve evitar”™, por outras palavras: éla &a faculdade de reconhecer_o bem como bem € 9 mal como mal ¢ de agir_ em _conformi a compreensio. O Bem €, na ética aristotélico-tomista, uniyersalizdvel_no principio supremo: Faz_o bem, evita o mal!'. Este principio goza certamente de validade uni- versal; tem, contudo, o inegdvel ébice de ser tautoldgico. E no con- ceito de Bem que se esconde 0 que se deve fazer. Além disso, a_ “felicidade” s6 ¢ universalizdvel, se a pensarmos de forma muito abstracta e, portanto, destituida de contetido. Pensando na “felicidade” de forma concreta, ela significard para cada pessoa algo de diverso. Nicolai Hartmann considera “o Bem” (também se pode dizer “a Felicidade”) como um conceito vazio™, Ao concretizar o Bem — 0 que é impossivel de evitar —, logo se revela a sua contingente condicionalidade, e quanto mais concre- tamente se conceber o Bem, mais relativo ele se torna. Também o modemo jusnaturalismo conduziu a este manifestamente escasso resultado. Assim, Henrich Rommen considera apenas duas normas de direito natural como susceptiveis de universalizagao: “Fazer 0 9 Aristoteles, Etica a Nicémaco, Livro 4, 1095a, Ver, além disso, também todo o Livro II. 1 Agostino, De lib, octog. tium quaestionum, qu. 61; idem, De libero arbitrio, C 13. Este passo € uma citagdo nao assinalada de Cicero, De officiis, 1, XLII: “Prudentia est rerum expetendarum fungiendarumque scientia.” 1 Jomds de Aquino, Summa theologica, [, 1], 94, 2: “Bonum est faciendum et prose- quendum et malum vitandum.” '2N, Hartmann, Ethik, 32 ed. 1949, p. 290. 254 justo, evitar o injusto; e a antiquissima e venerdvel regra: dar cada um o seu.”'? O que seja “justo”, o que € “o seu”, € algo a que 0 di- reito natural nao da tesposta; todas as concretizacdes do absoluto sio antes, como diz Johannes Messner, “deixadas & vontade dos mem- bros da sociedade”’ sendo portanto, em dltima instancia, uma ques- to de poder. Enquanto neste conceito se pode inegavelmente constatar um certo relativismo das normas e regras mais concretas, Kant pretende justamente uma ética absoluta, valida incondicionalmente a priori para todos os homens !°. Que as qualidades humanas se apliquem ao bem ou ao mal é algo que apenas depende daquilo que faz uma pes- soa agir, ou seja, da vontade: “Nao ha nem no mundo, nem fora dele, algo que possa ser considerado, sem restrigdo como bom, a ndo ser uma boa vontade.” 6 Nao € eticamente relevante saber as inclinagdes a partir das quais agimos. Quando obedecemos 4s nossas inclina- gdes, e mesmo que sejam tio nobres como 0 amor e a compaixao, entéo deixamo-nos determinar por algo em Ultima instancia exterior, enquanto o nosso “mais fntimo” reside sempre em nés “e nao precisa propriamente de ser ensinado, mas téo-somente iluminado”. Apenas estamos plenamente connosco préprios, quando fazemos aquilo para que af estamos, ou seja, cumprimos o nosso dever!?. Mas como po- demos saber 0 que devemos fazer, o.gue ¢ 0 nosso dever? Como se sabe, Kant responde com_o imperativo categérico: “Age de tal modo que-améxima da tua vontade possa_sempre simultaneamente. valer ~Vcomo princtpio.duma legislacao geral” (Critica da Razio Pratica)'*® ou, como Kant mais tarde 0 viria a formular na Fundamentagio 1H. Rommen, Die ewige Wiederkehr des Naturrechts, 2." ed. 1947, p. 225. 4 J, Messner, Das Naturrecht, 1950, p. 345. 15 Cf. Sobre isso, W. Schweidler, Was heilst Ethik?, em: R. Spaemann (org,), Bthik-Lese- buch von Platon bis heute, 2.* ed. 1989, p. 66 ss. (sobre Kant). 6 Rant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Edigio da Academia, p. 393, © Kant, Grundlegung (n. 16), Primeita Secgao, p. 393 ss, © Em alemio: “Handle so, daB die Maxime deines Willens jederzeit 2ugleich als Prinzip einer allgemeinen Gesetzgebung gelten kine.” (N. T.) "* Kant, Kritik der praktischen Vernunft, Edigdo da Academia, p. 54. Sobre isto, ver R, Witimann, Der Begriff des allgemeinen Gesetzes in Kants kategorischem Lmperativ, em: F Haft etal. (org.), Strafgerechtigkeit; Festschrift fiir Arthur Kaufmann, 1993, p. 363 s. 255 Metafisica dos Costumes: “Age de tal modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de cada um dos outros, sempre simultaneamente Co ee oo cos Em total congruéncia, Kant nomeia{os jue sao simultanea- mente deveres: a “porfgicdia prépria” e a “felicidade alheia”™. * Est sem dtivida certo Hruschka quando relaciona 0 imperativo categ6rico com a regra de ouro de Christian Thomasius, afirmando mesmo que aquele deriva desta*!. Sem divida que © principio da universalizagao tomou forma no imperativo categérico. Até que ponto € dificil a ética ¢ a filosofia do direito abdicarem do universa- lista imperativo categérico, € 0 que se pode ver na “ética de situa g20", do existencialismo de Sartre Ele afirma que cada um € seu proprio legislador ¢ escolhe a sua propria moral, mas chega afinal a uma “repetigfo existencialista do imperativo categérico” de acordo com a qual se deve perguntar: “O que sucederia se todas as pessoas agissem realmente assim?” “*?? E evidente que o imperativo categérico padece de defeitos. FE demasiado abstracto, sem referéncia temporal concreta, ignora © Em alemfo: “Handle so. dal du die Menschheit, sowohl in deiner Person als in der Person eines jeden anderen, jederzeit zugleich als Zweck, niemals blo6 als Mittel brauchst” 1 Kant, Grandlegung (n. 16), p. 429, Na pagina 421 encontra-se ainda uma outra for~ mulagao mais forte do imperative categérico: “Age como se a miéxima da tua acgio se de- vvesse, pela tua vontade, converter numa lei geral da natureza.” ["Handle so, als ob die ma ime deiner Handlung durch deinen Willen zum allgemeinen Naturgesetze werden sollte."] Cf. Sobre isto também D. Rakmsdorf, Okonomische Analyse des Rechis, Utilitarismus und die klassische deutsche Philosophie, em RTh 18 (1987), 487 ss. (p. 487-489: Kant € 4 “fell- cidade"). 21 Kant, Metaphysik der Sitten, Edigo da Academia, p. 385. 21 J. Hraschka, Die Konkurrenz von Goldenec Regel und Prinzip der Verallgemeine- rang in der juristischen Diskussion des 17/18, Jahrhunderts als geschichtliche Wurzel des kategorischen Imperativs, in: JZ 1987, 941 ss., esp. 950 s.; ver também, idem, Kants Be- arbeitung der Goldenen Regel im Kontext der vorangegangenen und der zeitgenbssischen Diskussion, em: F. Haftet al. (org.), Swafgerechtigkeit; Festschrift fur Arthur Kaufmann, 1993, p. 120 ss. Além disso. G, Spendel, Die Goldene Regel als Rechtsprinzip, em: Fest- schrift flr Fritz v. Hippel, 1967, p. 491 ss. Sobre a regra de ouro em Confiicia, ver S.-1 Liu, Die Wertidee des Rechts; Gerechtigkeit in chinesischer Tradition, em: Philipps/H. ‘Scholler (org), Jenseits des Funktionalismus; Arthur Kaufmann zum 65. Geburtstag, 1989, p. 375 ss.. 185. © No original francés: “Mais si tout le monde faisait comme ga?” (W. T.) 22 J.P Sartre, L’ existentialisme est un humanisme, 1959, p. Bs. 256 as circunstancias especfficas da situagdo concreta. Bouma pura ética de conviceso. além de ser uma ética impessoal, que como demons- tram Werner Maihofer, transmutou a tese ética origindria do “Sé tu mesmo” no postulado “Sé universal”, isto 6, “S@ como se deve ser”.?3 J muito antes, tinha Max Scheler levantado contra Kant a ob- jecgfo de que niio ha apenas um universal Bem em si,.mas também um bem para si. para cada pessoa. Literalmente: para quem “nao re- conhece um bem para si, pretendendo antes fundar com Kant a ideia de bem na validade geral (e na necessidade) dum querer, est ex- cluido reconhecer também um bem para mim enquanto pessoa indi- vidual” **. Foi varias vezes levantada, contra 0 imperativo categs- rico, a objecgfo de que cle basicamente sé exige congruéncia. Assim, j4 Hegel entendia que o principio kantiano de universaliza- ¢ao requer unicamente a exigéncia de consisténcia légica formal na escolha da maxima a generalizar?’. Partindo dai, Hare concluiu que nao ha qualquer violagao do imperativo categérico quando um ra- cista fandtico é tio congruente que aceita que uma lei de eliminagao de determinada raga valha também, se for caso disso, contra si pré- prio”, Mas aqui ja se esta a ser injusto com Kant. Como demonstrou nomeadamente Hans Welzel, a ética de Kant nao é tao formalista, nem to subjectivista como muitos criticos a apresentam, sendo an- tes certo que Kant pressupée, ainda que trequentemente de forma ir- reflectida, uma ordem moral objectiva das coisas”’. Welzel pensa to- davia descobrir um circulo na argumentagao de Kant, pois Kant acredita poder extrair 0 “qué” da acco moral (ou seja, os contetdos 2 W. Maihofer, Recht und Sein; Prolegomena zu einer Rechtsontologie, 1954, p. 23 s. 4M, Schele, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik; Neuer Ver- such der Grundlegung eines ethischen Personalismus, 4." ed. 1954, p. 496. Uma outra ob- jecedo foi aduzida por E. v. Savigny; ele considera que a “debilidade fundamental do prin- cfpio da universalizacdo” reside no seguinte: “O que se responde quando alguém se defende da repreensdo *O que sucederia se todos agissem assim?’ dizendo ‘Nao agem todos assim’?; pois hé uma diferenga entre permitir a cada um que faga aquilo que os ou- tros no fazem e permitir a todos que ajam da mesma maneira” (RTh 4, 1973, 103). 25.CL., por exemplo, K.-O Apel, Diskurs und Verantwortung; Das Problem des Ubergangs zur postkonventionellen Moral, 1988, p. 69 ss. % RM. Hare, Freedom and Reason, 1963, cap. 9. 7 Ht Welzel, Naturrecht und materiale Gerechtigkeit, 4 ed. 1962, p. 169. 257 ético-materiais) a partir do “como”, isto é, através do imperativo ca- tegdrico”’. Eu partilho a opiniao de Giinther Patzig de que o impera- tivo categ6rico, nao sendo na verdade uma mera férmula vazia, ndo € suficiente para toda a regulamentagaio moral”. Nao € possivel entrar aqui no intrincado problema da circulari- dade na argumentagdo*°; bastar4 dizer que, de facto, o imperativo categérico se refere ao “como” ¢ nao ao “qué” da acgfio moral. Ja Arthur Schopenhauer vira que 0 imperativo categérico nao é de modo nenhum, enquanto facto da consciéncia, a prova empirica da lei mo- ral, nem um apelo ao sentimento moral, nem uma petitio principii sob o elegante nome de “postulado absoluto”, sendo sim “um muito subtil processo de pensamento”*!. Do mesmo modo, também Offried Hoffe fala do imperative categérico como um “processo de genera- lizagiio”?. E Giinther Elischeid deu 0 passo decisivo ao conceber a ética de Kant como ética e teoria de justiga processual: “No inicio no esté um principio moral dotado de conteddo, mas o processo”*> (desenvolvidamente sobre Ellscheid, p. 399 ss.). Trata-se da lia de obter contetidos a partir da form: ‘A passagem pela ética dos bens desde Aristételes até Kant con- duziu, subitamente, 4 necessidade duma ética processual, sem que, no entanto, a ética dos bens ou valores (dos contetidos ético-mate- tiais) se tenha tornado obsoleta. Aqui se ird voltar no capitulo 18. 28 FT. Welzel, como na nota 27. ° G. Patzig, Ethik ohne Metaphysik, 2.* ed. 1983, p. 170. 8 Mais em pormenor, A Kaufmann, Uber den ZirkelschluB in der Rechtsfindung: em: Festschrift Stir Gallas, 1973, p. 2 ss.: também em: idem, Beitrdge zur juristischen Hermencu- tik, 22 ed. 1993, p. 65 ss. 3! A, Schoppenhauer, Die beiden Grundprobleme der Ethik, em: Samtliche Werke, org. de W. Fri v. Lahneysen, vol. 11, 1980 p. 667. » Q. Hoiffe, Kants kategorischer Imperativ als kriterium des Sittlichen, em: Zeitscrift fir sophische Forschung 31 (1977), esp. p. 87 ss. Cf também idem, Der kategorische Impe- rativ als Grundbegriff einer normativen Rechts- und Staatsphilosophie, em: OIKEIQEIE, Fest- schrift fur Spaemann, 1987, p. 87 ss. % G, Ellscheid, Das Naturrechtsproblem; Eine systematische Orientierung, em: A. Kauf- amann!W. Hassemer (org.), Bintihrung in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart, 6." ed.1994, p. 179 ss., 213. Ver também, idem, Das Problem von Scin und Sollen in der Phi- Josophic Immanuel Kants, 1968. 258 4, O utilitarismo Temos assim de perguntar: como obtemos contetidos para a ética ¢ para o direito que sejam generalizAveis? Poder-se-ia come- ¢ar por oferecer 0 utilitarismo**. Surge ento imediatamente uma dificuldade. B que nao existe, de modo nenhum, um tinico utilita- rismo, precisamente tal como nio existe uma concepgao unitaria sobre 0 que se deve entender por “felicidade”. A questéio, que sem- pre se coloca, de saber se é a felicidade que prevalece sobre a liber- dade ou a liberdade sobre a felicidade, irdo provavelmente muitos utilitaristas retorquir: a liberdade é uma parte integrante da felici- dade35, Como se sabe, o princfpio do utilitarismo classico 6, desde Jeremy Bentham e John Stuart Mili: A maior felicidade do maior fiimero.(Mill continuava ainda: “of the party whose interest is in question”), A primeira vista, este principio parece sedutor. Mas 86 4 primeira vista. Ele levanta, antes de mais, a questo de saber de que modo se pretende universalizar a “felicidade” (alguns pretendem que “hapi- ness” se compreenda mais como “beneticio” do que como “felici- dade”, o que, no entanto, contradiz o entendimento linguistico e de * De entre a bibliografia jusfiloséfica sobre 0 utilitarismo: R, W. Trapp, “Nicht-klas- sischer” Usilitarismus; Eine Theorie der Gerechtigkeit, 1988; W. Lasars, Die klassisch-utili taristische’ Begriindung der Gerechtigkeit, 1981; H. Otto, Der Niedergang der Rechrsidee im istischen Zeitgeist, 1981; U. Klug, Zur Kritik des rechtsphilosophischen Utilitarismus, ‘em: ARSP 38 (1949/50), 222 ss.: J. de Sousa e Brito, Praktische Vernunft und Utilitarismus, em: ARSP-Beiheft 51 (1993), 87 ss. Elucidativo também K. Papageorgiou, Schaden und Strate: ‘Auf dem Weg zu einer Theorie der strafrechtlichen Moralitit, 1994, esp. p. 60 ss. Digno de atengio, reventemente, H. Eidenmiiller, Effizienz als Rechtsprinzip; Méglichkeiten und Gren- zou der dkonomischen Analyse des Rechts, 1995, esp. p. 22.s., 174 ss. Semelhangas com o uti- Jitarismo jusfiloséfico tem o “instrumentalismo”, ver R. S. Summers, Pragmatischer Instu- mentaltsmus und amerikanische Rechtstheorie (do inglés), 1983. % Cf. O. Héffe, Politische Gerechtigkeit, Grundlegung ciner kritischen Philosophie von Recht und Staat, 1987, p. 300 ss. 3 Nao se poder aqui esquecer que Mill tem. diversamente de Benthum, um conceito de felicidade qualitativo; ver, K. Papageorgiou, Sicherheit und Autonomie; Zur Strafrechtsphilo- sophie Wilhelm v, Humboldt und John Stuart Mills, em: ARSP 76 (1990), 324 ss., 331. Sobre © utilitarismo de Bentham e Mill, ver também O. Héffe (org.), Einfiihrung in die utilitaristische Ethik, 1975, p. 35 ss., 54 ss. 259 sentido)*”. Que isto é em qualquer caso impossfvel quando se en- tende, como Bentham, a felicidade como uma substancia que se pode. partilhar, € algo que mesmo Giinther Patzig, que se empenha na fun- damentacdo duma ética utilitarista, aceita**, Aqui_ apenas conta 9 re- sultado. Nao se vé porém como é que um utilitarismo normativo ou qualitativo (Mill) poderd alcangar uma universalizagdo da “felici- dade”. As qualidades de vida dos homens sdo demasiado diferencia- Certamente todas, ou quase todas, as pessoas pretendem ser sauda- veis, livres, abastadas, com posses e bem sucedidas, mas h4 muitas pessoas livres, ricas e bem sucedidas que nao sao felizes. E como li- dar com a inquietante questdo de saber 0 que aconteceria se “o maior bem do maior numero apenas pudesse ser alcangado através de me- didas drasticas de eliminagdo de vidas humanas, de modo a que 0 mundo se libertasse de todas as criaturas repulsivas ou incémadas: dos criminosos, dos que tém um comportamento fora de normal, dos doentes mortais, dos invalidos e até mesmo daqueles que sao feios ‘ou mal humorados”’?*? Come quer que seja, Orfried Héffe levantou uma objecgao talvez ainda de maior peso contra o utilitarismo. Segundo ele, o utilitarismo compreende o bem-estar de todos, o bem comum, de forma colectiva e nao distributiva. “Apenas interessa 0 m4ximo bem-estar geral, en- quanto a partilha desse bem-estar pelos diferentes membros nao de- sempenha qualquer papel aut6nomo. E portanto possivel que a des- vantagem” que © sistema “possa ter para alguns, seja compensada através duma maior vantagem para os outros.” A isso nao podem os que sao prejudicados dar o seu acordo, pois as desvantagens sdo-lhes * Sobre 0 tema da “felicidade” existe uma vasta bibliografia. Boa informagdo encontra- -sc em: R. v. GumppenbergiS. Gruber, Glick, em: R. Spaemann (org.), Ethik-Lesebuch (n. 15), p. 393 ss, (A “Felicidade em Sto. Agostinlo, Epicura, Aristételes, Mill); R. Spaemann, Gliick und Wohlwollen; Versuch tber Ethik, 1989, esp. p. 85 ss.; G, Bien (org.), Die Frage nach dem Giliick, 1978; M. Forschner, Uber das Glick des Menschen: Aristételes, Epicuro, Stoa, Tomas de Aguino, Kant, 1993. ~ Averca do direito aventua G. Parzig, Ethik (n. 29), p. $4, que a feli- cidade “ado € comparivel”. 3 G. Patzig, Ethik (n. 29), esp. p. 127 ss. 1 Tammelo, Gerechtigkeit und negative Vorsehung, cm: R. Marcic/Iimar Tammelo, Na- ‘urrecht und Gerechtigkeit; Eine Einfubrung in die Grundprobleme, 1989, p. 323. 260 impostas pelos beneficiados. “Para os prejudicados as ordens sociais coercivamente impostas assumem sempre o caracter de mera coac- cao; elas convertem-se em violéncia e sao para eles ilegitimas.”“° E precisamente este o ponto em que a teoria de justiga de John Rawis*! supera 0 utilitarismo*. John Rawls procede de forma dis- tributiva, ndo tomando a parte desta ou daquela pessoa ou grupo, mas sim de todas: € isto a imparcialidade exigida pela justiga. Re- gressaremos ainda outras vezes a Rawls. Mas antes deve ainda dizer- -se algo sobre uma outra tentativa de superar o utilitarismo classico. Seguindo o exemplo de i/mar Tammelo esta teoria seré designada por “utilitarismo negativo”. 5. O utilitarismo negativo As principais objecgGes ao utilitarismo (positivo) so estas duas: a) A felicidade nao se pode universalizar a menos que a entendamos sem qualquer contetdo. Para uns a felicidade é marcar golos; para outros é ler Platdo. b) O interesse do utilitarismo (positive) € apenas © de que a maioria, o maior ntimero possfvel, seja feliz. O utilita- rismo (positive) nado se preocupa com a minoria que no é feliz (essa minoria nao € necessariamente numérica). Nao se pode fundamentar de forma utilitarista uma tutela das minorias, podendo aliés a mino- tia ser combatida quando tal seja util tendo em vista a “felicidade” da maioria. O “utilitarismo negativo”, como o designou //mar Tammelo, es- capa a ambas as objecgGes. Devemos impedir a infelicidade na maior medida possivel ¢ do maior nimero possivel de pessoas. E a infeli- © 0. Hoffe, Gerechtigkeit (n. 35), p. 75 s. Este argumente € vélido nfo apenas contra o “utilitarismo na acgdo”, mas também contra 0 “utilitarismo nas regras”. Sobre esta distingao, of. N. Hoerster, Utilituristische Ethik und Verallgemeinerung, 1971, p. 18 ss. Atm disso, tam- bém W. Frankena, Analytische Ethik, 1972, p. 55 86. *! Ver o seu muito debatido livro: A Theory of Justice, 1971; na tradugio alema: Eine ‘Theorie der Gerechtigkcit, 1975 (¢ edigdes posteriores). Rawls procedeu entrelanto a uma no despicienda correcgao da sua teoria (Cf. Die Idee des politischen Liberalismus, 1992), mas nd se entraré aqui nessa questiio, CE, H. Eidenmilller, Versuch einer Uberwindung des Utilitarismus bei John Rawls, em: ARSP 73 (1987), 235 ss. 261 cidade ou, mais rigorosamente, a aspiragZo que cada pessoa tem de ndo ser exposta a infelicidade, € algo que se pode universalizar. Pode apontar-se concretamente aquilo que para todas as pessoas sig- nifica infelicidade: doenga, enfermidade, dores, pobreza, fome, falta de abrigo... Vejamos 0 que escreve Tammelo: “Para mim, o mais alto mandamento do ordenamento da justiga consiste na supress&o ou na maior redugo possivel da miséria. O princfpio do utilitarismo posi- tivo, segundo o qual se deve procurar a maior felicidade possivel do maior ntimero de pessoas, tem que ser posto em causa. A felicidade € apenas uma questio de sorte... A minha preocupagao dirige-se tam- bém para os infelizes... Acresce que a felicidade da maioria € muito frequentemente conseguida A custa do sofrimento das minorias. Tendo isto presente, serd preferivel o utilitarismo negativo, isto é, aquele utilitarismo segundo o qual se deve prevenir a infelicidade do maior numero possfvel de pessoas e na maior medida possivel”. Contra 0 utilitarismo negativo levantov-se a objecdo de que se- ria demasiado comedido no que respeita 4 universalizagao de con- tetidos éticos e juridicos. Mas nao é de modo nenhum assim. Se a ética e sobretudo o direito assumirem como tarefa libertar o mundo, na maior medida possivel, da miséria, isso ser4 j4 um elevadissimo objectivo. Deste utilitarismo negativo (j4 evocado pelos filésofos jusnatu- ralistas do iluminismo, sendo disso exemplo Christian Thomasius)“ 21 Tammelo, Ungerechtigkeit als Grenzsituation, em: 61, Schopenhauer Jahrbuch fir das Jahr 1980, p. 30.ss., 35. Ver também idem, em: Naturrecht (n. 39): “As pessoas devern s0- breviver e « miséria deve ser abolida” (p. 154), e: “A miséria desnecessaria deve ser minimi- zada para todas as pessoas de acordo com a respectivo standard social” (p, 184). Neste con- texto, tem também O. Héife, Gerechtigkeit (n. 35), p. 326 ss.; “Der negative Konsens”. ~ Para uma visio global: A. Kaufmann, Negativer Utilitarismus; Bin Versuch iiber das bonum com- mune, 1994; ideon, Die Lehre vom negativen Uilitarismus; Bin Programm, em: ARSP 80 (1994), 476 ss. Tendendo para uma “filosofla negativa”: M. Newfelder/W. Trautman, Kenn zeichen Unrecht, Eine pragmatische Rechtsphilosophie, 1993; &. Sciurz, Negative Herme~ ‘neutik; Zur sozialen Anthropologie des Nicht-Verstehens, 1995; M. Becker, Natur, Herrschaft, Recht; Das Recht der ersten Natur in der zweiten: Zum Begriff cines negativen Naturrechts bei Theodor Wiesengrund Adorno, 1997, Ch, Thomasius: “Os mandamentos do direito natural geram o minimo bem, mas impe- dem o maximo mal. Por isso sio os mais necessdrios; sem cles 0 género humano perder-se-ia.” Citado segundo R. Stamler, Rechts- und Staatstheorien der Neuzeit, 2° ed. 1925, p. 19. 262 decorre de certo modo também o principio ético.de prioridade,. introduzido por John Rawls, segundo 0 qual os que esto em des- yantagem, as pessoas menos felizes, devem dispor do argumento decisivo de prioridade. Mais do que promover a felicidade indepen- dentemente do que por ela se entenda, deve sim evitar-se a infelici- dade. O utilitarismo negativo formula uma das mais significativas regras de prioridade para a determinagio do que se deva considerar como bonum commune e, portanto, como justiga material. Pode re- sumir-se 0 que foi dito na seguinte maxima: deve procurar-se reali- zar a justiga do bem comum de tal modo que o sofrimento existente seja eliminado ou pelo menos reduzido, que nao subsista sofrimento susceptivel de ser minimizado e que o sofrimento inevitavel seja im- posto com a maxima ponderag#o aos membros individuais da socie- dade. Ainda mais abreviadamente, é possivel reconduzir esta ideia ao imperativo categérico (da tolerancia)! Age de tal modo que as consequéncias da tua acgdo sejam con- cordantes com a mdxima prevencdo ou diminuigdo da miséria humana, Na anterior edigdo deste livro nao ficou referido que o “utilita- rismo negativo” aparece ja substancialmente em Karl Popper. No seu livro sobre a “gociedade aberta”, Popper propde que se substitua a “f6rmula utilitarista, ‘maximiza a felicidade’ (‘maximize hapi- ness’), pela formula ‘minimiza o sofrimento’ (‘minimize suffering’)”. E diz mais: “considero possivel que uma férmula téo simples se possa tornar num dos princfpios fundamentais (ainda que certamente nao Unico) de politica [da sociedade] aberta. (Ao invés, 0 principio ‘maximiza a felicidade’ parece ter tendéncia a conduzir ao perigoso tipo da ditadura benevolente)...; a exigéncia de felicidade é em qual- quer caso muito menos premente do que o auxflio aos que sofrem ¢ a tentativa de evitar o sofrimento”**, Segundo Popper a tarefa do po- litico é, portanto, minimizar o sofrimento, devendo a procura da fe- licidade ser deixada a cada individuo. 45 K. Popper, Die offene Gesellschaft und ihre Feinde, vol. I. 6.* ed. 1980, p. 316 s, Con- tra ele (mas na minha opiniao sem convencer), U. Giinther, Poppers politische Ethik des .ne- gativen Utilitarismus" und seine Folyen, em: Zeitschrift flr Politik, 1980, p. 231 ss. 263 Existem ainda outros princfpios negativos deste tipo que, ao in- vés de afirmarem o que €, afirmam, sim, 0 que no € (¢ 0 que nao deve ser). Fala-se de uma “filosofia negativa” e de uma “teologia nega- tiva”. Um exemplo de “jurisprudéncia negativa” é a famosa formula radbruchiana, que também nao diz 0 que é “direito justo”, mas ape- nas o que € manifestamente injusto, 0 que € nio-direito“*. Este “ar- gumento de injustiga”, como lhe chama Ralf Dreier“, este minimo de direito natural poderd satisfazer as exigéncias de universalizagao. Existe sobre isso, na realidade, um amplo consenso. Mas poder esta ética negativa, esta filosofia jurfdica negativa que apenas contraria ¢ nao fundamenta, ser a tiltima palavra? Caso se siga Karl Popper teré provavelmente que se responder de forma afirmativa*®. A filosofia tedrica poderd dar-se por satisfeita em testar teorias através dum procedimento dedutive com base nos seus erros. 1 A filosofia pratica contudo, como se mostrou no capitulo 6, nao pode Zo abdicar da indugiio, no se pode limitar a falsificar, tem também que | verificar. Mas como escaparé ela ao relativismo? II. AS REGRAS DA PREVALENCIA Saber qual 0 peso que cada especifico argumento tem no pro- cesso de conhecimento juridico € manifestamente um dos temas mais negligenciados da teoria do direito e da metodologia juridica. Ea verdade € que também parece ser um empreendimento sem espe- ranga. Karl Engisch afirma ter verificado “que na aplicacao pratica do direito sao discricionariamente utilizados todos os métodos que a teoria da interpretagio” conhece e que, na prética dos tribunais, se tem por legitimo o procedimento de “escolher, caso a caso, 0 método de interpretago que conduza ao resultado mais satisfatério””. 4© Ver, supra, p. 46 &, af, também an. 39. O texto da formula esté na p. 285. +7 R. Dreier, Der Begriff des Rechts, em: NIW, 1986, 891. +8 Sobre e contra isso, ef. 2 Eisenharde/D. Kurth/Stiekl, Du steigst nicht zweimal in den- selben FluB; Die Grenzen der wissenschaftlichen Erkenntnis, 1988, p. 59 © passim. “°K. Enyisch, Einfihhrung in das juristische Denken, 8. ed. (reimp, 1989), p. 82. 264 E possivel que isso traduza, de facto, o que se passa na pratica juridica, mas se assim for, estaré entéo dada a sentenga de morte a toda a teoria cientifica do método juridico. Nao hé dtivida de que se realizaram recentemente esforgos no sentido de estabelecer regras de prioridade; empenhou-se aqui sobretudo a teoria da argumentagao™, Mas quando, partindo da perspectiva objectivista, propria da teoria da argumentagao, praticamente se esquece a personalidade do apli- cador do direito e quando factores tio relevantes como a relatividade € a pluralidade dos conhecimentos (com a possibilidade de serem “correctas” varias respostas divergentes entre si) so negligenciados (no que respeita & pretensio duma “fundamentagio tltima”, tal nao € contudo de admirar), entio tais esforgos nao terZo no final qualquer sucesso. Isto vale muito particularmente para as decisdes de risco, em que nao pode ser desconsiderado o facto de, no essencial, nao se- rem passiveis de consenso*! (mais em pormenor, no capitulo 20). As regras de argumentagao e prevaléncia, tal como nos sio ac- tualmente oferecidas pela teoria de argumentagio (John Rawls, Chaim Perelman, Robert Alexy, Ulfrid Neumann), por serem dema- siado gerais e abstractas, sdo incapazes de delimitar e, mais ainda, de determinar 0 processo de conhecimento. As teorias formais da argu- mentag4o tém a vantagem de serem basicamente sempre aplicdveis, mas tém a desvantagem de nao “vincularem”. Trata-se af, de certa maneira, duma “teoria geral de argumentagdo” (ao modo duma “teoria geral do processo”); ¢ nesta perspectiva ela é certamente itil. Mas na pratica so ainda necessdrias regras de argumentaciio dota- das de contetido e, portanto, diversas “teorias especiais de argumen- tacio”. Uma teorias material de argumentagao, que valesse para todos os discursos pensdveis, € tio improvaével como um nico Cédigo de Processo para todos os processos juridicos: processo civil, processo penal, processo administrativo... Nao se pode pretender estabelecer logradamente regras de discurso utilizéveis, por exemplo, para a * Ver nomeadamente, R. Alexy, Theorie der juristischen Argumentation, 2* ed. 1991; U. Neumann, Juristische Argumentationslehre, 1986. 5) Ver, Birgit Kleinwellfonder, Det Risikodiskurs: Zur gesellschaftlichen Inszenierung von Risiko, 1996, passim. 265 bioética, abstraindo daquilo que nela esté em causa e do tipo de argumentos que nela so tipicos. Seria precisamente como pretender fazer um Cédigo de Processo Penal sem ter minimamente em consi- deragiio o direito penal substantivo e a vida juridica. Atenhamo-nos pois 4 experiéncia! HA tipos muitos diferentes de processo judicial: o civil, o penal, o administrativo, o laboral. Sdo portanto necessarias regras de processo diferentes, visto serem diferentes as matérias des- ses processos (os “objectos do processo”). Como se disse, nado basta uma “teoria geral do processo”; é também, antes de mais, necessario regular cada um dos tipos de processo. Aliés, nem os préprios Codi- gos de Processo sao suficientemente concretos para regular © pro- cesso. Assim, hd, no quadro do processo penal, indicagGes extensas (e ricas em contetido!) que configuram detalhadamente sobretudo 0 “proceso instrutério”. Também no quadro do processo civil exis- tem numerosas diferencas, pois por exemplo o processo em matéria de familia tem que decorrer de forma diversa que 0 processo em ma- téria de arrendamento. O mesmo se passa com as regras de argu- mentagao para o discurso racional. Caso tais regras devam “‘vincu- lar’ e tenham por isso de ser materialmente concretizadas, serio entao necessarias, por exemplo, para uma Comissao de Etica, regras diversas das do discurso econémico, ainda que possa haver regras que possuam um cardcter geral abrangente. A “ética do discurso” tal como hoje se apresenta nao € suficientemente dotada de contetido para poder satistazer as exigéncias aqui formuladas. Niio vamos agora por em debate a questo de saber se 0 processo jurisdicional, em especial o processo penal, consiste num discurso racional, se estard af em causa um agir comunicativo e nao estraté- gico (cf., supra, p. 134}. E digno de nota que Jiirgen Habermas nao apresente quaisquer regras de prioridade, nem mesmo na sua obra de filosofia do direito Faktizitiit und Geltung (1992)°”: talvez 0 consi- dere inutil. Seja como for, pode atestar-se que até hoje nao existem © Bm alemao: “Enmittlungsverfahren”. Corresponde aproximadamente. ao “inquérito” no processo penal portugogs. (N. Z) Factualidade e Validade. Contributo para uma Teoria do Discurso Juridico € do Es- tado de Direito Democritico. (N.T:) 266 regras de argumentagio e prioridade que sejam utilizéveis em todos os discursos juridicos, jusfilosdficos ou éticos, Nesta constatagao nao se encontra o mais pequeno tom de critica ou reprovacdo. Ao pretendermos formular regras de argumentagdo e prevaléncia para uma Comissio de Etica, por exemplo, deparamo- -nos com dificuldades extraordindrias. Suponho que o melhor sera partir do princfpio rawlsiano da diferenga, segundo o qual a posi¢ao social mais Drecaria determina qual é a posigdo eticamente prevale- cente (tutela das minorias e dos mais fracos)*?, mas que este princf- pio tem que ser consideravelmente concretizado e materializado até que se “adeque”. No pacto origindrio ficcionado por Rawls (veja-se o capitulo 18) sao acordadas, entre outras coisas, regras de prioridade de cardcter universal. Decisivo é, em resumo, o seguinte: 0 critério de prioridade que em qualquer caso nos indica a razdo pela qual uma determinada ordem global tem prioridade m4xima, implica, como acima se disse, que a pessoa menos favorecida na distribuigdo dos bens individuais tenha ao seu dispor o argumento decisivo de prioridade sempre que se verifique uma situagdo em que ela ficava ainda mais desfavorecida, se ordem global concedesse prioridade 4 pessoa mais favorecida®. Isto significa em linguagem mais acessivel: Tutela das minorias (a necessidade prevalece, até ao minimo de subsisténcia, Sobre a pro- dutividade), direitos e liberdades fundamentais (sendo de notar que os direitos e liberdades fundamentais sao, em primeira linha, direi- tos de defesa: status negativus**). Em direcgo andloga, a regra de prioridade de Rawls, aponta 0 principio de tolerancia. Também a tolerancia é sobretudo devida aos mais pobres ¢ fracos, aqueles cuja subsisténcia esta ameagada. Como se expord no capitulo 20, a tolerancia adquiriu, nas nossas hiper- complexas relagdes, um enorme relevo, As dificuldades surgem especialmente em processos com objectos fortemente normativos, * Rawls, Theorie (a. 41), p. 96 58. $9 Rawls, como na nota 41. Ver também, £. Kern, Von Habermas bis Rawls, em: L Kern et al. (org,), Gerechtigkeit - Diskurs oder Markt? Die neuen Ansiitze in der Vertragstheorie, 1986, p. 83 ss. Cf. supra, p. 155. 267 Frequentemente, no se poderd dizer positivamente © que a toleran- cia de forma inequivoca exige, mas — tal como na férmula radbru- chiana da “injustiga legal” (ver, infra, p. 285 s.) — apenas negativa- mente o que é manifesta intolerancia. Estao em causa aqui, como em geral no Ambito da justica material (social) conhecimentas de Tisco., Terd assim que se conceder — limitadamente - razdo a0 relativismo. Mas 0 relativismo nao deve ser, como frequentemente acontece, visto de forma puramente negativa, sendo antes a base fundamental da tolerancia e da democracia (ver, adiante, capitulo 20). E pois de rejeitar um “relativismo absoluto”. A questao est em saber se é pos- s(vel uma limitacio congruente de relativismo através dos Direitos Humanos e dos Principios Gerais de Direito. Sao estes os pontos fi- xos em que as decisdes juridicas se poderio fundar. Vamos dedicar- -nos a esta questéo.* IIL. OS DIREITOS HUMANOS Segundo a opiniao de muitos, os direitos humanos {a distingdo entre direitos humanos e direitos fundamentais pode, neste contexto, ser deixada de parte) constituem aquele nucleo fundamental da ética edo direito que se pode universalizar € que possui, de facto, validade universal. Os direitos humanos so a mais preciosa heranga que o sé- culo x1x nos deixou. Recorde-se aqui Paul Johann Anselm v. Feuer- bach que, como jurista formado no criticismo de Kant, negava a existéncia de um direito natural objectivo, e, apesar disso, afirmava expressamente a existéncia de direitos naturais subjectivos prévios ao Estado e que por ele devem ser garantidos*. E refira-se, ainda, a histérica controvérsia entre Montesquieu e Rousseau, Jiberalismo e democracia, a respeito dos direitos humanos; um afirmava que os di- reitos humanos valem por si prdprios e que 0 Estado apenas tem que os defender; segundo 0 outro, os direitos humanos valem unica- mente na medida em que o Estado os conceda. 55 PJ. A. y. Feuerbach, Kritik des natUrlichen Rechts als Propadeutik 2u einer Wissens- chaft der natiirlichen Rechte, 1796. 268 Muito se escreveu nos ultimos tempos sobre a universalidade dos direitos humanos**. E nao se pode certamente duvidar de que os direitos humanos apresentam um elevado grau de universalidade; isso foi demonstrado em estudos de direito comparado. Mas acon- tece com os direitos humanos 0 mesmo que acontecia com o antigo direito natural: s4o universais quando pensados de forma muito abs- tracta; quanto mais referidos a dados reais e mais concretizados, tanto mais contingentes e relativos se tornam. Por isso, nao faltam também vozes criticas que pdem em dtivida a possibilidade de uni- versalizar os direitos humanos*’. O direito de uma pessoa & vida e a dignidade nao é, quando ex- presso desta forma to geral, discutido por ninguém. Mas j4 nao se pode dizer 0 mesmo a respeito da vida humana em concreto, no- meadamente, nos casos de doentes graves moribundos (a eutandsia passiva tem hoje muitos defensores)**, nascituros (cuja protecgao se encontra praticamente apenas no papel)**, recém-nascidos grave- mente deficientes (as vozes a favor deste tipo de eutandsia aumen- tam a olhos vistos), para j4 nao falar das mortes na guerra e dos %® Ver, em especial, L. Kithnhardt, Die Universalitit der Menschenrechte; Studie 2ur ideengeschichtlichen Bestimmung eines politischen Schlisselbegriffs, 1987; W. Schreckenber- ger. Die Universalitat der Menschenrechte als Prinzip der Rechtsthetorik, em: Rechtsstaat und Menschenwiitde; Festschrift fir W, Maihoter, 1988, p. 481 ss.: E, Denninger, Menschenrechte zwischen Universalitatsanspruch nd staatlicher Souverdnitat, em: Kritik und Vertrauen; Peter Schneider zu ehren, 1990, p. 45 ss, Recentemente, J. Hinkmann, Philosophische Argumente fur und wider die Universalitit der Menschenrechte, 1996; Maier, H., Wie universal sind die Menschenrechte?, 1997, De recomendar: G. Haney, Autkléirung und juristische Zeitenwende; Jenas Beitrag zur Humanisierang des Rechts, em: R. Griischner/M. Morlock (org.), Rechts- philosophie und Rechtsdogmatik in Zeiten des Umbruchs (ARSP-Beiheft 71), 1997. 5 Ver, por exemplo, B. G. Haney, Vom Privilegium zum Recht, em: ARSP-Beiheft 71, 1997, 5 Preocupantemente extensivo, Peter Singer, Praktiche Ethik, 1989, p. 174s. Ver tam- bém R. HegselmanwR. Merkel (org.), Zur Debatte dber Euthanasie, 1991. Sobre a perspectiva que defendo, ct. A. Kaufmann, Strafrecht zwischen Gestern und Morgen, 1983, p. 137 ss. Re~ centemente, sobre estas questéies Ronald Dworkin, Die Grenzen des Lebens; Abtreibung, Eu- thanasie und persiinliche Freiheit (do inglés), 1994 e K. Merkel, Artaliche Entscheidung her Leben und Tod in der Neonatalmedizin; Ethische und strafrechtliche Probleme, em: JZ, 1996, 1145 ss, 3 Também aqui Peter Singer, Ethik (n. 58), p. 146 ss., defende uma posigdo extrema- mente “Liberal”. Remeto apenas para E.-W. Hanack, Grenzen der drtzlichen Behandlungspflicht beim schwerstgeschiidigten Neugeborenen aus juristischer Sicht, em: MDR 1985, 33 s5.; A. Kauf- 269 miltiplos riscos a que as pessoas esto expostas nesta era da tecno- logia atémica e genética. Ha muito que a vida jé nao é um valor ab- soluto®', N&o se sabe também o que seja uma “pessoa”. A extensdo do conceito de “pessoa” oscila entre a perspectiva segundo a qual 0 éyulo humano fecundado j4 seria uma “pessoa” e a opinido de que “pessoa em sentido pieno” ser apenas quem tiver consciéncia de si E também a dignidade humana nao escapa & mesma contingén- cia ¢ relatividade logo que se pretenda dar-lhe contetido. S6 quando nao se atribui & dignidade humana qualquer contedido, é que ela € ab- soluta, mas nesse caso torna-se também vazia. Um exemplo: num dos debates parlamentares sobre o problema do aborto, ambos os Ja- dos argumentavam com o principio do respeito pela dignidade hu- mana. Os defensores da nao punibilidade do aborto (pelo menos nos trés primeiros meses de gravidez) afirmavam que decorria da digni- dade humana (do direito de autodeterminagao da mulher) que a gra- vida pudesse decidir dispor livremente de si e do “seu ventre”. Os que eram a favor da manuten¢ao da proibigio do aborto argumenta- vam, pelo contrario, que a dignidade diz. respeito a todo o ser vivo humano, incluindo, portanto, o nascituro, pelo que a mulher gravida nao poderia dispor da vida do embrido. E evidente que ambas as ar- gumentagdes apenas podem ser simultaneamente validas se a “dig- nidade humana” for pensada sem contetido, se ela for uma palavra vazia. Se, ao invés, a pensarmos com contetido, e ela é naturalmente sempre pensada com contetido, ou seja, a partir da experiéncia (caso contrario, nao teria qualquer valor argumentativo), ento pelo menos uma das opinides € necessariamente falsa (nao estando evidente- mente excluido que ambas o sejam). Nao se deve também esquecer que subjaz sempre 4 dignidade humana uma determinada imagem do homem e que essa imagem do homem é relativa. “Os direitos ‘mann, Zar ethischen und strafrechtlichen Beurteilung der sogenannten Frilheuthanasie, em: ¥Z. 1982, 481 ss.; também em: idem, Strafrecht (n. 58), p. 117 ss. ‘Assim, j6 G. Stratenwerth, Sterbebilfe, om SchwZSwR 95 (1978) 77 s. Sobre a minha posigio a respeito da protecco da vida humana vista por um observador, veja-se W. Kerber, Der Schutz menschfichen Lebens in der Rechtsphilosophie von Arthur Kaufmann, em F Haft et al. (org ), Strafgerechtigkeit; Festschrift fir Arthur Kaufmann, 1993, p. 161 s. 270 humanos, sejam declarados ou convencionados, sfio positivagdes do direito € aparecem, por isso, ligados a um certo contexto situacio- *, dizia Joseph J, M. van der Ven, que nao era certamente um cép- feo E pode ler-se em Friedrich Diirrenmatt: SN3o sio os direitos, humanos que valem, vale apenas a sua interpretacao; deste modo se tornam eles relatives ~= Mas como se compatibiliza isto com o artigo 19.°, n.° 2 da Lei Fundamental, segundo o qual nenhum direito fundamental pode ser posto em causa no seu “contetido essencial”. Nao serd universalizé- vel pelo menos este “contetido essencial”? Mas 0 que significa con- tetido essencial de um direito fundamental? Sobre isto se tem larga- mente debatido desde que existe Lei Fundamental ™. Ha uma teoria que se refere 20 “‘nticleo substancial”" de cada di- reito fundamental. Este nticleo substancial teria que “subsistir” sem- pre que haja uma restricao de direitos fundamentais. Argumenta-se aqui manifestamente ao modo da ontologia substancialista. Um exemplo: 0 que “subsistir4” dos direitos de liberdade para um con- denado a prisio perpétua? Certamente nao € 0 “nucleo” da liberdade. Outra teoria diz que niio importa saber 0 que subsiste, decisive serd sim 0 critério da proporcionalidade: nao pode haver “excesso” na restrigéo do direito fundamental. Com isto é, todavia, posta de parte a ideia de “garantia do contetido essencial”. Uma terceira teoria sustenta que a Lei Fundamental nao garante direitos subjectivos individuais da pessoa, mas apenas a “institui- cao” seja da propriedade, da vida ou da liberdade. O artigo 19.°, n° 2, da Lei Fundamental implicaria apenas uma garantia institucional e [retomando o nosso exemplo] esta nao seria posta em causa quando se encarcera uma pessoa durante toda a vida. Finalmente, Niklas Lufumann, partindo da sua perspectiva fun- cionalista afirma que o limite fixado pelo contetido essencial nao @ J. J. M, van der Ven, Tus humanum; Das Menschliche und das Rechtsliche, 1981, p. 3. ® Friedrich Diirrenmatt, Gesammelte Werke, vol, 7, 1996, p. 708 ss.: Sobre a tolerancia (p.727) Ver (com numerosas referéncias) A. Kaufnann, Uber den ,,Wesensgehalt* der Grund- und Menschenrechte, em: ARSP 70 (1984, p. 384 ss. ©) Em alemao: “substantieller Kern”. (N.T.) 271 pretende nem uma protecgiio do individuo nem uma garantia institu- cional. Por exemplo, o artigo 14,° da Lei Fundamental, que tutela a propriedade, “nao protege 0 individuo na sua personalidade, nem nas suas especificas necessidades materiais, ndo Ihe garante nem ali- mentagao nem abrigo, nem um minimo de equipamento com simbo- los culturais, garantindo sim, o seu papel de participante no sistema de comunicagao que é a economia. Pois sem esta garantia nao se pode assegurar esse sistema de comunicagao. O proprietério apenas € protegido enquanto participante na sociedade e isso, nao por vir- tude da sua personalidade, mas em nome da capacidade de funcio- namento do sistema econdmico... A Constituigao no protege valo- res mas apenas fungées”®, A questio da “proteceio essencial” nado pode aqui ser discutida em detalhe. Deve apenas ficar claro que nao se afasta muito dela a ideia de universalizagao do “contetido essencial”. Nenhuma das mencionadas teorias satisfaz. Segundo a perspec- tiva relacional (nao ontolégico-substancial) que aqui se defende, os direitos do homem sao protegidos sempre apenas na sua relagdo com os direitos dos outros. Sio sempre direitos pessoais. Por um lado, a pessoa é 0 relatum da relag&o juridica; por isso nfo ha ne- nhumm direito que nao seja, pelo menos indirectamente, um direito da pessoa. Mas, por outro lado, a pessoa também determina a relatio: apenas se pode determinar o que seja a relagio justa tendo em conta _as miiltiplas relagdes recipracas em.que.os-homens.como, pessoas se encontram. A propriedade, tomando mais uma vez este exemplo, nao €na sua “ésséncia” nem uma substdncia nem um valor patrimonial, mas como diz Goethe (no “Prometheus”, Fragmento 1773) “o cir- culo que eu preencho com a minha actividade, nada mais e nada me- nos”. A propriedade € actio, é actividade, é auto-realizagao da pes- soa, Quem nio pode nomear nada de prdépria, nfo pode ser pessoa em sentido pleno. Deve aqui advertir-se contra as tendéncias unifor- mizadoras. O que a pessoa “preenche com a sua actividade” varia de © N. Luhmann, Grandrechte als Institution; Bin Beitrag zur politischen Soziolugie, 1965, p. 59 ss,, 120 ss. Ver, também, A. Schopenhauer, Kleines Schopenhauer-Brevier, 2.* ed. 1988, p. 143: ‘A propriedade de uma pessoa “é apenas aquilo que ele trabalha com as suas Forgas”. Apenas 272 pessoa para pessoa. O mecenas poderd nomear como prdéprios valo- res miliondrios em arte, mas j4 0 novo-rico nao. Pode, por isso, va- riar amplamente, de caso para caso, o “resfduo” que subsiste apds a restrigdo de um direito fundamental. Nao se pode universalizar este “tesiduo”. Rode-anenas dize-se ave um. pessoa nfo pode ser pi _-Nada de todos os bens a ponto de no The ser mais possivel uma humana digna, ~ Mestrou-se, portanto, que também os direitos humanos nao va- Jem de forma rigorosamente absoluta, nfo se podendo, por seu in- termédio, superar totalmente o relativismo. Eles sio precisamente direitos de homens e para os homens. Ora nada de humano é abso- luto. O mesmo vale para os principios gerais. IV. OS PRINCIPIOS GERAIS DE DIREITO Os principios gerais de direito, os “general principles of law”, desempenham, como se mostrou na secgo v do capitulo 4, um pa- pel de relevo na actual discussio jusfiloséfica. Deve aqui advertir-se contra um generalizado mal-entendido, Nao se podem “aplicar” prinefpios gerais de direito como se de uma receita culindria se tra- tasse; ¢ nao se pode neles “subsumir” como se faz sob o tipo de furto, Eles sao demasiado gerais e demasiado normativos para que tal seja possivel. Mas tais principios sio importantes. tépicos de ar- gumentagio e assumem um especial relevo, sobretudo, quando esta em causa a tutela das minorias e dos mais fracos. Esta claro que tais princfpios so tanto mais gontingentes quanto mais concretamente os concebermos € raramente se cistio.ape- nas com base_em_ wm desses principios, Nio se pode expor em abs- pertence as pessoas aguilo de que elas cuidam. Neste sentido, também 8. Breche, Der kauka- sische Kreidekreis, 6 cena: “O que af est deve pertencer aqueles que para isso so bons, por tanto/ as criangas & sua querida mae, para que sejam bem criadas.” Em Brecht no é & me que a crianga em disputa é atribuida, diversamente do que sucede em Salomiio. Sobre isto, ver H Schild, Das Urteil des Kénigs Salomo; Reflexionen zur Rechtsprechung zwischen Weisheit und Methode, em: F Haft et al. (org), Strafgerechtigkeit, Festschrift fir Arthur Kaufmann, 1993, p. 282 ss, 273 tracto a forma come operam os princfpios gerais de direito na argu- mentagiio, apenas se podem dar exemplos. E 0 que se iré aqui fazer tomando a bioética como exemplo. Também se remete para um exemplo dado a propésito da problematica da guerra e da paz, do ar- mamento e do desarmamento®’. 1. O principio suum cuique tribuere (Cicero): dar a cada um 0 que é seu. O minimo a atribuir a cada um como seu € a sua propria insubstitufvel vida individual, a sua identidade. Portanto: cada um tem o direito de poder levar uma vida conforme as suas caracteris cas (salvo, naturalmente, quando se trate de caracterfsticas que cons- tituam um perigo para os outros) € isto mesmo que se trate de uma vida apenas “mediocre” ou “‘defeituosa”. Protecgao absoluta da vida. 2. A regra de ouro (“Sermao da Montanha” de Jesus). Na sua forma positiva: faz aos outros 0 que gostarias que te fizessem a ti. Portanto: ctida do bem-estar do teu filho doente, assim como gosta- ria de ser tratado (e nao morto) caso estivesses doente, - Na sua forma negativa: nao fagas aos outros 0 que niio gostarias que te fi- zessem a ti, Ou seja, se ndo gostarias de ser geneticamente manipu- lado, nao defendas nem pratiques a manipulagio genética nos outros. Nao violencia, dever de assisténcia. 3. O imperative categérico (Kant): a) Age segundo aquelas ma- ximas que tu possas pretender que sejam erigidas a leis gerais. b) Age de tal modo, que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim e nunca apenas como um meio. Se ndo queres ser mera cdpia de outra pessoa, entéo nao promovas a clonagem humana. Autonomia, dignidade humana. 4. 0 principio da equidade (John Rawls): Age de tal modo, que todos os envolvidos participem de igual forma, tanto nos beneficios como nos encargos. Portanto: ndo € justo um projecto de tecnologia genética que apenas traz progresso & utilidade para a maioria, sendo as desvantagens suportadas exclusivamente pela minoria. Tutela das minorias. 5. O principio da responsabilidade (Hans Jonas): Age de tal modo, que a8 consequéncias da tua acgie nao destruam, ameacem © A. Kaufmann, Gerechtigkeit - der vergessene Weg zum Frieden, 1986, p- 95 ss. ex 274 ou diminuam a possibilidade de subsisténcia da vida humana e do seu ambiente. Por isso: nfio empreendas tecnologias genéticas cujo desenvolvimento possa implicar um dia danos imprevisiveis para a humanidade. Etica ecolégica, ética do futuro. 6. O principio da tolerancia (Arthur Kaufmann): Age de tal modo, que as consequéncias da tua acgdo sejam concordantes com a maxima prevengao ou diminuigao da miséria humana. Portanto: respeita e reconhece também aqueles cuja vida em sociedade parece ter pouco valor € que sao cinicamente considerados como “vidas sem valor”: os deficientes, os nascituros, as pessoas em estado ter- minal. Utilitarismo negativo. As argumentag6es com base nestes principios que esto todos li- gados entre si (e h4 outros ainda) nao sao forgosas. Elas gozam, con- tudo, de um amplo grau de evidéncia. Situam-se no aristotélico meio termo entre a pretensio do absoluto e a relatividade. V. ANTROPOLOGIA JURIDICA No presente capitulo, falou-se sobre a finalidade do direito: 0 bonum commune. Na perspectiva duma concepga antiva do direito, este é o capitulo central. Ele trata, resumindo-o numa nica palavra, do Home. Foi acima dito que a ideia de Direito resulta da ideia de Homem. Nao é uma justia sobrenatural nem uma pura fun- cionalidade técnica que importa. O que importa € 0 Homem, tal como é. Aqui se inicia a questao antropolégica. JA a teoria da justiga de Radbruch aponta, de forma consequente, para o Homem como fundamento e fim de todo ¢ direito (cf., nova- mente, esquema 5, supra, p. 229), remetendo assim para a antropo- Jogia juridica. Nao chegou porém a ocupar-se dela. Os tempos nao estavam para af virados. A antropologia foi durante muito tempo um parente pobre da ciéncia. Isto pode explicar-se. Para uma breve introdugdo & actual antropologia: K. Lorenz, Einfilhrung in die philo- sophische Antropologie, 2." ed. 1992, e G. Haefiner, Philosophische Antropologie, 1982.

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