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< cago da UFM( Ester Bufja € doutora em Educago pela Université René Descartes de Paris e coord. do PPGE da UFSCar. Miguel G. em Ciéncias Stanford Unive yo & licenciado em Ciéncias Sociais e mestre . em “Educagao pela de de Edu- ivros Educador: vida e morte (Graal) © Da ed escola passivel (Loyola). Paolo No sofia da Educacéo pela PUC-SP, Edueasdo do Mestrado em’ Educaca ‘mataram Santos” Olas 'SCar e autor do livre Por que Dados de Catalogaciio na Publicagao (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Buffa, Ester. Educagio ¢ cidadania / Ester Buffa, Miguel G. Arroyo, Paolo Nosella. -- Sao Pauilo : Cortez Autores Associados, 1115s. (Colegao polémicas do nosso tempo; 23) Bo4Se Bibliografia. ISBN 85-249-0094-6 . 1, Cidadania 2, Educagio - Filosofia 3. Polf- tica ¢ educagSo J. Arroyo, Miguel G. IT. Nosella, , 1942 IIT. Titulo. TV. Série. CDD-370.1 -379.201 _ Indices para catlogo sistemtico: 1, Cidadania e educagéo 379.201 2. Educagao : Filosofia 370.1 3. Educagao e ideologia 370.1 4, Educagio e politica 379.201 5. Politica : Infiuéncia na educagéo 379.201 Esler Buffa, Miguel Arroyo e Paolo Nosella EDUCACAO E CIDADANIA: quem educa 0 cidadao? 2? edigaéo 23 COLEGAO POLEMICAS DO NOSSO TEMPO SBR a Educagaéo e Cidadania Burguesas Ester Buffa As palavras cidadio ¢ cidadania trazem & lem- branga, naturalmente, as famosas declaragdes dos Di- reitos do Homem ¢ do.Cidadiio. Tais declaragdes, sur. gidas no processo da Revolugo Francesa do século XVIII, quando a burguesia, ao desalojar a aristocracia, conquista o poder. politico, substituem o mansicur do Antigo Regime pelo citoyen da Republica. O cidadéo pleno €, entdo, como se verd, 0 proprietatio. No entanto, houve um tempo em que a burguesia, wa todos. Besse momento de ges- 10, de formagio do projeto burgués ’@, que quero focalizar em primeiro lugar. Assim, gostaria de pelo menos encaminhar uma réspos-: ta a questéo: por que todos, ¢ i a? Depois, como contraponto, focalizo as referidas decla- ragdes_com ti n meiro momento, focalizo a origem DisWrica, 2 evolueao © © significado da educagéo ¢ cidadania burguesas, € 11 para, num segundo momento, e & luz desse estudo, tra- tar, ainda que sucintamente, da questio da educagio & cidadania no Brasil atual. | Manufatura, Ou: eu no adie uma imereadoria sem vocé Ainda que seja poss{vel caractetizar os tempos mo- detnos a partir da construgao de um noyo saber, com novos fins, novos métodos, noyos conceitos é novas categorias, a partir da elaboragao de uma outra religido, ou ainda a partir da formagio dos Estados nacionais, o fundamental, isto 6, 0 que permite comprender todas essas transformag6es, & que os hi aterial. Essa nova for- ma de produgao da vida material engendra, por sua vez, novas formas de relagdes sociais entre os homens. Sabe-se hoje que jé mesmo em fins da Idade Média, é onderantemente artesanal, comega a ser ‘Aumenta, assim, a importancia da produgao de merca dorias, organizada sob a forma manufatureira. Sem desejar retomar aqui estudos ¢ reflexdes ra- zoavelmente difundidos a respeito da acumulagio_pri- mitiya na yelha Europa, que possibilitotr a forma capi- lista ‘de produgao, gostaria, no entanto, de relembrar Com efeito, as manufaturas colocaram o trabalho sob novas bases, transformaram as relag6es de propric desneces- ‘onforme afirma Marx, em quem, fundamento para escrever muito do. que lizer, me w . Trata-se, agora, do trabalhador livre, e livre sob o duplo ponto de vista de ser uma pessoa livre, isto i_dividi i executadas por traba- Thadores distintos. Diferentemente da divisto social do trabalho, em que os trabalhadores sio independentes e 0s produtos de seu trabalho séo mercadorias, na divistio manufatureira os trabalhadores parcelares nfo produ- zem mercadorias (Marx, 1977: 257-8). Na manufatura, ‘a mercadoria é produzida pelo trabalhador coletivo, for- mado pela combinacao de um grande némero de trabe- Ihadores parcelares, sob a regéncia do dono do capital. Com a diviséo parcelar do trabalho ocorrida na ma- fiufatura, nfo se exige mais dos trabalhadores 0 virtuo- i seu offcio, alcangado apés longa aprendiza- gem ao lado do mestre, na c : te na manu Tima certa hierarquia entre alguns tra- balhadores, entre os que dominam os segredos do off- cio e uma grande parte deles que realiza um trabalho mecfnico, que néo requer nenhuma habilidade espect- fica, Essa hierarquia se prende ao fato de que a manu- fatura mantém as caracterfsticas al, Ou seja, Oo! i da manufatura, Isso significa que, em parte, o controle do processo de trabalho é do trabalhador (coletivo) ¢ a subordinagao do trabalho ao capital tem af seus limi- tes, Marx mostra como os virtuoses so zelosos de suas habilidades e as conservam mesmo quando n&o mais necessiias. Cita o insuspeito Ure, que, na sua obra Fi- ‘A fraqueza da na- losofia da industrializagao, escreve: r rior, Ao atingir um certo grau de gesenvolvimento, a base técnica estreita da manufatura (0 oficio manual) entra ei conflito com as necessidades de produgao que ela mesma havia criado (Marx, 1977: 266). A manufatura, tornada entéo insuficiente, seré substitufda pela trande_indistria_moderna, em que o instrumer cia, ser a maqui- sha. Com a grande inddstria aparece a forma especifica de produgao capitalista. Trata-se de uma revolucio nas forgas produtivas: “Na manufatura e no offcio, o traba- Ihador se serve de seu instrumento; na fébrica, ele ser- ve & méquina, La, o movimento do instrumento de tra- balho parte dele; aqui ele apenas o segue. Na manufa- tura, os trabalhadores formam membros de um meca- nismo vivo. Na fabrica, eles siio incorporados a wm me- canismo morto que existe independentemente dele” (Marx, 1977: 300). A maquina _iguala, niy © A produgao capitalista, ainda na s fatureira, muda a forma de propried: forma, manu- sim, a propriedade burguesa nao é sé alguma coisa para possuir, para ust- fruit, mas sobretudo para vender, para trocar. Além | ‘Todos os homens siio iguais Essas transformagdes na produgao da vida material provocam transformacdes na organizacéo politica — a formagio do Estado moderno —, colocam os homens em noyas relagées com a natureza — a ciéncia moder-|{ tla — e trazem alteragSes na organizagaio do saber ool | colar —~ a escola moderna, Locke (1652-1704), assim como Galilei (1564- 1642), Bacon (1561-1826), Descartes (1596-1650), Co- menius (1592-1670) expressam teoricamente essa sacie- dade que esté se produzindo através da cooperagio da manufatura © que necesita de um novo saber e de uma nova educagio, el (1469-1527), que la sua obra maxima, ele nao se dirige nunca A sabedoria do Principe, mas ex- clusivamente a seus interesses (Levy, introduction, in Maquiavel, 1980: 37) Por sua vez, para os modernos, a natureza nao seré mais objeto de especulagao e sim de aco. Era pre- 15 aes ciso, entdo, elaborar métodos adequados para investigar © universo, “esse grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos”, como afirma Galileu (197 119). Os novos métodos séo bascados na experimenta: fo, na_experiéntia e na raat “essa luz natural” (Des- cartes, 1966: 39) que todo hémem possui. O objetivo desse novo conhecimento, livre da autoridade ¢ das preocupacdes medievais, é a transformagio da realida- de. Descartes, no Discurso do método, j4 propusera: 'E possfvel (por meio do novo método) chegar a conhe- cimentos que sejam teis & vida, e que em vex dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, pode-se encontrar ume (filosofia) prética, pela qual, conkecen- do a fora e as agdes do fogo, da Agua, do ar, dos as- tros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cer- cam, tio distintamente como conhecemos os diyersos oficios de nossos artesdos, nés os poderiamos empregar do mesmo modo e @ todos 0s usos aos quais cles sio préprios e assim nos tornarmos mestres ¢ possuidores da Natureza”” (Descartes, 1966: 84) Aperfeigoar a vida humana, contribuir para a di- minuigao do sofrimento dos homens {4 tinha sido o in- tento de Galileu nas suas tentativas de compreender o universo, Da mesma forma, Bacon (1979; 49), jé afir- mara que a “verdadeira ¢ legitima meta das ciéncias a de dotar a vida humana. de novos inventos ¢ recur: 'sos”. Seu método experimental objetivava aumentar os ‘conhecimentos, tendo em vista assegurar o dominio do homem sobre a natureza. Para chegar a esse conheci- jnento que permitisse a intervencio téenica sobre a na- tureza tanto fisica quanto humana, a questio do mé- odo € primordial. Todos os filésofos modernos se preo- yupam em encontrar “o bom método, que é aquele que bermite conhecer verdadeiramente o maior ntimero de Joisas, com o menor néimero de regras” (Chaui et alii, |985: 77). Além disso, 0. métddo 6 sempre considerado hatemético, no sentido de que procura o ideal. mate- 6 Ww u mitico, isto é, 0 conhecimento completo, perfeito e in- teiramente dominado pela inteligencia, O método ain: da possui dois elementos fundamentais de todo conhe- cimento matemético: a ordem e a medida (Chaut er alii, 1985: 77). £ sobretudo Locke’ quem vai exprimir, a nivel teé- rico, os interesses da burguesia emergentc. Nao por acaso, portanto, ele é considerado o pai do liberalismo. No seu discurso, est4d presentes elementos da nova so- ciedade que esté sendo construida, Locke estabelece que, embora a terta e todas as criaturas inferiores per tengam em comum a todos os homens, cada um con- serva a propriedade de’ sua propria pessoa, ou seja, cada homem € proprietério de si, de seu corpo. E 0 homem se apropria das coisas pelo trabalho, que é 0 uso de seu corpo. Ele se apropria dos frutos de seu trabalho e da- queles que ele nao consumiu imediatamente, que ele economizou. Desses principios decorre que, se a apro- priagdo se dé pelo trabalho, fica abolida a idéia segun- do a qual certas terras e-posses pertenceriam, por nas- cimento, a uma classe privilegiada. Fica estabelecida a idéia de’ que todos os homens so livres, pois todos sf proprietérios de si, e de que todos os homens sao iguais (Locke, 1977: cap. V). Locke esté afirmando que existe uma igualdade natural, inata, entre os homens, ¢ isso é 0 novo nesse momento hist6rico, é a ruptura com o passado, Nas so- ciedades antiga e medieval, os homens so naturalmen- te desiguais, hé senhores e escravos, hé senhores e ser- vos, Entdo, para Locké, a troca é uma troca entre iguais, entre proprictdrios de mercadorias. Do mesmo modo, a relagao salarial: o trabalho de im homem, sendo pro- priedade sua, pode ser vendido, ou melhor, trocado por um salério. O trabalho, assim vendido, se torna pro- priedade do comprador, que tem direito de se apro- priar, de fato, desse trabalho, Note-se que o comprador, ou seja, 0 capitalista, compra o trabalho (mais tarde, 17 Assim, nao existe paré Locke, como nao existe para o liberalismo — discurso|~{ ideolégico da burguesia revolucionéria —, contradigao! entre capital e trabalho. Percebe-se, pois, qui Sabe-se, hoje, que a igualdade juridica esconde, na verdade, a desigualdade dos individuos concretos: de um lado, © proprietério privado; de outro, o trabalha- dor assalariado. Para 0 proprictério privado, o “livre contrato” petmite uma nova forma de dominio “social” com o que subordina os demais a si mesmo, Para o tra- bathador pssalariado, esse mesmo livre contrato signif ca s6 uma nova forma de servidao social, pela qual subordina’ ao outro (Cerroni, 1972:. 105). Se as propostas de igualdade burguesa aparecem hoje como desafinadas, mistificadoras, 6 porque uma elaboragao teérica superior deu conta de explicar certas contradicdes do capitalismo, impossiveis de serem com- preendidas nos tempos de Locke e mesmo de A. Smith © Ricardo. Marx aprofunda, radicaliza a questéo da igualdade posta pelo liberalismo, ao analisar, com maior profundidade, 0 processo de trabalho. Quanto & relacio salatial, por exemplo, ele desvela que a forca de traba- tho, tornada ela propria uma meréadorie, € vendida pelo seu valor, cujo prego varia de acordo com as leis do mercado. No entanto, de posse dessa mercadoria, 0 ca- pitalista se utiliza dela na produgao de outras, extrain- do assim, do trabalho, um excedenie em relacio ao valor da mercadoria fora de trabalho adquirida. Entéo, no capitalismo sobra mesmo apenas 2 igualdade juridica. 18, elf No entanto, é sempre bom lembrar que 0 intetlo- do discurso burgués emer Tmarxismo dos tém a buz io inato, nao _era_pouco, E se socialmente o que se verifica é a desigualdade, essa € precisamente uma questao social ¢ nao de naturcza. Estava implicitamente afirmado que os homens modernos livres, iguais por natureza, propriet. rios de si, trabalhadores... fai istéria. ja sua Diddtica magna (1632), | io a distincao das classes sociais, pro- poe para todos — a Ainda que toda justificativa da educagio proposta, bem como a finalidade da propria vida humana sejam postas por Comenius em termos ‘teolégicos — o fim timo do homem esté fora dessa vida © essa vida nfo € sendo uma preparacio pare a vida eterna —, uma Jeitura mais atenta da Diddtica magna, mesmo dos seus aspectos religiosos, revela que a religiéo de Comenius niio é « mesma religiao mistica e contemplativa da Idade Média, ¢ por isso inesmo nfo seria adequado conside- rélo um pensador medieval. Aliés, Comenius j4 per- tence aos quadros de uma religido reformada que ques- tionara as concepgdes de dogmas e ceriménias e, sobre- tudo, a autoridade religiosa Stia Diddtica magna éxpoe a exte universal de ensinar tudo a todos. 19 Ensinar tudo ndo significa, como afirma Come- nius, exigir o conhecimento de todas as ciéneias e de todas as artes, pois isto seria impossivel e inttil, Ensi-y 1976: 145). “Devem ser enviados as escolas nfo apenas os filhos dog ricos ou dos cidadios principais, mas todos, por igual, nobres e plebeus, ricos e pobres, rapazes e rapa- rigas em todas as cidades, aldeias e casas isoladas” (p. 139). Assim, “todos saberdo para onde devem diri- todos os atos ¢ desejos da vida, por que caminhos devem andar, ¢ de que modo cada um deve ocupar o seu lugar” (p. 143). Pode-se ler essa educagiio para todos, ainda que no todo 0 tempo, como uma: proposta detivada da . Com efeito, Come- nius propée. quatro tipos de escolas correspondentes a3.2“" quatro fases da vide até a juventude. O regaco mater- no é a escola da inféncia; a escola primétia ou escola piblica de lingua vernicula é a escola da_puericia; a escola de latim ou gindsio € a escola da adolescéncia; a academia eas vidgens sfo a escola da juventude (p. 410). Somente as duas primeiras esto destinadas a todos. As outras, apenas a alguns. de latim deve educar sobretudo, de modo perfeito, os adolescentes que aspiram as coisas. mais altas que os trabalhos manuais; e as Academias devem formar os « doutores e futuros condutores dos outros, para-que, nem as escolas, nem as administracdes piiblicas, faltem diri- gentes competentes” (Comenius, 1976; 413). Ou ainda: “Qs trabalhos da Academia prosseguirdéo mais fa-,, cilmente e com maior sucesso, se, em primeiro lugar, s6 para 1é forem enviados os engenhos mais seletos, flor dos homens; os outros enviar-se-Ao para a charrua, para as profissGes manuais, para o comércio, para o que, aliés, nasceram (Comenius, 1976: 448). . Depois uma educagdo que continua, para aqueles que serdo dirigentes. A educa- 0 para todos se faz basicamente na escola de Kinga nacional, cujo objetivo & ensinar a toda a juventude, dos seis aos doze ou treze anos de idade, aquelas coisas que Ihe serdo iiteis toda a vida: ler, escrever, contar, medir, cantar melodias, aprender de cor hinos ‘sagrados, cate- cismo, méximas da Sagrada Escritura, ensinamentos mo- rais, condiedes econdmicas e politicas, hist6ria geral do mundo, cosmografia e conhecimentos varios da ordem geral acerca das artes mecanicas. E Comenius (1976: 429) completa: ‘'Se todas essas coisas forem capazmen- te ministradas nesta escola de lingua nacional, aconte- ceré que, nfo s6 aos adolescentes que entram para a escola latina, mas também aqueles que passam a exer- cet comércio, a agricultura, ou os oficios manuais, nada se depararé que seja de tal maneira novo, do qual nao tenham j4 haurido.o gosto aqui (. coagidos, nem com uma sujeigdo asinina, mas vo- luntariamente, por amor 2 ordem (p. 125). Alids, a dis ciplina mais severa s6 deve ser aplicada pelo mestre quando 0 aluno exorbita no dominio dos costumes (p 404). OMdiscurso pedagégico burgués é nessa época, claro: uma educacéo de base para todos porque hé uma‘ igualdade natural entre os homens, educagfo essa que forma o cidadao. ‘Trata-se de uma educagio nivelada, porque 0 trabalho na manufature foi nivelado. Como se viu, a nova ordem econdmica da manufatura nao exige o trabalhador qualificedo, mas, sim, 0 ttabalha- dor disciplinado, disposto ao trabalho diligente e & fru- galidade, Mas € sobretudo na sua proposta didética — a arte de ensinar — que se pode observar como Come- nius é um pensedor identificado com 0 que hé de mais avangado’no seu tempo. Apresenta um método paca en- sinar de modo fécil, sélido e répido (p. 305), sem perda de tempo (p. 451), com economia de tempo e fadiga (p. 293), com ordem e medida (p. 182), de tal forma que, em cada ano, més, semana, dia, hora, haja uma tarefa a realizar (p, 292). A arte de ensinar nada mais exige que uma reparticao do tempo, das matérias, das escolas (p. 186). O relégio construfdo segundo as regras da arte (leia-se manufatura) € © modelo para a organi- zagéo das escolas. O aluno deve aprender a fazer, fa- zendo (p. 320). O professor deve ensinat a muitos alu- nos de uma s6 vez, dividindo-os em classes, tendo a ajuda de chefes de turma, de monitores e, principalmen- te, do livro didético (p. 279-81): O livro didatico sera © tinico livro para os alunos, elaborado pelos sébios, ¢ cada professor, mesmo que néo tenha muita habilidade para ensinar, 0 usard para comunicar e infundir na ju: ventude uma erudigao j4 preparada e com instrumentos também jé preparados, colocados ‘nas suas mios, assim como 0 organista executa uma sinfonia olhando para a 22 partitura que ele talvez nfo fosse capaz de compor (p. 457). O livro didatico, ao oferecer o que deve ser apren- dido, deve fazé-lo repartido do modo mais distinto pos- sivel, em tarefas de um ano, de um més, de um dia, de uma hora (p, 459), Além do livro-texto, para os alu- nos, Comenius recomenda também o livro-roteito paral os professores, para que esses aprendam a servit-se bem daqueles (p. 460) O livro didético sera, pois, o grande recurso para a educagfo padronizada que se propde, O livro didatico surge visceraimente ligado & educagio que-a burguesia emergente propde para difundir sua visio do mundo. E, com 0 livro didético, ficam dados, desde ja, os limi- tes epistemoldgicos da escola para todos. Se ainda resta alguma divida quanto & moderni- dade de Comenius ¢ &s caracteristicas de suas escolas, basta mencionar 0 célculo que faz das horas de estudo na escola. “Temos boas razdes para aconselhar que no dis- pendam de trabalhar nas escolas piiblicas mais de qua- tro horas por dia; duas antes e duas depois do meio- dia, E se no sdbado se fizer feriado de tarde, e 0 domin- g0.for todo consagrado a0 culto divino, teremos 22 horas semanais de aula e (concedidos ainda os feriados necessérios para a’ festas mais solenes) teremos cerca de mil horas por ano. E, em mil horas, quantas coisas se podem ensinar e aprender, se se procede sempre me- todicamente” (Comenius, 1976: 463). Comenius tem no método a mesma confianga’ de Descartes, e isso nao é casual, uma vez que hé wm mé- todo para ensinar porque ha um método para conhecer. Ha também um “método” para produzir na manufa- tura Em sintese, e agora deixando Comenius de lado, a emergente ordem burguesa necesita de uma educa. 23 | | | ~ corned o_especifica_para cada uma das classes sociais fun- ientais em formagao, mesmO-que, alee icagao seja_comum, As fecessidades éducacionais da nova ordem &i nnvolyjmento sfio expressas com clareza por Leo Kofler, que cito em seguida, numa tra- dugao de suas idéias, mais que de suas palavras. Sem diivida, a manufatura, durante muito tempo, revestiu-se de uma forma inicial‘¢ rudimentar. Porém, com o crescimento das cidades e a maior demanda, fruto também de relagdes de mercado e consumo mais desen- yolvidas, a criagio em grande escala de estabeleci tos manufaiureiros se conven ssidade mais ur- gent io r + FECISO superar néo 86 dificuldades materiais — principalmente a relativa pobreza de capital dos empresérios surgidos no artesanato — como também obstéculos de indole tradicional, Aos empresdtios era preciso instaurar, em vex da atitude hedonista habitual, segundo a qual se trabalhava para viver, um espfrito de célculo e de eco- nomia que desembocava na idéia de que se deve viyer para trabalhar, Mas havia obstéculos também do lado dos irabathadores: _rotina artesanal, beseads uma organi: fo_produtiva estritamente ordenada, com |_base na divisio do traba Nada mostra melhor o problema dos trabalhadores dessa época de transigdo que 0 fato de estar as cidades a transborda- rem de desocupados, mendigos e vagabundos, enquan- to se experimentava escassez de mao-de-obra (Kofler, s.d., 229). Mesmo os que ingressavam nas manufaturas dei- xayam muito a desejar, como atesta Marx (1977: 266): “Durante todo 0 periodo manufatureiro ouvem-se quei- xas © queixas a propésito da disciplina dos trabalha- dores” Alguns sffo mais iguais que outros A burguesia do século XVIII j4 nao € mais a bur- guesia emergente dos séculos XVI e XVII. Cresceu ¢ consolidou-se, assim como a producao capitalista inci- piente e ndo-hegeménica da manufatura desenvolveu-se até tornar-se o fator econdmico decisive. Agora, a pro- dugdo capitalista produz mercadorias em grande esca- la, de acordo com um método de divisio do trabalho que emprega tabalhadores sob a direco de um empre- sario moderno. Consolidada economicamente, a burguesia, agora, conquista o poder politico para ins- taurar a_democracia burguesa, cujos primeiros sinais so as déclaragdes dos Direitos do Homem e do Cida- dio, A primeira Declaragdo, a de 1789, que serviré de base para a Constituiggo de 1791, elaborada pela As- sembléia Constituinte dominada pela grande burguesia, inspira-se nas doutrinas dos fil6sofos iluministas. Enun- cia, no preambulo, os direit6s naturais ¢ imprescritiveis do.homem: liberdade, propriedade, igualdade perante a lei; e os da nagao: soberania nacional, separagao dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciério. Quanto, & propriedade, a Declaragio de 1789 nfo sé anunciava 25 seu direito, como também o garantia: “A propriedade sendo um direito'inviolével ¢ sagrado, ninguém pode ser dela privado, seno quando a necessidade péblica, legalmente constatada, o exige ‘evidentemente ¢ sob a condigao de uma justa e prévia indenizagao" (artigo 17 da Declatagéo dos Direitos do Homem e do Cidadio de 1789, in Burdeau, 1979: 77). As duas dectaragSes se- guintes, a de 1793 ¢ a de 1795, modificam a primeira em alguns aspectos, porém todas afirmam o direito a propriedade. E 0 proprietério & 0 cidadio, ou seja, a propriedade & 0 critério do civismo. Nessa época tevolucionéria, escreve Burdeau, ha uma convicgaio dominante segundo a qual, nas palavras de Diderot, “é a propriedade que faz 0 cidadao”, Ou, como registra a Enciclopédia: “Todo homem que possui no Estado € interessado no bem do Estado”. Ainda de acordo com Burdeau, nfo s60 pensamento dominante defendia a propriedade, mes também os que se expri- miam nos Cahiers de Doléances, cujo sentimento se re- sume nessa formula: “O objeto das leis é assegurar a liberdade © a propriedade” (Burdeau, 1979: 77), A tese dos enciclopedistas é, pois, como diz 0 ba- rio D'Holbach, “o proprietério, unicamente, é um ver- dadeiro cidadéo”. Eo que € 0 cidadao, pergunta Bui- deau, para esses pensadores do século XVIII que que- rem estabelecer seu reino? E responde: “E um homem de ordem, suficientemente esclarecido para poder esco- Iher seus representantes com conhecimento de causa, bastante independente para estar a0 abrigo das pres. ses. Ora, que critério melhor que a posse de uma certa propriedade poderia permitir a seguranca de que esas condigdes esto satisfeitas? A propriedade € uma ga- rantia de afeiggo & coisa publica, pois o proprictério esta interessado em sua boa gestdo; a propriedade é um signo, ou ao menos uma suposigio de instrucio; ela é, enfim, uma garantia de independéncia econdmica, ne- cesséria & liberdade de espfrito” (Burdeau, 1979: 81-2). 26 © ee Hé, pois, no pensamento burgués, uma nitida sepa, ragdo entre proprietétios e nao-proprietérios. S6 os pro} prietérios € que tém direito @ plena liberdade e & plena cidadania. Aos nao-proprietarios cabe uma cidadan de segunda ordem: enquanto cidadaos passivos, tm di reito & protegio de sua, pessoa, de sua liberdade © de sua crenca, porém nao sio qualificados para serem membros ativos do soberano. E verdade que a proprie- dade de que se trata aqui nao 6 @ propriedade capita- lista tipica — a que se acumula para produzir mai ainda. Numa época em que, na Franga, os efeitos da 1 revolugéo industrial ainda néo se haviem feito sentir’ jcom vigor, a fortuna repousa na posse da terra; a pro- priedade é, pois, basicamente, fundidria (Burdeau, 1979; !¢ 82). Haverd, entdo, a proposta de uma eduéagdo para os proprietérios, os cidadaos, e uma outra educagao para os ndo-proprietdrios, para os cidadaos de segunda cate- goria. O discurso educacional burgués dessa época & transparente, transparéncia essa que nio sera mais en- contrada quando os interlocutores da burguesia deixe- rem de set, prioritariamente, as forgas do passado — aristocracia, Igreja, escoldstica — para serem o movi- mento socialista. Comenius, como se viu, propusera uma escola para todos, precisando seus limites quenti- tativos ¢ metodologicos para os nao-proprietdérios. Um século depois, Adam Smith (1723-1790) — e agora se trata da Inglaterra — expée, na Riqueza das nacdes, seu pensamento sobre educagio, ao tratar dos gastos do soberano ou do Estado. Justifica a necessidade de edu- cago em fungao da divisio (parcelar) do trabalho: o exercicio de uma ocupagao especifica com operacées bastante simples acaba imbecilizando os trabalhadores. Assim, € conveniente que o Estado facilite, encoraje e até mesmo imponha a quase toda a populagaio a neces. sidade de aprender os pontos mais essenciais da educa- go: ler, escrever, contar e rudimentos de geometria e Zo. O que propée area majoria da populacao é pouco; é 0 minimo. que, apes: E hoje, no Brasil, nem cidadios ha Os direitos do cidadao, tanto os chamados direitos humanos — & vida, & satide, & educagio, & moradia — quanto os direitos civis — liberdade, igualdade juridi- a, justiga —, que a pagtir do século XVITI foram sen- do progressivamente realizados nos paises capitalistas desenyolvidos so, pois, proposigdes da democracia bur- guesa. Aliés, os direitos do homem e do cidadao foram reafirmados pela ONU, apés a Segunda Guerra Mun- dial. Apesar disso, o Brasil, pais capitalista, caracteriza- __ Se por ser uma sociedade autoritéria e hierarquizada em que os direitos do homem ¢ do cidadio simpl no existem. x Nao existem para a imensa maioria sla populagdo — os despossufdos —, pois suas tenta- Lblemas de policia e tratadas com todo o rigor do-apa- im repressor de um Estado quase onipotente (Chauf, as 2. , 5A extrema liberalidade com que é tratada a peque- tlie covresponde & extremd repressaio do povo, so- 23 tives de consegui-los so sempre encaradas como pro- bretudo quando os trabalhadores se organizam e lutam. Episédios recentes de nossa histéria revelam que nem mesmo a vide humana é enearada com alguma serie- dade. ragao da excoordenadora do Pa Folha de Sao~ Paulo, 30-7-1986, p.- 16) nfo chege a atender todas as criangas em idade escolar. Para as criangas considera- das carentes, surgem a toda hora propostas de planos cada vez mais assistencialistas. O crénico problema do analfabetismo no Brasil continua insolivel, como atesta Lui2 Araujo Filho, assessor do MEC: “Trinta milhoes de brasileiros sfio analfabetos funcionais, isto é, embo- ra sabendo desenhar o nome e decifrat algumas pala- vras, nfo compreendem o que Iéem e vinte milhdes séo analfabetos absolutos, que nao sabem sequer assinar o © nome” (Folha de Sao Paulo, 31-7-1986) Poder-se-ia pensar que, sé o Brasil ainda ndo con- cretizou os ideais burgueses de cidadania € porque aqui ainda no teria sido realizada a revolugéo burguesa, ou seja, 0 Brasil ndo ‘seria um pais capitalista. Essa hipd- tese é, no entanto, de dificil aceitagao. O Brasil é um pafs capitalista, com uma inddstria competitiva inclu- sive internacionalmente. . Aqui a realizagao do capital — que afinal € 0 stijeito do capitalismo — se faz as custas da marginalizacao da maioria dos brasileiros. Entao fica a questo: como conseguir que, no limiar do, século XXI Jj ! os brasileiros se transformem em cidadaos? Sao Carlos, agosto de 1986. : BIBLIOGRAFIA BAGON, & Novum Organim, 2.* od., So Paulo, AbriI Cultoral, 1979 (Cole (Ho Os Pensato DESCARTES, R. Dlscours de ta méthode, GALILEU. 0 Ensalador. 60 Paulo, 30

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