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António Victorino D’Almeida

Os Devoradores
de Livros
Índice

António Victorino D’Almeida:


a obra e o homem como totalidade ......................... 9
Uma série de palavras soltas ................................... 15
Um caso de bibliofagia ........................................... 17
Três homens e um pardal ....................................... 97
O Sr. Gomes vinha com eles ................................... 103
Véus, vénias e venalidades ...................................... 107
Sadismo .................................................................. 109
Horizontalidade e verticalidade .............................. 111
A opinião pública ................................................... 115
Um problema de fé ................................................. 119
Bipolaridade ........................................................... 121
Uma vida ................................................................ 125
Ele estava no armário ............................................. 129
A ceia dos marechais .............................................. 137
Um raio de sol claríssimo ....................................... 141

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antónio victorino d’almeida:
a obra e o homem como totalidade

António Victorino D’Almeida é um criador plu-


ral, imprevisível e jubiloso. Três adjectivos entre tantos
outros que podem contribuir para a caracterização de
um percurso criador invulgar, por abarcar diversos ter-
ritórios pelos quais a imaginação autoral se expande,
da música à literatura, passando pelo cinema e pela
televisão. Com António Victorino D’Almeida a obra
acontece e, sendo imprevisível na sua génese e configu-
ração, acaba por ser jubilosa não apenas no resultado
final mas na própria alegria que o autor sempre associa
ao acto criador, como uma espécie de selo identitário
da sua relação com a vida e com a arte.
O autor é o mesmo de livros como Coca-Cola Kil-
ler ou Tubarão 2000, mas apresenta-se com os outros
ritmos e estratégias de efabulação, o que faz com que o
seu multifacetado rosto de autor se apresente ao leitor
a uma distinta luz, convocando-o para a fruição, para
o assombro e para o puro prazer da leitura.
A nada do que António Victorino D’Almeida
escreve ou faz é alheia a sua arte da música, pois

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PREFÁCIO

existe, como no labor dos poetas, uma musicalidade


intrínseca no seu processo narrativo, seja na estrutura
da adjectivação, seja na cadência dos diálogos, sempre
vivos, envolventes e dinamizadores da narrativa.
Estamos, neste livro, que junta vários registos
de escrita, perante a arte de um grande comunica-
dor que também passa pela escrita de ficção, sempre
pontuada por traços marcantes e incontornáveis do
estilo do autor: o humor, o apurado sentido crítico e o
gosto pelo nonsense, que muitas vezes o deixa na vizi-
nhança do território de sons e sentidos que tão caro foi
aos surrealistas, não sendo mesmo atrevimento exces-
sivo aparentar páginas da obra literária de Victorino
D’Almeida com a de Manuel de Lima, autor de livros
como O Clube dos Antropófagos e também músico de
profissão, discreto, mas eficiente e cumpridor.
António Victorino D’Almeida é homem de muitas
leituras, de múltiplas vivências culturais e dono de uma
visão renascentista da produção cultural, que lhe per-
mite criar um espaço multirreferencial onde se juntam
personagens, memórias de pessoas e de lugares, apon-
tamentos sobre o quotidiano e sobretudo uma mundi-
vidência que confere intemporalidade e universalidade
aos seus textos, sejam eles breves ou longos.
Lendo os textos mais breves deste novo livro,
vem-me à memória a obra contística do guatemal-
teco Augusto Monterroso, mestre absoluto da narra-
tiva brevíssima, que abre um dos seus mais notáveis
contos escrevendo: “Há três temas: o amor, a morte

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os DEvoradores de livros

e as moscas. Desde que o homem existe, esse temor,


essas presenças acompanham-nos sempre. Tratem os
outros dos primeiros. Eu ocupo-me das moscas, que
são melhores que os homens, não que as mulheres.”
É este tipo de humor certeiro, contundente e inespe-
rado que encontramos em muitas das páginas escritas
por António Victorino D’Almeida, a par da poeticidade
de passagens como a que abre Um Caso de Bibliofagia.
Como qualquer outro grande compositor, o autor é um
mestre da descrição, mesmo da paisagem natural ou
humana, mas, neste caso, com a mestria que lhe per-
mite trocar os sons musicais pela força descritiva, que
não explicativa ou justificativa, das palavras.
Ainda que, como acontece com Monterroso em
As Moscas, nessa espécie de geminação com o sofisti-
cado humor de Eric Satie, Victorino D’Almeida vai ele-
gendo nas suas narrativas as “moscas” que muito bem
entende, deixando para os outros a abordagem dos
temas mais convencionais e canónicos. Aí reside o seu
proverbial sentido de liberdade e a sua capacidade de
nos surpreender e de baralhar e dar de novo, caso este-
jamos a falar das regras com que o tecido da realidade
se cose e estrutura.
Na literatura, como nas restantes artes, nada
existe de mais difícil e inacessível do que ser breve e
do que criar a sensação de simplicidade. Disse-o uma
vez, lapidarmente, Winston Churchill, quando, num
discurso, apresentou desculpas aos presentes por não
ter tido tempo para tornar breve e simples aquilo que

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prefácio

tinha para lhes transmitir. Neste caso, sem nunca


renunciar à exigência estética, o autor consegue ser,
em regra, breve e não complicado, exactamente porque
tem de sobra o talento que lhe permite evitar a tenta-
ção da complexidade que, as mais das vezes, obscurece
e confunde, desviando o leitor do que, sendo verdadei-
ramente essencial, ilumina e seduz.
Como escreve o ensaísta latino-americano Mempo
Giardinelli, “o destino de um conto, como se fora uma
flecha, é produzir impacto no leitor. Quanto mais perto
estiver do coração do leitor, melhor será o conto. Para
esse efeito, o texto deve ser sensível: deve ter a capa-
cidade de mostrar um mundo e de ser um espelho em
que o leitor veja e se veja. A isto se chama identifica-
ção (o leitor pensa que o que se passou poderia ter-se
passado consigo mesmo), e isso criará uma empatia,
uma solidariedade com o contado, que fará com que
o conto se torne inolvidável. (...) Todo o conto contém
uma concepção do mundo, uma ideia do universo.”
Há nos textos deste livro essa mundividência, que
representa também um pacto assumido com o pra-
zer de escrever e de dar a ler, atitude que prolonga a
do compositor quando cria a sua música e a pensa já
na relação com o ouvinte ou ouvinte-espectador. No
fundo, para um comunicador de excelência como é
António Victorino D’Almeida, o acto criador gera sem-
pre um espaço que também é um palco e um lugar de
partilha com o destinatário.

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os DEvoradores de livros

Género maior da criação literária no século xix,


graças a escritores geniais como Guy de Maupassant
ou Anton Tchékov, o conto foi perdendo espaço edito-
rial na segunda metade do século xx, apesar da genia-
lidade de criadores como Ernest Hemingway, Jorge
Luis Borges, Juan Carlos Onetti ou Augusto Monter-
roso, entre muitos outros, de várias culturas e línguas.
Agora, nesta sociedade da voragem do tempo e da
pressa que nos consome e avilta, começa a recuperar
o lugar que com plena legitimidade lhe pertence, con-
sagrando, inclusivamente, a experiência dos microcon-
tos, cada vez mais procurados e cultivados por jovens
escritores.
António Victorino D’Almeida, recuperando aqui
uma narrativa mais extensa, que decidiu colocar de novo
ao alcance dos leitores, e acrescentando-lhe um conjunto
de narrativas muito breves e inspiradas, reafirma e con-
solida o seu estatuto como escritor, cuja capacidade de
efabulação, de construção de personagens, de imagina-
ção exuberante e de bom gosto no processo narrativo o
coloca numa posição que não se confunde com o traba-
lho do compositor ou do realizador de cinema ou tele-
visão. Afinal, o autor é sempre o mesmo, mas escolhe
com plena e exaltante liberdade a forma como faz alter-
nar os materiais expressivos a que lança mão para nos
dizer que só podemos compreender se compreendermos
esta totalidade tantas vezes desnorteante, mas que só
como tal pode ser descoberta e entendida, sem precon-
ceitos redutores e pseudocanónicos.

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prefácio

Ao completar sete décadas de uma vida mar-


cada por uma relação intensa e constante com o traba-
lho de criação artística, António Victorino D’Almeida
assume na sua plenitude a faceta de escritor, recupe-
rando obras antigas e dando novas à estampa. O seu
retrato completo como grande criador exige a presença
e a visibilidade de todas estas peças, porque este autor
é assim mesmo: inesgotável mas também, como o
modesto prefaciador salientou no parágrafo inaugural,
plural, imprevisível e jubiloso. Quem não perceber esta
realidade, perderá a compreensão do que é essencial.
E o essencial é essa totalidade poliédrica e exuberan-
temente criadora que dá pelo nome de António Victo-
rino D’Almeida, esteja ele sentado ao piano, em frente
de um computador, à frente ou atrás de uma câmara.
Recorrendo, metaforicamente, ao título de uma obra
célebre de Mussorgsky, seremos capazes de entender a
exposição apenas se apreendermos a essência de todos
os quadros que a compõem. É assim este livro. É assim
toda a obra de António Victorino D’Almeida.

Lisboa, Abril de 2010


José Jorge Letria

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uma série de palavras soltas

A maioria dos contos apresentados neste livro,


desde os mais alargados na sua dimensão até aos mais
reduzidos, é anterior à publicação do meu primeiro
livro, Histórias de Lamento e Regozijo.
E muitos deles, embora posteriormente sujeitos a
alguma natural revisão, são extraídos de redacções dos
meus tempos do liceu, quando o meu professor Jorge
Borges de Macedo me ditava uma série de palavras sol-
tas − e sem qualquer aparente conexão entre si − exi-
gindo que eu me baseasse nelas para inventar uma
história.
Tal como a música do século xx conheceu uma
escola em que o conceito de tema seria substituído
por uma série de doze sons, também o sistema utili-
zado pelo meu professor visava desenvolver-me a cria-
tividade literária, substituindo o assunto, propriamente
dito, por uma série de palavras ao acaso que eu deve-
ria utilizar como material para construir um texto com
pés e cabeça.
Lembro-me, por exemplo, de: “Azul”, “Vida”,
“Mão”, “Borboleta” e “Brincadeira”, que deu origem

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António Victorino d’Almeida

ao mais pequeno − ou, numa linguagem mais actual,


minimalista… − de todos os contos.
Essas palavras iriam constituir as verdadeiras
personagens, em torno das quais eu deveria construir
uma dramaturgia. E, talvez não por acaso, os autores
que mais me serviam nessa altura de referência eram
basicamente dramaturgos, como fosse o caso de um
Samuel Beckett ou de um Ionesco, cuja influência será
mais perceptível nos pequenos textos a que então cha-
mava “micro-histórias”.
Na sua versão original, seriam decerto páginas
perdidas. Mas, mesmo depois da sua posterior revisão,
muitas delas ainda foram recentemente achadas em
gavetas do esquecimento, razão pela qual é com parti-
cular alegria que as vejo aqui ressurgir à luz do dia.

António Victorino D’Almeida

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UM CASO DE BIBLIOFAGIA

Há uns segundos breves, na vida de todos os


dias que não padeçam de nevoeiro ou chuva, em que o
Sol, no seu poente, como que acenando um derradeiro
adeus em beleza, matiza céu e terra de cor-de-rosa.
É um instante fugaz, indeterminado, alheio ao
mecanismo monótono dos ponteiros do relógio; mas,
para aquele homem, que talvez fosse poeta, conquanto
não soubesse fazer versos, esse momento cor-de-rosa
na vida do mundo ocupava todas as horas do dia, antes
na expectativa, depois na recordação.
Estava-se numa pequena aldeia do Norte de Por-
tugal, em 1963.
E, para a família desse homem – gente honesta,
respeitada, proprietária de alguns haveres em terras
lavradas e também num casarão de suspeita arqui-
tectura antiga –, a inércia mazomba do parente era
motivo de lástima e até de uma certa vergonha: um
inútil, um zé-ninguém, um basbaque prantado à janela,
à espera...
Por vezes, geravam-se situações mais tensas em
que chegavam a chamar-lhe parasita e em que se erguia,

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António Victorino d’Almeida

ameaçadora, a citação de uma sábia máxima popular:


quem não trabuca, não manduca!
Mas ele era homem de pouco alimento – e lá lhe
levavam as refeições ao quarto, para evitar confusões,
incómodos, o diz-que-diz do comadrio provinciano,
sempre atento à especulação maledicente dos conflitos
familiares.
Em tudo o mais, ele era bem-educado; nem bom,
nem mau: um mono, um coitado que para ali andava,
mais valia que Nosso Senhor o tivesse levado logo à
nascença, mas quem conhece os desígnios de Deus?
Raras vezes saía do quarto, que não fosse para
satisfazer necessidades, e mostrava-se cuidadoso no
asseio da sanita, das toalhas, do lavatório. Não se
poderia dizer que incomodasse.
Na sua contemplação diária, até parecia que
estava a pensar, à maneira dos sábios que se viam nos
filmes. A diferença é que ele não sabia nada... Um dia,
em novo, afirmara que o labor sem porquê nem cons-
ciência era coisa própria de mulas – e tinham anotado
num caderno essa frase, que um psiquiatra de Coimbra
considerara de extrema importância.
Mas ele nunca mais voltara a pronunciar-se sobre
o assunto; esquecera-se a frase e perdera-se o caderno.
Aliás, o psiquiatra de Coimbra – apontado nos meios
clínicos como sumidade em doenças nervosas – mata-
ra-se anos mais tarde, depois de esfaquear a mulher e
a amante, numa cena confusa e escandalosa, pelo que
o prestígio da psiquiatria ficara assaz abalado naquela

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um caso de bibliofagia

casa: antes um doente pacífico, a magicar fechado,


num quarto, do que um médico destrambelhado, de
navalha em riste, a estripar-se a si e aos outros!
Se o objectivo do homem era viver o tal instante
cor-de-rosa em que o dia morre e vem a noite, talvez
se pudesse até admitir, dentro de um espírito de gene-
rosa transigência, que aguardar, sentir e recordar esse
momento seria o seu trabalho na vida... E mais tarde,
quando a escuridão subia dos vales para os montes e
dos montes para o céu, sobretudo antes que viessem
iluminar-lhe o quarto com petróleo ou acetileno (terras
muito atrasadas, infelizmente!), ele corria a deitar-se
na cama, nem queria saber do jantar, parecia fatigado,
mas tranquilo – e dormia para descansar...
Seria poeta, mas não sabia fazer versos... E nos
dias de névoa ou invernia em que tudo na terra é cin-
zento, mais claro ou mais escuro consoante as nuvens
que o vento arrasta, para no fim ser mais escuro, cada
vez mais escuro, até cair o breu da noite; nesses dias em
que o Sol nasce mas não se vê e o instante cor-de-rosa
existe só num além perdido, o homem sentia a ausên-
cia de qualquer coisa que lhe desse razão à vida.
Nesses dias era mesmo possível conversar com ele.
Banalidades: dormiste bem? O tempo anda húmido...
Coisas neste estilo. Mas, pela frincha da fechadura –
sobretudo outrora, quando o seu caso ainda oferecia
esperança, e a família enviava cartas pormenorizadas
ao psiquiatra de Coimbra, que, decerto, nem as lia,
envolvido em dramas sórdidos e passionais... –, tinham

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António Victorino d’Almeida

observado na sua expressão um olhar angustiado,


como o de quem busca em vão palavras para exprimir
uma ideia, um sentimento, um simples receio. Os seus
lábios moviam-se, e chegava a murmurar frases toscas,
numa frustrada tentativa poética em que “S. José” apa-
recia sempre a rimar com “Fé”...
Presumiam que se tratasse de uma poesia sobre
a Virgem Maria, pois, mesmo sem ser devoto de ir a
missas ou falar com padres, mostrava-se respeitador
e cumpria o ritual de visitar o cemitério no Dia de
Todos-os-Santos, inútil insistir com ele em que a data
mais exacta para a romagem seria o Dia de Finados:
era passivo, quieto, mas muito teimoso!
E assim viviam e o deixavam viver.
Lá fora caía a chuva, e o vento vinha do sul a
anunciar mais chuva para os próximos dias. Era o
Inverno que chegava. As pessoas agasalhavam-se, ves-
tiam sobretudos, casacos pesados, samarras. Já toda a
gente trazia guarda-chuva. Falava-se de um tufão que
andava pela Europa a fazer estragos. Em boa verdade,
porém, era na América: duzentos mortos na Califórnia;
cem famílias sem abrigo! Sim, era o Inverno que che-
gava. A D. Rita já estava constipada, à semelhança dos
outros anos. Fora fazer uma visita e toda a santa tarde
espirrara. Tinha sido o golpe de ar costumado. Era pre-
ciso cuidado com uma estação tão falsa. A agricultura
talvez se ressentisse. O Fialho das Hortas ainda não
dizia nada, mas constava que já andava a resmungar.
No Verão, queixava-se da seca. No Inverno, o mal era a

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