You are on page 1of 3
TEXTO 1 AS CRIANCAS E SEUS MUNDOS AHISTORIA DE LAURA, UMA PROFESSORA Preparou com muito cuidado aquela aula. J4 sabia, de classes anteriores e de conversas com colegas, a dificuldade que representava ensinar os “movimentos da Terra”. A criancada em geral era desatenta, dispersiva, pouco interessada em aprender. Com assuntos dificeis como esse, a coisa se complicava ainda mais. Mas naquela segunda série, faria um grande esforco para melhorar o resultado. Inclusive restringira 0 contetido da aula, tratando apenas da “rotacdo da Terra” e de “os dias ¢ as noites” ‘Cumpriria o melhor possivel seu papel de professora, ¢ o restante caberia as criangas Julgava que estava bem légica a maneira como organizou a seqiiéncia do contetido, nio esquecendo nada importante nem deixando lacunas entre um conceito ¢ outro. Consultou tantos livros especializados, que estava certa de haver selecionado 0 essencial sobre 0 assunto, colocando-o em uma forma bem compreensivel. Alguns textos diditicos de primeiro gran, ao tratarem do assunto, limitavam-se a meras descrigdes do movimento aparente do Sol e de outras estrelas; outros apenas propunham atividades, tais como construgo de rel6gios solares, medidas de sombra, verificagao das posicdes do sol nascente e do sol poente, no decorrer do ano, ¢ coisas semelhantes. Nao passavam disso. Mas, para que serviriam essas coisas as criancas?Elas poderiam realizar tais atividades sozinhas, quando quisessem © papel da escola seria ir mais além, explicar as causas dos fendmenos ¢ as relagdes entre eles. Ainda se dispusesse de mais tempo, poderia incluir algumas daquelas atividades. Mas com a pequena carga hordria de que dispunha para dar tanta matéria, tinha que selecionar ¢ transmitir as partes realmente essenciais. Caso as criangas viessem a se interessar pelo assunto, sugeriria que realizassem as atividades praticas apés a aula, como um complemento programa de ciéncias na segunda série era bastante extenso ¢, conforme tivera oportunidade de verificar nos programas oficiais, aquele assunto ndo mais seria retomado no primeiro grau. Por isso, optou por um desenvolvimento completo do contetido, evitando atividades que dessem margem a diividas on deixassem 0 assunto em aberto. ‘Como precauso, pensava em evitar palavras dificeis e facilitar sua tarefa com globos de isopor que recentemente adquirira. Teria preferido globos maiores, mas os comprara com seus préprios recursos. Alids, sonhava dispor de um modelo mecanico do Sistema Solar, com todos os planetas se movimentando automaticamente, tal como vira num catilogo estrangeiro. Ou mesmo dispor de uma seqiiéncia audiovisual bem feita, semelhante 4 que algumas colegas que lecionavam em escolas privada dispunham. Que belas explicagdes daria, se dispusesse desses recursos diditicos e de um local apropriado na escola! Ainda assim, confiava em seus pequenos globos de isopor, que ela mesmo havia colorido. Acreditava que atrairiam bastante a atengo da criancada. O FRACALANZA, H; AMARAL, LA; GOUVEIA, MSF. O ensino de Ciéncias no Primeiro Grau, Sao Paulo: Atual, 1987. 124 p. Sol, maior, bem vermelho. A Terra, menor, metade clara e metade escura representando o dia e anoite Antes de mais nada, iria dar uma idéia geral do Universo com suas galaxias, estrelas, planetas, cometas, asterdides. Somente depois disso iria se fixar no Sistema Solar, ressaltando a existéncia de outros sistemas semelhantes no espaco sideral. Iria citar todos os planetas, do mais proximo ao mais distante do Sol, nao se esquecendo de falar sobre as diferencas de tamanho entre eles. Nesse ponto, comecaria a tratar dos movimentos planetirios Inicialmente, pretendia explicar o deslocamento de todos os planetas em toro do Sol, com diferentes velocidades, realizando 0 chamado movimento de translagao. Portanto, o Sistema Solar tinha um centro, que era o Sol. O movimento do Sol, que podiamos diariamente observar na abdbada celeste, nao era, pois, verdadeiro, mas aparente. Aparente, porque, na realidade, era a Terra que girava em tomo de si mesma, tal como um pio rodopiando, num movimento chamado rotacdo. O movimento do Sol nao passava, pois, de uma impressio visual de que estava sobre a Terra. Completaria, contando que a Terra realizava os dois movimentos 20 mesmo tempo, fazendo a translagao com o seu eixo de rotacdo inclinado. A respeito disso, pretendia nfo se estender muito para no complicar demais 0 assunto. Além do mais, reconhecia que nao conseguira ainda entender bem a questio da inclinac3o do eixo Quando chegasse aquele ponto da exposicao, pretendia recorrer aos globos ¢ fazer uma demonstragao que tomasse as coisas bem compreensiveis. Temia que as palavras fossem insuficientes para esclarecer um assunto tio complexo para as criancas. Colocaria o globo solar diante da parte clara do globo terrestre ¢ aproveitaria para explicar por que era dia em uma metade da Terra enquanto era noite na outra metade, invertendo-se a situagao com 0 desenrolar da rotacao da Terra Depois, giraria o globo terrestre em tomo de si mesmo, fazendo com que as criancas percebessem que isso resultava na impressio de que era 0 Sol que se movimentava em sentido contrario, para quem o observasse da Terra. Com a rotacio da Terra, 0 Sol iria ficando progressivamente para trés, desaparecendo finalmente no horizonte, em um local chamado poente. Este movimento aparente do Sol continuaria, mesmo longe de nossas vistas, enquanto aqui fosse noite. Apés certo tempo, ele ressurgiria no lado oposto do horizonte, no local chamado nascente. E assim, sucessivamente, com a ininterrupta rotagao da Terra, teriamos o desenrolar dos dias e das noites. Na verdade, nao estava certa de que a demonstracao com os dois globos seria suficiente. Sempre havia criancas distraidas ou menos inteligentes que demoravam a entender e faziam perguntas absurdas, mesmo em assuntos banais. Se isso se repetisse, proporia uma simulago, com uma crianca representando o Sol e outra, a Terra. Aquela que viesse a representar a Terra faria a rotagio olhando sempre para a frente. Seria levada a perceber o nascente, 0 poente, o movimento aparente do Sol e por que metade do tempo é dia e outra metade € noite. A ontra, representando o Sol, ficaria imovel, deixando bem claro que é a Terra que se movimenta FRACALANZA, H; AMARAL, LA; GOUVEIA, MSF. O ensino de Ciéncias no Primeiro Grau, Sao Paulo: Atual, 1987. 124 p. 55 Apés a simulagdo, a primeira crianca contaria a classe tudo o que observara durante a rotacio, Simultaneamente, nos pontos mais importante da narracio, ela, como professora, interromperia, ressaltando os aspectos relevantes, apresentando as definicdes ou corrigindo as observagdes erradas que a crianca houvesse feito Com essa estratégia, considerava impossivel que qualquer crianga atenta nao viesse a compreender. Estava realmente satisfeita com seu plano de aula e ansiosa por coloca-lo em pratica Pretendia também complementar a aula com outras informasdes que considerava valiosas. Imaginava que iria causar espanto as criangas ao contar-lhes que a duragio dos dias e das noites softia grandes variacdes conforme a latitude do lugar. Isso acontecia, apesar de a duragio da volta completa da Terra em tomo de seu eixo ser de 24 horas em qualquer ponto deste planeta. Contaria também sobre as diferencas de fuso horario, sobre o sol da meia-noite na Islandia, sobre os seis meses de dias seguidos, altemados com seis meses de noites ininterruptas nos pélos e outras tantas curiosidades. Caso os alunos viessem perguntar as razBes disso tudo, nao se estenderia muito, porque, admitia, era um assunto complexo. Diria apenas que essas coisas ocorriam em vistude da forma arredondada da Terra, embora ela propria nao compreendesse claramente as raz6es. Mas, como professora, julgava ter obrigacao de ampliar 0 conhecimento de seus alunos, principalmente sabendo que eles gostavam muito de entrarem contato com curiosidades, de preferéncia que lhes provocassem espanto Laura, uma professora de segunda série do primeiro grau, de uma escola publica proxima a periferia de uma grande cidade brasileira, nos anos 80, estava assim preparada para mais uma jornada de trabalho. AHISTORIA DE GENIVALDO (UM ALUNO) Acordou bem cedo, com a réstia de Iuz passando entre as tébuas da janela do seu barraco. Nessa época do ano, era sempre assim: o sol o acordava, sua mie nem precisava chamé-lo Ao se dirigir a pé, pelos quase dois quilémetros que separavam sua moradia da escola, 0 garoto distraia-se com a tentativa de encaixar cada passo exatamente sobre a propria sombra, que teimava em seguir 4 sua frente. Naquele dia, os seus passos tinham que ser bem curtos, para no pisar fora do vulto atarracado, desenhado pela sombra Devido a esse detalhe, percebeu que saira atrasado para alcancar o inicio da aula Quando era mais cedo, o vulto da sombra era mais comprido e ficava mais facil aprisiona-lo com os pés durante a caminhada La adiante, na sua trajetéria diaria, costumava contrariar-se, pois, ao tomar uma mua esquerda, a sombra teimosa passava a seguir ao seu lado direito, acabando com a brincadeira. Mas, de vez em quando, virava rapido e a pegava de suspresa, pisando-a ¢ sorrindo satisfeito. Pena que, precisando prosseguir, tinha que retomar a direcao FRACALANZA, H; AMARAL, LA; GOUVEIA, MSF. O ensino de Ciéncias no Primeiro Grau, Sao Paulo: Atual, 1987. 124 p.

You might also like