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A Linguagem Classica da Arquitetura John Summerson N.Cham. 72,03 $9561 5. ed, Autor: Summerson, John Newenham, Titulo: ica da arg) c.1 wii i la 631 MUNDO DA ARTE Biblioteca do Campus de Laranjeiras A linguagem classica da arquitetura. Ac, 163113 - R. 10184420 Ex. 3 Compra - Parole Nf: 000.000.497 RS 27,85 - 12/07/2011 ARQUITETURA E URBANISMO Tilo original THE CLASSICAL LANGUAGE OF ARCHITECTURE ‘Prana og de: Thames and Huss, Londres. Copyright ©1963 Sir fob Sumierson and The Brits Browicastng. Conor, dese ego. © 1980 Thames and Hedson Li, onde. (Copyright © 1982, Etora WME Martins Fonts Lida Sao Pando, para a presente ei. 1 edigio 1982 St edigho 2009 Tradusio SYLVIA FICHE, Revi da traducio Monier State Produsio grifica Dados Interncionas de Catalogasio na Publica (C1) (Camara Brasileira do Live, SP, Brasil) Semmesion, Se ob, 190-1992, A inguagem clssin da arquitetura/ John Summerson ‘taducio Sylva Ficher;evisdo da tradusao Monica Sab Sted. ~ Sio Paulo: Baitora WME Maries Fontes, 2008, (Coiegio mundo da arte) Titulo original The classical language of architecture. Tubliografia ISBN 978-85-7807-179-4 1, Anquiteurn~ Histiria 2, Classcismo na amuleura LT tal, Sere more cop-7226 aac. 2.Classcismo = Arquitetuea 7226 Tndes 0s iretes desta eligio eserondos Editora WME Martins Fontes Ltda, Rua Conseliciro Remalho, 340 01325-000 So Paulo SP. Brasil Tal. (11) 3241.3677 Fax (11) 31011082 e-mail: info@comyfmartinsfoxtes.combr htip:/awazompmarinsfontes.com.br INDICE Prefiicio 1. Aesséncia do classicismo ... 2. A gramatica da Antiguidade ... 3. A lingiifstica do século XVI. 4. A retérica do barroco .. = 5. A luz da razio — e da arqueologia . 6. Do classico ao moderno .. Glossério.. fe Fite Notas sobre a literatura da arquitetura cldssica Créditos das ilustragées .. 89 127 141 147 1As ordens da arquitetura, Com esta gravura em madeira, de 1540, Sebastiano Serlio comegou seu tratado sobre “as cinco maneiras de construir”. As ordens toscana, drica, jOnica e corintia haviam sido identificadas por Vitrivio. Alberti havia identificado a compésita, Serlio foi o primeio a mostrar as cinco ordens como uma série fechada, & qual nenhum acréscimo seria admissfvel. CAPITULO UM A ESSENCIA DO CLASSICISMO Devo comegar presumindo que os leitores possuem alguns co- nhecimentos gerais sobre o classicismo. Provavelmente sabera por exemplo, que a catedral de S, Paulo, em Londres, é um edificio classico e a Abadia de Westminster, néio; que 0 Museu Britanico é um edificio classico e 0 Museu de Hist6ria Natural em South Kensington nao é. Mais ainda, que todos os edificios em torno de ‘Trafalgar Square — National Gallery, St. Martins-in-the-Fields, Canada House e mesmo South Africa House — sao classicos, mas que edificio do Parlamento nao é. Essas diferengas elementares podem levé-los a pensar que irei tratar de superficialidades. Quan- do um edificio classico nao é classico? Isso tem algum interesse? ‘Ay qualidades verdadeiramente importantes da arquitetura nao se- illo mais profundas do que uma nomenclatura estilfstica, e mesmo independentes dela? Claro que sim. No entanto, 6 impossivel abor- dar as questdes que me proponho neste livro sem primeiro mostrar 4 distingdo existente entre os edificios que sio prima facie classi- ‘08, € 05 que no so. Deverei falar de arquitetura como linguagem ©, por enquanto, parto do pressuposto de que vocés conhecem o la- fin da arquitetura quando o escutam — ou melhor, quando o véem. so me faz, supor, também, que seja do conhecimento geral 0 filo de que arquitetura cléssica tem suas rafzes na Antiguidade, no " diiverso da Grécia e de Roma, na arquitetura de templos gregos € jM Arquitetura religiosa, militar e civil dos romanos. Porém, este li- # nilo tratard da arquitetura da Grécia e de Roma e nem do simento ¢ desenvolvimento da linguagem classica da arquitetu- 4 ALINGUAGEM CLASSICA DA ARQUITETURA. ra, mas sim de sua natureza e de seu uso — seu uso como lingua- gem arquitet6nica herdada de Roma e comum a quase todo o mun- do civilizado durante os cinco séculos que transcorreram da Renas- cenga até a época atual. Dagui por diante podemos ser mais preciso. Vejamos inicial- mente como a palavra “classico” € aplicada a arquitetura. E um en- gano tentarmos definir classicismo, pois esbarramos num grande ntimero de significados cuja utilidade depende de diferentes con- textos. Proponho que consideremos dois significados apenas, O primeiro é © mais byio: um edificio cléssico é aquele cujos ele- mentos decorativos derivam direta ou indiretamente do vocabul4- rio arquiteténico do mundo antigo — 0 mundo “‘cléssico”, como itas vezes é chamado. Esses elementos sao facilmente reconhe- civeis, como, por exemplo, os cinco tipos padronizados de colunas que silo empregados de modo padronizado, os tratamentos padro- nizados de aberturas ¢ frontées, ou, ainda, as séries padronizadas de ornamentos que sio empregadas nos edificios classicos. Creio que esta é uma definigao clara mas superficial do que seja a arquitetura classica. Permite reconhecer o “uniforme” usado por uma determinada categoria de edificios, a categoria a que cha- mamos classica; porém nada nos diz sobre a esséncia do classi- cismo em arquitetura. Devemos ser extremamente cuidadosos neste ponto. “Esséncias” so muito dificeis de apreender, e fre- gtientemente verificamos, a0 procuré-las, que nao existem. Nao obstante, encontramos, ao longo da histéria da arquitetura cldssica, uma série de afirmagoes sobre os aspectos essenciais da arquitetura que nos permitem dizer que o objetivo da arquitetura classica sem- pre foi alcancar uma harmonia inteligivel entre as partes. Tal har- monia foi vista como parte integrante dos edificios da Antiguidade € como sendo inerente aos principais elementos antigos — em es- pecial as cinco “ordens”, As quais logo nos referiremos. Mas foi considerada também em abstrato por varios tedricos, os quais de- monstraram que a harmonia em uma estrutura, assim como na mi- sica, é alcangada por meio da proporgiio, ou seja, ao se fazer com que as proporgées de todas as partes de um edificio sejam fungdes aritméticas e estejam relacionadas entre si. Uma quantidade imensa de tolices pretensiosas tem sido escrita a respeito de proporgées, € nao pretendo envolver-me no assunto. O conceito renascentista de proporedes é razoavelmente simples: a finalidade da proporgao é estabelecer harmonia em uma estrutura — uma harmonia que se SSHNCIA DO CLASSICISMO 5 toma inteligfvel, seja pelo uso evidente de uma ou mais orden como componentes dominantes, seja simplesmente pelo uso de di mensdes que requerem a repeticaio de razées simples. Isso é sufi- ciente para que possamos prosseguir. No entanto, hd um aspecto dessa concepgiio bastante abstrata do classico que pode ser colocado como uma pergunta. L! possfvel um edificio nao apresentar atributos associados a arquitetura classi- cae, ainda assim, em virtude apenas de suas proporgées, ser rotula- do de “clissico”? Penso que a resposta deva ser negativa. Pode-se di- zer, ao descrever tal edificio, que suas proporgdes so cléssicas, mas € um abuso da terminologia dizer que é classico. Os porticos dacatedral de Chartres so, em proporgao e distribuigao, tao classi- cos quanto se possa imaginar, porém nunca deixar de ser consi- derados géticos. E poderfamos citar ainda intimeros outros exem- plos do sistema gotico andlogos ao classico. A propdsito, € um engano conceber gético e classico como opostos; eles sio muito di- ferentes, mas nao so opostos ¢ nao estéo completamente desvincu- lados entre si. Foi o romantismo do século XIX que nos levou a colocé-los em campos psicol6gicos totalmente diferentes. Tenho a impressfio de que aqueles que afirmam “preferit” o gético ao classi- co ou 0 classico ao gético sao, geralmente, vitimas dessa interpreta- lio errénea feita no século XIX. O fato é que a esséncia da arquite- tura — tal como foi exposta pelos te6ricos renascentistas — est4 expressa, consciente ou inconscientemente, em todas as arquitetu- mas do mundo. E se por um lado é necessério incorporar essa essén- cia 2 nossa idéia do que é clissico, por outro, precisamos aceitar {umbém 0 fato de que a arquitetura classica é reconhecivel como tal fipenas quando contém alguma alusio, ainda que vaga, ainda que fesidual, as “ordens” da Antiguidade. Tal alusdo pode nao ser mais do que um sulco ou uma saliéncia que sugira a presenca de uma cornija ou uma distribuicdo de janelas que sugira a razdo entre pe- destal e coluna, entre coluna e entablamento. Alguns edificios mo- dernos — em especial os de Auguste Perret e seus imitadores — sao ehissicos desse modo, ou seja, foram concebidos em materiais mo- dlemos mas com espirito classico e considerados clissicos apenas Jiela presenga de tragos minimos, No tiltimo capitulo falarei mais a Feapeito. Por enquanto, é fundamental compreendermos a questo dis ordens —as “Cinco Ordens da Arquitetura”, Todos jé ouviram falar a respeito, mas 0 que sto exatamente? Por que existem cinco ¢ quatro, ou mesmo dezesseis ou trezentas ¢ vinte € seis ordens? 6 A LINGUAGEM CLASSICA DA ARQUITETURA Vejamos uma coisa de cada vez. Primeiro, 0 que sao as ordens? Na pdgina 136, encontramos um diagrama muito claro da ordem dé- rica, E uma ordem formada por uma coluna de templo sobre um pe- destal, carregando, em seu topo, a arquitrave, o friso e a comija, aquele conjunto de elementos que forma o entablamento. Nas ilustra- goes de 1 a4 vemos novamente a ordem dérica, com suas quatro companheiras; é a segunda, tendo esquerda a toscana e, & direita, a jOnica, a corfntia ¢ a compésita. Uma “ordem” consiste na unidade “coluna-superestrutura” que compde colunata de um templo. Nao precisa ter pedestal —e muitas vezes niio tem —e precisa ter um en- tablamento (colunas s6 t€m sentido se suportarem algo), e a comija representa os beirais do telhado. Agora, vejamos por que existem cinco ordens. Esta questiio 6 um. pouco mais dificil, e devemos remontar As origens das ordens. A mais antiga descrigo escrita de uma ordem encontra-se em Vitnivio. O nome desse autor romano ira aparecer freqiientemente nos capitulos se- guintes, ¢ este € 0 momento indicado para apresenté-lo. Vitnivio foi um arquiteto de alguma importancia durante o reinado de Augusto, ¢ escreveu um tratado em dez livros, De Architectura, dedicado ao im- perador. No género, este € 0 tinico tratado da Antiguidade que sobre- viveu €, por essa razio, tem sido objeto de enorme veneracao. Vitrivio nao tinha grande génio nem talento literdrio € nem, ao que se saiba, talento arquitet6nico, Mas seu tratado retine e preserva para nds uma imensa quantidade de conhecimentos tradicionais sobre construgao ano do século Ta.C., enrique- cido com exemplos e anotagoes histéricas. Ao longo do terceiro e do quarto livros, Vitrivio descreve trés das ordens — a jonica, a dérica ¢ a corintia — e faz algumas obser- vagdes sobre uma outra — a toscana. Ele nos diz em que parte do mundo cada uma foi inventada, relaciona-as com descrigdes de tem- plos € nos conta a que deus ou deusa cada uma se refere. Suas des- crigdes nao sao exaustivas. Ele nfio mostra a quinta ordem nem apre- senta as ordens na seqiiéncia que consideramos “correta" (toscana, dérica, jénica, corintia) e—o que é mais importante — nao as apre- senta como um conjunto de férmulas canénicas que resumiriam em si toda a virtude arquitetonica, Isso ficou por conta dos teéricos da Renascenga. Em meados do século XV, mil e quatrocentos anos depois de Vitrtivio, 0 arquiteto e humanista florentino Leon Battista Alberti AESSENCIA DO CLASSICISMO 7 descreveu as ordens, em parte tomando Vitrivio como referéncia e, em parte, baseando-se em suas proprias observagdes de ruinas romanas. Com base nessas observag6es, acrescentou ao conjunto uma quinta ordem — a compésita —, que é uma combinagao dos elementos da ordem corintia e da jénica. Mas Alberti ainda foi ob- jetivo e vitruviano em sua atitude. Foi Sebastiano Serlio, quase um século depois, quem realmente legou as ordens arquitetonicas — cinco agora — uma autoridade canénica, simbdlica e quase lendé- ria, Nao tenho certeza de que essa tenha sido realmente a intengéo de Serlio, mas foi o que fez. Serlio era um homem da Alta Renascenga, contemporaneo de Miguel Angelo, quase contemporineo de Rafael e colaborador do arquiteto e pintor Baldassare Peruzzi, cujos projetos herdou. Cons- truiu alguns edificios importantes, porém o maior servigo que pr tou & arquitetura foi a compilacdo da primeira gramatica arquitet6- nica da Renascenga, reunida em uma série de livros, inteiramente ilustrados ¢ em escala. Os dois primeiros livros apareceram em Veneza, os tiltimos na Franga, patrocinados por Frangois I. Torna- ram-se a bfblia arquitet6nica do mundo civilizado: os italianos os utilizaram, os franceses ficaram devendo quase tudo a Serlio e seus livros, os alemfes e os flamengos basearam seus proprios livros nos de Serlio, os elizabetanos os copiaram, e Sir Christopher Wren, quando construiu o Sheldonian Theatre em Oxford, ja em 1663, ainda atribufa a Serlio um valor inestimavel. O livro de Serlio sobre as ordens comeca com uma gravura — ‘primeira do género —na qual as cinco ordens esto dispostas uma a0 lado da outra, como pinos de boliche desemparelhados, alinhadas segundo suas larguras — ou seja, segundo a razao entre o diametro inferior ¢ a altura da coluna. Todas estiio sobre pedestal. A ordem foscana, mais atarracada, esta 4 esquerda; em seguida, semelhante porém levemente mais alta, a ordem dérica; a elegante ordem jOnica; a imponente e elaborada ordem corintia e, finalmente, ainda mais alongada e enfeitada, a ordem compésita. A explicagio de Serlio esté no texto que acompanha a ilustragao. Afirma que, assim como os antigos dramaturgos costumavam prefaciar suas pegas com. lum prologo onde relatavam o que iria acontecer, ele estava, igual- ‘nente, apresentando os principais personagens de seu tratado de ar- «juitetura. Faz essa apresentacao de modo que torne as ordens tao ca- (eg6ricas na gramética da arquitetura quanto, por exemplo, as quatro ‘eonjugagdes verbais na gramatica da lingua latin: 8 ALINGUAGEM CLASSICA DA ARQUITETURA Esse gesto enfatico e literalmente dramatico de Serlio nao foi inutil. E assim, as cinco ordens da arquitetura, encaradas como um “conjunto fechado”, do qual todo e qualquer desvio é questionavel, passaram de m&o em mio. Praticamente todos os textos elementa- res de arquitetura nos séculos XVII e XVIII comegam do mesmo modo, com uma estampa de cinco colunas e entablamentos ali- nhados lado a lado — Bloem na Suiga, De Vries em Flandres, Dietterlin na Alemanha, Fléart e Perrault na Franga, e, na Inglater- ra, Shute, Gibbs e Sir William Chambers. A edigdo de Chambers, feita por George Gwilt, nos leva até 1825. E se consultarmos a Encyclopedia of Architecture, do mesmo autor, ainda encontrare- mos em sua tiltima edig&o, de 1891, a afirmagao de que “na com- preensiio e emprego corretos das ordens se apdia o fundamento da arquitetura como arte”. Quando eu estudava em Bartlett School, University College, em Londres, néo existiam dtividas de que a primeira tarefa de um estudante era tragar detalhadamente trés das ordens clissicas, Existem dois pontos importantes a serem considerados. Em primeiro lugar, devemos compreender que os romanos, embora te- nham aceitado a individualidade do d6rico, do jénico e do corintio © conhecessem suas origens hist6ricas, nao foram os que os embal- samaram e santificaram da forma arbitréria e limitada com que estamos familiarizados. O segundo ponto exige a compreensao da imensa importincia desse processo de canonizacao para 0 conjunto da producio arquitetOnica desde a Renascenga. As ordens pas: ram a ser consideradas a pedra de toque da arquitetura, os instru- mentos arquiteténicos de maior sutileza possivel, corporificando toda a sabedoria acumulada pela humanidade na Antiguidade no que diz respeito a arte de construir — quase que produtos da pré- pria natureza. E é aqui que o olho moderno deve freqtientemente confessar-se derrotado, A menos que vocé realmente conhega as ordens e possa reconhecer de imediato uma ordem toscana segun- do Vitrivio, uma ordem corintia oriunda do templo de Vespasiano, uma ordem jénica do templo de Saturno, ou ainda a estranha or- dem compésita imaginada por Serlio a partir do Coliseu, naio pode- rd apreciar em toda a sua extensao os refinamentos e variagGes que foram carinhosa e assiduamente aplicados as ordens. Mesmo as- sim, uma compreensio superficial j4 pode ser util, pois no € so- mente na forma das ordens em si que reside o cardter da arquitetu- ra classica, Na verdade, seu carter reside muito mais no modo pelo AESSENCIA DO CLASSICISMO 9 qual as ordens so desenvolvidas; mas este assunto pertence a outro capitulo, Por enquanto, basta percebermos o quanto as ordens si va~ ridveis ou invaridveis. Serlio as apresenta com um ar de grande au- toridade, dando as dimensées de cada elemento, como que para es- tabelecer definitivamente as proporgdes e os perfis adequados, No entanto, suas ordens, ainda que refletindo moderadamente as des- crigdes de Vitrivio, so fruto, também, da observacao de monu- mentos antigos. Assim, por um proceso de selegdio pessoal, essas ordens sdio — em grau consideravel — invengoes do proprio Serlio. E nao poderia ser diferente. As descri¢des de Vitrivio apresentam lacunas que s6 poderiam ser preenchidas através do conhecimento dos monumentos romanos que restaram. As ordens, tal como exemplificadas nesses monumentos, variam consideravelmente de um exemplo para outro, permitindo a quem quer que seja selecio- nar aquilo que considera como sendo as melhores caracteristicas de cada ordem e estabelecer, assim, o que considera ser a ordem ideal. Ao longo da hist6ria da arquitetura classica, a especulagao quanto aos tipos ideais de cada ordem persistiu sempre, oscilando entre o respeito preciosista e a pura invengao pessoal. Entre esses extremos ficam as ordens definidas e publicadas pelos grandes te- ricos — Serlio, inicialmente, em 1537, seguido por Vignola em 1562, Palladio em 1570 e Scamozzi em 1615. E foram estas as or- dens que desempenharam um papel normativo em todo o mundo. Mas sempre existiram arquitetos que fizeram questo de copiar modelos antigos especificos. E 0 caso, por exemplo, da grande jHansio de Ecouen, préxima de Paris, projetada em 1540 por Jean Hillant, cuja ordem corintia deriva, em grande parte, do templo de ‘istor e Pollux. Em 1630, no projeto para a igreja em Covent ‘Harden, Inigo Jones tomou como base 0 texto de Vitrivio para re- onstruir a ordem toscana — quase um exercicio de arqueologia. Tin 1793, no projeto do Banco da Inglaterra, Sir John Soane co- ‘Pio literalmente a ordem do templo de Vesta, em Tivoli. Por outro do, também existiram inovadores ousados. Philibert de 1’Orme ifiventou uma ordem “francesa” para o paldcio das Tulherias; as ii de Wendel Dietterlin, apresentadas em seu livro de 1594, Yuriagdes fantasmagéricas sobre Serlio; as ordens de Bor- mini sio invengSes chocantes, extremamente expressivas. Por- |. seria um engano considerar as “cinco ordens da arquitetura” uma espécie de jogo de montar usado pelos arquitetos para Us, 2, 3 10 A LINGUAGEM CLASSICA DA ARQUITETURA niio se darem ao trabalho da invengfio. H melhor consideré-las ex- presses gramaticais que exigem uma imensa disciplina, mas uma disciplina dentro da qual a sensibilidade pessoal tem sempre um determinado papel — mais ainda, uma disciplina que pode ser rom- pida por um lance de génio poético. A esta altura, pego que observem novamente a ilustragio da ordem dérica, Acredito que ficarao surpresos com a quantidade de elementos curiosos que compéem o entablamento, todos com no- mes prdprios mas sem um valor particular perceptivel, seja decora- tivo, seja simbélico. Por que muitulos? Por que triglifos e métopas? Por que a tenia e os estranhos penduricalhos chamados gotas? Por que tudo isto? Posso dar apenas uma resposta genética. E quase certo que a ordem dorica se originou de um tipo primitivo de cons- trugdo em madeira. Quem nos diz isso é Vitrivio. Na verdade, quando olhamos para uma ordem dérica feita de pedra, estamos vendo uma representagio esculpida em pedra de uma ordem dérica construfda em madeira; nao uma representagio literal, claro, mas um equivalente escultérico. Os templos primitivos do mundo anti- go eram de madeira. Gradualmente, alguns desses templos — sem diivida, os que eram mais sagrados € que atrafam maiores riquezas — vieram a ser reconstrufdos em pedra. E talvez tenha sido consi- derado obrigatério preservar, na yersao mais permanente de pedra, aquelas formas nas quais se havia concentrado tanta santidade. Dai teria surgido a necessidade de copiar em pedra ou mérmore 0s ele- mentos de carpintaria, a esta altura j4 um tanto estilizados, do entablamento. Mais tarde, ao se erigirem outros templos de pedra em novos sitios, as cépias foram copiadas, e assim por diante, até tudo isso se tornar uma férmula estavel e aceita. Se reexaminamos a ordem dérica sob esta luz, ela se explica, até certo ponto, por si mesma. Os muitulos parecem ser as extremi- dades dos balangos que se projetam para suportar os beirais por onde as Aguas da chuva escoam, afastadas das colunas. Os tréglifos bem poderiam ser as extremidades de vigas apoiadas na arquitrave. A tenia patece algum tipo de elemento de amarragao preso aos triglifos pelas goras, que evidentemente nao sio penduricalhos, mas cavilhas de madeira. Bu disse “‘parecem ser”, “poderiam ser”, “parece” porque essas hipdteses so apenas palpites. Alguns ar- que6logos ja dedicaram muito talento a tentativa de refazer, a partir da ordem dérica formalizada, o protétipo inicial de madeira. Seus palpites valem mais do que os meus, mas sfo ¢ nao deixardo de ser AESSMNCIA DO CLassicisMo 11 palpites. Para n6s, interessa que, ao longo do tempo, um sistema de construgao em madeira copiado em pedra cristalizou-se em uma formula lingiifstica conhecida por Vitrivio, assim como por nés, como a “ordem dérica”. Esta cristalizacao possui um paralelo 6b- vio na linguagem. Em algum momento, palavras, expresses, con! rugdes gramaticais foram inventadas para preencher uma necessi dade particular de comunicaciio. Essas necessidades imediatas ja estdio ha muito esquecidas, mas as palavras e suas relagdes ainda formam o idioma que usamos para intimeras finalidades, inclusive a poesia. O mesmo acontece com as cinco ordens da arquitetura. Para completar, devo fazer mais uma observagao. Sempre se considerou que as ordens tivessem como que uma personalidade. Vitrivio talvez tenha sido o responsavel por isso. Para ele, o dérico como que exemplifica a “proporgao, forga e graga do corpo mascu- lino” — presumivelmente de um homem médio e bem-constituido. O jénico se caracterizaria pela “esbelteza feminina”, e 0 corintio, por imitar a “figura delgada de uma menina”, o que nio difere muito do caso anterior. Uma vez abertas as portas & personalizagao das ordens, por Vitriivio, a Renascenga perdeu 0 controle, permi- tindo até interpretagdes contraditérias. Assim, enquanto Scamozzi faz eco a Vitravio ao chamar de “virginal” a ordem corintia, Sir Henry Wotton, alguns anos depois, considera-a “lasciva” e “atavia- da como uma cortesa”, ndio esquecendo de acrescentar que a moral de Corinto era baixa. Seja como for, a ordem corfntia sempte foi vista como feminina ¢ a dérica como masculina, ficando a jénica no meio, como algo assexuado -- um velho erudito ou uma matrona calma e gentil. As recomendagGes de Serlio talvez sejam as mais especificas ¢ consistentes. Para ele, a ordem dérica deve ser usada em igrejas dedicadas aos santos mais extrovertidos (S. Paulo, S. Pedro ou S. Jorge) e a figuras combativas em geral; a j6nica, para santos tranqililos — nem muito fortes nem muito suaves — e tam- bém para homens de saber; e a corintia, para virgens, em especial a Virgem Maria. Considera a ordem toscana adequada para fortifica- Ges e prisdes, e no aponta nenhuma caracteristica especial para a ordem compésita Nao existe razo alguma para se levar tudo isso muito a sério, Ao olharmos as colunas corintias de Mansion House, em Londres, por exemplo, com certeza nfo precisamos nos perguntar se foram consideradas virginais por Lord Mayor, que as encomendou. O fato € que as ordens eram escolhidas principalmente em fungao do 12 ALINGUAGEM CLASSICA DA ARQUITETURA gosto, em funcdo de circunstancias ¢, imimeras vezes, em fungio dos meios disponiveis, j4 que uma construgiio em que é empregada a ordem toscana ou a dérica ¢, obviamente, mais barata do que aquela onde aparece a escult6rica ordem corintia. Por outro lado, existem casos em que a escolha de uma determinada ordem foi fei- ta em fungao de seu significado simbélico. Acredito que Wren te- nha usado a ordem dérica no Hospital de Chelsea por seu cardter marcial. E temos ainda o caso fascinante de Inigo Jones e a ordem toscana de Covent Garden, a qual me refiro mais adiante. A ordem toscana e a dérica so as mais primitivas, ¢ os arquitetos tendiam a utilizé-las quando desejavam expressar rudeza e forga ou, no caso da dérica, a chamada “postura marcial”. No outro extremo, a or- dem corintia foi muitas vezes escolhida quando o arquiteto desejou mostrar abundancia, luxo e opuléncia, a qualquer prego. De qualquer modo, as ordens vieram propiciar toda uma gama de expresses arquitetOnicas, variando da rudeza e da firmeza alé a esbelteza e a delicadeza. No verdadeiro projeto cléssico, a selegio da ordem € uma questo vital —é a escolha do tom. O que é feito com a ordem, quais as proporgdes dadas as diferentes partes, que ornatos sfio escolhidos ou nao, tudo modifica e define o tom. Bem, € 0 suficiente quanto as cinco ordens da arquitetura — 08 cinco elementos bisicos da gramatica arquiteténica da Antigui- dade. Mas 0 que é possfvel fazer com as ordens? Quais as regras dessa gramatica? F erove, Hs ‘ne Tae _F; 3 O progresso das cinco ordens Cada geragio ap6s Serlio estudou as ordens de novo e as delineou com variagSes cuidadosamente justificadas. 2 A versio de Vignola, primeira a ser gravada em cobre, apareceu em 1563, A esta, seguiu-se a de Palladio, em 1570, que nao reine as cinco ordens em uma tinica prancha, 3 Entretamto, a gravura em madeira de Scamozzi, feita em 1615, tem muito do espirito de Palladio. 1 Planche. 4.0 francés Claude Perrault consultou todas as autoridades italianas e produzin sua pr6pria versio, em uma gravura em cobre, de 1676, com uma eseala modular partir da qual as proporedes das diferentes partes podiam ser lidas e memorizadas. il) 5 A “ordem francesa” de Philibert de I’ Orme (1567) expressa logicamente 0 fato de que uma coluna & composta de imtimeras pedras separadas. 6 Um capitel corintio de Bortomini, com folhagens invertidas 7 Ordem jénica com sego quadrada, de Fléart, 1650, CAPITULO DOIS A GRAMATICA DA ANTIGUIDADE JA posso considerd-los suficientemente familiarizados com as cinco ordens para tratar agora de sua utilizagio. Observem uma vez mais a ilustracdo 1, O que sao as ordens? Sao colunas sobre pedes- tais (cujo uso é opcional), as quais suportam em seu topo vigas onde se apéia o beiral de um telhado. Para que servem? Digamos que vocé esteja projetando um templo com pérticos na frente e na parte posterior, e com colunatas nas laterais. Pelo menos no que se refere ao exterior, as colunas ¢ seus complementos resolvem o pro- blema. Basta que as linhas inclinadas da cobertura e a cornija formem, nas fachadas principais, aquele elemento triangular co- nhecido como frontao. Mas suponhamos agora que vocé esteja pro- jetando algo assim como um teatro ou um tribunal, com muitos an- dares e intimeras janelas, e cuja estrutura seja formada por arcos ¢ abébadas. Como fica esse projeto? O bom senso sugere que vocé se livre das ordens, por estarem irrevogavelmente associadas a tem- plos, e comece outra vez, deixando os arcos, as abébadas e a dispo- sigdo das janelas e das portas encontrarem expresso propria. Esse seria, provavelmente, 0 caminho indicado pelo bom senso moder- no. Mas nao era o que acontecia. Os romanos, ao adotarem arcos ¢ Ab6badas em seus edificios piblicos, fizeram questio de empregar as ordens da forma mais vis{vel possivel. Talvez achassem que, sem as ordens, um edificio nao poderia ser significativo. Talvez procurassem transferir o prestigio da arquitetura religiosa para pro- jotos seculares importantes. Nao sei. Seja qual for a razio, combi- haram a arquitetura altamente estilizada mas estruturalmente bas- 18 ALINGUAGEM CLASSICA DA ARQUITETURA tante ptimitiva dos templos gregos com seus arcos e abébadas. E assim, a0 empregarem as ordens no como mera decoracao, mas como instrumento de controle de novos tipos de estrutura, renova- ram a linguagem arquitetonica. Apesar de serem, na maioria dos casos, estruturalmente inteis, as ordens, com ceriménia e grande elegincia, dominam ¢ controlam a composigao & qual esto asso- ciadas, torando os ediffcios expressivos. Como isto acontece? Certamente nao basta pendurar colunas, entablamentos e frontes em uma estrutura. A estrutura e a expres- sao arquiteténicas devem estar integradas, formando um todo. As co- lunas devem ser introduzidas segundo varias maneiras, pois existem colunas e colunas. Podemos ter “colunas isoladas”, que obrigatoria- mente suportam algo — em geral seu proprio entablamento e, even- tualmente, apenas uma parede ou um beiral. As chamadas “colunas destacadas” acompanham uma parede na qual nfo encostam, mas onde seu entablamento se engasta. Existem as “colunas-de-trés- quartos”, com um quarto do diametro embutido em uma parede e, similarmente, as “meias-colunas”, embutidas pela metade. Final- mente, as “pilastras” sao representagoes planas de colunas, forman- do um relevo na parede (podemos imaginé-las como sendo colunas quadradas parcialmente embutidas). Temos, assim, quatro maneiras de integrar uma ordem & estrutura — quatro graus de relevo, quatro gradag6es de sombra, Apesar de os romanos terem indicado 0 cami- nho para o emprego das ordens, nunca aprenderam a explorar com- pletamente todas essas possibilidades. Para ilustrar melhor o que es- tou dizendo, observem as ilustrages 72, 73, 74 ¢ 75 e comparem essas igrejas dos séculos XVI e XVII. A fachada da igreja de Gest, de Roma, é formada principalmente por pilastras; a de Santa Susanna por pilastras, meias-colunas e colunas-de-trés-quartos no nivel infe- rior e apenas pilastras no superior. O Val de Grace, em Paris, possui um pértico com colunas isoladas, meias-colunas, colunas-de-trés- quartose pilastras, Falarei a respeito desses trés edificios mais adiante. No momento, quero chamar a atengdo para as diferentes altemativas possfveis no uso das ordens, resultantes das soluges pioneiras dos ro- manos. E reparem também que quando se altera 0 grau de relevo de uma ordem, como, por exemplo, de pilastra para meia-coluna ou de meia-coluna para trés quartos de coluna, o entablamento deve sofier a mesma modificagiio, de modo a também se projetar mais. Nao se pode variar 4 vontade o relevo das colunas, sem alterar o entabla- mento. Esta é uma das regras, AGRAMATICA DA ANTIGUIDADE 19 Isso permite que se compreenda por que eu disse acima que, na linguagem clissica da arquitetura, as ordens no estio simples- mente penduradas na estrutura, mas sim integradas a ela. Algumas vezes as ordens penetram na estrutura, outras vezes se destacam, formando um pértico ou colunata independente. E, o tempo todo, controlam a estratura, Voltemos a Roma antiga. JA salientei 0 fato de que os princi- pais edificios romanos, com excecao dos templos, eram constru- dos com arcos e abébadas. Por outro lado, as ordens pertencem estritamente ao sistema mais primitivo de construgio “arquitra- vada”, ou seja, a construgao com pilar e viga. Os dois sistemas poderiam ser combinados de forma a que as tradicionais colunas dos templos fossem utilizadas para sustentar arcos. Essa solugao poderia dar certo, mas, por duas razGes, ndo seria satisfatoria, Pri- meiro porque, devido 4 sua longa associagio, colunas ¢ entabla- mentos passaram a ser identificados como uma unidade, € sua se- paracdo seria uma forma de mutilacdo. Segundo, porque edificios com arcos e abébodas requerem macicos que possam suportar as cargas e no colunas, que sio muito delgadas. Que fizeram os ro- manos, entio? O Coliseu de Roma responde & questo. A ilustra- ¢4o 12 mostra o lado menos danificado daquele admiravel edifi- cio, onde se podem ver as trés galerias abertas, formadas por arcos sobre arcos, e o andar superior fechado. Cada seqiiéncia ho- rizontal de arcos € emoldurada por uma colunata continua. Essas colunatas —~ cuja fungao estrutural, se € que existe, € muito pe- quena — sao representagées da arquitetura de templos como que esculpidas em relevo sobre um edificio que ndo é um templo, que tem varios andares e que € construido como um sistema de arcos e abébadas. Esse modo de combinar o sistema arquitravado e o sistema de arcos — tratando o sistema arquitravado apenas como meio de ex- presséio — pode nos parecer absurdamente simples. Mas se 0 exa- minarmos em detalhe, perceberemos sua complexidade, No Coli- seu, temos quatro ordens: dérica, no andar inferior; jénica, no seguinte; corintia, no tiltimo andar aberto; e, no andar superior, uma ordem indeterminada (a qual tem sido chamada compésita, mas que, na verdade, $6 existe no Coliseu). Prestem atengao em um viio qualquer de um dos andares abertos: por exemplo, do an- dar j6nico. A ilustragao 16 é um desenho em escala de um desses viios. Temos aqui uma construgao gramatical unitéria, cujo arranjo 20 ALINGUAGEM CLASSICA DA ARQUITETURA € controlado por uma ordem jénica, que obedece apenas a suas prOprias regras estéticas tradicionais, Por outro lado, a forma e o manho dos macigos por trés das colunas e arcos foram definidos pelas exig@ncias da conveniéncia e da construgio. As duas disci- plinas tiveram que ser ajustadas harmonicamente. A moldura do pedestal da ordem esta A mesma altura que o peitoril da galeria de arcos. O plano da imposta do arco est4 um pouco acima da metade da altura das colunas e 0 arco se assenta confortavelmente entre as colunas e a arquitrave. Para que essa disposicio satisfatéria fosse alcangada, foi preciso equilibrar cuidadosamente dois aspectos; a ditadura estética da ordem jOnica e as necessidades praticas do edi- ficio como objeto de uso. Uma alteragio, ainda que pequena, de qualquer um dos elementos, destruiria 0 conjunto. Vejamos, por exemplo, 0 que aconteceria se alargdssemos em trinta centimetros a abertura do vio. O topo do arco ficaria quinze centimetros mais alto, Se desejéssemos manter 0 mesmo espaco entre arco ¢ enta- blamento, este Ultimo deveria subir quinze centimetros. Portanto, as colunas ficariam quinze centfmetros mais altas. E uma vez. que as regras da ordem jonica sio como sao, cada elemento da ordem deveria ser ampliado. O pedestal cresceria de tal forma que sua moldura nao estaria mais em nfvel com 0 peitoril, e, 0 que € pior, 0 entablamento teria sua altura aumentada, provavelmente criando problemas com os pisos superiores, para nao falarmos na interfe- réncia com o dimensionamento da ordem corfntia acima. Na verdade, creio que este vaio do Coliseu permite um pouco mais de “tolerancia” do que dei a entender. Mas vocés devem estar comegando a perceber o tipo de disciplina que a linguagem clissi- ca exige e que lhe ¢ inerente. Observem agora a ilustragaio 17. Em princfpio, temos aqui a mesma disposicao, agora em uma proposta tedrica de Vignola, arquiteto italiano do século XVI. Obviamente, sua intengo era produzir algo em que todos os elementos depen dessem inteiramente uns dos outros; nao existe em seu projeto ne- nhuma tolerincia. A largura dos macigos permite apenas apoiar a arquivolta e as laterais da moldura do pedestal, O resultado é aper- tado como um n6. Se vocés, ao interpretarem este projeto na pran- cheta, nfo acertarem naturalmente planejamento e necessidades estruturais, nao terao outra escolha, se nao recomecar 0 jogo de ou- tro modo. E existem muitos outros modos, basta imagind-los. O Coliseu, que nos permitiu introduzir 0 tema de arcos e or- dens combinados, foi um dos edificios com que os homens da Re- AGRAMATICA DA ANTIGUIDADE 21 nascenga mais aprenderam. Ele exemplifica nfo apenas essa com- binagdo particular, mas também a superposigao de ordens e, no til- timo andar, o uso de uma ordem de pilastras para tornar expressiv; uma empena quase sem janelas. Existiam outros edificios dessa ca- tegoria, como o teatro de Marcelo e, fora de Roma, os teatros de Verona e de Pola, na {stria. Todos eles foram cuidadosamente estu- dados, e deles foram extraidos elementos gramaticais Uteis; foram publicados por Serlio e, uma geragdo mais tarde, por Palladio. Aqui estiio trés exemplos de trabalhos dos mestres da Renascenca, escolhidos ao acaso entre as ilustrages, que refletem os temas do Coliseu: 0 Palazzo Corner em Veneza, com colunas e arcos super- postos; o paldcio ducal em Mantua, onde Giulio Romano deu um tratamento roméntico ao mesmo tema; € 0 castelo Farnese, em Ca prarola, inspirado no ultimo andar do Coliseu. Sem dtivida, sdo edifi- cios muito diferentes entre si, mas que utilizam aquelas expresses gramaticais das quais o Coliseu foi o exemplar mais notével. Os arcos triunfais de Roma e de outros lugares da Itdlia talvez tenham sido ainda mais instrutivos gramaticalmente do que os tea- tros. Serlio mostra onze deles. Por serem essencialmente cerimo- niais, esses arcos recebiam grande variedade de detalhes arquitet6- nicos e esculturais. Em Roma, os maiores e mais importantes eram_ e ainda sao 0 arco de Sétimo Severo e 0 arco de Constantino. Ob- servem este ultimo, Trata-se de um volume retangular sélido com lrés perfuragoes — a do centro formando o arco principal, e as ou- tras duas formando os arcos subsidiarios, mais baixos e estreitos. Contra os quatro macigos que dividem os arcos esto colocadas quatro colunas sobre pedestais. O entablamento se projeta sobre cada uma, sustentando, nesses pontos, figuras esculpidas. Sobre 0 entablamento fica uma superestrutura chamada ““itico”, que serve de pano de fundo para as esculturas ¢ € decorada com dizeres co- memorativos em alto-relevo, ‘Observem agora a disposigao dos elementos. A chave do arco central est4 encostada na parte inferior do entablamento; as chaves dos arcos laterais estio em nivel com a linha da imposta do arco central, e os trés arcos t8m a mesma razdo entre altura e largura. A profundidade do entablamento é tal que a coluna € seu pedestal ocupam exatamente 0 espago entre entablamento e dtico. O resul- tado é uma composigio compacta e harmoniosa que preenche ad- miravelmente sua fungdo simbélica. No século XV, este ¢ outros arcos romanos exerceram uma atragio enorme sobre a imaginagZo 22 ALINGUAGEM CLASSICA DA ARQUITETURA. tanto de pintores como de arquitetos (que muitas yezes eram tam- bém pintores), fazendo com que caracterfsticas tipicas dos arcos triunfais fossem utilizadas em todo tipo de edificio, como expres. sdes gramaticais de controle da estrutura. ___Oxemplo mais impressionante desse fendmeno é a conver- so do arco do triunfo em uma igreja cat6lica, realizada por Leon Battista Alberti. Ao projetar 0 Tempio Malatestiano, em Rimini Alberti baseou-se, propositadamente, no arco romano existente nos arredores da cidade. Bem mais tarde, jé no fim de sua vida, levou a idéia ainda mais longe no projeto da igreja de §, Andrea, em Man. tua. Nesse caso, niio adaptou os principios do arco triunfal apenas & fachada principal, mas também as arcadas da nave, no interior Ainda mais, fachadas e arcadas foram dimensionadas na mesma escala, de tal modo que a igreja — por fora e por dentro —é uma ampliagaio légica e tridimensional do tema do arco triunfal, Alberti ‘morreu antes da construgéio da fachada e duvido que seja responsé- vel por algumas de suas caracteristicas. Mas a idéia principal ¢ cla- ra e pode-se facilmente perceber como ressoa no interior. J4.a de. coragao pretensiosa das paredes, feita no século XVIII, tira muito da forga do edificio, em especial nas fotografias. De qualquer for. ma, S. Andrea é um yerdadeiro triunfo, tanto na conquista da gra- matica romana como na criagdo de uma estrutura continua e légi- ca, Esse projeto servin de modelo para incontaveis igrejas cldssicas construidas nos quatro séculos seguintes, e é o primeiro grande passo em diregdio a S, Pedro, em Roma, e S. Paulo, em Londi ___ Eupoderia falar ainda mais sobre os arcos triunfais e sua con- tribuigio para a linguagem cléssica. O fato mais importante talvez seja o mais elementar: a divistio do espaco em trés partes desi- guais. A ilustragio 50 6 um projeto de porta feito por Giulio Roma- no, tendo como modelo dbvio 0 arco triunfal, Outros edificios des. te artista também trazem implicito o mesmo ritmo — estreito. largo, estreito. Mais tarde, outro elemento, o dtico, seria também muito empregado, principalmente como fundo para esculturas, HA um em Somerset House, mas, em minha opiniao, nao ajuda muito a compesigio, é'no Ashmolean Museum, em Oxford, temos, de CR Cockerll, umn uilizagao realmente esplendida do stico com Até aqui examinamos dois tipos de edificios romanos — o anfiteatro com galerias, exemplificado pelo Coliseu, eo arco triun. fal —, e vimos de que modo foram explorados como fontes de ex. AGRAMATICA DA ANTIGUIDADE 23 pressdo gramatical. Existem intimeros outros tipos de arquitetura romana mas creio que nenhum foi to bem digerido, tornando-se parte orgiinica da linguagem cléssica, como esses dois. Havia as ter- . 6 claro, que, por seu planejamento grandioso e seus sagudes & cfmaras abobadadas, serviram de inspiragdo em determinadas oca- Ges. Havia 0 edificio excepcional do Panteon, protstipo de todos ‘0s grandes domos classicos; e a imensa basilica de Constantino, modelo e desafio para os construtores de naves abobadadas. B, por fim, havia os templos. E curioso que 0 templo romano tipico — um cdificio retangular com pértico e frontiio, rodeado ou niio por colu- nas ou pilastras (para nés, um simbolo Sbvio da arquitetura roma- ha) — nao serviu de modelo para igrejas na Itélia e mesmo na Eu- ropa antes do século XVIII. Por outro lado, o templo circular teve um papel importante, talvez devido a belissima recriacio feita por Bramante, a qual descreverei mais adiante. Mas o grande feito da Renascenga nao foi a imitagao estrita dos edificios romanos (isso coube aos arquitetos dos séculos XVIII e XIX), e sim o restabelecimento da gramatica da Antiguidade como disciplina universal — a disciplina herdada do passado re- joto da humanidade e apliciivel a todos os empreendimentos dignos de nota. Jé falei o suficiente sobre essa gramitica, essa disciplina, para convencé-los de sua realidade e também de sua simplicidade. Pore n existem mais algumas coisas que vocés devem saber, como, por exemplo, a questo do espagamento das colunas — o que € ehamado, tecnicamente, de “intercolinio”. O intercoliinio estabe- lece o “andamento” de um edificio, e uma vez estabelecido nao se pode brincar com ele, Admitem-se variagSes dentro do andamento, puis sempre de cardter especifico e significativo. Os romanos davam tamanha importancia ao espagamento das eolunas, que estabeleceram cinco tipos-padrao de intercoltinio, Medidos em diametros de colunas, que foram registrados por Vitrivio. O espagamento mais fechado, chamado picndstilo, cor- fesponde a 1% didmetro. Em seguida, temos o sistilo, 0 éustilo, 0 Widstilo , finalmente, o mais largo, araedstilo, com 4 diametros. ‘Os mais comuns eram: 0 sistilo, que pode ser descrito como uma jwarcha répida, e 0 éustilo, um caminhar lento e digno. Os inter- foltinios extremos nem marcham e nem caminham. Para mim, o plendstilo parece sempre significar “alto” — uma paligada de ho- jens em posigao de sentido. O araedstilo é um passo longo, quase alto em camara lenta, Se quisermos, podemos tentar identifi- 24 A LINGUAGEM CLASSICA DA ARQUITETURA car 0 intercolinio com a terminologia musical. Eu sugeriria “ada- sio” para 0 didstilo, “andante” para o éustilo e “allegro” para 0 sistilo. Mas no me agrada “presto” para 0 picndstilo ¢ menos ain- da “largo” para 0 araeéstilo. Como sempre, é tolice levar analo- gias longe demais. A importéncia do intercoltinio — 0 “compasso” em arquitetura — é imensa. A questio fica clara se analisarmos ° contraste visivel entre as ilustragdes 32 e 34. Temos aqui edificios com a mesma forma e, aproximadamente, com a mesma finalidade comemorativa. Mas como siio diferentes as emogdes que sugerem: © didstilo (3 diametros) empregado por Bramante & majestoso, se~ reno € meditativo, enquanto que o picndstilo (1Y% diémetto), empre- gado por Hawksmoor é tenso e distante, parecendo uma muralha, E se examinarmos outras ilustragSes com a questo do “andamento” em mente, nao restardo diividas quanto A importéncia do inter- coltinio. Comegaremos a perceber também as variagdes que podem ser introduzidas — colunas aos pares, pares espacados de colunas, colunas dispostas no ritmo estreito-largo-estreito dos arcos triun- fais ¢ os ritos realmente intrincados que se conseguem quando co- lunas, meias-colunas e colunas-de-trés-quartos comecam a ser em— pregadas juntas, algumas vezes despertando diividas quanto a0 tempo basico dominante (como nas fachadas das igrejas que vimos anteriormente). Venho falando de gramatica e regras a ponto de vocés come- gatem a conceber a linguagem cléssica como algo assustadoramente impessoal e intratdvel, algo que desafia o arquiteto a cada momen- to, que suprime sua intuig&io e que Ihe deixa apenas uma estreita margem de escolha. Se ficaram com essa impressio, niio lamento, pois faz parte das regras do jogo. Mas nio nos esquecamos da identificagao do arquiteto com os préprios elementos que o desa- fiam, de modo que se coloca tao intensamente a favor das ordens que esté usando, como contra elas, chegando ao ponto de acreditar que criou a ordem cuja manipulacdo Ihe dé tanta dor de cabeca, Al- gumas observa¢oes feitas por um grande arquiteto da geracao pas- sada, Sir Edwin Lutyens, ilustram bem a questdo. Lutyens formou- se na pitoresca tradigio da “Velha Inglaterra” de fins do século XIX, a qual pertencem todos os projetos residenciais de sua carrei- ra. Por volta de 1903, aos trinta e cinco anos de idade, comegou a ter uma compreensdo da natureza do classicismo, que iria fazer dele um dos mestres da arquitetura em sua Spoca. Em uma carta a seu amigo Herbert Baker, descreve vividamente como, ao projetar AGRAMATICA DA ANTIGUIDADE 25 casa de um rico industrial de Iikley, o esplendor da linguagem ica apoderou-se dele. Tenho a audicia de adotar aquela coisa adordvel, carco- mida pelo tempo, que é a ordem dorica, Nao se pode copié-la, Para acertar, vocé tem que escolhé-la e projeti-la... Vooé nio pode copiar, vocé se dé conta de que, se copiar, esté perdido, ¢ fica uma confusao. i o x Isso significa trabalho arduo, muita reflexdo sobre cada linha, em trés dimensdes e em cada junta; € no se pode deixar nenhuma pedra deslizar. Se vocé ataca o problema desse jeito, a Ordem pertence a voc’, ¢ cada trago, sendo trabalhado men- talmente, deve ficar imbufdo de toda a poesia e arte que a the deu. Se um elemento € alterado (o que sempre € necessa- rio), todos os outros devem ser revistos com 0 mesmo cuida- do ¢ inventividade, para que concordem outra vez. Como se vé, nao é um jogo facil, que se possa jogar despreocupadamente. “Nao se pode copiar”, diz Lutyens. Em outra carta, porém, es- 0 se pode usar originalidade com relagio as Ordens. s tém que ser to bem digeridas para que nao permaneca nada além da esséncia. Quando corretas, as Ordens sao curio- samente bonitas — inalteréveis como formas vegetais... A perfeiggio da Ordem est4 muito mais préxima da natureza do que qualquer outra coisa produzida por impulso ou por acaso. Por ter aprendido sozinho, Lutyens foi um arquiteto que sabia fato o que significava a linguagem clissica. Ao mesmo tempo sie amava as ordens, ele as obedecia ¢ desafiava, E se a sane sho da regra € um dos fatores essenciais na criagio dos grandes eilificios clissicos, o desafio da regra € 0 outro.

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