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Elikia M’Bokolo AFRICA NEGRA HISTORIA E CIVILIZACOES Tomo I (até 0 século XVIII) Tradugao de ALFREDO MARGARIDO Revisdo académica da traducao para a edigdo brasileira DANIELA MOREAU VALDEMIR ZAMPARONI Assistentes: Bruno Pessoti e Ménica Santos EDUFBA | Casa das Africas | 2009 Il. DEBATES E COMBATES Raramente se viram florir tantos mitos e explodir tantos combates como no que se refere ao passado antigo da Africa. Focalizados, por boas ou més razOes, sobre certos periodos ou certos objetos privilegiados (sendo o Egito faradnico certamente o mais duradouro deles), estes debates possuem freqiientemente uma dimensdo técnica, na medida em que remetem para as condigdes epistemol6gicas do exercicio da profissao de historiador no contexto africano. Mas estdo também associados & avaliacao do trabalho efetuado até aqui sobre a Africa pelas geragSes sucessivas de historiadores ¢ de especialistas de “ciéncias auxiliares da histéria”. Um dos aspectos mais reconfortantes destes debates deriva do fato da duvida nao incidir apenas sobre os materiais com 0s quais o historiador trabalha, mas também sobre as teorias e os paradigmas que foram durante muito tempo considerados como os melhores pilares da literatura hist6rica e dos trabalhos de ciéncias sociais € sobre 0 passado mais antigo do continente africano. A. Mitos e lendas “A barragem dos mitos” evocada por Joseph Ki-Zerbo constitui um dos cobsticulos a superar: trata-se do inesgotavel repositério de tolices do qual © historiador burkinés desenhou com trago amplo os contornos e do qual se espera ainda constituir o corpus, sondar as molas e as filiacdes e por em evidencia os elementos, na medida em que persiste a sua recorréncia. Mas verifica-se também que as préprias fontes, escritas e orais, continuam a exigir um implacdvel trabalho de critica e de avaliacao. A questdo das fontes ‘A querela das fontes, que dominou a historiografia africana nascente nas décadas de 1950 ¢ 1960, esté hoje encerrada. Tendo sido aceito e reconhecido 0 valor das fontes orais, todos concordam com o fato de que a variedade extrema das fontes (a prospec¢ao esta longe de ter acabado) de que 0 historiador da Africa pode tirar partido constitui uma possibilidade excepcional, com a condicao de serem tratadas com os rigores habituais. ‘As fontes escritas de todas as origens— egipcias, gregas, latinas, chinesas, 4rabes, européias... — de que certos historiadores tinham feito a condigao sine qua non da produgao de obras histéricas, revelam-se também dificeis de explorar, ou até enganadoras. A fascinacao exercida pelos mirabilia —a respeito dos quais as fontes da Antiguidade clissica oferecem o primeiro exemplo conhecido ~ prolongou-se, através dos escritos 4rabes e europeus, até o fim do século XIX e talvez mesmo até os princfpios do século XX. Qual éa historia que semelhantes fontes permitem estudar? Trata-se da historia da Africa ou antes da histéria da percep¢ao da Africa pelos outros, percepso da qual sabemos que nao cessou de reproduzir preconceitos e esteredtipos ao mesmo tempo que ia criando novos? Simultaneamente, a confianga cega nestas fontes contribui da maneira mais evidente para identificar objetos, sugerir cortes cronolégicos ¢ periodizacées e impor maneiras de fazer, procedimentos cuja pertinéncia ¢ discutivel e cada vez mais discutida. Um dos exemplos mais edificantes é-nos dado por uma das fontes mais antigas comentadas, o “périplo de Hannon”. Esta narrativa conta as viagens que teria feito 0 cartaginés Hannon “para além das colunas de Hércules” com vista a “fundar cidades de Libifenicia”: “pareceu bom’, conformea versao de Heidelberg desta viagem (datada do século IV ou do século Il a.C.), “confiar-lhe 60 navios de 50 remos, uma multidao de homens e de mulheres, alcangando cerca de 30 mil pessoas, viveres e todo o equipamento necessério”. A propria realidade da viagem maritima do cartaginés Hannon nas costas ocidentais da Africa depois de passadas as colunas de Hércules continua a suscitar dtividas. Alguns consideram- na como absolutamente impossivel e apoiam-se em argumentos extraidos das técnicas de navegacio — confirmadas por Herédoto — e da arqueologia. Para Raymond Mauny, que considera a viagem de Hannon como “a maior farsa de toda a histéria das navegagGes da Antiguidade”, a impossibilidade de semelhante viagem deriva das condicdes de navegaco desta época: Se era ficil para um navio da Antiguidade ir do Marrocos até ao Cabo Verde ~ sendo os ventos constantemente favoriveis & descida norte-sul—e relativamente fcil passar para lé dos Camarées, sendo os ventos algumas vezes favordveis, as vezes desfavoraveis, teria sido pelo contrério uma tarefa praticamente impossivel ir do cabo Lopez a0 cabo da Boa Esperanga, sendo os ventos constantemente desfavordveis para navios & vela dirigindo-se para sul. E ai, contrariamente 20 que se passava no Saara, ndo existia estrada de carros para duplicar a via maritima e nfo havia libio-bérberes jd esfregados pela cultura ‘mediterrénica, mas apenas rudes khois’, que nfo estavam sequer ainda no neolitico. (R. Mauny, 1970, p. 95) Semelhante viagem fora contudo tentada na época do rei da Pérsia Xerxes (-486/-465) e tinha acabado num fracasso relatado por Herddoto na descri¢ao de Sataspés, condenado por ter estuprado uma jovem virgem: a, por este crime, ser empalado por ordem do rei Xerxes, quando sua mae que era irma de Darius, pediu a sua graca, dectarando que ela propria the imporia um castigo mais violento do que aquele que fora decidido por Xerxes: porque ele seria obrigado a fazer o périplo da Libia até que este périplo 0 levasse ao golfo arabico. Xerxes aceitou estas condigGes; Sataspés foi para © Egito, apanhou um barco e marinheiros, e fez-se a vela para as colunas de Hércules; depois de as ter ultrapassado e de ter dobrado 0 cabo da Libia que se chama Soloeis [cabo Espartel?], fez-se & vela para sul; durante varios meses atravessou uma grande extensdo de mar; depois, como havia sempre -46- ainda mais a fazer, voltou atrés e regressou ao Egito. Dai foi se encontrar com o rei Xerxes; contou ele que no ponto extremo da sua viagem navegava a0 longo de um pais povoado por homens pequenos cujo vestuatio era feito de palmeiras; sempre que ele e os seus companheiros acostavam 0 navio, estes homens fugiam para as montanhas, abandonando as suas cidades; eles penetravam nestas cidades sem fazer af o menor prejuizo, recuperando simplesmente o necessério para comer. A razao que o tinha impedido de levar a cabo inteiramente o périplo da Libia devia-se, dizia ele, ao fato de 0 seu navio nao poder avancar mais, pois estava parado. Xerxes ndo aceitou que ele estivesse a dizer a verdade; no tendo Sataspés, fosse como fosse, levado a cabo a tarefa proposta,infligiu-Ihe o castigo inicialmente decidido, mandou-o empalar. (Herédoto, Histérias, IV, 43) Actescentemos que a auséncia total de restos arqueolégicos a sul do ‘Marrocos, tanto nos Camardes como no cabo Lopez, onde alguns autores fizeram chegar Hannon e 0s seus companheiros, parece confirmar de fato a tese de que o *Périplo” é mais uma construcao intelectual do que a auténtica relacéo de uma verdadeira viagem. Apesar da fora destes argumentos, esta viagem ¢ considerada ‘como muito possivel ou provavel pelos especialistas, que os mais ardentes — J. Carcopino e G. e C, Charles Picard ~ situaram no momento mais alto da forga cartaginesa (fim dos séculos VII-VI ou século IV a.C.). Um dos seus argumentos mais perturbadores reside na exatidao da fauna e da flora descritas pelo “Périplo”: invengo feliz de uma imaginacao fecunda ou transcri¢ao fiel de testemunhos mais ‘ou menos diretos? O caso na realidade é ainda mais complicado porque, quer a viagem tenha tido ou no lugar, que vale a fonte que a descreve e quem fornece descriges das costas da Africa? Se 0 Périplo de Hannon é um dos textos mais recopiados pelos autores gregos ¢ latinos, a verdade é que o original redigido em piinico, colocado no templo de Kronos em Cartago, desapareceu. Resta por isso, principalmente, uma verso grega, conhecida como 0 “manuscrito de Heidelberg”, e cépias latinas incompletas integradas nas obras escritas por Pomponius Mela e Plinio, o Velho, no século I depois de Cristo. O exame atento da tradicéo literdria mostra que estas diferentes vers6es séo como um exercicio no qual se tivessem empenhado varios autores, provavelmente no século I a.C, e no século I da nossa era. © que é confirmado pelos miltiplos empréstimos aos autores mais diversos (Homero e Hesiodo, Herddoto, Polibio, © pseudo-Scylax, talvez Aristételes e tantos outros), assim como a ciclos lendarios muito conhecidos, como o de Perseu, rico em todas as qualidades de maravilhas, mulheres peludas assimiladas as Gorgonas até ao Theon Ochema (montanha onde ardem fogos permanentes cujas labaredas sobem até aos astros € assimilada 4 fronteira do oikuméné) passando pelos trogloditas mais répidos do que os cavalos. Seja 0 que for que se retiver da realidade da viagem, o Périplo de Hannon aparece assim como um dos antepassados particularmente fecundos desta longa linhagem dos mirabilia que, até principios do século XX, preencheram © conhecimento da Africa ¢ nos informam mais a respeito do imagindrio dos seus autores do que sobre as realidades do mundo negro. as Nao deve também acreditar-se que as fontes orais sejam totalmente jsentas de tais fabulagdes. Depois de se ter assente, gracas aos trabalhos pioneiros de Jan Vansina, o valor das fontes orais’como as demais fontes, 05 investigadores discutiram durante muito tempo a questéo de saber se a investigacdo de uma cronologia rigorosa nestas fontes nao podia ser classificada como “a busca de uma quimera” (David P Henige). Também aqui, a linha ‘mediana acabou por se impor, consistindo em submeter acoleta e 0 tratamento das fontes orais as regras gerais que presidem ao tratamento de qualquer fonte ¢ a regras especificas correspondendo & sua natureza propria (documento 6). ‘Ao lado destas dificuldades técnicas, afinal faceis de resolver, ha problemas de fundo muito mais arduos que poderiamos esquematicamente formular desta maneira: de qual(ais) histéria(s) as tradi¢des orais sao elas as “fontes”? Sera de resto necessério s6 as considerar como “fontes”? S6 nos falam do passado ou também - e talvez sobretudo - do presente? Um dos numerosos exemplos que mostram a imperiosa necessidade do rigor e da delicadeza com as quais é necessdrio manipular estas fontes é o das narrativas de origem, tio abundantes em todas as reas culturais e politicas afticanas. A identidade e a posigao social das pessoas participando na cadeia de transmissao do testemunho sao tio importantes como o contetido do préprio testemunho. Tao determinantes como estas sao a identidade dos coletores eas circunstancias precisas da coleta. Se deixarmos de lado as diferentes narrativas acumuladas pelos estrangeiros de passagem, as transcrig6es interpretagdes mais antigas de tradig6es orais remontam aos principios do século XVI e foram obra de letrados mugulmanos. Ver-se-4 que os paradigmas extraidos do Isla af ocupam ‘um lugar central. Nas regiGes costeiras, os letrados ligados ao mundo cristo no ficaram atrds. Aparecidos na segunda metade do século XVIII, sob uma forma as vezes romanceada para agradar ao piiblico europeu e norte-americano, estes textos histéricos multiplicaram-se nos séculos XIX e XX. Em resposta ao racismo dos europeus, alguns situavam-se abertamente na perspectiva da “defesa” e da “reabilitagao” da “raca negra”. Outros apresentavam-se como mais preocupados com a exatidao cientifica. Nao s4o por isso menos carregados de esteredtipos, de preconceitos e de manobras legitimadoras, como se pode ver nos mitos de origem dos loruba consignados na monumental History of the Yoruba organizada pelo Reverendo Samuel. Johnson nos finais do século XIX. Documento 6: Uma tipologia das tradicées orais oo) sche es 2k siti ae mee eeaee aebis sr ee he oe A B | c Categorias Subcategorias | Tipos 1oFérmulas Titulos Divisas Didaticas | Religiosas - 48 - Il. Poesia Panegirica Religiosa Individual Nomes de lugares Nomes de pessoas IV, Narrativas Historicas Universais Locais Familiares Didaticas Mitos etiolégicos | Esteticas Estéticas Pessoais oan V. Comentarios Juridicos Precedentes | Explicativos Nota ocasional Fonte: J. Vansina, 1961, p. 120. 2. Osmitos “cientificos” © trabalho dos homens de ciéncia produziu também de maneira mais insidiosa, ao lado das reconstrugées hist6ricas mais refletidas e mais duradouras, esteredtipos tanto mais persistentes pois apareciam aparelhados com todos os emblemas da legitimidade “cientifica” ou académica, 20 mesmo tempo em que confortavam as falsas evidéncias do senso comum. Sera um dia necessétio, no proprio interesse do desenvolvimento do trabalho histérico na Africa mais do que pela busca de uma polémica, empenhar-se em dilucidaria arqueologia mais antiga destas teorias e mitos “cientificos”, a sua genealogia, a sua filiacdo até os nossos dias. Basta aqui lembrar alguns deles cujos efeitos contam talvez entre os mais desastrosos. O fato de que os primeiros que escreveram a historia da Africa tenham sido estrangeiros — arabes e europeus — nao deixa de ter conseqiiéncias sobre as orientacées ulteriores da historiografia africana e sobre a excepcional vitalidade de algumas lendas, mais negras do que douradas. Curiosidade e ingenuidade, simpatia e repulsa, busca da verdade e defesa de interesses, vontade de deforma- do sistemdtica e duivida metédica, as atitudes mais contraditérias misturam-se em proporgdes varidveis conforme as épocas e conforme os individuos para desenhar configuracdes epistemoldgicas as quais os historiadores de hoje ainda no conseguiram escapar. O contexto particular que presidiu a formacao destas historiografias estrangeiras foi sempre, além disso, caracterizado por relacdes desigualitérias entre os africanos e aqueles que produziram esta histéria, comerciantes ou missionérios, negreiros ou colonizadores. © maravilhoso, componente quase obrigatério de qualquer encontro com 0 Outro, sempre se misturou, no contexto africano, com o nada mais absoluto, quer se trate das trevas do paganismo, que seria necessdrio dissipar de qualquer maneira, ou -49- de homens cuja humanidade, custasse o que custasse, deveria ser negada para ‘os transformar em mercadorias. Para acrescentar & complexidade, africanos rocados pelas culturas dos outros ou formados nas suas escolas ¢ nas suas historiografias recuperaram e, as vezes alargaram as hipéteses eas conclusses, onferindo-thes assim o carimbo suplementar da autenticidade. Este chega até a apresentar-se como indiscutivel em certos casos, quando, devido a um efeito de retroago de que se comegam apenas a identificar os sinais, a8 “tradigGes” orais mais “auténticas” integram no seu corpus as teses e as conclusGes menos provadas das historiografias estrangeiras. (Os usos historiogrdficos do conceito de “raga” so muito significativos desta complexidade. Este conceito operou constantemente em dois registros diferentes: «0 das relacées da Africa com as outras partes do mundo, sendo a “raga africana” apresentada como tipo ideal oposta a outras “racas”, € particularmente a “raga branca”; ~ 0 da evolugao propria da Africa, onde o tipo ideal da “raga africana” se realiza numa multido de “racas” concretas, suscetiveis de serem comparadas umas as outras e hierarquizadas No que se refere ao primeiro registro, basta observar que o conceito de “raga” 6 pode ser desfavordvel & Africa e aos africanos, na medida em que foi forjado ¢ ilustrado em pleno periodo negreiro por homens que falavam em nome seja da “ciéncia” (a “antropologia”) seja de consideragdes puramente ideolégicas (pense-se por exemplo no Ensaio sobre a desigualdade das rages humanas “Fe Arthur de Gobineau). Mas, mesmo entre os homens de ciéncia, o conceito de “raca’ é utilizado com a aparente espontaneidade do senso comum, como fez por exemplo Eugene Pittard, professor de antropologia na Universidade de Génova e diretor do Museu de Etnografia desta cidade numa obra classica, Introduction ethnologique & Uistoire (documento 7). Documento 7: A nac-historicidade das racas africanas ‘as racas africanas propriamente ditas, postas de lado as do Egito ¢ de una ports da Africa menor, no participaram de maneira nenhuma n: ria tal como a | oa inveendem os historiadores. Ecerto, como vimos, que as civlizacdes pré-histOricas | foram fflorescentes no solo da Africa. E 0s africanos de entdo podem vir colocar-se, | seramturpresa, ao lado dos europeus (ndo dizemnos da mesma época) que conhecerary | ‘as mesmas civilizagdes. Se, como podemos acreditar, um ‘continente africano veio Sovoar a Europa no periodo paleolitic, ndo parece que voltemos a encontrar os seus descendentes num momento qualquer da historia escrita. Nao me recuso a aceitar | que tenhhamos algumas gotas de sangue negro - de africano de pele verossimilmente | ‘Gmarela--mas devemos confessar que aquilo que de tal pode subsistiré muitodificilde | amvantrar Por conseguinte so duasracas humanas habitando a Africa desempenharar) | um papeleficiente na Historia universal: em primeiro lugar ¢ de maneira consideravel, ‘05 egipcios; depois os povos do norte da Africa. Fonte E Peard, Les races et Phstolre ntreduction ethnologique a histoire, Pars, Albin Michel ol evolution de Fhumanité, 1953 (1924, p. 505. Respeitando o modo “cientifico”, o conceito “raga” deu origem a famosa teoria “hamitica” da qual a Africa atual continua, desafortunadamente, a suportar as conseqiiéncias politicas. “hamita” ou “camita” foi a principio um termo sem nenhum contetido cientifico, derivado das diferentes transcricdes da palavra Cam do Génesis, sendo este o fundador de uma linhagem maldita, erradamente identificada com os negros da Africa tropical. Durante 0 século XIX, devido a uma derivacao cujas modalidades e etapas continuam a ser obscuras, a palavra “hamita” ou “camita” chegou a designar nao mais os negros da Africa (sempre considerados apesar disso uma “raga” maldita), ‘mas 08 africanos “niio negros”, uma espécie de “raga de contacto” (Jean-Pierre Chrétien), na qual participavam tanto brancos como negros, s6 possuindo naturalmente as qualidades dos brancos ¢ os defeitos dos negros. Este caldo onde se lancaram indiscriminadamente os peul [fula, fulani], os maasai, os somalis, os tutsis,... era investido com tudo o que a histéria africana poderia ter de “positivo” e de “grande” aos olhos dos europeus que aderiam a esta teoria, seguindo o exemplo do antrop6logo C. G. Seligman, um dos mestres do africanismo britanico na primeira metade do século XX. Estas obras, cujo éxito nunca foi desmentido, deram forma ao espirito de varias geracoes de administradores e de pesquisadores, até ap6s a independéncia. Documento 8: A teoria hamitica A parte uma influéncia semnitica relativamente recente - seja fenicia [cartaginesal e estritamente limitada, seja arabe [muculmana] e largamente difundida -, as civilizacées africanas s40 civilizagbes camiticas e a histéria deste continente ¢ a histéria destes povos e da sua interacdo sobre os tipos africanos mais primitivos, os negros e os bosquimanos, quer esta influéncia tenha sido exercida pelos grandes Givilizados que foram 0s egipcios, quer pelos pastores selvagens tals como sao hoje representados pelos bedja e os somal [..] Os camitas ~ que sao caucasianos, quer dizer, pertencem a mesma raiz da espécie humana que a maior parte dos europeus = estdo habitualmente divididos em dois grandes ramos, os camitas orientais e os camitas setentrionals.[..] Entre os camitas orientais, os caracterescranianos, mesmo | se varidveis, oferecem geralmente uma certa analogia, e devem ser considerados como antigas variagdes da mesma raiz original. O que também é verdade para a face, em grande parte, porque, excetuando a mesticagem negra, nunca é prognata; fo nariz é reto (ou aquilino quando se verificou introducao de sangue armendide), 05 labios sao. frequentemente espessos, sem nunca ser revirados como se verifica no negro, sendo o cabelo muitas vezes crespo, mas as vezes ondulado ou quase liso, ‘a barba sendo geralmente reduzida; a cor da pele varia, podendo ser amarelada, acobreada, castanha avermelhada, apresentando todos os matizes entre café com leite e preto, conforme o grau de mistura dos sangues. Fontes: C.G, Sellgman, Les races de Afrique, Paris, Payot, 1935 [1930], pp. 86-87. Sabe-se que no quadro de outro registro — 0 das relagdes com os povos afticanos — este conceito de “raga” é um dos principais ingredientes do conceito de “etnia”, variante tanto do conceito de “raga” como do de “nacéo”. Este conceito de “etnia” operou inicialmente na sua expresséo mais dura: a que se 25 apdia quase exclusivamente nos critérios mais duvidosos da antropologia fisica (altura, indice cefilico, fisionomia, cor da pele...), que se pensava determinarem 95 caracteres culturais, as formas de organizacao social e politica, as culturas materiais, assim como, € claro, a adaptabilidade as civilizag6es consideradas “superiores”. Em virtude da sua “instrumentalizacao” politico-ideolégica pelas administragdes coloniais e pelas elites e poderes africanos, 0 conceito de etnia é um daqueles que opdem a resisténcia mais surda aos assaltos das ciéncias sociais, embora estas se empenhem em mostrar nao sé que “as etnias possuem uma histéria” (J.-B. Chrétien e G. Prunier), mas que elas sao um dos produtos movedicos da hist6ria ou ainda que aquilo que o historiador encontra na sua investigaco sao processos, relagGes e estratégias infinitamente mais complexas do que as realidades contemporaneas comodamente designadas pelo conceito ambiguo de “etnia” Para ld das duradouras “tradicdes” paradigmaticas e “escolas” historiograficas, existem também, é claro, as modas intelectuais cujos efeitos so muito persistentes e mais profundos do que geralmente se acredita. Os estudos afticanos conheceram ~ no decurso do século XX, mesmo durante 0 seu tiltimo quarto — um mimero considerdvel delas cuja simples lista, de resto muito dispensavel, seria infinitamente longa. Carregada, as vezes, de pretenses te6rico-ideolégicas (pensamos, por exemplo, na voga “neo-marxista” dos “modos de pfodugao” que seduziu tantos investigadores nos anos de 1960 e 1970), estas modas intelectuais deixaram, além dos estudos de caso e de monografias as vezes notaveis, interrogagbes e esquemas interpretativos que, na maior parte dos casos, mais embaracam os historiadores do que os ajudam no exercicio da sua profissao. “Feudalismo”, “tradic4o” e “modernidade”, “classes de idade”, “linhagens” e “Estados”, “sociedades com Estado” e “sociedades sem Estado”, “sociedades sem mercado” e “sociedades com mercado”, 0s conceitos so to numerosos que, validos a escala local, perdem qualquer eficdcia a partir do momento em que se pretende, como fazem muitas sinteses prematuras e apressadas, atribuir-lhes uma forca de explicacdo universal. De todas estas nog6es, o “difusionismo” é talvez aquela gue tem a vida mais longa. Companheira intelectual da ideologia abolicionista ¢ “civilizadora”, e da ideologia colonial depois, o “difusionismo” apéia-se na tese radical de que a “civilizac4o” foi introduzida na Africa a partir do exterior, consistindo o génio dos africanos, para aqueles que lhes reconhecem algum, em somente adaptar estas contribuicdes exteriores ao seu meio ambiente e as suas particularidades. Este “exterior” é, como nao podia deixar de ser, a Europa, assim como todas as éreas culturais e todos os Estados que desenvolveram, de acordo com estes autores, “civilizac6es superiores” (Asia menor, Arabia, Asia oriental). Notavelmente ilustrada pelas audacias provocadoras de Leo Frobenius, um dos primeiros historiadores-antropélogos a pretender “reabilitar” as civilizagOes afticanas, a tese difusionista invadiu todas as 4reas culturais do continente e, depois de ter querido tudo gerir (origem e formagao dos Estados, histéria da arte, evolucao das religides...), continua ainda agarrada a certos dominios da historia africana, em particular & historia das técnicas e das civilizacdes materiais. B. _O imbréglio do Egito faraénico Ha jé cerca de duzentos anos que a questo das relacdes entre o Egito faraénico ¢ a Africa Negra se tornou um dos problemas mais tratados na historiografia africana e um dos pontos de fixaco privilegiados pela memoria negro-africana. Mas contrariamente as idéias difundidas na opinio corrente, este debate é muito mais complicado do que pode parecer a principio. Porque ngo se trata apenas de saber se estes egipcios eram negros, questo que se podia de resto decompor infinitamente: quais egipcios (em funcdo de critérios sociopoliticos ou de localizagGes geogrificas) e em que épocas? E também necessério determinar se a civilizagdo (ou as civilizacées sucessivas?) do Egito fara6nico era “negro-afticana”, interrogar-se a respeito da pertinéncia da aplicacao da identidade “negro-africana” a uma determinada civilizacio € extrair, se tal for necessério, todas as conseqiiéncias epistemolégicas ¢ historiogrdficas de cardter “negro-africano” do Egito faraénico. Aqui, bastard reunir e impor alguma ordem as pecas esparsas de um “dossié” que continua a ser polémico e que requer mais do que nunca - uma vez que a necesséria polémica jé se realizou - um trabalho paciente de reconstituigao histérica. 1. O veredito incerto das fontes Esta querela apéia-se principalmente sobre duas séries de fontes cujo tratamento, & medida que os especialistas as consideram de perto, se revela mais delicado € com contribuigdes menos certas do que se pensara durante muito tempo. A literatura grega Hé em primeiro lugar os textos dos viajantes e historiadores gregos. Mais particularmente os de Herédoto e de Diodoro da Sicilia. Ao ler estas narrativas, deve ter-se bem presente que se trata de textos cujo contetido é constantemente ambivalente, misturando o verdadeiro com o mitico, o maravilhoso com o banal, a objetividade e a imparcialidade com os preconceitos mais grosseiros. As Histérias de Herédoto, o texto mais conhecido e mais discutido, confirmam de fato estas apreciagdes que sao validas mutatis mutandis para as » demais fontes. No ativo de Herddoto, é necessario lembrar que - entre outros juizes — um dos melhores tradutores franceses (que, todavia, em questdes delicadas referentes a cor, nao escapa a critica), Ph. E. Legrand, vé nele um 53 aaa “espirito curioso”, “um bom observador”, “um inquiridor consciencioso € desconfiado”: Nos fragmentos narratives, tal como nas informag6es etnograficas, as formulas do tipo “pelo que dizem, pelo que dizem os Corintios, 05 Lésbi ete.” constituem em minha opinigo aurénticas referéncias, que devem ser levadas a sério. A diferenga, tantas vezes assinalada, entre o que é contado a partir de um determinado informador e 0 que é contado seguindo a ligo de outro, ou mais geralmente entre o que reproduz uma narrativa ouvida ¢ co que exprime uma conjectura pessoal, nao ¢ menos sincero do que aquela respeitante a coisas vistas e a coisas conhecidas por ouvir dizer. (Ph. E. Legrand, Hérodote. Introduction. Notice préliminaire sur Ia vie et la personnalité d’Hérodote, Paris, Les Belles Lettres, 1932, p. 66) Se ele se dé conta de “lacunas e de negligéncias na informagao visual de Herédoto”, estas nfo se poderiam aplicar, como é evidente, a fendmenos tao visiveis e to macigos como a cor das pessoas. Mas os escritos consagrados ao Egito nfo se limitam apenias as coisas vistas. Eles referem-se também a coisas ouvidas e reproduzem tradic6es orais nas quais a parte do mito, da lenda ou ‘mais simplesmente da ficc4o pode revelar-se substancial: ‘A mais antiga das narrativas de historiador ou do historiando, na sua tentativa para reconstituir a histéria inteira do Egito, obteve um resultado duplo e ‘paradoxal. Livro II das Histérias (no qual se acham reunidas a maior parte ddas informagGes sobre o Egito) traz até nés os mais antigos nomes da historia humana, de resto verificéveis em outras variantes. [...] Mas ao mesmo tempo 0 Livro II desta primeira Historia € a primeira recolha de contos populares. Ao primeiro historiando, “desejando saber” em primeira mao e informando-se no lugar [...], 2 narragao oral respondeu ironicamente recorrendo a fice6es. [/-] Que o historiando inicial, aventurado na narracdo, tenha nela encontrado fa ficeZo, no é um acidente fortuito; mesmo isso pertence ao proceso fandamemral. As “fontes” de Herédoto so ficticias, malgrado a sua vontade historiadora de procurar “informar-se”, porque a fic¢lo pertence ao process da narragao primitiva em vias de se fazer, (J.P Faye, Théorie du récit, Introduction aux “Langages totalitairs”, Paris, Hermann, 1972, pp. 111-12) Enfim, a narrativa de Herédoto e de todos os demais nunca sao fornecidas ‘em estado bruto. Sao 0 resultado de uma constru¢ona qual se insinua sempre, em doses as vezes dificeis de por em evidéncia, um certo ntimero de preconceitos ou até de “mentiras”. Foi possivel, a propésito do Egito, censurar ao “pai da hist6ria” tanto suas “generalizagdes abusivas” como as “particularizagoes abusivas” dando a este pais todos os aspectos de uma “utopia real” (Ch. Froidefond). Mais precisamente, numa reflexdo historiografica consagrada a maneira como Herédoto se representou e representou 0 Outro, em particular 08 citas, estrangeiros absolutos do ponto de vista dos gregos porque némades, ignorando o trabalho dos campos, privados de casas ¢ de cidades, Francois -54- \ ‘Hartog mostrou bem que “os egipcios e os citas [...] formam-uma espécie de ‘@sal” e constituem duas variagbes extremas sobre o tema tinico do Outro: De acordo com uma tradicéo, Pitégoras, assim como Sélon, mas também Thales, fizeram a viagem ao Egito, uma vez na sua vida, para se instruir junto dos egipcios, os homens mais antigos do mundo, ou em todo 0 caso os ‘mais antigos depois dos frfgios; a sua antiguidade assegura-thes assim um acréscimo de saber em relago as populagdes mais novas: Pitdgoras é aluno dos sacerdotes egipcios. Mas a partir do momento em que se trata dos getos, a situagao inverte-se e Pitdgoras aparece como o mestre, em todos os sentidos dotermo... Indo do sul para norte, produz-se assim uma degradacao do saber; degradacao que se explica em parte pela idade das populagdes: se os egipcios so 0s mais “velhos”, 0s citas s4o quanto a eles os mais novos entre os homens, tem apenas mil anos. (F Hartog, Le miroir d'Hérodote. Essai sur la représentation de Vautre, Patis, Gallimard, Bibliotheque des histoires, 1980, p. 103) Entre as muito numerosas anotagdes relativas ao Egito nas Histérias, serdo retidas apenas algumas onde so tratadas as caracteristicas fisicas dos egipcios, precisando contudo, como salienta muito justamente Christian Froidefond, que “o espfrito da sua antropologia [assenta] em conceder menos importancia ao fisico, aparentemente ligado ao clima, do que aos usos € costumes” ¢ que, mais geralmente, “os etnégrafos ionianos [jénicos] distinguem os grupos humanos mais pela ‘cultura’ e por todas as caracteristicas fisicas ou morais que fazem nascer no homem o seu meio do que pela raca e pela hereditariedade”. Manifestamente, [..] os colquidianos sao de origem egipcia, O que digo era ‘minha opinio pessoal antes dea ter ouvido ser exprimida por outros; quando ‘me interessei seriamente por esta questio, interroguei homens dos dois povos; e achei que os colquidianos possufam mais lembranga dos egipcios do que os egipcios dos colquidianos; mas os egipcios disseram-me que em sua opiniao os colquidianos descendiam dos soldados de Sesdstris. Eu proprio 0 tinha conjeturado, levando em conta estes indicios: primeiro porque tinham a pele negra e 0s cabelos crespos (o que pata dizer a verdade nfo prova nada pois ha ainda outros povos nesta situagdo); em seguida, e com mais autoridade, pela razio de que, entre todos os homens, s6 0s colquidianos, os egipcios e os etiopes praticam a circuncisdo desde a sua origem. Os fenfcios €0s sitios da Palestina reconhecem eles préprios ter aprendido esta maneira de fazer com os egipcios; os sirios que moram ng tegido do rio Termodon € do Parténios ¢ os mactées, que s40 seus vizinhos, dizem ter apendido recentemente dos colquidianos. Esses s4o os tinicos homens que praticam a circuncisio, e podemos constatar que o fazem da mesma maneira que os egipcios. (Herédoto, Hist6rias, I, 104) Em Diodoro de Sicilia (ca. 90-30 a.C.), cuja viagem ao Egito se realizou nos anos 60-56 a.C., sao a historia e a antropologia social e cultural, mais \ do que fisica, que determinam a ligacao da ci negro-africano: lizagdo egipcia com 0 mundo Os etiopes afirmam que os egipcios si colonos oriundos do seu grupo e que esta colénia foi orientada por Osiris. Por isso, de qualquer maneira, dizem éles, o Egito atual era um mare ndo uma terra quando da constituido original do universo, mas, mais tarde, 0 Nilo, carregando durante as suas cheias 0 enxurro proveniente da Etiépia, acumulou progressivamente aluvides. E a origem aluvionar da totalidade do seu pafs seria claramente demonstrada por ‘aquilo que se verifica na embocadura do Nilo; como, todos os anos, com efeito, novo enxurto se concentra regularmente nas bocas do tio, vém-se aluvices empurrar 0 mar e a terra aumentar a sua superficie. No que se refere aos costumes dos egipcios, pretendem eles que so na maior parte etfopes, tendo 08 colonos conservado as antigas maneiras de fazer. Por exemplo, acrenca de que os reis so deuses, o extremo cuidado consagrado aos ritos funeririos ‘muitas outras priticas deste geneto so, ao que eles dizem, usos etfopes, tal como as formas das estétuas ¢ 0s tipos de escrita so etfopes; os egipcios, com efeito, possuem maneiras particulares de escrita: um, designado vulgar, é aprendido por toda a gente, eo outro, nomeado sagrado, é, entre os egipcios, Conhecido apenas pelos sacerdotes, que o aprenderam dos seus pais, como ‘uma coisa a respeito da qual se néo deve falar; ora entre 0s etfopes, toda a gente, sem excegao, utiliza estes signos, Mais ainda, 0s colégios dos sacerdotes Possuem, com pouca diferenca, a mesma organizacdo entre os dois povos: fo feitas purificagées por todos quantos estao encarregados dos cultos dos deuses, estdo barbeados da mesma maneira, e usam 0 mesmo vestuério ¢ 0 tipo de cetro em forma de charrua, que possum também os reis, que trazem altos bonés de feltro, sendo o alto acabaco em bossa e cercados pelas voltas da serpente que eles chamam dspide; esta decoracio parece indicar que aqueles ‘que ousarao atacar © rei virdo a sucumbir sob as mordeduras mortais. Os etiopes dizem ainda muitas outras coisas sobre a sua propria antiguidade e sobre a sua coldnia egipcia, mas a sua mencéo no se impoe. (Diodoro de Sicilia, Bibliothéque historique, Livre III, 2-7, traducao Bibiane Bommelaer, Paris, Les Belles Lettres, 1989) Estas duas séries de textos so apenas exemplos numa lista notavelmente extensa, em que 0s autores se influenciam uns aos outros ¢, as vezes, se copiam a algumas décadas ou séculos de distdncia, construindo desta maneira uma auténtica “miragem”, uma “idealizagao” (Ch. Froidefond) freqiientemente contraditéria, que vai dominar a literatura da Grécia antiga. Um bom marcador sao aqui as pecas tragicas de Esquilo (ca. 525-456 a.C.) que esté paraa tragédia como Herédoto para a histéria. A sua peca Os Suplicantes foi a primeira Tepresentagao dos egipcios e uma das primeiras representacdes de estrangeiros num palco grego. Pode-se perguntar em que medida os pormenores concretos atribufdos por Esquilo aos egipcios traduzem realmente o conhecimento dos egipcios ou exprimem, pelo contririo, a idéia que os gregos faziam dos “barbaros”, quer dizer dos estrangeiros em geral. Deve, na verdade, reter-se 256= 7 a primeira hipétese: com efeito, Os Suplicantes fazem varias vezes referencia 0s seus rostos “queimados e enegrecidos pelo sol do Nilo” e, em varios momentos, é a referéncia a esta cor negra que designa as Danaides. Esta referéncia insistente a cor da pele ~ uma maneira cémoda de identificagdo e de especificacdo entre outras - pode levar contudo certos autores a interpretacoes anacrénicas nas quais se atribuem a escritores, separados de nés por vinte sécullos, os preconceitos ligados a cor da pele e caracteristicos do racismo da época moderna e contemporanea: ‘Oque os assinala (aos egipcios) em primeiro lugar, e por diferentes vezes, 6 cor da pele. [..] Nao é de duvidar que a cor da pele tenha constituido por si 6, para Esquilo e os seus contemporaneos, um critério determinante. Por outro lado, ninguém pensaria em estabelecer uma diferenca entre pigmentacio da pele e uma simples tisnadela. Para Danaos, os egipcios so simplesmente nnegros como a noite, Pode por issoavangar-se que, na imagina¢Zo dos gregos do século V, dos quais Esquilo é, no que se refere a este ponto, o intérprete, 68 egipcios nao estavam longe de ocupar o lugar que ocupam nos nossos dias 8 negros na imaginaco popular. (Ch. Froidefond. 1970, p. 88) A iconografia egipcia Outra fonte, que entrou tardiamente no territério do historiador, é formada pelas numerosas iconografias que cada um, seguindo 0 seu ponto de vista, interpretava a sua maneira, assim como as miiltiplas estétuas cujo estado de degradacio se presta a todas as especulacées possiveis. Foi Jean Francois Champollion que, tendo sido um dos primeiros a iniciar esta corrente, deixou nos principios do século XIX uma das descricGes mais conhecidas dos habitantes do Egito antigo (documento 9). 2. A racializagdo da questao egipcia No momento em que Jean-Francois Champollion escrevia, o conceito de “raga” e todos os preconceitos racistas que lhe esto habitualmente associados tinham comesado a invadir os estudos egipcios. A hist6ria desta derivacdo epis- temologica e ideol6gica ultrapassa largamente o quadro da hist6ria africana para ser evocada aqui em pormenor. Os estudos de Martin Bernal, que suscitaram tanto interesse como polémicas, mostram apesar de tudo que, paralelamente 4 hist6ria intelectual propria do Ocidente, a evolucao do continente africano entre os séculos XV ¢ XIX nao foi estranha ao “embranquecimento” que o Egito iria sofrer de maneira cada vez mais insidiosa: ‘Outra maneira de considerar estas mudangas (nos estudos egipcios) consiste em levar em linha de conta o fato de que, depois do desenvolvimento da escra- vvatuura dos negros e do racismo, os pensadores europeus estavam preacupados em manter os negros da Africa to longe quanto possivel da civilizaco euro- Bi péia. Enquanto os homens e as mulheres da Idade Média e do Renascimento no tinham certezas acerca da cor dos egipcios, os (...] egiptéfilos tiveram tendéncia a vé-los como brancos. Depois, os helenomaniacos do principio do séeulo XIX comecaram a duvidar da brancura dos egipcios e a negar que eles tivessem sido civilizados. Foi no final do século XIX, quando o Egito foi despojado da sua reputacio filoséfica, que as suas afinidades com a Africa puderam ser restabelecidas. (M. Bernal, 1987, p. 30) De fato, duas correntes historiograficas tinham dominado 0 conhecimento do Egito antigo que, em conjunto, tinham cortado 0 Egito do continente africano para o integrar na Asia ocidental e no mundo mediterranico € que tinham, além disso, se apropriado deste periodo, considerado glorioso, da historia da humanidade: - ahistoriografia européia, ao estabelecer os supostos lagos de continui- dade entre o Egito antigo, a “Antiguidade classica” e a Europa, forne- cendo o primeiro, de certa maneira, a “pré-historia” da “civilizacéo” e dos “grandes séculos” que iam expandir-se nos dois outros; ~ a historiografia drabo-muculmana, ainda mal conhecida, hesitando entre ignorar no essencial um periodo e populacées dominadas pelas trevas do paganismo e recuperar uma idade acerca da qual monumentos prestigiosos testemunhavam a grandeza. Entre os europeus, uma das primeiras tentativas notaveis visando ligar © Egito antigo ao resto do continente afticano, foi a de Charles de Brosses, presidente do parlamento da Borgonha, membro da Academia das Inscrices € Belas Letras e um dos fundadores da antropologia na Franca. Este, em 1760, publicou um livro cujo titulo resumia por si sé a sua tese: Du culte des diewx fatiches ou paralléle de la religion de l'Egypte avec la religion de la Nigritie [Do culto dos deuses feiticos ou comparacao entre a religido do Egito e a religiio da Negricia], quer dizer a Africa Negra. Comparando os textos gregos ¢ latinos com as narrativas dos viajantes da época moderna, 0 livro foi apresentado em 1757 a ilustre Academia onde foi alvo de criticas muito violentas obrigando o seu audacioso autor a recuperar 0 manuscrito e a publicd-lo por sua propria conta em Amsterda. Documento 9: Os povos do Egito faraénico No vale propriamente dito de Biban el-Muluk (Tebas oeste), admiramos, como todos 98 viajantes que nos precederam, a surpreendente frescura das pinturas e a finura das esculturas de varios tumulos. Mandei desenhar a série dos povos figurando em baixo-relevo. Tinha acreditado a principio, reagindo as c6pias destes baixos-relevos Publicados na Inglaterra, que estes povos, de racas muito diferentes, conduzidos pelo deus Hérus, portando a vara pastoral, eram realmente nacdes submetidas a0cetro dos faraés; o estudo das legendas levou-me a conhecer que este quadro__ possui uma significacao muito geral. Pertence @ 3" hora do dia, aquela em que o | sol comeca a fazer sentir 0 total ardor dos seus raios e aquece todas as regices habitadas do nosso hemisfério. Quis-se representar seguindo a propria legenda, os 25 habitantes do Egito e os das regiées estrangeiras. Temos pois aqui debaixo dos olhos a imagem das diferentes racas de homens conhecidas pelos egipcios e aprendemor | ‘20 mesmo tempo as grandes divisées geograficas bu etnografices exrabelecides nesta época recuada. Os homens guiados pelo pastor dos povos, Horus, pertencem | a quatro familias muito distintas. A primeira, a mais Proxima do deus, € de cor vermelho escura, de estatura muito bem Proporcionada: fisionomia suave, nariz igeiramente aquilino, longa cabeleira entrangada, vestido de branco; as legendas designam esta espécie pelo nome de Rét-enéne-Réme, a raca dos homens, os homens por exceléncia, quer dizer 0s egipcios. N3o pode haver a minima incertece No que se refere a raca daquele que vera seguir: pertence & raga dos negron sae 840 designados pelo nome ‘geral de Nahasi. Osequinte apresenta um aspecto muito diferente: pele cor da carne, puxando para o amarelo, ou epiderme amorenada, nariz fortemente aquilino, barba preta abundantee terminada em ponta, vestudrio curto de cores variadas; estes carregam o nome de Namu. Enfim, o ultimo tem a or da pele que nés designaremos como cor da carne, oli pele branca do matic mais delicado, 0 nariz reto ou ligeiramente arqueado, os olhos az barba loura ou ruiva, estatura elevada e muito esguia, vestido com pele de boi conservando ainda 0 pélo, auténtico selvagem tatuado em diversas Partes do corpo: da-se-lhe © nome de Tamhu. Dei-me pressa em procurar 0 quadro correspondente a este nos outros tumulos reais, € tendo-o com efeito encontrado em varios, as var lagdes que ai observei convenceram-me plenamente de que tinham querido representar aqui os habitantes das quatro partes do mundo, de acordo com o. antigo sistema egipcio, a saber: 1°- os habitantes do Egito, por si sé, formavam uma parte do mundo, conforme o muito | modesto uso das velhas populagées; 2°- os habitantes caracteristicos da Africa, os Degros: 3° 0s asiéticos; 4°- enfim (e tenho vergonha de o dizer, jé que a nossa raca € a ultima e a mais selvagem da série) os europeus que, nestas épocas recuadas, sejamos justos, nao faziam uma figura muito bonita neste mundo. € necessério incluir aqui todos os povos de raca loura e de pele branca habitando nao s6 a Europa, mas também a Asia, seu ponto de partida. Fonte: 11. Champollion-Figeac, Egypte ancienne, Pars, Didot, 1630, pp. 30°31 Se, até o fim do século XVIII, a racializagdo dos estudos egipcios foi insidiosa mantendo-se limitada ao circulo reduzido dos especialistas ¢ dos conhecedores, deve-se a vontade de denunciar esta tendéncia, encarnada por Constantin-Francois de Volney, ter trazido o debate para a praca publica. Inscrito numa conjuntura ideol6gica ¢ intelectual particular, 0 corte representado por Volney ¢ significativo de varios pontos de vista, porque poe em evidéncia os deslizes e as cegueiras anteriores, desmontando-lhes os mecanismos ¢ dando disso conta, numa visdo global da histéria do mundo tal como era conhecida nesta época, ao mesmo tempo que se esforca por fixar as linhas de forca de outras hist6rias. O historiador Volney, cuja obra est ainda para ser descoberta, ndo era ~ para recorrer aos termos de hoje — um “especialista”, nem sequer um conhecedor das coisas da Africa. Mas aliava ele, com uma eficdcia e um prazer raras vezes igualados, uma cultura classica perfeita, um raro dominio das fontes hebraicas, gregas ¢ latinas, uma erudicdo jubilante, a paixdo da descoberta apoiada num sentido agudo da observagio, a alegria de ensinar e de partilhar © seu saber, Era também um homem do século das luzes, amante da liberdade ¢visceralmente oposto a todas as formas de opressao, em particular ao tréfico dos negros. E preciso acompanhar de perto esta exposigdo rigorosa, de uma perfeita probidade, de uma forca e de uma clareza implacéveis, porque todos -59- os debates ulteriores dela sairam. Armado com o seu conhecimento das fontes antigas, Volney esforca-se por comparar a geografia humana do Egito a partir destas fontes com aquela que se apoiaria na observacao direta das populacdes do seu tempo. A sua maneira de fazer apoiava-se em primeiro lugar num postulado respeitante a diversidade humana inevitvel de todos os Estados: No meio das revolugdes que nfo cessaram de agitar a fortuna dos povos, ha ‘poucos pafses que tenham conservado puros e sem mistura os seus habitantes naturais ¢ primitivos. Em todos os lugares a mesma cupidez, que leva 05 individuos a invadir as suas propriedades respectivas, empurrou as nagdes ‘umas contra as outras: o resultado deste choque de interesses e de forcas foi a introducao nos Estados de um estrangeiro vencedor, o qual, ora usurpador insolente, despojou a nago vencida do dominio que a natureza Ihe tinha concedido; ora conquistador mais timico ou mais cvilizado, se tina contentado em participar nas vantagens que o seu solo natal Ihe tinha recusado. Desta maneira se foram instalando nos Estados racas diversas de habitantes, que algumas vezes, aproximando-se em costumes ¢ interesses, misturaram 0 seu sangue; mas que, na maior parte dos casos, divididas por preconceitos politicos e religiosos, viveram concentradas no mesmo solo sem jamais se confundir. No primeiro caso, as racas, perdendo sob o efeito da sua mistura os caracteres que as distinguiam formaram um povo homogéneo onde deixaram de se perceber 105 traces da revoluco. No segundo momento, mantendo-se distintos, as suas diferencas perpetuadas tornaram-se um monumento que sobreviveu a0s séculos, e que pode, em alguns casos, substituir o silencio da histéria. (C.F. de Volney, Voyage en Egypte et en Syrie pendant les années 1783, 1784 et 1785, ed. de 1825, pp. 59-60) Operando a maneira de Herédoto, pelo qual confessava a maior admiracao como historiador, Volney comprometeu-se em descrever os grupos humanos que encontrou, em particular os coptas entre os quais tinha estanciado varios meses para aprender a lingua drabe. Esta descricao apresentava a particulari- dade de ser simultaneamente etnografica e histérica, muito eritica a respeito dos preconceitos e dos mitos que a ignorancia ou o célculo obscuro tinham deixado acumular. O Egito do seu tempo inclufa a seus olhos “quatro racas principais de habitantes”: os coptas, os arabes, os turcos e “uma quarta e ultima raca [cujos] individuos, todos nascidos junto do Caucaso, se distinguem dos outros habitantes pela cor loura dos cabelos, estranha aos naturais do Egito”. No primeiro grupo, os coptas, “mistura de egipcios, de persas e sobretudo de ‘gregos que, sob os Prolomeu e os Constantino, possuiram o Egito durante tanto tempo”, ele ia descobrir os sobreviventes dos mais antigos egipcios. Os seus argumentos eram em primeiro lugar de ordem lingitistica: ) Pretende-se que 0 nome de coptas Ihes vem da cidade de Coptos, onde eles se refugiaram, a0 que se diz durante a perseguicao dos gregos; mas creio-lhes uma origem mais antiga. © termo rabe Qubti, um copta, parece-me uma ape alteragao evidente do grego Ai-gupti-os, um egipcio: porque se deve observar que j era pronunciado u entre os antigos gregos, e que os arabes no tendo ¢ ‘nem ga diante [das vogais] ao u, nem letra p, substitufam Sempre estas letras or q ¢ b: os coptas so propriamente egipcios. (ibid., pp. 64-65) Vem depois os argumentos extrafdos da observacao direta ¢ reforgada pela comparacdo com as fontes antigas: Hé um fato singular que torna esta acepcao [que os coptas sao os descendentes dos antigos egipcios] mais provavel. Ao considerar o rosto de muitos individuos desta raga, achei um cardter particular que fixou a minha atengo. Todos tém um tom de pele amarelado e fumoso, que no é nem grego nem drabe; todos témo rosto bochechudo, o olho inchado, o nariz achatado, 0 labio grosso; numa Palavra, um auténtico rosto de mulato. Estava tentado a atribut-lo ao clima, quando, tendo ido visitar a Esfinge, o seu aspecto me deu a chave do enigma. ‘Vendo esta cabega caracterizada de negro em todos 0s seus tragos, lembrei-me da novivel passagem de Herédoto, em que este diz: “Para mim, considero que 08 coptas s4o uma colonia dos egipcios, porque como eles, tém a pele negra e os cabelos crespos"; quer dizer, que os antigos egipcios eram auténticos negros da espécie de todos os naturais da Africa; a partir disso explica-se como 0 seu sangue, aliado ha vérios séculos ao dos romanos e dos gregos, deve ter perdido a intensidade da sua primeira cor, conservando contudo a marca do seu ‘molde original. Pode-se até dar a esta observaco uma extensdo muito geral, ¢ anunciar o principio de que a fisionomia é uma espécie de monumento préprio. fem muitos casos para constatar ou esclarecer os testemunhos da historia a respeito das origens dos povos. (ibid., pp. 65-67) Nao contente em desenvolver a sua propria reflexao, cuja formulacdo em 1787 Ihe tinha “parecido mais nova e picante do que assentando na verdade”, Volney encontrou uma confirmacio das suas préprias conclus6es seja em certos Viajantes da época que se tinham empenhado em desenhar a Esfinge tal como a tinham visto, entre os quais o dinamarqués Friderik Ludwig Norden (Drawings of some ruins and colossal statues of Thebes in Egypt, 1741; Voyage d’Fgypte et de Nubie, 1755) e Louis-Frangois Cassas (Voyage pittoresque de la Syrie, de la Phénicie, de la Palestine et de la Basse-Egypte, ano VII), seja nos sébios contemporaneos como © alemao Johann Friedrich Blumenbach, junto do qual encontrou “fatos em si préprios tao picantes como decisivos”. Tendo dissecado miimias egipcias, 0 famoso professor de Gétingen tinha escrito que elas revelavam a existéncia de “trés ragas de homens”: “a raca etfope, caracterizada pelos zigomas elevados, 05 labios grossos, o nariz largo e achatado, as pupilas salientes” e largamente idéntica aos coptas; uma “raga” apresentando as caracteristicas fisicas dos indianos (da india) e uma terceira resultando dos cruzamentos entre as duas precedentes. Enfim, dando comeco & reflexdo que iria alargar na sua Meditagiio sobre as revolugdes dos impérios e a decadéncia das civilizagdes, Volney empenhou-se em -6h= explicar os preconceitos dos seus contemporaneos sobre 0 povoamento do Egito faraGnico pela nova relagdo de forcas estabelecida entre os europeus € 08 africanos: sl 0 fato que ele [0 Egito] oferece a historia permite um grande nimero de reflexdes @ filosofia. Que tema de meditagio, ver a barbérie e a ignorincia atual dos coptas, resultantes da alianga do genio profundo dos egfpcios e do espirito brilhante dos gregos; pensar que esta raga de homens negros, hoje nossos escravos ¢ objeto do nosso desprezo, é essa mesma a qual devemos as nossas artes, as nossas ciéncias e até o uso da palavra; imaginar enfim {que foi no scio dos povos que se dizem os maiores amigos da liberdade e da hhumanidade, que foi sancionada a mais barbara das escravaturas, ¢ enunciado co problema de saber se os homens negros possuem uma inteligéncia da espécie dos brancos. (ibid, p. 68) © “momento Volney” parece bem ter sido decisivo porque, desde entio, duas correntes antagonistas, mas ambas racialistas, iam desenvolver- se paralelamente, de preferéncia a enfrentar-se, nos estudos ¢ nas reflexdes relativas ao Egito antigo. A primeira, silenciosa ou abertamente anti-Volney, defendia mais ou menos aproximadamente a idéia de que os antigos egipcios 86 podiam ter sido brancos, teoria exprimida com a maior determinac4o por Jacques-Joseph Champollion-Figeac, itmao e editor pouco escrupuloso do decifrador dos hieréglifos, cujos textos ele modificou constantemente quando nao Ihe convinham: A idéia segundo a qual a antiga populagio do Egito pertencia & raga negra africana é um erro que foi ha muito tempo adotado como uma verdade. [ul E, com efeito, hoje reconhecido que os habitantes da Africa pertencem a trés racas, em todos os tempos distintas umas das outras: 1° - os negros propriamente ditos, no centro ¢ a oeste; 2° - 0s cafres na costa oriental, que possuem um angulo facial menos obtuso que o dos negros, 0 nariz elevado, ‘mas 0s lébios grossos e 0 cabelo crespo; 3° - os mouros, parecidos pela estatura, afisionomia e os cabelos as nagdes melhor constitufdas da Europa e da Asia ocidental, e dela diferindo apenas pela cor da pele que tostada pelo clima. £ a esta tiltima raga que pertence a antiga populacéo do Egito, «quer dizer a raga branca. (Jacques-Joseph Champollion-Figeac, Egypte ancienne, Paris, Didot, 1839, pp. 26-27) Face a esta corrente, muito largamente dominante nos cfrculos e redes académicas da egiptologia, levantava-se outra que defendia com a mesma paixio atese de um Egito antigo negro. Com efeito, quase imediatamente apés terem sido emitidas por Volney, estas certezas, convicg6es, hipdteses e probabilidades, foram retomadas pelos homens da ciéncia e das letras negros, primeiro nos Estados Unidos da América, depois na Africa. Mas este investimento produziu efeitos ambfguos. Por um lado, para combater o racismo ou 0 racialismo dos seus adversarios, os intelectuais negros recuperaram por sua conta o conceito =6B=

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