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CRNA Dados de Gatelogecdo na Publicagho (CIF) Internacional (Camara Bresilela do Livro, SP, Brasil} Hardman, Freacises Foot, 1952- | ‘Trem Fantasma : a modernidade na sclya / Pranciaco| Foot Hardman. -- S30 Paulo i Companhia das Letras, 1988. Bibliografia. ISBN B5-85095-71-7 1, émazGnia - Colonizacéo 2. Eatrada de Ferro Madeiva-Memoré - Histéria 3. Tecnologia - Aspactos gociais ~ Brasil I. Titulo, II. Tieulos A modernida~ de ne selva. cnD-385-098L1 ~303.4830981 -981-1 indices para catslogo aislamstico: 1. AmarSnia : Modernizacdo ; Historia 981.1 2, Bragil : Tecnologia : Aspectos aociais : Sociologia 303.4630981 2 3, Betrada de Ferro Madeire-Mamoré : Historia 38509811 Copyright © Francisco Foot Hardman Capa: Ettore Bottini Sobre Como os séculos passam na noite, éleo de William H. Foster Revisio: Mério Vilela Filho Licio Mesquita Filho Marizilda Lourengo 21200043917 1988 Editora Schwarcz Ltda. Rua Barra Funda, 296 01152—Sao Paulo—SP Fones: (O11) 825-5286 e 825-6498 CAPITULO 4 VERTIGEM DO VAZIO Poder & técnica na recriacao do paraiso 1 “LJ tudo espera o ingresso numa danga que ne- nhuma Isadora jamais dangou deste lado do mundo, terceiro mundo global do homem sem fronteiras, chapi- nhador de histéria, véspera de si mesmo.” Jélio Cort4zar, Prosa do observatério “Era assim que & noite as ruas do Tijuco tornavam- se melancdlicas e silenciosas como ligubres galerias de um vasto cemitério: apenas se ouviam o tinit das armas e o andar compassado e mondétono dos soldados que rondavam.” Joaquim Felicio dos Santos, Memorias do Distrito Diamantino “OQ sol foi dando voltas sobre as coisas e thes devol- veu suas formas. A terra em rufnas estava em sua frente, vazia. O calor escaldava seu corpo. Seus olhos apenas se moviam: saltavam de uma recordagao a outta, des- figurando o presente. De repente seu coragao se detinha e parecia que também se detinham o tempo e 0 ar da vida. ‘Contanto que nao seja uma nova noite’, pensava ele, porque tinha medo das noites que lhe enchiam de fan- tasmas a escuriddo. De encerrar-se com seus fantasmas. Disso tinha medo.” Juan Rulfo, Pedro Pdramo Imagem do Thesouro da Juventude: sobre um fundo azula- do, o céu coberto de estrelas, planetas, o Sol em destaque com seus feixes de luz atravessando a noite cédsmica e as nuvens; 97 abaixo a Terra, entre campos e povoados esparsos, sua superfi- cie sendo suficientemente ampla para se ver a curvatura dese- nhando-se no horizonte; e, entéo, vindo de nado-sei-onde, dez trens a vapor assomam nessa gravura imprimindo-lhe definitiva- mente a magia de uma época, cada um com seu comboio de cinco vagdes, o carro conduzindo carvio e sem dtivida um foguista desconhecido, as locomotivas cldssicas tipo maria-fumaga, com maquinistas por certo indémitos e tenazes, dez linhas férreas, duas pontes e sé depois as alturas, as alturas infinitas, os trilhos desaparecendo no espaco celeste, partindo de estagdes sem nome com destino aos planetas do sistema solar (excegéo a Plutao, ainda nao descoberto), ao Sol e 4 Lua, bem como 4 estrela “mais préxima” (v. anexo iconografico), Para nés, ao apreciarmos esse desenho aparentemente in- génuo, mas poderoso em agugar todo o imaginério infantil, fica uma sensacao de estranhamento ante o recurso did4tico, ante tal representacao da medida, nao obstante ser ela possivelmente a expressfo mais comum dos anseios cdsmicos de uma época, 0 espetaculo tecnolégico mais herdico de que se dispunha para en- frentar os gigantes do tempo e do espaco, de tal modo que deste desejo ardente de conquistar o absoluto resultasse ao menos uma escala de valores, um niimero capaz de iludir nosso medo do infinito, j4 que esses trens fantdsticos nao se dirigem meramente a um ponto de chegada, mas se dedicam acima de tudo 4 traves- sia do tempo. Por isso, pouco importa a plataforma de embarque; e os yagdes nfo carregam letreiro de localidades de saida ou de destino, mas um programa espacial: 110 anos a Merctrio, 177 anos ao Sol, 50 anos a Vénus, 76 a Matte (tinico comboio com seis vag6es), 740 anos a Jupiter, 40 milhGes de anos A estrela mais préxima, 1470 anos a Saturno, 3160 anos a Urano, 5055 a Netuno e, esperanca dos homens mortais, 165 dias & Lua. Veja- mos o texto que acompanha esse pequeno delirio visual: Esta estampa ajuda-nos a conceber o que o nosso espirito difi- cilmente pode compreender: a maravilhosa imensidade do Uni- verso e as distancias incomensurdveis do espago. Um trem ex- presso, correndo com a velocidade de 1600 metros por minuto, poderia dar a volta ao mundo em menos de vinte dias, se hou- vesse maneira de fazer diretamente essa viagem e sem parar. Esses trens, que passariam diante de ndés como um relampago, 98 precisariam de 177 anos para ir da Terra ao Sol, e de 40 mi- Ihdes de anos para chegar a estrela mais préxima! Na estampa tragaram-se varias linhas férreas imaginarias, que da Terra vao até a Lua, aes planetas, ao Sol e 4 estrela que nos fica mais préxima. Os nimeros que vao impressos nos trens representam © tempo que eles levariam a chegar ao seu destino.! © fato é que essa gravura trabalha com elementos visuais pertinentes a toda uma perspectiva de representagaio iconogra- fica e literdria da ferrovia e de seus elementos. Estamos, ainda uma vez, diante de efeitos fisicos e espirituais associados ao conceito de sublime, tal como Edmund Burke, em seu ensaio filoséfico sobre o sublime e o belo (1757-9), ja enunciava, ao estudar a natureza desses objetos e situagdes capazes de produ- zir um estado especial em que se imbricam medo e prazer: a obscuridade e a solitude; a vastidao e o infinito; o imprevisto e a intermiténcia. Ao mesmo tempo, ao pesquisar como o sublime é produzido, fixa-se nas maneiras em que se forja o infinito artificial, enfatizando os efeitos da extensAo, sucessao e unifor- midade dos objetos, além de sublinhar a importincia das gran- des dimensSes (comprimento, altura ou profundidade) como cau- sas eficientes daquele sentimento.? Como temos visto, representagdes diversas dos espagos na modernidade tém-se debrucado sobre elementos constitutivos do sublime. Na cidade transfigurada do século XIX, as estagdes e linhas ferrovidrias, os amplos mercados e novas avenidas, os jardins botanicos, o paldcio de cristal em todas as suas réplicas foram alguns dos principais cendérios dessa procura. Estamos af no territério privilegiado do “infinito artificial” de que falava Burke. Mas a essas formas tipicamente urbanas, fundadas nos artificios inovadores de técnicas arquiteténicas, haveria que ar- ticular os espacos sombrios ainda n&éo completamente subjuge- dos aos imperativos da civilizagfio. Selvas e desertos, colénias longinquas e fronteiras por dividir: era preciso mapear a con- tento todas aquelas vastiddes, Assim € que viajantes, explora- dores, clérigos e militares vasculham o desconhecido, melhor, o semidesconhecido, deixando ali suas marcas e construindo, ao mesmo tempo, todo um arsenal de imagens da barbarie. A histéria do aparecimento da ferrovia Madeira-Mamoré passa-se justamente num desses palcos. Ensaiaremos, nas linhas 99 ,opltt) —__ que seguem, uma primeira incurséo até 14. Pelas palavras dos autores que nos conduzem, é possivel perceber, nesse transito sutil entre natureza e cultura, entre geografia ¢ histéria, entre caos selvagem e ordem nacional, o fascinio que advém do espan- to, os atrativos secretos da escuridio e do medo, a forca primi- tiva de lugares inomindveis, os sentimentos solitdrios ante a infi- nitude “natural”, a Surprésa permanente como nova rotina: reaparecem, pois, nessas visdes da Juta do homem contra a selva, aspectos da moderna apreensdio do sublime. E como se o vapor Metropolis trouxesse essa maneira de sentir da industrializada Filadélfia para a perdida Santo Anténio do Madeira; ocorre, po- rém, que uma ameaca ronda todas essas vertigens: o prazer do sublime nasce sempre do medo. A sensagéo de perigo iminente tornou-se muito forte sob os impactos da modernidade: entre um porto e outro, entre um extremo da civilizag&o e outro, homens € projetos podem simplesmente naufragar. Sinais prematuros do fracasso, tragédias que antecipam o fim da histéria: rufnas. De- salento de ndufragos, bissolas quebradas, restos de trilhos, ma- teriais em desordem, envelhecimento precoce: esté comecando a despontar, num ponto obscuro da selva amazénica, uma ferrovia fantasma, S6 de olhar para ela incomoda: pois jd carrega em si as marcas da violéncia contra os que desterrou; das ilusdes dos que nela creram; da paisagem desolada a sua volta.* © engenheiro Euclides da Cunha esteve na regifo amazé- nica entre 1904 e 1905, como chefe da Comissa@o de Reconheci- mento do Alto Purus. Esta experiéncia foi marcante na fase final de sua vida. Planejava converter seus escritos amazGnicos numa obra ampla, que intitularia Vim paraiso perdido. Apesar de in- completos, esses ensaios reunidos postumamente formam um con- junto dos mais expressivos. O subiitulo dado 4 primeira parte possui cardéter emblematico em relagao 4s formas de representar presentes no género dos viajantes: “Amaz6nia: terra sem histéria’”’.* Desde pelo menos a Viagem filosdfica do naturalista e escri- tor Alexandre Rodrigues Ferreira, no final do século XVITI, a Amaz6nia vinha sendo construida como um mundo inacabado, aquém da temporalidade hist6rica e da raz4o iluminista, imerso na forca bruta dos elementos e nos sonhos indecifrdveis de ragas esquisitas. Estilos variam, mas essa clivagem persiste, atravessan- 100 do toda a literatura de viajantes do século passado. Bem prd- ximo da regio que servird de cendrio ao drama ferrovidrio, na margem direita do rio Guaporé, ergueu-se, a partir de 1776, o Forte do Principe da Beira. Num ponto terminal da fronteira oeste, cravava-se, assim, um simbolo do poder ‘politico-militar de um Estado moderno’ Cerca de um século mais tarde, aquele forte jd em ruinas testemunhava as geragdes dos construtores da estrada de ferro que outros homens e poderes, bem antes, tinham desafiado a natureza, haviam desejado assinalar os dominios da politica, da administragio estatal e dos apetrechos marciais, por pereciveis que fossem, até as distancias mdximas permitidas pelas técnicas de exploracdo dos territérios, af inclufdas as artimanhas da cartografia; haviam tentado, enfim, reconhecer, alargar e de- finir os limites da sociedade produzida sob os espectros da civi- lizagdo e das formas centralizadas de governo. Mas retornemos a Euclides. Ao idealizar o projeto de uma ferrovia transacreana, como uma “grande estrada internacional de alianga civilizadora, e de paz’, em meio a argumentos técni- cos, geopoliticos e econédmicos, elabora uma vis%o plenamente organicista, tornando o caminho de ferro corpo vivo e integrado num movimento evolutivo uniforme da sociedade em relacdo 4 natureza: Todas as grandes estradas, no evitarem os empecos que se lhes antolham transpondo as depressdes e iludindo os maiores cor- tes com os mais primitivos recursos que thes facultem um ré- pido estiramente dos irilhos, erigem-se nos primeiros tempos como verdadeiros caminhos de guerra contra o deserto, imper- feitos, selvagens. [...] Depois evolvem; e crescem, aperfeigoando os elemen- tos da sua estrutura complexa, como se fossem enormes orga- nismos vivos transfigurando-se com a prépria vida e progresso que despertam.6 Ao desenhar uma regiao sem histéria, Euclides incorpora o ritmo vital da natureza 4s coisas dos homens: “Tal é 0 rio; tal, a sua histéria: revolta, desordenada, incompleta’.? Uma espécie de eterno retorno marcado sob o signo da ruina parece rir continua- mente das faganhas do progresso: Vai-se de um a outro século na inaturdvel mesmice de reni- tentes tentativas abortadas. As impressdes dos mais hicidos 107 observadores nao se alteram, perpetuamente desenfluidas pelo espetéculo de um presente lastimavel contraposto 4 ilusdo de um passado grandioso.8 Retomando a viagem filoséfica de Alexandre Rodrigues Ferreira, Euclides remarca a impressfo de uma paisagem que se faz na devastacao, ‘“‘a imagem do progresso tipicamente amaz6nico, na- quele presuntuoso Palacio das Demarcagdes -- amplissimo, mo- numental, imponente — e coberto de sapé!”. Era um simbolo. Tudo vacilante, ef€mero, antindmico, na pa- ragem estranha onde as prdéprias cidades sfo errantes, como os homens, perpetuamente a mudarem de sitio [...].? Ea ficefio da terra sem a@ patria, “o efeito maravilhoso de uma espécie de imigracio telirica”. Terras e cidades ef€meras tor- nam-se seres animados, personagens vacilantes dessa historia por fazer, desse pais sem nome e por conquistar: A terra abandona o homem. Vai em busca de outras latitudes. E o Amazonas, nesse construir o seu verdadeiro delta em zonas tio remotas do outro hemisfério, traduz, de fato, a viagem in- cégnita de um territério em marcha, mudando-se pelos tempos adiante, sem parar um segundo, e tornando cada vez menores, num desgastamento ininterrupto, as largas superficies que atra- vessa,10 Soliddo, isolamento, abandono: auséncia de sociabilidade. Essas sfio algumas das marcas paradoxais do trabalho na selva. Ao deserever as condicdes de vida dos caucheiros do Alto Purus, Euclides acrescenta aqueles atributos, todos eles sinénimos da memoria perdida e da linguagem dispersa, o da “faina devas- tadora”: abrindo a tiros de carabinas e a golpes de machetes novas ve- redas a seus itinerdrios revoltos, e desvendando outras paragens ignoradas, onde deixariam, como ali haviam deixade, no desa- bamento dos casebres ou na figura lastimavel do aborigine sa- crificado, os tinicos frutos de suas lides tumultuarias, de cons- trutores de ruinas...11 No antoldgico texto “Judas-Asvero”, Euclides narra o sdbado de Aleluia entre os seringueires do Purus. O trabalhador esculpe 102 um Judas 4 sua imagem e semelhanga, vingando-se de si mesmo: “‘pune-se, afinal, da ambig&o maldita que o levou aquela terra {...] onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, 4 gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram”. Em seguida, amar- ra a figura demoniaca numa embarcac&o ¢ a solta na correnteza do rio; sua obra estA terminada, mas o ritual prossegue nas aguas: E a figura desgraciosa, tragica, arrepiadoramente burlesca, com os seus gestos desmanchados, de demdnio e trufo, desafiando maldigSes ¢ risadas, 14 se vai na ligubre viagem sem destino e sem fim, a descer, a descer sempre, desequilibradamente, aos rodopios, tonteando em todas as voltas, 4 mercé das corrente- zas, “de bubuia” sobre as grandes Aguas. Nao para mais. A medida que avanga, o espantalho errante vai espalhando em roda a desolag&o ¢ o terror: as aves, retran- sidas de medo, acolhem-se, mudas, ao recesso das frondes; os pesados anffbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavo- ridos por aquela sombra que ao cair das tardes ¢ ao subir das manhias se desata estirando-se, lutuosamente, pela superficie do rio; os homens correm 4s armas e numa firia recortada de espantos, fazendo o “pelo sinal’ e aperrando os gatilhos, alve- jam-no desapiedadamente.!2 Outros Judas amarrados em outros barcos juntam-se aquele numa estranha procissio, Imagem e semelhanga dos produtores de ri- quezas daquele mundo perdido, essa assembléia final reintroduz a fantasmagoria. A passagem que encerra a narrativa indica quaéo fugaz e iluséria € a possibilidade de reencontro. Os fantasmas- seringueiros esto para sempre desfigurades, perderam ha muito sua identidade. Trocaram seu trabalho por uma mascara mor- tudria; seu destino pertence agora ao rio: Os fantasmas vagabundos penetram nestes amplos recintos de Aguas mortas, rebalsadas; e estacam por momentos, Ajuntam- sé. Rodeiam-se em lentas ¢ silenciosas revistas. Misturam-se. Cruzam entio pela primeira vez os olhares imdveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitagAo revyolta os gestos paralisados e as estaturas rigidas. Ha a ilusao de um estupendo tumulto sem ruidos e de um estranho concilidbulo, agitadissimo, travando-se em segredos, num abafamento de vo- zes inaudiveis. 103 Depois, a pouco e pouco, debandam. Afastam-se; dispersam- se. E acompanhando a correnteza, que se retifica na Ultima espira dos remansos —— 1A se vaio, em filas, um a um, vagarosa- mente, processionalmente, rio abaixo, descendo...13 A essa visio aguda das linhas desviantes do progresso, / Euclides contrapde um projeto integral de civilizagao, inspirado,, também, nos melhores exemplos do neocolonialismo europeu na| Africa e Asia. A ciéncia toma o lugar, aqui, das antigas missGes religiosas. Trata-se ads um transplante ainda mais radical da! cultura: Abra-se qualquer regulamento de higiene colonial. Ressaltam Ae mais breve leitura os esforgos incompardveis das modernas mis-, sdes e 0 seu apostolado complexo que, ao revés das antigas, nao’ visam a arrebatar para a civilizagio a barbaria transfigurada, sendo transplantar, integralmente, a prdpria civilizagdo para a seio adverso e rude dos territérios barbaros.!4 Esse projeto, reconhece enfaticamente Euclides, nao estd imune a acidentes de percurso. Como se o desvio fosse norma constante do processo cumulative de civilizacio, que, afinal, na dinamica mesma de enfrentamento e dominio dos percalgos, deverd preva- lecer. Dai seu maravilhamento diante dessa corrida de obstaculos: [...] 0 que por vezes nos maravilha mais do que os prodigios da previdéncia e do saber, desenvolvidos para afeigoar o fo- rasteiro ao meio, é o curso sobremaneira lento, senéo o malo- gro dos mais pertinazes esforgos.15 A histéria da construcdo da ferrovia Madeira-Mamoré, cuja obra Euclides néo péde ver conclufda, constitui uma série pro- longada de “malogros dos mais pertinazes esforgos”. Como tantos outros projetos da engenharia contemporanea. O escritor Tito Batini, por exemplo, romanceando a saga em torno do surgimen- to da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil (1904-14), que ligou a fronteira agricola paulista com a Bolivia através do Pantanal ma- to-grossense, embora preso a um esquema grandiloqiiente tradi- cional, subproduto do realismo socialista que grassou entre nds 14 pelos anos 1930-40, consegue, nas Ultimas linhas, sair um pouco fora dos trilhos piego-naturalistas quando o narrador per- 104 i | + | | _ ELAN gunta pelo sentido daquilo tudo, Ecoa o refrao leninista, que inclusive da titulo ao livro, sem se antever, contudo, respostas préticas ou ébvias. A desordem ¢ fragmentagao dos elementos permanecem_ como tinic resultado. ‘palpavel de. to ferroviaria: Sim! e agora, que fazer? Sobre a confusdio de pedagos de trilhos misturados, velhos, enferrujando-se, atirados, imprestdaveis para as paralelas defini- das do leito da linha, Romulo Felipi deixa cair a solidao perdi- da e triste dos seus olhos cansados. Pedagos de irilhos aponta- dos para destinos diferentes e vagos. Pedagos de trilhos. Sem o orgulho descansado dos trilhos inteiros, feitos para serem, mesmo, trilhos de leito de linha, servindo para um fim determi- nado e certo. Pedagos de trithos. Sobras de trilhos inteiros, sobras misturadas, apontando para diregGes incertas, como homens perdidos na vida, sem rumo, sem norte... Pontas, pe- dacos, restos de trilhos. . . #6 A paisagem que essa narracao apreende no difere muito daquela descrita no relatério de um dos integrantes da Comissao Morsing, em 1883,.nomeada pelo goyerno-imperial-justamente com 0 fito deproceder ao levantamento das razOes para os su- cessivos fracassos, até ali, dos projetos de consiruir a Madeira- Mamoré. Eis 0 que um trecho desse documento registra sobre 0 espetdéculo desolador do povoado de Santo Anténio, lugarejo re- moto de onde deveria partir inicialmente a linha férrea: [...] resolvemos percorrer a localidade e examinar o material pertencente & empresa Collins [P. & T. Collins, empreiteiros de Filadélfia que faliram em seu intento] e aqui deixado em aban- dono. Junto ao porto, estd inutilizada uma espléndida locomotiva: Baldwin, j4 sem 0 sino e o apito, completamente estragada. Ma-' quinas fixas para plano inclinado, para embarque e desembar-' que de cargas, armazéns em ruinas, indmeras pilhas de trilhos Wignoles ainda bons, correame, carros de mao, alavancas, bar- ras de ferro e de ago, rebiques, parafusos, moetées, cadernais, ' encerados, ferramentas de toda espécie, vagonetes, rodas em , eixos, carvao de pedra estragado, caixas de fumo ja podre, , zinco em profusio, madeiras, pilhas de dormentes apodrecidos, 105 tornos, bigornas, malhos, marretas, fio telegrdfico, isolado- res, etc. A dois quilémetros pela linha, existem as ruinas da serraria a vapor, alguns aparelhos telegrficos, postes, etc., em comple- to estrago. Pelo mato, a cada passo, se encontram vestigios: pas, enxa- das, picaretas, carrilhos, tudo estragado. Confrage-nos ver tantos e tantos contos de réis em perfeita perda, tanta soma de sacriffcios sem resultados.17 O lamento final é que introduz uma novidade. Ao explicitar o desperdicio sob a forma-dinheiro, o engenheiro aponta, mesmo sem o estabelecer, para a existéncia de um nexo entre o movi- mento do capital e as fantasmagorias dispersas de uma obra perdida. Em sua descrig&o atenta aos detalhes e no desabafo sin- cero em seus termos, esse relatério colocanos diante de uma pista promissora: a dilapidagao continuada das forgas produtivas — com especial énfase para a maior dentre elas, a forca de tra- balho — é um processo imanente, desde a violéncia concentrada na acumulacdo primitiva, 4 produc&o/reproducao dos capitais. Assim como também o ilusionismo tecnolégico, que acompanha todo o imagindrio em torno dessas obras, faz parte integrante constitutiva do mesmo movimento. Focalize-se de novo esse cendrio quase trinta anos mais tarde, em 1910, quando o viajante e escritor inglés Tomlinson ali esteve, durante o auge dos trabalhos de construgdo da ferro- via, Capta o vilarejo de Santo Anténio, em sua narrativa, como uma estranha aparicdo, que se configura nas formas sucessivas de um ponto perdido no mapa, de um paraiso primordial, até um vir-a-ser marcado pela combinacao Itigubre de poucas luzes e muitas sombras. A localidade é vista assim desde 0 leito do Ma- deira, do interior de um navio: Se voc8 estivesse perdido no mapa de um pais locatizado para além das rotas gastas, tentando descobrir ali o nome do lugar que seja o mais recluso © inacessivel, se acontecesse de ser 0 mapa 0 da América do Sul, entiio seu pensamento se dirigiria naturalmente para as vizinhangas de Santo Anténio do Madei- ra. La vocé p&ra, maravilhando-se com a estranha gente e pe- dras e Arvores que s4o encontradas em Santo Ant6nio. O local parece remoto, até no mapa. O sinal que representa a vila é 106 captado numa curva central da rede hidrografica da tloresta amazonica. Santo Anténio deve estar além de tudo e¢ de uma grande jornada. Muito tonge, fora de aleance. E 0 que seria bastante — estar além da ultima onda do trafico e em paz, de onde aquela melancdlica inquietude, aquela emanagao sombria que se eleva da terra amarga em que milhares tém suas casas, seus problemas e disputas, manchando igualmente a manha e o pensamento matinal —, nao é mais. Um lugar em que a luz possui a claridade da primeira aurora, ¢ alguém poderia ouvir, segura da solitude absoluta, a modulagdo de uma estranha trom- pa, e suspeitd-la brilhante, sua fuga provinde de alguma clarei- ra; porque em algum lugar os antigos deuses devem ter seu santudrio. Uma terra onde as pedras mantém oc musgo original, e compacto, e se pode respirar os aromas do dia da criagao. [...] © pequeno amontoado de casas brancas de Santo Anté- nio encontra-se sobre um terreno levemente elevado, e o verde da floresta, ao Jado e acima, suavemente luminoso. A folhagem comprime a vila de encontro ao rio. Como cada cidade e vila amazé6nica, ela aparece, fixada naquela floresta, como uma base humana tao extraordindria quanto um navio no meio do ocea- no; poucas tuzes e poucas vozes na escura e intermindvel vasti- dao. Assim desembarquei de nossa pequena nave, tomado pelo sentimente de wma seguranga inesperadamente adquirida.!8 Remota no tempo ¢ no espaco, Santo Anténio ¢ desenhada como uma obra aberta dos deuses, que se oferece incompleta aos seu- tidos do viajante. Este, ao assumir os riscos do desembarque, s0 o faz transportando o medo até uma regiao sublime, incomum mas afinal acolhedora do espfrito aventureiro, com suas “poucas luzes e poucas vozes na escura e intermindvel vastidao”, Ir até 14 é com efeito penetrar em outro mundo, onde as fronteiras en- tre finito e infinito, ordindrio e insdlito, claro e escuro, peque- no e grande, habitac&o ¢ deserto, conhecido e desconhecido, homens e vultos, objetos e fantastiagotias aparecem ténues e perigosamente ambiguas. Muitos quiseram domar a barbérie que se desprendia além desses limites. Visdes pautadas numa perspectiva de moderniza- go conservadora, como a de André Rebougas (ef. capitulo 3), dominaram o pensamento politico esclarecido, na América Latina do final dos citocentos e inicio deste século, Euclides filiou-se, certamente, a essa tradicfo republicana estatizante, urbanizadora 107 e reformista, convicta seja do saber técnico-cientifico como apa- naégio das elites dirigentes, seja dos critérios racionalizadores da administragéo como norma funcional de um poder ptblico mais centralizado, eficaz em reordenar os particularismos do espago social disperso, Nesse sentido, tornam-se compreensiveis as rée- missées de Euclides a autores como Domingo Sarmiento, No ensaio “Viagdo sul-americana”, por exemplo — publicado em A margem da histéria e, nfo por acaso, referido & questo ferrovid- ria no continente —, retoma de modo textual uma passagem do classico Civilizacién y barbarie (1845), como indicio histérico-téc- nico dos mais seguros da decadéncia do caudilhismo: “E] ferro- carril llegaré en tiempo para estorbar que venga a reproducirse la lucha del desierto.. .'”.19 E como se a miragem do trem de ferro fosse das tnicas - capazes de aplacar a vertigem do vazio, a barbdrie sendo apa- nhada nessa vertente como uma teoria e narragao nascidas desse: imenso deserto vasculhado por dentro, aparecendo antes de mais’ nada como “um contorno, o marco fantasmal da extensiio, re-} ceptaculo inevitével do despotismo”.2° Parece que o século xIx, a principio arredio ante esse desfile cadtico de coisas ignoradas, ia aos poucos nomeando-as, para dispé-las em seguida no vast : inventaério dos artefatos industriais, incluindo-se nesse ro] o es petéculo do maquinismo — locomotivas e telégrafos, em desta que —, capaz de conduzir o repovoamento do mundo e as novas invasGes civilizadas do deserto. Era preciso, pois, dar nome a armas desse enorme empreendimento de conquista, pdr a engey nharia militar a servico da taxionomia do progresso e tornar legi} veis os pontilhados mais mintsculos do mapa-mindi. Os poder res saidos da fabrica tinham seu préprio arsenal de signos. Faziaj se mister desfraldar suas bandeiras até nos recantos mais obscu; ros € indspitos. Mesmo que ninguém as visse. Com efeito, haves ria que vencer a yertigem do vazio, exatamente as custas dessa otitra miragem forjada pelos trilhos, pelas quimeras de ferro: O transtorno que a maquina a vapor produzia na quietude dat selva era um dos simbolos da transic&o industrial. Um artefato! toma posse da terra virgem, afugenta com seu som a veins na-; tureza e navega o rio como se tivesse alma propria, [ . ] Que, maior encantamente, para quem padecia o vazio do deserto, do: 108 que essas mdquinas capazes de formar o novo mundo a golpes; de energia? 2! Por isso mesmo, no rastro dessas empresas civilizatérias, encontram-se vestigios disparatados de uma segunda natureza- morta. Marcas e objetos perdidos, aparentemente em completa desconex4o espaco-temporal, vagueiam como sombras fantasma- ticas da sociedade tentacular, por esses cendrios melancdlicos. Viajantes deparam-se ao acaso com sinais desse género; a impres- sao de assombro obriga-os, quase sempre, ao registro desse ines- perado reencontro. Embora descritas sob formas e contextos di- versos, essas pequenas descobertas atordoam seus narradores. A principio, nado atinam com nenhuma raz4o plausivel para essa cadeia dilacerante de ‘‘achados & perdidos” em lugares tao es- quivos como os percorridos por um acampamento na selya ou uma coluna no deserto. Mas a estranheza é suficientemente forte a ponto de reivindicar uma anotagéo, mesmo que brevissima, no caderno de campanha. Repérter infatigdvel da Revoluc&o Mexi- cana, John Reed assinala a presenca de uma velha maquina de costura Singer numa localidade remota daquele pais. Idéntica ¢ fatidica maquina é vista numa tapera indigena do rio Madeira, em 1878, conforme passagem fugaz da narrativa escrita pelo engenheiro norte-americano Neville Craig, a propdésito da segun- da e infeliz expedicfio para fazer a ferrovia Madeira-Mamoré.** Uma imagem iconografica dessa natureza-morta composta : de cacos da civilizacéo pode ser bem fixada admirando-se algu- mas das fotografias remanescentes dos registros memoraveis que Dana Merrill fez sobre os trabalhos da ferrovia Madeira-Mamoré, ja no inicio deste século (cf, capitulo 6). Numa deltas, focaliza-se a varanda da casa de um alto funciondrio norte-americano, vazia, com duas cadeiras de balanco postadas lateralmente, um tear manual em segundo plano e, ao fundo, um gramofone. Em outra foto, uma cabana de madeira coberta de zinco, toda rastica ¢ irregular, identifica-se téo-somente pela tabuleta arbitrdria: “Ho- tel Madeira-Mamoré” (vy. anexo iconografico). O letreiro, aqui, evita algum possfvei equivoco, mas acaba — em pleno territdrio do trem fantasma — por reintroduzir todos. Em registro diverso, no ambiente arruinado das Cidades mortas de Monteiro Lobato, em que jA se perderam o tempo e 109

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