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A escola, o instituto e a ética

das consequências
Conferência proferida na atividade Para que serve o Instituto? -
abril/2023

Jésus Santiago
Psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise/AMP
santiago.bhe@terra.com.br
Resumo: No presente texto, o autor apresenta a forma de
funcionamento da Escola e do Instituto a partir da ideia de que o
princípio de orientação para a prática clínica é o mesmo que
para a prática institucional dedicada à formação analítica. O
modo como a psicanálise apreende as coisas do mundo diz mais
de uma dimensão ética do que propriamente epistêmica – trata-
se de uma dimensão ética que se deduz do fato de que não há
uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de
acolher a experiência do inconsciente. O autor, faz, então, uma
leitura sobre os ambientes psicanalíticos contemporâneos e
sobre a diferença entre a Escola e o Instituto.

Palavras-chave: Escola; Instituto; ética; teoria; prática clínica.

THE SCHOOL, THE INSTITUTE AND THE ETHICS OF


CONSEQUENCES

Abstract: The present essay discusses the operation of the


School and Institute of psychoanalysis taking into consideration
that both the clinical practice and the psychoanalytical
institution invested in the teaching of psychoanalysis share the
same principle. The psychoanalytical way of perception has more
to do with an ethical dimension than epistemic itself – it is about
an ethical dimension that comes from the deduction of the fact
that there is no theory of the unconscious without a practice
that is able to take the experience of the unconscious into
account. The author thus offers a reading on the contemporary
psychoanalytical environments and on the difference between
the psychoanalytical School and the Institute.

Keywords: School; Institute; ethics; theory; clinical practice.


Imagem: Sofia Nabuco

O que se impõe como princípio de orientação para a prática clínica


impõe-se também para a prática institucional lacaniana voltada
para a formação analítica. Vejamos como se pode formular esse
princípio de orientação que, a meu ver, serve tanto para a prática
clínica quanto para a nossa concepção do que é uma instituição
psicanalítica a serviço do discurso analítico. O meu ponto de
partida é admitir que, se a psicanálise ocupa uma posição singular
no conjunto das ciências, é porque ela, apesar de se inspirar em
seus fundamentos e seus métodos, é, antes de tudo, uma prática
cujo fundamento é a experiência do ser falante com o inconsciente.
Esclareço ainda que a psicanálise não é uma “teoria do psiquismo”
e, tampouco, uma “teoria do inconsciente”, como se o psiquismo
ou o inconsciente existissem em si e que seria apenas necessário
desvelar o seu funcionamento intrínseco. A psicanálise recusa-se,
assim, a abordar o inconsciente nos termos de uma cosmologia, ou
seja, não se trata de tomá-lo como uma entidade substancial
fechada em si mesma, como se fosse uma realidade
qualitativamente determinada, hierarquicamente ordenada,
submetida a leis diversas, cuja existência antecedesse o próprio
surgimento da prática psicanalítica.

Renúncia da pressuposição cosmológica

Enquanto prática, o edifício conceitual da psicanálise é concebido


como uma construção segundo o estilo work in progress,
exatamente como na ciência da física, que não se constitui como
um conhecimento em que seus objetos existiriam em si para além
de suas produções conceituais e metodológicas. O que é
característico da ciência que se faz presente entre nós desde o
século dezesseis é deixar em aberto a abordagem cosmológica das
coisas do mundo. A ideia de Cosmo teve o seu predomínio até o
surgimento da física de Galileu, que contribuiu para desfazer o
mundo da tradição, ordenado e limitado. O discurso da ciência está
em marcha e progride inexoravelmente, transformando o mundo
fechado da cosmologia no universo infinito da física.

O nosso ponto de partida é admitir que a existência do mundo[1]


não nos assegura absolutamente acerca da existência de uma
cosmologia. Muito antes pelo contrário, o próprio saber da ciência
demonstra que não há avanços na apreensão das coisas do mundo
sem a renúncia de toda pressuposição cosmológica.[2] Como se viu
antes, a emergência da ciência exigiu o abandono da concepção
clássica e medieval do Cosmo enquanto unidade fechada de um
Todo qualitativamente determinado e refratário aos
acontecimentos contingentes oriundos do Real. Isso quer dizer que
as coisas do mundo, com as quais a ciência lida, não são
preexistentes ao saber da ciência.

A respeito do modo como a psicanálise trata essa objetividade do


mundo, é preciso levar em conta o trabalho inaugural de Freud
com a Interpretação dos sonhos, em que a conceituação do
inconsciente se institui como um lugar que ele próprio denomina
como uma Outra cena (eine anderer Schauplatz) (LACAN, 1962-
63/2005). Introduzir a função do inconsciente como Outra cena a
partir do sonho esclarece o que vem a ser, por sua vez, o
tratamento que a psicanálise confere às coisas do mundo. Em
segundo lugar, Lacan (1962-63/2005) propõe que essa dimensão da
cena, que se apresenta como separada do mundo, aponta para a
distinção radical entre o mundo e esse lugar impossível de ser
simbolizado pela via das leis e do sentido, ao qual denominamos
Real, lugar em que as coisas adquirem existência. Assim, as coisas
do mundo vêm colocar-se em cena segundo as leis da linguagem,
leis que, por consequência, não podem ser tomadas como
inteiramente homogêneas ao Real (LACAN, 1962-63/2005).

O inconsciente é, portanto, exemplar acerca do modo como a


psicanálise capta e apreende as coisas do mundo, distinguindo
nelas o real que lhes é concernente. Mais do que uma questão
epistêmica, há uma dimensão ética implícita na formulação de que
a teoria psicanalítica do inconsciente não teria vindo à luz sem a
interposição da prática clínica de Freud com o sujeito histérico.
Trata-se da dimensão ética que se deduz do fato de que não há
uma teoria do inconsciente sem uma prática que seja capaz de
acolher a experiência do sujeito com o inconsciente. Isso quer dizer
que, se há uma teoria do inconsciente, ela é fruto da prática clínica
e, nesse sentido, se há uma teoria em geral na psicanálise, ela se
constitui sempre, segundo os termos do Lacan (1968-69/2008, p.
64), como “teoria da prática analítica”. Como ele próprio pôde
sentenciar: “o caminho do inconsciente propriamente freudiano,
foram as histéricas que o ensinaram a Freud” (LACAN, 1964/1988, p.
20). Com isso, reconhece-se a impossibilidade em instaurar uma
teoria da prática – concebida como a definição máxima do discurso
analítico –, por meio da mera especulação conceitual,
notadamente, quando esses conceitos estão a serviço de uma
Weltanchauung (“visão de mundo”).

A ética do primado da prática

Ao delimitar o campo da prática analítica, por um lado, como um


terreno fértil para as mais diversas invenções clínicas, e não apenas
aquela concernente à histeria, postula-se, por outro lado, que a
prática analítica é realista e, portanto, não-nominalista. O ensino de
Lacan não esconde a sua filiação realista em razão da apreensão do
real pela psicanálise se opor à separação radical entre os conceitos
e as coisas. A prática analítica apenas é possível por sua concepção
do sintoma, na qual se formula a conjunção entre o real e a
linguagem. Isso, aliás, é da ordem das evidências: se a psicanálise
busca modificar o real pela função da fala, é porque, segundo ela, a
articulação entre o real e a linguagem é um pressuposto
intransponível (SANTIAGO, 2007).

Vale dizer, por outro lado, que suas perspectivas inovadoras quanto
ao tratamento do sintoma não emergem em estado bruto, sem a
ação dos conceitos psicanalíticos. Afirmo que o valor ético do
primado da prática diz respeito ao fato de que os conceitos e as
categorias clínicas com as quais lidamos e cujo aggionarmento
visamos não apenas atendem as exigências da prática analítica,
mas também têm a sua origem nesse âmbito da prática. Se Lacan
chega a pôr em questão a existência de uma teoria do inconsciente
– como ele o faz no transcurso do Seminário De um Outro ao outro
–, o faz na medida em que ele é apenas apreensível,
conceitualmente falando, no campo da prática. Diante disso, pode-
se inferir que o inconsciente é exemplar da dimensão
consequencialista da ética, na medida em que sua conceituação
não advém da mera especulação sobre a sua existência, mas, sim,
da prática que o toma como objeto de uma experiência. A ética
mostra-se implicada nessa formulação de que o inconsciente
apenas é apreensível no campo da prática, considerando que a
visada da psicanálise é a incidência efetiva no real do sintoma.

Se o princípio ético do primado da prática deve prevalecer, é


preciso evitar o viés puramente especulativo, muito presente nos
ambientes psicanalíticos contemporâneos, em que a psicanálise se
transforma numa espécie de “sociologismo inflexível” (MILLER;
MARTY, 2021) a serviço de uma causa política ideal. A psicanálise
não pode acolher de modo imediatista e desprezando suas
exigências éticas os significantes-mestres que passam a circular
como resposta ao mal-estar da civilização. É sabido que o conceito
de gênero assumiu uma importância capital para certos
psicanalistas, tendo em vista que através dele foi possível contrapor
ao reducionismo da questão sexual ao seu componente biológico.
Em função da crítica à visão naturalista e biologizante dos corpos,
passou-se a adotar a noção de gênero como uma construção social
normatizada e que é convocada, por Judith Butler, a ser
problematizada e criticada, como acontece em seu livro Problemas
do gênero. Mais tarde, em seu livro Desfazer o gênero, essa mesma
noção é objeto de uma consígnia de desconstrução.

Fazer incidir na psicanálise a concepção butleriana do conceito de


gênero sem nenhuma crítica a empurra para uma visão
puramente sociológica da diferença sexual, pois as posições sexuais
tornam-se entidades socialmente construídas. Se, com Stoller, é
em relação ao pai do par parental que o gênero se constrói, em
Butler, o substrato da construção do gênero é social. Se, para a
psicanálise, a posição sexual de um sujeito compreende um modo
de gozo singular, para Butler, o gênero pertence à socialidade, ao
socius. Por tomar o terreno das relações entre os sexos como um
universo socialmente construído sem exterior, sem alternativa, sem
escapatória é que se pode falar de uma sociologia inflexível.
Nenhum sujeito pode escapar da performatividade social do
gênero (não há sujeito e nem subjetividade). É apenas por meio da
operação de disfuncionamento social promovida pelo ativismo
militante dos grupos identitários que se pode gerar mudanças nas
identidades de gênero e das normas heterossexuais dominantes. É
notório que essa deriva para o sociologismo torna a psicanálise
vulnerável a esse ativismo, em detrimento do que é a sua coluna
vertebral, ou seja, a prática clínica.

Entre intensão e consequência


Dizer que a psicanálise é uma prática não a torna, portanto, uma
disciplina refém da mera aplicação de regras técnicas rígidas,
oriundas de uma suposta teoria psicanalítica. Uma das virtudes e
resultados do Seminário da Ética da Psicanálise, que se desenvolve
no início da década de 60, é contrapor-se a essa cisão entre teoria e
prática e, segundo essa orientação, as questões técnicas são
substituídas pela perspectiva ética. Logo, se a psicanálise não
procede pela separação radical entre a teoria e a prática, se a
empreitada psicanalítica se afirma como uma prática, essa prática
não existe sem a dimensão ética. Se não há prática clínica sem
ética, o mesmo acontece com a política, que visa constituir-se
como o horizonte que organiza e anima a vida institucional de uma
comunidade de analistas. Ou seja, não há uma prática institucional
com a Escola e com o Instituto sem considerar a ética da
psicanálise. E isso serve para todos aqueles grupos ou instituições
que tentam se inspirar na prática institucional concebida, por
Lacan, durante sua longa trajetória de analista. E qual é a ética que
orienta uma política lacaniana para o discurso analítico?

Em artigo publicado na revista La Cause freudienne, sob o título de


“Política lacaniana”, Miller (1999) avança na ideia de que uma tal
ética deveria ser pensada segundo a antinomia entre duas
perspectivas distintas: de um lado a “ética da boa intenção”, que
não é freudiana, e que, sendo uma ética da boa-fé, é incompatível
com o campo conceitual freudiano. De outro lado, a “ética das
consequências”, que sempre se julga pelo ato e, por meio do
estatuto do ato, por seu valor e suas consequências. Para mim, não
há dúvidas que essas duas perspectivas éticas sempre estão
presentes como princípio para os que se dispõem na arte de
governar e dirigir as iniciativas de uma comunidade de analistas.

Evidentemente que essas éticas aparecem como tendências que


se efetivam de forma excludente no próprio modo de gestão das
questões que concernem as atividades cotidianas da instituição
psicanalítica: a formação analítica, a admissão de novos membros,
a autorização da prática clínica, o passe, a garantia, a produção,
entre outras. Em outros termos, tenta-se governar com a ética da
boa-intenção, em que prevalece o culto aos belos princípios do que
seria uma instituição que, supostamente, responderia pelos
fundamentos da psicanálise. É possível constatar que uma tal
orientação permanece, no essencial, inoperante, porque se mostra
prisioneira dos limites da figura da hegeliana da “bela-alma”, que,
no fundo, é impotente para lidar com a complexidade da situação
na qual estamos todos envolvidos.

Ora, a “ética das consequências” busca se fiar na dimensão política


de um ato que, ao assumir as tarefas de direção, procura,
necessariamente, incluir o Outro. Essa inclusão do Outro quer dizer
que, se a questão dos princípios e fundamentos do conceito de
Escola importam muito, é preciso, entretanto, dar sequência ao
momento lógico do ato, pelo qual se pode instaurar algo novo no
real de uma comunidade de analistas. É só observar o que nos
últimos anos temos feitos com relação ao discurso analítico: mais
do que belos discursos sobre a instituição ideal, temos, na verdade,
dado provas de uma ação que visa injetar novos elementos nesse
real.

Num primeiro momento, foram as Jornadas Clínicas e a ideia de


que o analista deve despojar-se de sua enfatuação, dando
testemunho daquilo que ele faz em sua prática clínica. E, nesse
mesmo tempo, instituímos entre nós a prática de produção,
proposta por Lacan, dos cartéis. No momento seguinte, assumimos
a empreitada de dissolver os grupos e colocar em questão a lógica
dos chefes e líderes, e passamos à fundação da Escola. E o que não
poderia ser diferente, quase imediatamente criamos o passe de
entrada, como uma forma de reconhecer que a autorização do
analista passa, necessariamente, por sua própria experiência de
análise, e que uma Escola deve saber acolhê-la. Exatamente neste
momento, estamos às voltas com o ato de consecução do Instituto
e de sua Seção Clínica.

A proposta do Instituto surge nos rastros do desejo de Lacan em


criar um Departamento de Psicanálise, no contexto do ambiente
universitário, no final da década de 60. Isso desaguou no que todos
conhecem como sendo o Departamento de Psicanálise da
Universidade de Paris VIII. Em 1975, ele realiza uma espécie de re-
fundação e renovação desse Departamento e, em 1976, cria os
cursos e respectivos diplomas do DEA (um equivalente do nosso
Mestrado) e do Doutorado. Em 1977, surge a Seção Clínica. O
próprio Miller (1997, p. 13) afirma que, se ele inventou o “Instituto foi
para prosseguir, na França e em outros lugares, essa via que não é
outra senão a de Lacan”. E a pergunta que emerge a partir daí é a
seguinte: se já se tem a Escola de Lacan, porque seria necessário
criar o Instituto? Qual é a dialética que se instaura entre o ato de
fundação que promoveu uma iniciativa institucional e a outra? Se
trata simplesmente de espaços institucionais geográficos
distintos? Claro que não!

Duas lógicas distintas a serviço da formação analítica

Na verdade, estamos diante de duas lógicas de funcionamento que


se justificam por princípios essencialmente distintos. E o ponto de
partida dessa distinção é o fato de que o discurso analítico tende,
invencivelmente, ele mesmo, a se destruir. A tese da autofagia
própria do discurso analítico se justifica em função de que é o
saber suposto que alimenta e sustenta a psicanálise, e que é esse
mesmo saber que, por dentro, o corrói. Essa forma específica do
saber analítico, que está na base da experiência analítica, é o que
anima a existência da Escola e o que permite ter como seu
sustentáculo básico o dispositivo do passe. O passe apenas existe
porque a experiência analítica secreta essa forma de saber cuja
lógica é aquela da ressonância do saber que se transmite pela via
do trabalho de transferência. O saber suposto é o que se motiva e
se produz por intermédio da transferência e é nisso que, enquanto
modo de saber, ele está, genuinamente, ancorado na experiência
analítica.

Se o funcionamento da Escola se funda e se orienta pelo saber


suposto e pela experiência do passe, o Instituto, por sua vez, se
baseia no saber exposto e naquilo que, no domínio da psicanálise,
lhe é característico: o matema. O Instituto é, portanto, o lugar em
que predomina o saber exposto, o único capaz de colocar limite ao
processo inexorável de autofagia do saber suposto, próprio ao
discurso analítico. É por isso mesmo que se diz que o Instituto é o
aguilhão da Escola. Ele é o aguilhão da Escola na medida em que,
ao empunhar e priorizar a lógica da argumentação em detrimento
daquela da ressonância, ele estimula, por excelência, a
transferência de trabalho, transferência que apenas pode se
personificar na demonstração própria do saber exposto. Nessa
distinção entre o passe e o matema, saber suposto e saber exposto,
entre a lógica da ressonância e a da argumentação, transmissão e
demonstração, o Instituto assume suas feições de algo que
permanecerá para sempre como atópico: “Enquanto que a Escola
se particulariza, esposando os contornos de cada cidade, região,
país, o Instituto, em qualquer lugar que exista, tenta ser o mesmo,
tal como o matema” (MILLER, 1997, p. 13).
Referências

KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 1982.

LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).

LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais


da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho
original proferido em 1964).

LACAN, J. O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Rio de


Janeiro: Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69).

MILLER, J.-A. L’acte entre intention et conséquence. La Cause


freudienne, n. 42, mai. 1999.

MILLER, J.-A. Ouverture de la surprise à lénigme. IRMA – Le


Conciliabule d’Angers: Effets de surprise dans les psychoses. Paris:
Agalma, 1997.

SANTIAGO, J. A querela atual do sintoma: o realismo lógico da


psicanálise em face do nominalismo contemporâneo. Curinga, v.
24, p. 11-19, 2007.

[1] Conferência proferida em 15 de abril de 2023 durante atividade


do IPSM-MG intitulada Para que serve o Instituto?

[2] “Eu diria que o primeiro tempo é: o mundo existe”. (LACAN, 1962-
63/2005, p. 42)

[3] A emergência da ciência exigiu o “abandono da concepção


clássica e medieval do Cosmo – unidade fechada de um Todo, Todo
qualitativamente determinado e hierarquicamente ordenado, no
qual as diferentes partes que o compõem, a saber, o Céu e a Terra,
estão sujeitos a leis diversas”. (KOYRÉ, 1982, p. 182)
Debate:

Lilany Pacheco: Queria agradecer muitíssimo ao Jésus, um trabalho


espetacular. Achei interessante isso de você enfatizar: a psicanálise
não é, a psicanálise não é, a psicanálise não é... É parecido com o
que Lacan fez nos seus Escritos para dizer o que o inconsciente não
é. Achei essa pulsação importantíssima e que culminou nessa
explicitação das duas lógicas de maneira espetacular, clara,
marcada por esse percurso que nos deu o chão, para escutarmos a
lógica que nos orienta em direção à Escola e a lógica que nos
orienta em direção ao Instituto.

Jorge Pimenta: Jésus, quero agradecer a sua conferência. Eu


gostaria que você voltasse a falar sobre o primado da prática, pois
você citou a questão da militância no marxismo. Há um termo da
dialética hegeliana retomada por Marx que é a práxis. Podemos
pensar essa questão do primado da prática, ou a teoria da prática,
em função desse termo, práxis. Achei interessante você ter feito
essa referência à Weltanschaaung, na medida em que, em Freud,
há uma distinção entre a prática da psicanálise daquela da filosofia
que é essa de uma visão de mundo. Outra questão que eu faria é
sobre a ética da psicanálise. Pode-se pensá-la não como uma
deontologia, como é a ética das profissões; mas, o que seria a ética
da psicanálise? Ela inclui o sujeito na sua vertente de parlêtre, o
gozo, a pulsão?

Bruno Engler: Incialmente eu gostaria de te agradecer, Jésus, pelo


esforço de demonstração do que para mim é o que fundamenta a
nossa prática. Minha questão é a respeito do que eu entendi como
uma ética do ato, uma ética em ato. Quero perguntar-lhe sobre o
que estaria em jogo no ato de Lacan na dissolução da Escola tanto
no que diz respeito à sua causa quanto em relação aos seus efeitos,
como uma forma de pensarmos o lugar que estamos hoje.

Cristiana Pittella: Quero te agradecer muito, Jésus, por sua


exposição. Você poderia retomar a questão da Escola como sujeito,
a questão do ato e da ética própria da psicanálise? Poderíamos
pensar assim também para o Instituto, pois, me pareceu que há
algo que se conjuga com a Escola na forma do trabalho do
Instituto.
Jésus Santiago: Antes de responder a sua questão, Cristiana, queria
saber se você considera que o Instituto também deve ser
concebido como um sujeito? Digo isso pois como se sabe, Jacques-
Alain Miller propõe uma tese, na sua Teoria de Turim sobre o sujeito
da Escola, qual seja, que a Escola de Lacan deve ser tomada como
um sujeito passível de interpretação. Como ele se exprime nesse
texto: “a vida de uma Escola deve se interpretar. É interpretável.
Interpretável analiticamente”.

Cristiana Pittella: Não sei e é exatamente isso que te pergunto:


como considerar ou pensar Instituto? Por exemplo, chamou-me
muito a atenção você destacar que “a jornada clínica incide na
formação do analista”. Parece-me que há algo aí também do
sujeito, do ato e da ética da psicanálise em jogo no Instituto.

Jésus Santiago: Sim, Cristiana, considero a sua questão de


fundamental importância para pensarmos o futuro de nosso
trabalho com o Instituto. Devo dizer-lhe que apesar das duas
lógicas distintas, isto é, o saber suposto do lado da Escola e o saber
exposto do lado do Instituto, penso que essas duas lógicas existem
em função de um objetivo comum, que é a formação analítica. Isso
quer dizer que a lógica do Passe e a do matema não existem na
vida concreta desses dois sujeitos de Direito – Escola e Instituto –
de forma separada e estanque. Logo, a vida coletiva do Instituto
apenas tem lugar se estiver a serviço do discurso analítico. Concluo,
portanto, de modo taxativo, que a vida coletiva do Instituto é tão
interpretável quanto a vida coletiva da Escola.

Patrícia Ribeiro: Jésus, muito obrigada. Minha questão diz respeito


ao que você sublinhou sobre o “risco de autofagia” no que toca ao
discurso analítico. Seria possível pensar nesse risco a partir da
leitura do texto de Miller (2005) “Uma fantasia”, especificamente
quando ele afirma que o discurso da civilização hipermoderna tem
a estrutura do discurso do analista?

Jésus Santiago: É verdade, a hipermodernidade faz com que, de


alguma maneira, o discurso da civilização passe a ser o discurso
analítico, e não o discurso do mestre. Essa é a ideia central que
Jacques-Alain Miller desenvolveu nesse texto ao qual você fez
referência. Porém, explicite melhor o que você pensa sobre a
relação dessa mudança com a tese da autofagia, ou seja, de que o
discurso analítico tende ele próprio a se destruir.
Patrícia Ribeiro: Exatamente por isso, pelo fato de que não haveria
mais, como esclarece Miller, uma relação de avesso da psicanálise,
com o discurso do mestre, como havia antes, mas sim uma relação
de afinidade, de convergência com a civilização.

Jésus Santiago: Bastante interessante a sua questão Patrícia. É


verdade: se o discurso analítico – e não o discurso do mestre –
passa a ser o discurso da civilização, pode-se conjecturar se isso
não agravaria o processo da autofagia próprio do discurso analítico.
Penso que, para avançarmos, teríamos que enfrentar o seguinte
problema: para que a psicanálise possa exercer sua função de
“lâmina cortante” das identificações subjetivas se faz necessário, ou
não, uma relação de exterioridade da operação analítica com
relação ao programa da civilização. Lembro-lhe que, nesse texto
mesmo, Miller sugere a ideia de que o surgimento do discurso
analítico trouxe consequências importantes no âmbito da
sexualidade e da feminilidade. Em outros termos, desde o Século
das Luzes não houve discurso mais potente do que a psicanálise
para fazer vacilar os semblantes da vida civilizada. Assim, respondo
a sua pergunta com uma outra pergunta: se a psicanálise não
agisse de modo exterior ao programa dominante da civilização, ela
teria desempenhado esse papel de fazer vacilar os semblantes nas
esferas do sexual e do feminino?

Aluna do Instituto: Também quero te agradecer, Jésus. Fiquei


pensando sobre essas perguntas que se fazem sobre a técnica da
psicanálise, como, por exemplo, o manejo com o pagamento da
sessão, fazendo acreditar que haveria respostas prontas para isso.
Estamos hoje às voltas com isso, sobre como fazer operar, como
obter respostas práticas, tais como cobrar a falta na sessão, sobre
pagamento, etc.

Lilany Pacheco: Essa pergunta diz respeito aos jovens que


demandam na supervisão, por exemplo, saber como agir nessas
situações de falta à sessão, pagamento...

Aluna do Instituto: O que mais existe hoje são cursos que ensinam
como cobrar a sessão, como se faz isso ou aquilo.

Jésus Santiago: As perguntas referentes ao modo como se analisa


hoje são talvez as mais importantes e de mais difícil resposta. Não é
à toa que tivemos inúmeras Jornadas e Encontros no Campo
Freudiano que versam sobre o tema de como se analisa hoje. Na
história do movimento freudiano, as questões que envolvem os
procedimentos clínicos de intervenção segundo um conjunto de
regras a serem seguidas denominava-se, até o surgimento do
ensino de Lacan, “técnicas psicanalíticas”. Assim, as questões
relativas à transferência e à contratransferência, à regra
fundamental, à regra da abstinência e ao modo de intervenção
(ativo ou passivo), à duração das sessões, à posição do analisante
(frente a frente ou deitado no divã), entre outras, eram abordadas
como se fossem questões de natureza puramente “técnica”. Foi
Lacan quem trouxe um verdadeiro abalo nessa visão cristalizada do
tratamento, em que as questões técnicas tornavam-se prevalentes
com relação ao teor conceitual do que é o inconsciente, a
transferência, a interpretação, a sessão analítica e etc. Por exemplo,
ao abandonar a delimitação cronológica do tempo da sessão,
submetendo-a a uma temporalidade variável ou curta, Lacan
evidencia que as questões técnicas devem estar submetidas à
perspectiva ética própria do discurso analítico. Ao ser portadora de
uma temporalidade variável, a sessão analítica consiste em um
modo de interpretação por meio do corte da sessão, sob a
responsabilidade do analista.

Lucia Mello: Eu peço a você, Jésus, um comentário a respeito da


Conversação Clínica, sobre a sua importância.

Jésus Santiago: Eu proporia uma distinção entre uma Conversação


que teria incidência, de preferência, epistêmica, e outra, que teria
um alcance mais clínico. Tomaria como exemplo da modalidade
epistêmica a Conversação de Arcachon, que criou as condições
para Jacques-Alain Miller formular a noção de “psicose ordinária”.
Permito-me falar do alcance clínico da Conversação a partir da
experiência que a Ana Lydia Santiago pôde desenvolver no
contexto de projetos de pesquisa-intervenção que aconteceram no
âmbito da rede pública de ensino. Segundo o método da
Conversação, buscou-se intervir nesses sintomas da modernidade
que são os problemas e impasses que atingem a vida escolar, na
infância, como é caso do fracasso escolar, da segregação e da
violência presente nas escolas.[i] É sabido que a escola lida muito
mal com as particularidades da subjetividade, seja na infância, seja
na adolescência. Nesse caso, o interesse maior da Conversação é
resgatar a singularidade do sujeito e o modo como o coletivo pode
abrir espaço, a partir da conversa, para que cada sujeito produza
novas enunciações e práticas.
Como define Miller (2003), uma Conversação estimula a série de
associações livres. A associação livre poder ser coletivizada na
medida em que não somos donos dos significantes. Um
significante chama outro significante, não sendo tão importante
quem o produz em um dado momento. O intuito de uma
Conversação não é produzir uma enunciação coletiva – pois, do
ponto de vista da psicanálise, isso é impossível –, senão uma
associação livre coletivizada, da qual se espera um certo efeito
sobre o saber. Outros analistas fizeram uso do método da
Conversação com o objetivo também clínico, como é o caso do
Phillipe Lacadée, no âmbito dos jovens adolescentes e da
variedade de sintomas que lhes concernem.

Maria Rita Guimarães: Faço coro aos agradecimentos e


cumprimentos a Jésus, sua conferência foi muito esclarecedora. O
que me interessou muito diz respeito ao ato. Se eu me recordo da
leitura desse texto ao qual você fez referência – Política lacaniana –,
Miller (1997-98/2017) vai trazer uma pergunta: “como se reconhece
um ato?”. E responde: “por seus efeitos”.

Então, me parece que, numa sessão clínica, o analista tem


condições de reconhecer esse ato de um modo mais evidente na
próxima sessão, no que vai se seguindo aí na análise. No CIEN
(Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Criança) é possível a
gente perceber que houve um efeito desse ato, mediante o
impasse apresentado, quando, através da Conversação, esboça-se
alguma saída. Como se poderia reconhecer o ato em suas
consequências, segundo a política lacaniana, no coletivo
institucional?

Jésus Santiago: Aparentemente, a pergunta da Maria Rita exigiria


uma resposta que sairia do escopo de nossas discussões sobre o
Instituto e a Escola. Porém, não! A própria existência da primeira
Escola de Psicanálise, isto é, a Escola Freudiana de Paris, acontece
como fruto de um “ato” – o ato solitário de fundação de Lacan.
Entendo que o ato no plano do coletivo institucional supõe o
desejo do analista, que, por sua vez, se define como a “pura
enunciação” que visa a “diferença absoluta”. O ato de fundação
vem para impedir aquilo que é um pressuposto da própria
constituição da IPA (International Psychoanalytical Association), a
saber: criar um coletivo que congregue todos os analistas do
mundo. Sendo que não existe todos os analistas e tampouco o
analista. “Só existe um analista, mais outro, mais outro, mais outro
analista, tem mille e tre analistas” (MILLER, 1984, p. 15).

Há ainda o fato de que esse conjunto de todos os analistas está


referido – porque não dizer “identificado” – ao Outro que se situa
fora dele: o pai morto. Para Miller (1984, p. 15), “a IPA é um coletivo
de analistas fundado pela identificação ao pai morto”. A Escola de
Lacan não se constitui como um conjunto fundado no culto da
memória e tampouco no apego ao legado de seu ensino. O ensino
de Lacan existe de modo vivo, entre nós, orientando-nos em nossas
práticas clínicas e institucionais, em que cada analista entra com a
singularidade própria de sua experiência do inconsciente e do
modo como cada um fez a passagem de analisante e analista. Vale
dizer que constituímos um conjunto paradoxal e sem
uniformidade e homogeneidade, um conjunto à la Bertrand
Russell que tem como ponto de partida o axioma: “o conjunto de
todos os conjuntos que não possuam a si próprios como
elementos”. Considere que o conjunto P é: o conjunto de todos os
conjuntos que não possuam a si próprios como elementos. Se
todos os conjuntos estão formando outro conjunto, então ele não
pode ser um conjunto, daí surge o paradoxo inerente à orientação
lacaniana: não existe conjunto de todos os conjuntos, nem classe
de todas as classes.

Tânia Abreu: Jésus, é sempre um prazer te ouvir. Eu estou


trabalhando em minha tese de doutorado sobre a experiência
analítica e seus efeitos de formação, e ela tem relação com o que
você falou, sobre o fato de que o analista se autoriza de si mesmo.
Achei fantástico você fazer essa diferença entre o Instituto e a
Escola a partir do Passe, nesses termos: “O instituto, que não tem o
Passe, mas o matema, pode ser interpretado?”. A Escola pode ser
interpretada, pois ela é sujeito, ela é dividida.

Você colocou o matema do lado do Instituto e o Passe do lado da


Escola. A interpretação, a meu ver, só pode mesmo estar do lado da
Escola. Mas o Instituto precisa avançar também, precisa ser revisto
o seu mecanismo. Qual a ferramenta que podemos pensar para
esse aguilhão?

Jésus Santiago: Tânia, creio que já pude responder a sua pergunta


quando tratei da questão formulada por Cristiana Pittella. Mesmo
que a interpretação esteja preferencialmente do lado da Escola e,
sobretudo, porque no seu coração temos o Passe e o AE – cuja
função principal, como temos visto em nossas discussões, é
interpretá-la –, isso não invalida que o coletivo de analistas que
assumem responsabilidades possa lançar mão da interpretação no
trabalho do Instituto. Afirmo isso na medida em que o trabalho de
transmissão do saber analítico no Instituto se faz sob os auspícios
dos princípios e meios que se veicula no próprio discurso analítico.
Nesse sentido, o instrumento com o qual contamos para fazer valer
a função de aguilhão do Instituto é tanto a transferência de
trabalho quanto a interpretação – notadamente, quando esta
última incide sobre os efeitos de grupo e ao mutualismo inerente à
vida associativa das instituições psicanalíticas.

Marcia Mezêncio: Agradeço por sua exposição. Eu também estou às


voltas com esse tema sobre o qual discuti nas Lições Introdutórias,
bem como na Diretoria de Cartéis. São questões sobre o saber
suposto e o saber exposto, a elaboração provocada do saber e o
aguilhão. Mas fiquei me perguntando, diferentemente dessa
distinção, sobre o que haveria em comum entre a Escola e o
Instituto. E se a resposta não seria a transferência de trabalho,
porque ela está em questão no Passe, no Cartel e no Instituto. Se o
Instituto está articulado à vertente do saber exposto, como ele
poderia fazer uso da transferência de trabalho?

Jésus Santiago: Vou dar continuidade às minhas respostas com a


questão do Jorge. É interessante porque ele faz uso do termo
práxis, que foi muito corrente num momento em que, tanto ele
como eu, estávamos imersos numa prática política militante contra
o regime de ditadura militar que tomou conta do Brasil a partir de
64. Aliás, nós exercíamos uma militância em um grupo político
revolucionário – Ação Popular Marxista-Leninista – que,
inicialmente, adotava uma orientação maoísta e, pouco a pouco,
migrou para uma perspectiva leninista e com forte influência do
marxista italiano Antônio Gramsci. A questão das relações entre a
prática e a teoria sempre foi uma questão importante para os
militantes da esquerda revolucionária em ação sob o regime da
ditadura militar. Havia toda uma polêmica sobre a questão da
prática, sobre o voluntarismo, o “tarefismo” e, também, sobre o
lugar da teoria e da formação teórico-política do militante. É
verdade que, nesse momento dramático de nossa história política,
surge, entre nós, o uso corrente dessa categoria práxis. Como
explicar esse uso? Penso que se tratava de encontrar uma relação
“dialética” entre a teoria e a prática, uma vez que nos
defrontávamos com o que, para nós, era o desvio do “tarefismo”, ou
do voluntarismo, ou seja, para a militância, a ação política tendia a
se tornar uma “prática sem teoria”.

Do lado do marxismo também chamado de estrutural, aquele


propugnado por Louis Althusser (1977), buscava-se resolver esse
problema do voluntarismo do militante por meio do que ele
designava como a “prática teórica”. Ele próprio foi levado a fazer
uma “autocrítica” porque isso levou a um outro tipo de desvio: o do
teoricismo, ou seja, uma “teoria sem prática”. No fundo, sob o nome
de “teoria”, Althusser aposta em algo inteiramente diverso do que o
surgimento da psicanálise pode promover a esse respeito, pois,
segundo ele, a “prática teórica” seria capaz de gerar algo novo no
domínio do pensamento e da ação.

No terreno da psicanálise, me parece curioso o fato de que o termo


práxis surge, logo no início do Seminário 7, A ética da psicanálise”,
provavelmente, porque Lacan (1959-60/1988) debatia com o
ambiente psicanalítico de sua época a questão da redução da
prática analítica a um protocolo de regras técnicas. Um ano após,
durante o Seminário 8, A transferência, Lacan (1960-61/1992, p. 85)
esclarece que o emprego do termo práxis se justifica pelo fato “de
que o acesso ao real não deve ser concebido como correlativo da
busca de um tema” – que seria teórico – “ainda que este seja
universal”. Ele é explícito a esse respeito, ao dizer, que a “théoria [...]
por mais contemplativa que possa ser, ela não é somente isso, e a
práxis da qual ela se extrai [...] o demonstra de modo suficiente. Sob
esse ponto de vista, a ideia de uma “prática teórica”, como sugere
Althusser, constitui-se, para o campo freudiano, um disparate. A
teoria não é, portanto, “uma mera abstração da práxis, nem sua
referência geral, nem o modelo daquilo que seria sua aplicação”
(1960-61/1992, p. 85). Em suma, com o termo práxis, Lacan mostra
que, em psicanálise, o surgimento da teoria não se faz sem a
interveniência da prática, e a teoria, por sua vez, se confunde com o
exercício e o poder – to pragma – do fazer e do ato analítico. A meu
ver, é insuficiente o simples apelo à interação dialética entre a
teoria e a prática, a exemplo do que faz o marxismo, como
argumento para manter o emprego do termo práxis. Tenho a
impressão que a vertente mais autêntica do que vem a ser a práxis
apenas se mantém no horizonte de práticas que se sustentam no
âmbito da experiência, como é o caso, na psicanálise, da
experiência do inconsciente.
Por outro lado, as práticas que se alimentam pela via dos ideais, por
exemplo o ideal de transformação do mundo, com vistas a atingir
uma sociedade justa, sem oprimidos e exploradores – tendem
rebaixar a prática ao plano de um ativismo com conotações
messiânicas. Para Walter Benjamin, marxismo e messianismo,
revolução e redenção, seriam duas faces de uma só e mesma
pessoa, ou de um só e mesmo pensamento. Segundo ele, “a
imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da
redenção” (BENJAMIN, 1940/2012, p. 242). Portanto, que laço se
pode estabelecer entre esses dois aspectos, em que um se
qualifica como “política” e o outro como “religião”? Longe de se
excluírem, esses dois aspectos parecem se reforçar mutuamente,
encontrando no pensamento de Benjamin analogias
surpreendentes, que chega a falar de “paradoxal reversibilidade
recíproca” do religioso no político e do político no religioso. Ao
contrário do evolucionismo de esquerda, Benjamin não concebe a
revolução como resultado “natural” ou “inevitável” do progresso
econômico e técnico (ou da contradição entre forças e relações de
produção), mas como interrupção de uma evolução histórica
criando as condições para uma sociedade sem classes, sem Estado
e sem dominação patriarcal. Contrário a uma visão linear e
quantitativa, Benjamin opõe uma percepção qualitativa da
temporalidade fundada por um lado na rememoração, por outro
na ruptura messiânica e revolucionária da continuidade. A
revolução é o equivalente profano da interrupção messiânica da
história, e também, como se disse antes, “suspensão messiânica do
devir” (LÖWY, 2012, p. 135).

Por outro lado, entendo que a questão da prática assume uma


especificidade própria em função desse viés profundamente anti-
messiânico que circunscreve o fazer clínico do psicanalista a uma
operação sobre o sintoma. Meu ponto de vista é que isso introduz
na relação entre teoria e prática uma perspectiva pragmática no
fazer clínico do psicanalista que provém do último ensino de Lacan.
É o que permite referir-se ao primado da prática sobre a teoria
psicanalítica que assume o valor de um princípio epistêmico que se
faz presente desde o momento em que a psicanálise desponta na
cena do mundo enquanto um tratamento ofertado ao ser falante.
Assim, a via pragmática se afirma, uma vez que, para Lacan, não há
uma psicanálise teórica que se diferencie de uma psicanálise
aplicada e que esteja completamente separada desta última. Se
não existe uma teoria psicanalítica propriamente dita, é com efeito
certo que, em Freud, a clínica da histeria apenas venha à tona
segundo uma “teoria da prática psicanalítica” (LACAN, 1968-
69/2008, p. 64).

Sobre a questão da deontologia, posso responder a partir do que


disse antes: a deontologia considerada como um conjunto de
regras e de deveres que regem a prática analítica seria o avesso da
dimensão propriamente ética da psicanálise. Se a deontologia
constitui um conjunto de regras a ser seguida, ela é, portanto,
exatamente o contrário do que são os princípios que orientam a
ação do analista. A esse respeito, vale a pena recuperar o que Miller
aborda em seu curso “Donc” acerca do paradoxo do cético de
Wittgenstein enunciado pelo lógico Saul Kripke (MILLER, 2011). Em
termos analíticos, eu traduziria esse paradoxo assim: nenhum ato
analítico pode ser determinado por um protocolo de regras a
serem seguidas, pois não há como garantir, por meio de um saber
seguir regras, um saber fazer futuro consoante com supostas
regras.

Houve um momento em que o campo analítico se viu ameaçado


pela vontade do Estado-providência de regulamentar a psicanálise,
e, nesse momento, fomos levados fazer um esboço de um código
deontológico que expusesse os princípios e procedimentos da
prática analítica. Tendo em vista que esses projetos de
regulamentação não foram adiante, esse código foi para gaveta.

Lilany Pacheco: E está na gaveta....

Jésus Santiago: Sim! Ficou na gaveta. Com isto quero dizer que não
é possível conduzir um tratamento analítico no horizonte de um
código deontológico. Vou aproveitar para responder à aluna do
Instituto que fez uma questão importante sobre a técnica.
Evidentemente que as questões sobre a técnica psicanalítica
surgem quando estamos em dificuldades com algum problema no
tocante ao atendimento de um paciente. Muitas vezes, procura-se
resolver essas dificuldades por intermédio de um fazer sob o
comando de um conjunto de regras prescritivas. Lacan propõe que
as questões técnicas devem estar submetidas aos princípios que
conferem substância à chamada ética da psicanálise. Isso significa
que não há como dirigir um tratamento analítico por meio de um
protocolo de regras técnicas a serem seguidas. A medicina hoje, a
tão propalada “medicina baseada em evidências”, é marcada pelo
uso de guidelines, pelo emprego rotineiro de protocolos e, em
suma, por princípios de caráter estritamente técnicos. Parecem-me
importantes os questionamentos e as investigações, que já têm
lugar no terreno da medicina, sobre o emprego do protocolo na
atividade clínica do médico.

É possível afirmar que na prática psicanalítica, em contraste com


essa disseminação do uso dos protocolos na medicina, exige-se
uma relação íntima entre teoria e prática, e tendo a considerar que
esse ponto se constitui como algo inédito no campo dos saberes
em geral. À luz do ponto da psicanálise, pode-se dizer que uma
questão que emerge na atividade clínica do analista não se resolve
sem a dimensão teórica, sem a dimensão conceitual. Porém, é
preciso admitir, por sua vez, que essa mesma dimensão conceitual
apenas adquire consistência e valor epistêmico, se ela emana a
partir de uma problematização que tem lugar no seio da prática
analítica.

A meu ver, é nessa interação dialética entre teoria e prática que


reside o precioso aforisma enunciado por Miller: “não há clínica
psicanalítica sem ética”. Vale dizer que as relações entre teoria e
prática são um dos principais princípios éticos da psicanálise. Aliás,
é no interior desse problema que se pode inserir a importância da
prática da supervisão. A supervisão entendida não apenas como
um trabalho dirigido à construção do caso, mas, também, como
espaço para a interpretação da prática do analista e do desejo do
analista. Por exemplo, é o trabalho da supervisão que pode lançar-
se na questão: temos nesse caso clínico o funcionamento do desejo
do analista como motor do tratamento?

Sobre a pergunta do Bruno Engler, sobre a questão da dissolução,


parece-me interessante colocá-la como uma referência para se
pensar a dimensão do ato, sobre a dimensão ética do ato, como
você mesmo se expressou. O interessante no caso do ato da
dissolução é constatar o que diz Miller no texto que citei antes: “Um
ato entre a intenção e a consequência”. Afirma-se assim: não é que
não haja nele o componente da intenção. No fundo, todo ato é
portador de uma intenção. E respondendo também à Maria Rita:
no entanto, o que importa destacar na concepção lacaniana do ato
analítico é a sua consequência. Permanece, para todos nós, a
questão: quais são as consequências do ato da dissolução?
Portanto, apenas se obtém o alcance do ato por intermédio de suas
consequências. É o caso também da interpretação! Só se pode
aquilatar o alcance de uma intepretação a partir de seus efeitos.
Assim, a interpretação apenas existe em relação com os seus
próprios efeitos. Por essa razão, é quase impossível querer fazer
uma teoria exaustiva do que vêm a ser as diversas modalidades da
interpretação na prática analítica.

Agora, eu acho que há um outro ponto importante no ato da


dissolução, promovido por Lacan, ponto que Miller aborda, nesse
texto, e que, para mim, permanece em aberto. Trata-se do que
num dado momento desse texto ele se propõe a esclarecer, que é a
orientação que Lacan adotava para a sua prática institucional. Ele
se pergunta se Lacan não mantinha um respeito excessivo para os
grupos existentes no interior de sua Escola. É quase como se ele
tomasse a formação de grupos num coletivo de analistas como um
real insurgente. De alguma maneira, isso se constitui como um
problema para a política de Escola, tendo em vista que esses
grupos muitas vezes incorrem em perspectivas incompatíveis com
os princípios do que o próprio Lacan ensinava.

Vejam, por exemplo, a importância que psicanalista de confissão


católica Françoise Dolto assumiu no ambiente da Escola Freudiana
de Paris. Em uma entrevista de Jacques-Alain Miller (2022, p. 425)
recentemente publicada no livro Lacan Redivivus sobre o ato de
dissolução em Lacan, ele revela a formação de um grupo que ele
nomeia como o “partido jesuíta”, ou o “partido católico”, que
assume claramente uma perspectiva que degrada sobremaneira
as finalidades do discurso analítico. Aponta-se, inclusive, que o
grande líder dessa tendência católica dentro da Escola Freudiana
de Paris era o grande teórico, especialista em história e na mística
cristã, o jesuíta Michel de Certeau. Então, o que aconteceu naquela
ocasião é que a dissolução privilegiou o funcionamento do tipo
Escola e buscou intervir nos efeitos de grupo que, de alguma
maneira, degradavam a própria finalidade da Escola que é a
formação analítica.

É nítido que, ao longo de sua trajetória, Lacan sacrifica a iniciativa


institucional em nome do discurso analítico. Respondendo ao
Bruno Engler, eu diria que a dissolução é um momento crucial para
entendermos o que vem a ser o ato analítico propriamente dito. E
diria mais: o ato da dissolução de Lacan encarna o essencial do ato
analítico, que é a passagem de analisante à analista. Digamos que
a Escola Freudiana de Paris estava voltada muito mais para
favorecer e alimentar o discurso do mestre do que dar sustentação
ao que designamos como discurso psicanalítico.
Acho importante a lembrança de que a dissolução se constitui
como um momento exemplar do que seria o ato analítico e que o
ato não é apenas o ato de fundação. E, sob essa ótica, o ato de
fundação traz nele próprio a dissolução.

Por outro lado, se a Escola de Lacan deve estar a serviço do


discurso analítico e se, por definição, todo discurso é o que faz laço
social, deve-se levar em conta a relevância de sua inserção
legal/jurídica na sociedade civil. Diante disto, se pode ter uma ideia
da importância dos estatutos jurídicos tanto para a Escola, quanto
para o Instituto. Na minha opinião, a importância do
pertencimento simbólico de uma instituição psicanalítica no
terreno do público é tal que ela só passa a existir no momento em
que se torna detentora de um estatuto legal, jurídico. Por isso
Lacan estimulava que as instituições psicanalíticas deveriam
buscar o reconhecimento de utilidade pública junto dos órgãos
competentes.

Retorno, agora, à questão da Cristiana Pittella que, a meu ver,


converge com a pergunta da Tânia. Acredito que esse ponto é
fundamental para as nossas discussões sobre as relações entre
Escola e Instituto ao assumir uma posição de que o Instituto é tão
sujeito quanto a Escola e, portanto, como a Escola, o Instituto é
também interpretável. Posso dar um exemplo do quanto o
Instituto também é interpretável. É inevitável para todo aquele que
assume tanto responsabilidades de condução dos trabalhos,
quanto tarefas com a transmissão da psicanálise no seu interior, se
perguntar se o trabalho desenvolvido se mostra compatível, ou
não, com o discurso analítico. Se a lógica do Instituto é a do saber
exposto, é a do matema, evidentemente que corremos riscos de
nos confundirmos com o que fazem os universitários. Sempre me
chamou a atenção a frase inicial do escrito de Lacan (1975/2003, p.
316) “Talvez em Vincennes”: “Talvez em Vincennes venham a se
reunir os ensinamentos em que Freud formulou que o analista
deveria apoiar-se, reforçando ali o que se extrai de sua própria
análise, isto é, saber não tanto para que ela serviu, mas de que se
serviu”. Ainda que se tratasse da criação de uma Seção Clínica,
Lacan formula, nessa passagem, que o trabalho de transmissão do
saber analítico deve se apoiar na experiência do inconsciente que
teve lugar no transcurso de uma análise. Por mais que o foco do
que se transmite na Seção Clínica passe preferencialmente pelo
saber exposto, é preciso concebê-la como permeável àquilo que
Freud inventa como a base da clínica psicanalítica, a saber, a
experiência do inconsciente. Por consequência, a Seção Clínica
deve ser considerada como uma extensão da sessão analítica,
tendo em vista que consiste em mais “uma maneira de interrogar o
psicanalista, de lhe forçar declarar suas razões” (LACAN, 1977, p. 14).
Minha hipótese é de que o Instituto, o nosso Instituto de
Psicanálise e Saúde Mental, tornar-se-á mais suscetível de
interpretação caso ele se aproxime ainda mais dos princípios de
funcionamento do que Lacan chamou de Seção Clínica.

Acrescento ainda que, em Minas Gerais, temos uma situação muito


favorável, pois o Instituto e a Escola existem como espaços
institucionais conectados um ao outro. Penso, inclusive, que
devemos favorecer, cada vez mais, essa interação entre essas duas
instituições. Não devemos, de modo algum, manter o
funcionamento dessas duas modalidades de coletivos de analistas
como formas institucionais estanques. Ressalto, por último, que
uma outra razão que torna interpretável o Instituto é o fato de que
este se apresenta, de alguma maneira, subordinado à lógica da
Escola. Portanto, devemos favorecer o processo de interação entre
Escola e Instituto, na medida em que, no tocante ao discurso
analítico e às exigências próprias da clínica analítica, o saber
exposto apenas encontra suas razões considerando a prevalência
do saber suposto.

Com relação à pergunta da Márcia Mezêncio acerca da função do


aguilhão do Instituto com relação ao discurso analítico, eu entendo
da seguinte forma: se você se dirigir à Universidade fazendo o uso
dos termos conceituais como o objeto a ou a função do S1 no
tratamento analítico, será preciso detalhar e explicitar do modo o
mais transparente possível o valor desses termos. Já em nossas
discussões clínicas, quando fazemos uso deles, não se faz
necessário explicitá-los e detalhá-los. No terreno de uma discussão
clínica, em nossas Jornadas ou Congressos, a conversação flui e
avança, pois o que anima essas discussões são os interesses
imediatos, ou não, relativos à prática da psicanálise.

Na Universidade não é assim, pois ela se mantém em função de


uma exigência e rigor com relação ao que denominamos de saber
exposto. No meu ponto de vista, e conto, a esse respeito, com
muitos anos de experiência como professor universitário, essa
exigência concernente ao saber exposto se constitui de um modo
radicalmente outro, no âmbito do Instituto de Psicanálise. Se o
Instituto lida preferencialmente com o saber exposto, ele, ao
mesmo tempo, reconhece a primazia do saber suposto na
operação analítica. Porém, como questiona Márcia, porque afirmar
que o Instituto funciona como um aguilhão? Eu penso que o uso
da figura do aguilhão para caracterizar o estilo de trabalho do
Instituto apenas se esclarece se o colocarmos diante da tese da
autofagia inerente ao discurso analítico. O fator de aguilhão próprio
do saber exposto existe para estabelecer alguma medida ao efeito
de dissipação ou corrosão próprio do que é basal na experiência
analítica, isto é, o saber suposto. Em outras palavras, se aquilo que
se conquista na análise, se a especificidade do saber que se
adquire na experiência viva da análise, tende a se esvair, se faz
necessário ao coletivo de analistas o saber exposto como meio de
preservação do discurso analítico.

A esse propósito, considero os testemunhos de Passe como uma


manifestação exemplar do que acabo de dizer. Não sei se os
colegas AE que estão presentes nesta sala vão estar de acordo, mas
eu julgo que há uma diferença substancial entre os primeiros e os
últimos testemunhos de um AE. À proporção que avança o que
acostumamos chamar entre nós de “ensino do AE”, o teor de
enunciação dos testemunhos tende a reduzir sua força e sua
intensidade. Segundo o vocabulário empregado nesta manhã, eu
arrisco dizer que à medida que os testemunhos se avolumam, o
saber do AE tende a tornar-se saber exposto. Ou seja, passa-se a
falar da passagem de analisante à analista em termos mais
conceituais, com uma perda significativa, em suas construções, do
valor e do alcance de sua experiência mais íntima com o
inconsciente.

Maria José Gontijo Salum: Agradeço pelo que você trouxe.


Concordo com o que você falou sobre privilegiar a Seção Clínica e,
especialmente, dando esse passo, que é o de propor a Conversação
Clínica. Ela traduz uma maturidade nas discussões clínicas no
interior do Instituto em Minas Gerais, após todos esses anos de
funcionamento. O que eu queria perguntar – e me parece
fundamental quando se retoma a discussão do saber exposto a
partir da relação da psicanálise com a ciência – seria sobre o uso
que a psicanálise pode fazer da ciência, no sentido de se abrir para
os procedimentos da ciência. Isso não seria também uma forma de
responder à pergunta dessa atividade de hoje sobre “Para que
serve o Instituto?”, ou seja, se essa operação seria possível de ser
feita no interior do Instituto?
Eu pergunto pois a maioria dos jovens que chegam ao Curso de
Psicanálise do Instituto, e ouvimos isso ao fazermos as entrevistas,
demandam localizar no Curso, por exemplo, a possibilidade de não
simplesmente estudarem a psicanálise, mas de uma certa
sistematização. E, quando perguntamos sobre o que é essa
sistematização, o ponto ressaltado por eles é a articulação da
prática com a teoria psicanalítica.

Outro ponto que eu queria também destacar, a partir da relação


Escola-Instituto, é que não há a menor dúvida de que o Instituto só
existe a partir da Escola, sustentado pelos membros da Escola.
Acho isso fundamental e, nesse sentido, me parece que um modo
de o Instituto não ficar repetindo um modelo de mestria e de
grupos é por meio de sua relação com a Escola, pois a política da
psicanálise se faz a partir da Escola. Sendo assim, o Instituto
conectado à Escola é fundamental.

Jésus Santiago: Para responder à questão da Maria José – “Para que


serve o Instituto?” –, vou retomar a questão da Conversação. Digo
isto pois tenho a convicção de que qualquer aggiornamento
possível do Instituto terá que passar pelo que chamaria de método
da Conversação. Acredito que por essa via nós teríamos mais
chances de aproximar a oferta de formação que dispensa o
Instituto daquilo que se constitui como o seu sustentáculo, que é a
Seção Clínica. Voltemos, portanto, sobre o modo como se pode
conceber a Conversação tal como ela vem sendo praticada entre
nós. Em primeiro lugar, é preciso dizer que ela é um dispositivo que
foi criado, alguns anos atrás, por Jacques-Alain Miller, com o intuito
de dar conta das grandes questões clínicas geradas pela desordem
do real que se instalou com o advento do século XXI. A
problematização da atualidade clínica que o psicanalista enfrenta,
em seu cotidiano, culminando com a invenção da chamada
psicose ordinária, é decorrente da Conversação de Arcachon. Devo
destacar aqui todo um campo de elaboração acerca do tema da
Conversação, sendo que a mais conhecida é a que surge com um
dos ícones da filosofia pragmática, nos Estados Unidos, que é o
Richard Rorty. É possível extrair elementos sobre a teoria da
Conversação em sua concepção pragmática da linguagem, pois o
interesse da filosofia, segundo o filósofo, não é epistêmico, mas
ético. O objetivo da conversação não é atingir a verdade, mas fazer
existir a série potencialmente infinita que por si só é o signo de um
progresso, para o saber, e não de uma regressão (RORTY, 1961).
Devo referir também, a partir de sugestão que me foi transmitida
pela Ana Lydia, ao escritor e ensaísta francês Marc Fumaroli (1994),
que em seu livro Trois institutions littéraires trata do assunto. O
autor se dedica a explicitar a ideia de que a Conversação,
concebida como uma instituição privada, é elevada, na França, à
categoria de uma arte: ela impulsiona a criação de um “fórum de
espíritos”, em que o lugar e o laço comum era a literatura. A “arte
da conversação” é vista, por Fumaroli, como um dos alicerces da
cultura clássica francesa, pois designa uma prática desenvolvida
nos séculos XVII e XVIII, caracterizada pela busca de uma dimensão
estética e hedonista nas trocas mundanas. A expressão concerne
originalmente à conversação mundana, mas suas práticas e seus
valores se estendem para o conjunto da sociedade culta e tiveram
grande influência na literatura clássica francesa.

Um bom exemplo do que vem a ser o uso do princípio da


Conversação no Campo Freudiano é o livro, recentemente
publicado na França, que trata do tema da solução trans. Esse livro,
que em breve será traduzido para o português, é o
estabelecimento da Conversação de UFORCA (Union pour la
Formation en Clinique Analytique) tal como ela aconteceu, sob a
base do dizer de seis sujeitos que se veem ocupados por uma
problemática trans e que decidiram falar com um psicanalista
inserido nos trabalhos e atividades de uma Seção Clínica. Esclareço
que a Conversação de UFORCA se realiza em torno Seções Clínicas
francófonas que, como se disse antes, não se confundem com a
Escola. Pois a Seção Clínica é um Instituto de formação no qual os
docentes e responsáveis são de orientação lacaniana. Ela propõe,
portanto, o ensino fundamental de psicanálise, que se estrutura
em torno de três eixos: seminários teóricos, seminários práticos e
conversações clínicas com os pacientes. Parece-me decisivo para o
futuro do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais a
introdução desse método da Conversação Clínica. Porém, é preciso
considerar que a realização de uma Conversação Clínica, segundo
esse método, praticado nas Seções Clínicas francófonas, passa por
algumas exigências, a saber: a escolha de uma temática clínica
rigorosamente escolhida e que concerne uma problemática
pertinente à prática analítica; os casos clínicos escolhidos deverão
ser previamente discutidos e construídos; realização de uma
brochura contendo o relato dos casos, a ser distribuída com
alguma antecedência; e, por fim, a conversação deve visar a
extração de teses, hipóteses e, sobretudo, uma orientação clínica
para o nosso trabalho analítico cotidiano.
Henri Kaufmanner: Você formalizou duas questões sobre as quais
venho pensando, pois, nesses últimos anos, tenho acompanhado a
formação dos novos Institutos e das novas Seções – Sul, Nordeste,
Leste-Oeste – como êxtimo, inicialmente, e, depois, como
presidente da Escola Brasileira de Psicanálise. No entanto, há algo
aqui em Minas que fazemos há muito tempo e que é interessante
nessa discussão da construção dos Institutos: trata-se de um certo
tensionamento quanto à oferta de cursos de formação. É claro que
há uma demanda financeira, os cursos permitem sustentar a
estrutura da Escola. Mas, mais do que isso, há uma relação com o
saber e com o ensino que constitui um caminho complicado nessa
discussão que você traz de maneira tão clara e brilhante.

Quando você afirma sobre a importância de se criar espaços e


investir, prioritariamente, na dimensão da clínica – e minha
participação nessas reuniões sempre foi apontando a importância
da Seção Clínica –, você não falou sobre a psicanálise em intensão e
em extensão. Mas parece que há algo em que o Instituto pode
operar, nisso que chamamos da psicanálise em extensão, que é a
inscrição do Instituto na cidade, nos serviços, nas redes. É algo que
em Minas já existe há muito tempo, embora já tenha sido muito
maior, pois as condições políticas hoje não são tão favoráveis como
já foram. Contudo, temos sempre que tender a expandir. E, então,
quando você formaliza o Passe, isso esclarece algo que tem relação
com a pergunta da Tânia Abreu e que seria o seguinte: qual o real
em jogo em cada uma dessas formulações. Se a pergunta da
Escola é sobre o que é um analista, o que o matema traz é uma
tentativa de formalização da nossa prática, de inscrever algo da
nossa prática, de escrever de alguma forma o real, fazer uma
fórmula do real, o que é da ordem do impossível também.

Nós sabemos que isso inspirou Lacan a fazer uma matematização


da psicanálise, ainda que o matema não seja uma fórmula. O que
interroga o Instituto é seu enfrentamento do real da cidade, dos
seus espaços e da tentativa de matemizar isso que é da ordem do
impossível. É importante que tenhamos essa clareza, pois, se a
Escola é sujeito e é interpretável, o Instituto pode se apresentar
dividido a partir desse encontro com esse real da experiência. Isso
está ligado a uma maior participação do Instituto nos espaços mais
diversos, o que a gente já fez aqui em Minas, mas que hoje vive um
refluxo.
Jésus Santiago: Sou bastante sensível a essa formulação proposta
pelo Henri Kaufmanner de que é preciso contar com a presença do
real em nossa política institucional dirigida seja à Escola, seja ao
Instituto. Diante disto, é preciso ter uma certa atenção como os
rumos da oferta de formação analítica que ele intenciona fazer.
Esse cuidado com o Instituto diz respeito ao fato de que se faz
necessário introduzir esse real da clínica, considerando que o seu
forte é transmissão por meio do saber exposto. Quando falei de
aproximação do Instituto com a Seção Clínica pensava exatamente
nesse ponto de que as nossas atividades visando a formação não
podem se restringir à transmissão do saber exposto, sem o
concurso do real da clínica. Tendo a considerar que, sem a
introdução desse real da clínica, como se referiu anteriormente
Henri, nós abrimos as portas para a lógica de grupo, ou mesmo
para a lógica de reconhecimento que se faz a partir da formação de
grupos no interior da instituição psicanalítica. É sabido que Lacan
não considerava que, ao constituir um funcionamento do tipo-
Escola para um coletivo de analistas, que isso eliminaria, como
num estalar de dedos, os efeitos de grupo. Em nossas conversas
sobre a orientação lacaniana concernente à instituição
psicanalítica, Antônio Benetti sempre enfatiza que, diante do real
em jogo no próprio funcionamento do tipo Escola, é inevitável a
formação de grupos mutualistas como uma das respostas
possíveis. Se o grupo traz em seu cerne uma consistência que é
própria do imaginário, evidentemente que ele se presta a ser
utilizado como resposta ao real em jogo na formação infinita do
analista. Se, por um lado, é quase inevitável a tendência à formação
de grupos, por outro lado, a criação da Escola visa, em última
instância, o tratamento desses efeitos de grupo. Assim, se os
grupos não são elimináveis, eles terão que ser tratados, inclusive
interpretados pela própria Escola-sujeito. Se, de um lado, eu estou
inteiramente de acordo com o Henri, de que se faz necessário fazer
valer o real no cerne das atividades do Instituo, de outro, discordo
dele quando nomeia como sua tarefa principal o enfrentamento
do real da cidade. Penso que o objetivo a ser buscado pelos
responsáveis do Instituto é, sim, tensionar os seus cursos,
seminários clínicos e outras atividades através do real da clínica.

É sob esse viés que temos que adotar um olhar crítico sobre o que
é um curso ou um seminário clínico articulado à concepção
lacaniana da formação analítica. Por exemplo, um curso do
Instituto se distingue da gama de cursos que surgem na cidade
pelo simples fato de que um curso do Instituto toma a psicanálise
como uma prática. A dimensão da prática tem que ser muito bem
exposta num curso de formação. Portanto, não podemos fazer um
curso como os demais cursos de especialização ligados às
Universidades. Não podemos fazer um curso sobre o conceito de
inconsciente, conceito de pulsão, conceito de estruturas clínicas,
etc.

Nós temos que trabalhar melhor entre nós para criar uma
alternativa que seja inovadora e compatível com aquilo que é o
objetivo da psicanálise e que é tratar o sintoma. Estou insistindo
muito nesse ponto, mas, se a gente não levar isso em consideração,
simplesmente a psicanálise vai sofre os mesmos abalos que um dia
sofreu o marxismo.

A psicanálise não deve, por exemplo, se tornar uma mera ideologia


de defesa das questões de gênero, das questões segregativas – e
não digo que a questão da segregação não tenha a sua
importância, mas não é a Escola que tem que abraçar essa causa. A
causa da Escola é a formação do analista. Se abdicarmos desse
ponto, a psicanálise vai acabar, vai se extinguir. Se a psicanálise se
transformar numa ideologia, se ela perder o seu teor subversivo,
que é o de tratar o sintoma, ela vai se fragilizar enquanto discurso.
Desse modo, eu penso que temos uma responsabilidade em não
deixar reduzir a psicanálise a mais uma cosmologia ou a uma
ideologia sobre a modernidade, sobre o contemporâneo, sobre as
questões da segregação racial e sexual! Essas questões existem e
temos que encontrar as formas mais compatíveis com o discurso
analítico para tratá-las. Por essa razão, considero que deveríamos
favorecer a perspectiva da Seção Clínica no contexto do
funcionamento do Instituto.

Lilany Pacheco: Nesse sentido, me parece importante pensar, em


relação à Seção Clínica, que os Núcleos de Pesquisa não se
constituam em grupos de especialistas.

Jésus Santiago: O problema é que trabalhar no sentido da


aproximação do Instituto e da Seção Clínica não é nada simples.
Em primeiro lugar, porque temos que conviver pela frente com a
proibição da apresentação de enfermo, que é o elemento
fundamental na estrutura da Seção Clínica. De toda forma,
devemos fazer todos os esforços de invenção para fazer prevalecer
os princípios que orientam a tese lacano-milleriana da Seção
Clínica.

Maria de Fátima Ferreira: Jésus, obrigada por sua conferência. Me


chamou a atenção o modo como funciona a Conversação Clínica,
especialmente a discussão do caso clínico. Eu quero te perguntar
sobre o seu modo de funcionamento, pois não é o psicanalista que
trouxe o caso clínico quem o apresenta, não é? Conforme você diz,
há um modo de funcionamento anterior à Conversação em Cartéis,
nos quais se discutem os casos clínicos, mas, no momento da
Conversação, me parece que o analista responsável pela condução
do tratamento, bem como os debatedores que intervêm na
discussão, acionam um funcionamento bem parecido com a lógica
do Passe. Teríamos um passante (o analista) que relata o caso para
um passador e, na apresentação do relato clínico, é o passador
quem comunica aos demais debatedores o que lhe foi relatado.

Jésus Santiago: Você tem toda razão sobre o modo como as


Conversações Clínicas acontecem na França, elas têm um
funcionamento que contém particularidades que dificultam muito
o emprego desse mesmo dispositivo entre nós. Aliás, é preciso
dizer que, quando a Maria José era a Diretora Geral do Instituto, nós
iniciamos uma discussão para avaliar a viabilidade de uma
Conversação nos moldes das Jornadas Clínicas do UFORCA. É claro
que a realização dessas Jornadas, no contexto do Instituto de
Psicanálise e Saúde Mental, requereria de nossa parte uma
capacidade inventiva para encontrar soluções compatíveis com as
circunstâncias particulares de nosso funcionamento. Nesse
sentido, Fátima, eu considero bastante pertinente a sua hipótese
sobre a analogia do funcionamento das Jornadas UFORCA com a
lógica de transmissão do Passe. Penso, no entanto, que essa
analogia não se justifica apenas pela similaridade do modelo
organizacional desses dois dispositivos. Parece-me que o mais
decisivo diz respeito à sua colocação de que analista que conduz o
caso funciona como uma espécie de passante que relata o caso
para um passador e, na apresentação do relato clínico, é o passador
quem comunica aos demais debatedores o que lhe foi relatado.
Depreende-se, da formulação desse funcionamento, que em
ambos os dispositivos estamos diante do problema do que é a
transmissão de um saber a partir de uma experiência do real. É
bem provável que para realizar no Instituto uma Jornada, segundo
essa modalidade da Conversação, será preciso aprofundar a
reestruturação do Instituto segundo o princípio da Seção Clínica,
isto é, introduzir, de modo calculado, em nossos dispositivos de
transmissão do saber analítico, o real da clínica. Devo destacar, por
último, que convivemos no momento atual com um enorme
obstáculo para efetivar a implantação de algo próximo da Seção
Clínica, obstáculo oriundo dos tempos da despatologização, pois
somos o alvo de uma proibição implacável das apresentações de
enfermo.

Paula Pimenta: Eu te agradeço e falo em nome da Diretoria de


Ensino do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.
Acrescento um ponto que diz respeito à questão do discurso da
ciência. Nós recebemos no Instituto os candidatos ao Curso de
Psicanálise e vários trazem a pergunta sobre a "formação" que
nosso curso virá lhes propiciar. Eu acho que você já se antecipou à
minha pergunta ao diferenciar os cursos de psicanálise que
existem e o que seria a proposta dos Institutos parceiros da Escola
Brasileira de Psicanálise, que é a abordagem da prática. Achei isso
essencial. O que eu acrescentaria, para retomar esse ponto, seria
que, recentemente, no último mandato de governo federal que
acabou em 2023, foi aprovada a proposição da graduação em
psicanálise. As associações de psicanálise de todo o Brasil
investiram esforços por longo tempo para que isso não ocorresse,
mas foi autorizada, em uma etapa preliminar, pelo Ministério da
Educação, a graduação em psicanálise. Em que medida isso
interferirá no tipo de aluno que o Instituto passará a receber?
Como você vê a repercussão dessa autorização no Instituto?

Jésus Santiago: Paula, é sempre nocivo para a psicanálise essas


tentativas de regulamentar sua prática, seja pelo ordenamento
jurídico exercido sob o controle das corporações profissionais, seja
pela concessão de diplomas, via o sistema universitário, que, em
última análise, objetivam outorgar uma suposta habilitação do que
eles próprios denominam como exercício profissional. Não é sem
razão o fato de que tanto Freud, quanto Lacan, fizeram de tudo
para preservar a formação e a autorização da prática analítica fora
do domínio e do controle do Estado. A razão principal é que a base
de sustentação da formação de um psicanalista é a exigência de
que o candidato à prática tenha passado pela experiência do
inconsciente. E essa exigência concernente à experiência da
análise não tem outra forma de controle que não seja os próprios
analistas. Sem sombra de dúvidas, a aprovação dessa proposta de
graduação em psicanálise trará consequências nefastas tanto para
o Instituto, quanto também para a Escola. Ela é incompatível com o
pressuposto lacaniano de que, apoiado em sua experiência do
inconsciente, é o psicanalista que se autoriza por si mesmo e por
alguns outros. Diante dessa medida governamental contrária à
concepção lacaniana da formação analítica, não nos resta outra
saída senão fazermos a nossa parte, aprofundando ainda mais a
nossa prática institucional inspirada na ética da psicanálise.

Ram Mandil: Achei interessante a referência à autofagia do saber


suposto e fiquei me perguntando o que justificaria essa autofagia.
Podemos considerar que uma análise tende à dissolução do saber
suposto implicado naquela experiência, mas que haveria também
um cuidado em manter uma relação com o saber, inclusive com o
saber suposto, pois, de alguma forma, a transferência se funda
mais sobre a suposição de saber do que sobre a exposição de
saber.

Nesse sentido, achei fundamental isso que você trouxe para pensar
a articulação entre o Passe e o matema, de modo que o
testemunho de um AE não deixe em segundo plano os problemas
cruciais da psicanálise, inclusive como experiência de Escola.

Em relação ao ensino da psicanálise: partindo da questão de Lacan


– “como ensinar aquilo que não se ensina?” –, considero essa
pergunta fundamental uma vez que, a meu ver, ela também
interroga a tendência em tomar o discurso universitário como
referência de ensino, inclusive nos Institutos. Por essa via, o que se
ensina tende a virar matéria, tende a virar objeto, o modo de ensino
vai para o lado da pedagogia, da didática ou coisa dessa ordem e,
realmente, para nós, isso não é o principal, uma vez que tende a
excluir a dimensão da prática e aquilo que, da experiência analítica,
não se concentra em matéria ou disciplina. Isso me fez lembrar de
uma expressão que Miller utilizou em algum momento e que
permite pensar não apenas o ensino no Instituto, mas também a
sua relação com a Escola, que é a noção de imersão.

Pode-se pensar que a transmissão da psicanálise se dá num


ambiente de imersão. Existe aquilo que se veicula através da
própria experiência analítica, aquilo que se veicula na Escola e
aquilo que se veicula no Instituto. Se a gente mantiver muito
desarticulada a relação Instituto-Escola, perderemos esse clima
que é fundamental na formação, o de estar imerso em uma
experiência em curso e que mobiliza a cada vez novos elementos
para nossa consideração.

Em relação do ensino da psicanálise, partindo dessa mesma


questão do Lacan – “como ensinar aquilo que não se ensina?” –,
acho que essa é uma pergunta fundamental pois a tendência, não
só dos Institutos, é a de tomar como referência alguma coisa do
discurso universitário. Então, como eu disse, o que se ensina tende
a virar matéria, o modo de ensino vai para o lado da pedagogia e da
didática e realmente para nós isso não interessa. Exclui a dimensão
da prática e daquilo que propriamente não se concentra em
matérias e objetos. Por isso, lembrei de uma expressão que Miller
usou e que acho que permite pensar a relação Instituto-Escola, que
é a noção de imersão.

Você pode pensar que, na entrada na prática analítica, você está


entrando em um ambiente de imersão. Tem aquilo que se veicula
através da própria experiência analítica, aquilo que se veicula na
Escola e aquilo que se veicula no Instituto. Se a gente mantiver
muito desarticulada a relação Instituto-Escola, perderemos esse
clima que é o fundamental na formação, que é o de estar aqui
imerso em uma experiência que não se conclui e que mobiliza
elementos que seguirão.

Jésus Santiago: Talvez nós possamos encerrar a nossa discussão


com esse comentário agudo de Ram Mandil sobre esse verdadeiro
paradoxo segundo o qual, em psicanálise, ensina-se o que não se
ensina. Por meio do problema do que é ensinar psicanálise, o
comentário elucida e aprofunda diversos aspectos do que pude
abordar no tocante às relações entre Instituto e Escola. Eu ainda
reforçaria a ideia fundamental de que a entrada na prática analítica
se faz por meio de um lançar-se em um ambiente de imersão que
confunde com a Escola e o Instituto. Como conclui Ram, é por
estarmos imersos numa experiência de formação interminável que,
por consequência, nunca se conclui, que é preciso manter viva a
interação inspirada entre o Passe e matema, entre a Escola e o
Instituto, animado pelo espírito da Conversação e da Seção Clínica.

Ainda temos a pergunta da Renata Mendonça e, portanto, vamos


escutá-la!
Renata Mendonça: Eu também gostaria de te agradecer. A minha
pergunta, eu a faço a partir do Ateliê de Psicanálise e Segregação,
do qual sou uma das responsáveis. Você traz questões
extremamente pertinentes para separar o Instituto do mundo das
pós-graduações e isso implica diretamente o desejo do analista.
Digo isso porque o desejo do analista exclui a militância e uma
posição sociológica. Penso aqui nos jovens que estão às voltas com
as redes, sendo capturados pelas ofertas de vários cursos, vários
saberes técnicos sobre psicanálise. E agora, com a graduação em
psicanálise, isso se complica ainda mais.

Por outro lado, o psicanalista, ao tomar uma posição na clínica de


defesa de um determinado grupo, isso levaria, a meu ver, ao
apagamento seu desejo, por excluir a singularidade de cada sujeito
na experiência analítica. Isso é muito importante em um momento
em que estamos às voltas com questões fundamentais, como, por
exemplo – e no caso que me cabe –, a questão do racismo e as
questões trans.

A pergunta que faço é no sentido de como manejar para incluir


essas questões na clínica sem perder de vista o desejo do analista
e, consequentemente, a singularidade de cada caso clínico. Isso é
algo novo para a Escola e para o Instituto.

Jésus Santiago: Antes de responder a pergunta da Renata


Mendonça, gostaria de ainda tecer algumas palavras aos
questionamentos que Maria José e Paula Pimenta fizeram,
anteriormente, sobre a questão formação analítica e suas relações
com a ciência. É interessante observar que, quando Lacan
(1971/2003, p. 237) funda a Escola Freudiana de Paris, ele cria uma
Seção de Psicanálise Aplicada, que porta como subtítulo: “O que
significa de terapêutica e clínica médica”. De alguma maneira,
desde a fundação da Seção de Psicanálise Aplicada, no interior da
Escola, já se faz presente algo do espírito da Seção Clínica. Chama a
atenção o destaque que é dado à medicina como campo de
elaboração para o que é, nesse momento, a aplicação terapêutica
da psicanálise. Seu pensamento é que nessa Seção da Escola
estarão “grupos médicos [...] que estejam em condições de
contribuir para a experiência psicanalítica: pela crítica de suas
indicações em seus resultados; pela experimentação dos termos
categóricos e das estruturas que introduzi como sustentando a
linha direta da práxis freudiana” (LACAN, 1971/2003, p. 237).
Impressiona a antevisão de Lacan acerca do impacto da ciência
como discurso, e não tanto como saber, impacto que, para ele, se
presentifica de modo contundente no terreno da clínica médica. É
provável que com essa proposta Lacan antecipava a necessidade
de atualização de nossa prática analítica tendo em vista as grandes
mudanças que já se anunciavam no momento de fundação de sua
Escola. Evidentemente que a maneira voraz com a qual a ciência
invade o campo da medicina, em detrimento de sua vertente
propriamente clínica, constitui-se no fator fundamental para
entrever as mudanças necessárias em nossa prática. Faz-se
necessário renovar nossa prática no mundo, visto que é o próprio
mundo que se reestrutura provocado pela aliança dos dois mais
eminentes fatores históricos: o discurso da ciência e o do
capitalismo. Segundo Miller (2014), a prevalência desses dois
discursos na modernidade constitui o principal móvel de
destruição da estrutura tradicional da experiência humana. A
consequência da ação combinada e corrosiva desses dois
discursos, atingindo os fundamentos mais profundos de tal
tradição é o que ele pôde designar como a “grande desordem no
real (MILLER, 2014, p. 23). É pela via da aliança da ciência e do
capitalismo, que “o real escapou da natureza (MILLER, 2014, p. 23),
instalando a desordem que afetou a reprodução, a sexualidade, a
família, a ordem paterna, etc. A psicanálise de orientação lacaniana
vem se mostrando um discurso potente para contrapor e
ultrapassar os discursos velhos e retrógrados que protagonizam a
ordem natural do real.

Nossa política para a formação analítica não poderia permanecer


impassível e indiferente a essa desordem que, de algum modo,
torna pensável o que antes era apenas uma ideia-limite e, por isso
mesmo, impensável, a saber, o real sem lei e sem sentido.
Aproveitando o que disse nesta manhã, é preciso considerar que o
real, entendido desse modo, não é um cosmo, não é um mundo e,
tampouco, uma ordem de saber ainda não revelável. O real é peça
solta, é pedaço, um fragmento assistemático, separado do saber
ficcional que se produz a partir do encontro entre lalíngua e o
corpo, encontro que faz do real sem lei prévia uma pura
contingência.

Retornemos à nossa política para a formação analítica sabendo


que, ao contrário da ciência, na psicanálise não há saber no real. Se
a ciência pode demonstrar o real pela via do necessário, pela via
desse alojar um saber no real, a psicanálise não, a psicanálise
precisa do singular, ela precisa do sintoma, porque ela demonstra o
real pela via da contingência, pela via do um a um, do caso a caso.
E toda a nossa questão é como inserir esse real da clínica em
nossos cursos teóricos, em nossos cursos práticos, em nossas
apresentações de caso. Caso venhamos abrir mão do ponto de
vista clínico, embasado por esse real arriscado da contingência,
estaremos, em breve, confundidos com mais uma visão sociológica
do mundo.

Agora sim vou tentar responder a questão, a meu ver crucial, da


Renata Mendonça, sobre como manter vivo o desejo do analista
em formação, como manter viva a práxis analítica considerando o
dever que lhe compete de não ceder aos desvios e concessões que
amortecem o seu avanço e degradam o seu emprego (LACAN,
1971/2003). Você tem toda razão em trazer para essa discussão
sobre os novos rumos para o Instituto a função do desejo do
analista em sua relação com um mundo em que os processos de
segregação se ampliam e se agravam cada vez mais. E isso tem
consequências para a diversidade das mutações que incidem
sobre as novas modalidades do envoltório formal do sintoma.
Torna-se claro que o seu questionamento, Renata, toca no
problema da formação analítica que o Instituto deve ofertar,
considerando as novas configurações do mal-estar da civilização. A
formação analítica no Instituto deve se mostrar, assim, compatível
com as exigências colocadas à prática analítica que acontece em
um mundo que caminha no sentido do abandono das normas
neuróticas, fazendo valer o sintoma menos como mensagem do
inconsciente recalcado, e mais como defesa do real do gozo. A
formação deve, assim, incluir um saber fazer com essas novas
formas do sintoma que se apresentam como meio de gozo e deve
incluir, também, um saber analisar o falasser (parlêtre), no sentido
de que, além de falar, ele tem um corpo.

Porém, não é apenas esse saber fazer com o sintoma que gera a
distinção entre o ensino no Instituto e a oferta de cursos de
psicanálise no âmbito da Universidade. Não é apenas o saber que
está em jogo nessa distinção entre o Instituto e a Universidade,
pois o foco fundamental dessa diferenciação é o desejo do analista
compreendido como “pura enunciação”. Mais precisamente, o
desejo do analista é uma incógnita, um “x” que se coloca em sua
própria enunciação (LACAN, 1967/2003, p. 257). Segundo
esclarecimento recente de Miller (2023), esse “estar em posição de
incógnita (x) em sua própria enunciação” se ilustra pela figura do
Che vuoi?, que, por sua vez, assume a forma de uma pergunta:
“que quer me dizer um analista quando fala e também quando
não fala?”. Se desejo não se confunde com a fala, o analista no
plano de seu desejo se mantém em uma posição de incógnita (x),
ou seja, “não se sabe o que ele quer”. Segundo ele, se pode dizer
que o analista pratica a “arte do enigma”, ou seja, “o enigma está
para além do enunciado, porém, não se sabe”. E continua essa
elaboração a partir da diferença entre a demanda e o desejo, visto
que “a demanda é sempre a demanda de algo; o desejo do analista
não é nunca o desejo de algo para os seus analisantes”. Conclui-se,
assim, que “o desejo do analista se confunde com o desejo de
nada”.

É essa articulação acerca do desejo do analista que permite


estabelecer a diferença fundamental entre os cursos universitários
e o ensino do Instituto, pois este último tem como horizonte a
formação analítica, cujo princípio orientador é a passagem de
analisante à analista. Nos cursos universitários de psicanálise, em
seus programas, prepondera o saber em detrimento do desejo do
analista, desejo este que, em última instância, concerne à
passagem do analisante a analista. Mais ainda, constata-se que os
cursos universitários se mostram fortemente atraídos pelos
significantes-mestres que circulam, em nossa época, como eixos
orientadores da civilização contemporânea. Daí a importância que
assume, nesses cursos, o saber sociológico que busca interpretar,
por exemplo, o fenômeno da segregação racial ou sexual.
Acoplados a esses saberes, destaca-se inclusive a relevância da
atividade militante de grupos que buscam a defesa das causas
qualificadas como identitárias.

Nesse sentido, estou inteiramente de acordo quando você afirma


que “o desejo do analista exclui a militância e uma posição
sociológica”. Em termos conceituais, eu afirmaria que: se o desejo
do analista é o desejo de nada, se o desejo do analista é manter-se
em posição de incógnita (x) para sua própria enunciação, isto
supõe evitar posições e defesas animadas pelas identificações. Se a
Escola e o Instituto se tornarem um sindicato em defesa das
identidades, elas correm o risco, como você mesma afirma, de
apagar aquilo que é o motor da clínica psicanalítica, ou seja, o
desejo do analista. A psicanálise opta por não tratar, seja o
problema do racismo, seja a questão trans, por meio do ativismo
militante, reduzindo essas questões decisivas, para o rumo da
civilização ao problema de defesa das identidades.
A operação analítica lida com o sintoma e, paradoxalmente, o
sintoma é concebido, por Miller (1998, p. 55), por nada menos que
“uma identidade a mais segura” de alguém”. A identidade, em
psicanálise, não é da ordem de uma relação de si mesmo consigo
próprio e, tampouco, da ordem de si mesmo a um grupo
identitário; porém, ela é uma relação com algo. A identidade em
psicanálise pode ser vista como uma relação singular à existência,
relação que se faz por meio de um sintoma. Se o sintoma
testemunha nossa inadaptação às normas e às exigências do
Outro, ele testemunha também nossa verdade secreta, bem como
nossa singularidade última. O sintoma, enquanto manifestação de
um sofrimento, de um mal-estar, de uma dificuldade profunda na
existência, é um obstáculo à toda transparência na relação do
sujeito consigo próprio. Ao mesmo tempo, se o sintoma é o que o
há de mais singular no ser falante, ele é o que vem perturbar a
relação que cada um mantém com sua própria existência. É o
sintoma que abala toda crença numa identidade determinada,
identidade que supostamente nos tornaria transparentes para nós
mesmos. Se a psicanálise toma o sintoma como seu meio de
operação, é porque ela testemunha a incidência de um discurso –
discurso do Outro – que marcou o nosso corpo, à revelia de nós
mesmos. Compete a nós mesmos, portanto, buscar ler e tratar, de
outro modo, esse enigma que é a escritura do sintoma.

Transcrição: Beatriz Espírito Santo, Daniela Gontijo de Souza,


Jônatas Casséte, Luciana Romagnolli.

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[1] “Eu diria que o primeiro tempo é: o mundo existe”. (LACAN, 1962-
63/2005, p. 42)

[2] A emergência da ciência exigiu o “abandono da concepção


clássica e medieval do Cosmo – unidade fechada de um Todo, Todo
qualitativamente determinado e hierarquicamente ordenado, no
qual as diferentes partes que o compõem, a saber, o Céu e a Terra,
estão sujeitos a leis diversas”. (KOIRÉ, 1982, p. 182)

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