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Conde oy TEXTO 3 - CARVALHO, LC.M. “Conflito, cidade e esfera politica” In Politicas Ambientais, Ano 5, N. 16, Dez.1998/Mar.1998. ~ Cidade: expressio do caos socioambiental/expressdo do exercicio da cidadania = Declinio do Estado-Nago como presenga nas cidades? - Os sedentérios ¢ os némades das cidades - OQ apharteid social e a atomizagéo dos sujeitos - _Interesses piblicos e privados na gestio do meio ambiente urbano ig {FT res 1993 Conflito, cidade e esfera politica ISABEL C. M. CARVALHO. Pricéloga, educadora, colaboradora do IBASE, doutoranda do PPGEDU/UFRGS Ortenameno urbano tem sido tratado muito fre- giientemente pelo campo ambiental como sindnimo de uma situagao de profundo de- sequilibrio ¢ in- sustentabilidade em termos ambi- entais. A concen- tracao industrial, © adensamento populacional, a questdo dos resi duos, 0 abasteci mento sio apenas alguns dos aspec- tos que configu- ram um quadro do aumento ex- ponencial dos im- actos ambientais do mundo urba- no. Do mesmo modo, as contra- digGes e desigual- dades sociais também se eviden- iam no tecido urbano, principal- mente no contexto de um assus- tador processo de migragao cam- po-cidade que inverteu esta rela- io entre os anos 50 80 no Bra- sil: 70% da populagao brasileira rnos anos 50 era rural ¢ nos anos 80 a situagao se inverte, com 70% da populagao em zonas urbanas. Desta forma, 0 urbano vai se constituindo cada vez mais co- mo polo de visibilidade, associa- do & modernizagao - enquanto 0 rural tem sido objeto de uma vi- so muitas vezes estereotipada que, em contraposicao, 0 toma como residuo, locus de um passa- do, ora valorizado pelo harmonia perdida no mundo urbano, ora desvalorizado como sinal de atraso. Contudo, nao vamos en- trar na discussio especifica das relagdes entre o rural ¢ 0 urbano, Politicas Ambientais {que tem sido, por exemplo, 0 ob- jeto de estudos que mostram a complexidade da construgio do espaco puiblico urbano a partir das transformagies das relagdes sociais do mundo rural. Assim, sem entrar na densi- dade simbélica e contraditéria dos processos que vao instituir os sentidos para o urbano, quero destacar que, ao lado da cidade como paradigma de uma moder- nidade cadtica, apice do desequi- Itbrio social e ambiental, coexis- tem também as potencialidades do urbano enquanto expressao privilegiada do espaco puiblico, entendido como esfera da politi- a, da polis. Mesmo que seja em nosso tempo uma “polis inverti da” que, ao contrario da Cidade Estado grega - um dos modelos germinais do Estado — constitui- se, segundo Virillo', em Estado- Cidade, num contexto histori co de declinio do Estado-Nagio. A idéia € que, da conjugacao dos processos simul- taneos de decli- nio do Estado Nacional e a de- sertificagao das cidades menores em fungao das metr6poles, re- sultaria a tendén- cia da transfor- magio das me- tropoles em Esta- dos-Nacio. Bunkers © que me parece é que essa centralidade da cidade, do urba- no, fala de uma situagéo emble- mitica dos riscos e oportunida- des postos num contexto de radi- calizagdo da modernidade, com suas conquistas emancipatérias e seus processos de profunda desa- gregagdo social e ambiental. A menos: que 0 poder politico domine o desenvolvimento técnico, os sistemas de producto e do mercado, o cenério que se anuncia, segundo Virillo, é 0 de uma cidade que funcionaré em duas velocidades: formada por uma elite que vivera em bunkers e 0s miserdveis que vio atacé-la. Do mesmo modo, projeta na cidade do século 21 0s secdenté- rios, que em qualquer lugar esta- ro em casa, seja no trem, na rua, com 0 laptop, o celular, ¢ a0 mes- mo tempo a existéncia dos sem- pre nomades, que nao estario em casa, em lugar nenhum, perma- nentemente exclufdos das garan N® 16 © dezernbro-97/marco-98 * 3 tias do trabalho e submetidos ao mundo do trabalho flexibilizado, dos contratos de curta duracio. © urbanista cita como exemplo o “contrato de zero hora”, na In- glaterra, onde a empresa oferece um celular ao empregado e este deve atender quando for chama- do, por um s6 dia, por uma hora, ‘como uma forma ultramoderna de escravidao. A autonomia fica afetada pela atomizacao dos sujeitos em n6émades, movidos pela sobrevivéncia, numa condicio de sujeitos “sem lugar” A “cidade dos bunkers” leva ao extremo a apartagio, a desi- gualdade e a segregacdo social, e estabelece uma profunda desi- gualdade no acesso a qualidade de vida. Incluindo aqui, em qua- lidade de vida, a autonomia so- bre a propria vida. Um valor tao caro ao ecologismo emancipaté- rio, a autonomia fica profunda- mente afetada pela atomizagao dos sujeitos em individuos nd- mades, movidos pela sobreviven- Gia e subordinados a uma espécie de exilio permanente, numa con- digdo de sujeitos “sem lugar”, desterritorializados pela precari- zagio do trabalho, e igualmente impedidos de uma insergao s6- cio-espacial num contexto de se- guranga material, ambiental € existencial A perda, neste caso, seria principalmente a perda da possi- bilidade do urbano enquanto po- lis, lugar de construgdo e manu- tengo do espaco piiblico. E aqui se trata tanto dos espagos publi- cos urbanos em sua expressio material, arquitetonica (que te- ‘mos visto se restringirem cres- centemente) quanto do espaco 4 © N° 16 © dezembro-97/marco-98 publico enquanto esfera politica, lugar de concertagao e confronto de interesses, de reconhecimento de identidades politicas, de par- ticipagao civica, e de construgao de valores e decisoes sobre a vi- da comum, Espago piiblico E neste eixo de tensdo entre constru¢ao/desconstrucao do pablico e da polis que quero si- tuar o meio ambiente e os confli- tos sécio-ambientais. Neste sen- tido, vou argumentar que as lu- tas e decisdes sobre o meio am- biente sao por exceléncia campo da ado politica e da conquista de cidadania. Ora, os bens ambientais sio bens publicos no sentido de se- rem coletivos, de cujo acesso as populages nao poderiam ser privadas, e sobre cujo destino te- riam que influir, se quisermos ser consequentes com um modelo de gestéo ambiental democratico. Ocorve que, devido aos multiplos interesses presentes na socieda- de, estes bens sao objetos de mo- dos de uso diversos e de interes- ses muitas vezes conflitantes. Uma primeira oposigao nes- se sentido pode ser feita entre in- teresses publicos ¢ interesses pri- vados. Os modos de uso do meio ambiente nos quais prevalecem 0s interesses privados e que, as vezes, se evidenciam como “agressdes ambientais” caracteri- zam-se pelo fato de acarretarem danos ao bem ambiental afetan- do sua disponibilidade para ou- tros segmentos da populacio, e incorrendo num prejuizo ao uso comum do bem em questdo. Des- te modo, travam-se em torno dos bens ambientais lutas entre ato- res sociais que disputam diferen- tes formas de acesso e/ou gestio desses bens. Este enfrentamento entre interesses divergentes con- figura 0 que denominamos de conflitos sdcio-ambientais. E é so- bre este conceito que orienta o Projeto Meio Ambiente e Demo- cracia/IBASE que, desde 1993, tem realizado pesquisas sobre o assunto no Brasil, cujos resulta- dos estiio disponiveis nas diver- sas publicasdes do projeto (veja pagina 16) Nesta concepgao, 0 vixe norteador dos conflitos ambien- tais, ou seja, a tensdo entre inte- esses puiblicos ¢ interesses pri- vados, é a dindmica que move o Proceso democratico. Pensando com Marilena Chaus, quando afirma que “a politica pertence a0 campo da praxis e que os mei- 08 so politicos quando estéo re- feridos ao espago publico e as lu- tas e conflitos no interior desse espago, de sorte que os meios privados ou que privatizem o es- ago ptiblico nao sao meios poli- ticos”, vamos reconhecer os con- flitos ambientais como constru- tores do espaco puiblico e da es- fera politica Os bens ambientais sao pubiicos, de cujo acesso as populacées no poderiam ser privadas, e sobre cujo destino teriam que influir Aqui nao podemos esquecer © vinculo originério entre demo- cracia e conflito. E para isso abro um pequeno paréntese para acio- nar esta intima conexao. Em con- traposigdo &s formas totalitirias legitimadas numa ordem trans- cendente, a democracia afirmou se no bojo do processo de secula- rizagdo da sociedade. Esta nova forma de organizar as relacoes entre os humanos baseou-se no que varios autores, entre os quais Lefort e Gauchet, vao chamar de institucionalizagdo do conflito, que entao foi percebido como ima. nente e como tal deveria ser re- gulado pelos proprios homens Politicas Ambientais Isto sig- . nifica que na ordem demo- critica ndo mais sujeigao a0 passado como nas s0- ciedades miti- cas, nem legi- timagao numa alteridade transcenden- te, divina. Es- te. principio regulador ex- terno é trans- ferido para dentro da es- fera humana. Assim, todo 0 destino das coisas huma- nas esta, na modernidade, submetido apenas aos proprios hu- paixdes ¢ interesses. Desta forma, © conflito torna-se o centro orga- nizador do espago piblico e con- digao da propria agao politica AF OD OG OER i oe BR Oe Be OH 50% Faca de dois gumes Considerando 0 ecologismo como portador de uma forga con- testat6ria, cuja origem remonta 0 mal-estar das sociedades indus- trializadas e se aprofunda na luta pela ampliasao da esfera publica, poderiamos situé-lo entre a5 for- a5 que integram o projeto de ci- dadania democratica. Contudo, no cenério atual de uma cultura politica ambien- talista multifacetada ideologica- mente, 0 ecologismo emancipaté- rio, apesar de estar na génese do acontecimento ambiental, ndo é hoje mais do que uma forca entre outras. Trata-se, portanto, neste momento, de observar 0 sur mento de um campo cultural on- de 0s valores politicos disputam Politicas Ambientais a ie 27% Fonte: Conflitos ambientais no Brasil Rio de Janeiro: IBASE, 1997. Maiores agressores do meio ambiente uy Arm, TB) capital prIvano 502 BEB GARIMPEIRO 6% ESTADO 27% ERX) outros 9% © lugar hegeménico na interpre- tagao dos problemas ambientais Aos conflitos ¢ lutas pelo meio ambiente como bem piblico somam-se as lutas ideolégicas pelos sentidos politicos que atra vessam 0 ideario ambiental. Do mesmo modo, podemos dizer que, se a problemética sé- cio-ambiental ¢ denunciadora dos riscos ambientais e politicos, a consciéncia destes riscos pode tanto atuar como forga agregado- ra ~ contribuindo para a forma- so do que Habermas chamou de uma comunidade de riscas compar - tilhades ~ quanto reforgar os mes- mos mecanismos de desintegr a0 social e ambiental, que ten- dem a acelerar a apropriagao dos bens ambientais pelos interesses privados, degradando nao ape- nas a base de sustentagao materi- al do planeta, mas também as ba- ses do sentimento de solidarieda- de social TRABALHADOR PURAL 4% EDI pescavor 2% CACADOR 2% 4% 2% 2% |. Natureza para todes ou somente para alguns? Este € 0 momento dilemati- co que vivemos: a cidade bunker ou a cidade como espaso ptiblico; uma cidade pensada para o auto- mével ou para 0 cidadio; meio ambiente como bem vital coleti- vo ou submetido a logica dos in- teresses privados. As énfases que dardo o sentido ao futuro serao aquelas que se impuserem numa disputa que esta em pleno curso © onde os confites sécio-ambien- tais, do modo como os entende- mos, tém um papel fundamental na construgao de uma ordem ecoldgica e socialmente justa. @ Texto produzido para a mesa redon. da dol CNEA. 1 Cf. Entrevista com Paul Virillo, “A catéstrofe Urbana”, Cademo MAIS, FSP, 24/08/97, 2 CHAUL, M. Pablico, privado, des- potismo, In: NOVAES, Adauto. Eta S30 Paulo, Companhia das Le- tras/ Secretaria Municipal de Cult a, 1992 N° 16 © dezembro-97/ margo-98 * 5

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