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PERNAMBUCO E A COMPANHIA GERAL DO COMERCIO DO BRASIL Leonor Freire Costa “(...) Eesta he a minha teima, por mais que o Pe. Anténio Vieira me pregue 0 contré- rio. Eu Senhor Marquez entendo que em Portugal nam querem o concerto com os hol- landezes, ao menos aquelles que tiverem parte nas revoltas de Pernambuco (...)” (Francisco Sousa Coutinho, embaixador em Haia. Carta ao Marqués de Niza, de 15 de Junho de 1648)! “(...) Estas armadas do Comboio séo portuguesas como nés, quando passar por aqui pedir-hes-emos da parte de Deus que nos socorram (...) jé que sua Majestade tem ra- z6es para nao o fazer”. (André Vidal de Negreiros, segundo Diogo Lopes de Sar tiago)* Rendeu-se o Recife holandés em Janeiro de 1654, gracas ao auxilio das forcas navais da Companhia Geral do Comércio do Brasil, institufda em Marco de 1649 para dar escolta ao tréfego brasileiro. Depondo as armas diante do aparato naval sustentado pela empresa, a poténcia ocupante punha fim a nove anos de uma guerra de desfe- cho indeciso, alimentada pelas receitas geradas no acucar que, apesar do corso ho- landés, se escoava em direc¢ao a Europa através dos pequenos portos recuperados pelos luso-brasileiros.° Fica por esclarecer, contudo, quem suportava essa Compa- nhia libertadora e quais os interesses em jogo para que, volvidos cinco anos apés a sua fundacdo, se tornasse oportuna a intervencdo das suas forcas militarizadas na guerra em Pernambuco. Aparticipacao de uma esquadra seria estratégia indispensdvel resolugao do impasse instalado desde a segunda vitéria dos Guararapes em Fevereiro de 1649. Mas até 1654, faltou uma resposta adequada aos sucessivos apelos dos revoltosos, suplicando um empenho efectivo do monarca na sua causa. A Companthia veio a responder-lhes, mas nao enquanto forga militarizada ordenada por um poder so- berano. Afinal, os holandeses entregariam o Recife a uma multidao de homens ar- mados, protegidos pelo acordo com Pedro Jaques de Magalhdes, o general da ar- mada de uma empresa privada que, pelos seus estatutos, tinha como intuito o lu- cro, embora se destinasse a prestar um servigo do foro puiblico: a defesa das frotas. Assim se deu a vitéria aos insurrectos que se reviam como vassalos de D. Joao IV, monarca que, nas palavras de Diogo Lopes de Santiago, teria as suas raz6es para nao os acudir. Aguerraencetada na Varzea em 13 de Junho de 1645 obrigou D. Joao IV ades- responsabilizar-se pelos acontecimentos desenrolados no nordeste brasileiro. Nes- sa postura, essencial ao concerto diplomatico com os Estados Gerais, o monarca distanciava-se tanto dos insurrectos como dos seus mais préximos acélitos Leonor Freire Costa, Instituto Superior de Economia e Gestdo PENELOPE, N° 23, 2000, pp. 41-65 42 Leonor Freire Costa residentes no Reino, empenhados no éxito da revolta luso-brasileira. Aceitando a paz com os Estados Gerais pelo prego da restituigao dos territérios pernambuca- nos, D. Joao IV aplaudia as manobras dos seus emissérios em Haia, Francisco de Sousa Coutinho e 0 Pe. Anténio Vieira. Mas como bem intuira 0 embaixador, em Portugal nao se desejava esse concerto, embora tal nao significasse que era a guerra desejada. A criagdo da Companhia representa a forca da oposicao erguida Aquela solugao diplomatica. Se Cabral de Melo explora a conivéncia do aparelho central do Estado nos acontecimentos em Pernambuco, descobrindo assim uma sustentaco politica que faltava nos primeiros estudos da revolta, continuaria a reconhecer na Companhia a concretizagao de ideias visionarias, préprias dos “estrangeirados”, supostamente encarnadas no Pe. Anténio Vieira.* Nao se afastaria das teses de Charles Boxer’ ou de Lticio de Azevedo* que fazem do jesuita, pelas suas simpatias com os cris- tdos-novos, 0 grande mentor da inovacdo institucional. A associacao baseia-se num conjunto de dedugées. f sabida a influéncia das companhias europeias na construcao do pensamento econémico do Pe. Anténio Vieira.’ Também é inegavel a sua sensibilidade a relevancia dos capitais do grupo cristéo-novo para a fundagao de empresas dessa envergadura. A promulgagao de um alvard de isengao de con- fisco de bens, salvaguardando das garras inquisitoriais o patriménio dos accionis- tas da Companhia Geral, completa o feixe explicativo das origens da instituicao, nao desacreditado por Gustavo de Freitas no ensaio onde inventariou uma série de tépicos, nem todos completamente desenvolvidos, cruciais para um estudo da Companhia Geral como um caso de histéria empresarial * Padre Anténio Vieira, cristéos-novos, alvara de isencao de confisco: trés topi- cos dedutivamente encadeados nas tradicionais interpretagées da génese da Com- panhia, com alvaré de confirmaco dos estatutos datado de 10 de Marco de 1649. Nem obras recentes, embora de sintese, incorporaram dois estudos, fundamentais, que quebraram a cadeia de argumentos.’ David Grant Smith, por conhecer o grupo mercantil do Reino, demonstrou cabalmente como entre os dirigentes havia cris- taos-velhos, alguns, até, familiares do Santo Offcio ou seus parentes préximos.” LS. Révah insistiu na desvinculacao dos tramites desenvolvidos para a promulga- 40 doalvara de isencao de confisco, de6 de Fevereiro de 1649, dos demais necess4- ios ao alvaré dos estatutos da Companhia, tomando cada diploma como o desfe- cho de dois caminhos paralelos em debate nos circulos politicos. Se a empresa era urgente para os cofres do Estado, ao garantir a seguranca da navegacao, em pouco buliria directamente com os objectivos do grupo crist4o-novo pan-europeu. Caso se frustrasse, as movimentagdes em torno da promulgaciio do alvard de 6 de Feve- reiro seriam irreversiveis porque indispensAveis para restaurar a confianca dos co- merciantes nacionais e estrangeiros de que dependia a economia portuguesa.” Ainterpretagao aqui defendida retira ao Padre Ant6nio Vieira qualquer pro- tagonismo que nao o de agente de um processo em contradicao coma opiniao geral no reino, trazendo a cena Pedro Fernandes Monteiro, personagem nem sempre de- vidamente observada na génese da Companhia Geral do Comércio do Brasil. No momento em que a Espanha e a Holanda se antecipavam a paz de Vestefélia, assi- nando uma paz separada, Vieira, crédulo nos dividendos de uma negociacao grata PERNAMBUCO E A COMPANHIA GERALDO COMERCIO DO BRASIL 43 aos Estados Gerais, debateu-se pela restituigao de Pernambuco aos holandeses, nao apenas da parte ainda por libertar que, nesse ano de 1648, pouco mais era que a cidade do Recife, mas ainda da parcela da coldnia entretanto reconquistada com 0 sangue e capitais de senhores de engenho luso-brasileiros e homens de negécios instalados nas pragas litoraneas. Em tal postura, distanciava-se da vontade dos mais opulentos mercadores, fossem cristdos-novos ou cristdos-velhos, e chegaria, no seu famoso “Papel Forte”, a acusar de espuria a existéncia de uma Companhia 86 para dar escolta as frotas brasileiras. Ainda que na sua correspondéncia com 0 Conde de Ericeira admitisse as virtudes da empresa na alteracao da estrutura da frota, ufanando-se da sua intervencdo no decurso dos acontecimentos, foi secunda- ria a acco do Jesuita na reforma da navegacio brasileira e na introdugao do mono- polio nas rotas do acticar. Semelhante abordagem nao ambiciona agitar uma polé- mica estéril, pretendendo contradizer o que a parca historiografia sobre o tema tem tomado como seguro. Limita-se a descentrar a andlise dos problemas em geral to- mados como decisivos na constituicéo da Companhia, para focalizar a questao nas consequéncias politicas da revolta de Pernambuco. Um movimento que ter conta- do com o subterraneo apoio de certos homens do aparelho de Estado, mediatizan- do os interesses de uma faccao de negociantes. O mote foi dado por Evaldo Cabral de Melo, apontando o Autor que o tema carecia de uma pesquisa complementar do papel da elite mercantil na iniciativa dos luso-brasileiros.”” Aempresa ficaria irremediavelmente ligada as vicissitudes da guerra de Per- nambuco, nao s6 pela espectacularidade do golpe final, mas também, e sobretudo, porque os seus directores eram homens de negécio. E se a Companhia salvou Per- nambuco, os acontecimentos de Janeiro de 1654 protelaram a extingao do instituto, dando-lhe um trunfo capaz de silenciar os seus poderosos adversarios. Arevolta Na esteira dos trabalhos de Gonsalves de Mello, Evaldo Cabral de Mello analisou os grupos e forcas conjugados no periodo da rebeliao."*Na base encontravam-se os senhores de engenho. Um grupo socio-econémico que, contudo, estaria longe de cantar em unissono. Os antigos proprietarios, que na década de trinta se sujeitaram a retirada sob as ordens de Matias de Albuquerque e deixaram os seus bens aos ocupantes holandeses, pugnariam por reaver o patriménio perdido. A eles jun- tar-se-iam os “colaboracionistas”, todos os que souberam no breve perfodo doura- do de Nassau investir, adquirindo engenhos, muitos dos abandonados pelos pri- meiros donos, mesmo a custo de um endividamento exponencial. Para estes, a li- bertagao significava sacudir do territério a presenca da Companhia Holandesa e, num golpe, liquidar os pesados encargos das dividas. Nao lutariam, decerto, por devolver os bens adquiridos aos anteriores senhores de engenho, alguns retorna- dos ainda no periodo de paz, outros vindos nos corpos expedicionarios de André Vidal de Negreiros. Uma confluéncia de interesses a que nao foi alheio o suporte do 44 Leonor Freire Costa, Governador Anténio Teles da Silva," criando-se uma alianca entre estas duas fac- Ges, em certo sentido com objectivos antagénicos, uma vez identificado um alvo comum a abater: ojugo holandés e respectiva tolerancia e dependéncia para com as comunidades judaicas de Pernambuco que, bilingues, se haviam tornado o outro rosto da poténcia ocupante. O cunho anti-judaico da revolta'® nao faz mais do que agravar a suspeita da camuflada protecgao do Governador, familiar do Santo Oficio,'* ocupado, entre- tanto, em limpar a Bahia da “gente de nagéo”,”’ cujas ligagées directas ao mercado holandés concorriam com outras redes mercantis onde dominava o credo catélico. Nao se estranha, assim, que a comunidade judaica de Amesterdao se julgasse ameacada com a revolta e tratasse de assegurar alguns direitos dos seus ciimplices no Brasil, em “Carta dirigida aos Senhores Estados Gerais”, pedindo que qualquer acordo diplomitico observasse os seus direitos e os equiparasse a cidadaos holan- deses.'* Por outro lado, se Sousa Coutinho inicia a sua carreira na Holanda manifes- tando gratidao pelos servicos de judeus portugueses radicados em Amesterdao no provimento de dinheiro a embaixada, a sua correspondéncia, posterior a 1645, vai estando salpicada de reparos pouco favoraveis A actuacao do grupo, pelos seus su- cessivos entraves as negociagdes de paz." Nao andava longe da tazao, quando se sabe, ¢ ele o refere também, que a Companhia criada para o corso a navegacao por- tuguesa no Brasil contou com participagdes maioritdrias das cidades da Zelandiae da comunidade sefardita de Amesterdao.” A questo religiosa nao encobre a pluralidade dos interesses em jogo, unidos estrategicamente numa guerra que, a ser do foro exclusivo dos senhores de enge- nho estantes no Brasil, estaria condenada a abortar. As infiltragdes na Bahia e no Reino, no proprio aparelho de Estado" e entre os homens de negécio, deram-lhe a solidez necesséria a tornd-la consequente, contrariando, nos seus sucessos, as vi- sdes derrotistas de alguns validos do monarca, de que a dupla Sousa Coutinho e Anténio Vieira é o melhor exemplo. Com a cumplicidade de figuras de relevo com assento nos tribunais do Esta- do, constituindo uma “espécie de Kitchen Cabinet” ,” a rebeliao declarou-se pouco tempo depois da retirada de Nassau, acompanhado de Gaspar Dias Ferreira, um dos principais do Recife, caso emblemitico do trajecto pernambucano dos senho- res de engenho “colaboracionistas”. Radicado na terra, pelo menos desde 1628, partilha a propriedade de navios em transito com negociantes residentes no Reino, tecendo assim lagos pessoais com alguns dos homens que virdo a estar na raiz da Companhia Geral. No perfodo holandés, conquista a confianca de Nassau, denun- ciando Sousa Coutinho que nisso enriquecera 0 conde. Durante os nove anos da guerra, Gaspar Dias Ferreira adquiriu notoriedade na correspondéncia diplométi ca, nao s6 pelos alvitres que em Amesterdao, logo em 1645, elabora sobre os possi- veis concertos para a compra de Pernambuco aos holandeses, como pelos capitais que o embaixador manipulou, vindos da Corte, para pagamento da fianca necess4- tia sua liberdade, uma vez encarcerado, quando descoberta pelos Estados Gerais a sua duplicidade, Uma intercedéncia a que nao seria estranha a sua amizade ao Marqués de Montalvo, membro do Conselho Ultramarino e ex-governador do Brasil. PERNAMBUCO E A COMPANHIA GERAL DO COMERCIO DO BRASIL. 45 Um movimento com apoios clandestinos ao mais alto nivel do aparelho poli- tico do Reino e, como se veré, também com claros suportes junto do meio mercantil e dos banqueiros de D. Joao IV, suscita duvidas sobre a surpresa com que foram acolhidas as noticias em Lisboa e em Haia. Quando em Setembro se soube na Ho- landa do sucedido, por navios holandeses vindos de Pernambuco, Sousa Coutinho desconfiou da inocéncia de D. Joao IV, talvez porque soubesse que em Conselho de Estado se haviam discutidos alguns planos para uma sublevagio.”” Mas tendo se- guido para a Haia com a espinhosa missao de negociar a paz, pela compra de Per- nambuco, o embaixador sentiu-se traido por quem desejava melhor servir. A falta de informagées de Lisboa exasperou-o, crendo que o siléncio confirmava a suas suspeitas de algo se passar a margem das suas fungdes como delegado do monarca. Contudo, a correspondéncia que vai trocando ao longo do ano de 1646, quer como Marqués de Niza, quer com a Corte, constréi uma encenagao onde o monarca surge comoactor secundario, tranquilizando o embaixador de que D. Joao IV nao pactua- va com os acontecimentos em Pernambuco. A pretexto de rapidamente terminar com a rebeliao, o rei nomeou Francisco Barreto de Meneses para mestre-de-campo general” e aos seus agentes diplométi- cos, bem como aos membros do Conselho Ultramarino, cuidou da sua imagem im- poluta, conveniente as boas gracas dos Estados Gerais, lavando, qual Pilatos, as suas maos. Entretanto, o grupo inicial de simpatizantes da revolta, com lugar no Conselho de Estado, tera conseguido captar adeptos nos restantes tribunais. Em consulta sobre 0 corpo expedicionério enviado por Teles da Silva, supostamente, para acalmar 0s revoltosos, em 23 de Outubro de 1645, o Conselho Ultramarino exi- biu o consenso quanto a gravidade da situacdo. Respeitava as sensibilidades entéo dominantes, condenando a ingeréncia do Governador, e julgou urgente retirar os revoltosos para a Bahia juntamente com os soldados.” Entre os conselheiros encon- trava-se ja Salvador Correia de Sé, regressado recentemente do Brasil, onde, en- quanto general das frotas em inicio de viagem de retorno para Lisboa, evitara en- volver-sena luta, ao ponto de ignorar os ataques a armada de Serrao de Paiva.” Po- rém, dois anos depois, o Conselho exporia outra visao do problema em resposta a um decreto real que condenariao tribunal por se corresponder em nome domonar- ca com os cabecilhas André Vidal de Negreiros e Joao Fernandes Vieira, “homens que comtra a forma das ordens de V. Majestade estavao fazendo guerra aos holan- dezes com que V. Majestade tinha celebrado tregoa e que entendesse o Conselho que estes homens tinhao feito a V. Majestade grande desservico (...) e que nam se Ihe ha de escrever nem se auia de ter com elles comonicacao alguma, salvo se fosse para lhes dar o castigo que suas culpas merecem”. A severa repreensao 0 Conselho retorquiu com sobranceria. Tratava-se de vassalos d’el-rei, “com os quais este Rei- no tem trato bem como a Bahia”. Convinha antes que se mandasse acudir as “vexa- es que os navios do reino ali sofrem”." Esta posicao do Conselho Ultramarino, onde figuram as assinaturas do Marqués de Montalvao, Matias de Albuquerque e Jorge de Castilho, bem distinta daquela explicitada em 1645,” inseria-se numa cor- rente com expressio maioritaria nesses anos de 1647 e 1648, época decisiva para avolumar as transacgGes entre o reino e a colénia e para se sentirem os danos do cor- so holandés. 46 Leonor Freire Costa As comunicagdes com 0 Brasil Entre 1646 e 1648, a abertura dos pequenos portos de Pernambuco proporcionou uma rpida integracao do nordeste brasileiro na economia do Reino. As conquistas no terreno expunham as fragilidades militares do adversério, abrindo as novas es- cApulas do agticar. A guerra encontrava o seu auto-financiamento” gracas a indis- pensdvel conivéncia dos meios mercantis que ndo descuraram este tréfico arrisca- do, néo esquecendo a importancia dos géneros alimentares basicos para sustento dos sublevados. A mira de lucros chorudos a causar, depois, problemas adicionais: uma navegacao exposta ao saque da Companhia Zelandesa.*' Uma guerra feita de agucar. Também de caravelas temerdrias, armadas por mestres endividados por contratos de crédito a risco maritimo. Caravelas de fugir, como genericamente sur- gemna documentacao emanada do Conselho Ultramarino ou do seu principal cri- tico, Pedro Fernandes Monteiro, entdo, procurador da fazenda. O Pe. Anténio Viei- ra partilhava com ele esse juizo.* Uma ideia com raizes longinquas, dataveis de 1612. Noutras ocasiées, mais do que fugir, entregavam-se, tornando-se “escolas de cobardia”, segundo os seus delatores, tripuladas por gente bisonha, desmotiva- da para combater, nao para salvar a pele, mas porque assim anulava as dividas con- traidas a risco, cujos juros s6 seriam passiveis de pagamento se a viagem decorresse sem percalcos.” Um panorama generalizavel a toda a navegacio brasileira, e nao exclusivamente a Pernambuco, tanto mais dificil de superar quanto o adversério era certeiro nos seus alvos. O saque chegava as pracas holandesas dificultando as reexportagdes portuguesas. Todo 0 universo dos circuitos comerciais ficou ameagado desde que a West Indishe Compagnie dera cobertura ao corso zelandés. Mas a eficdcia de tais acces predatsrias constitui, por seu turno, uma boa demonstracio da quantidade de ca- pitais que o trafico brasileiro captava desde o inicio das tréguas, em 1641, mas, so- bretudo, desde que Pernambuco voltara a despertar as atencdes dos agentes mer- cantis. Numa conhecida consulta do Conselho Ultramarino datada de 2 de Maio de 1651 inventariaram-se os navios perdidos nos dois anos criticos de 1647 e 1648, se- gundo 0 que constava dos livros dos seguros.* Ignorando as detectaveis redun- dancias da informagao, ter-se-4o perdido aproximadamente 111 efectivos em 1647. Porque o tréfico nao paralisou no ano seguinte, é de crer que aquelas baixas apenas digam respeito a uma parte da navegagao, tendo-se, por certo, salvo e dado lucro, outros tantos navios. O ano de 1648 foi mais dramatico, elevando-se o ntimero de baixas a 136 unidades. Trata-se de informacao enviesada, visto apenas respeitar as perdas e se calarem os casos afortunados. De qualquer modo, uma tal florescente actividade de corso da sinais de igual efervescéncia no tréfego brasileiro destes anos. Uma conjectura nao desmentida pelos escassos registos alfandegarios dispo- niveis, encontrando-se uma tendéncia ascendente nas receitas da dizima na alfan- dega do Porto.” A recuperacao seria sensivel desde 1641, atingindo o seu zénite no ano de 1646. Mas a acco agressiva das armas zelandesas nao bastaria para colocar as re- ceitas ao nivel da primeira metade dos anos 40 (ver figura 1). Apesar de todas as PERNAMBUCO E A COMPANHIA GERAI. DO COMERCIO DO BRASIL, 47 25.000.000 20,000.00 15,000.00 © 10,000.00 >| 5.000.000 | otis | Sosa oS 5 S Soe tes st se ae Coral —— Agucar Figura 1 Receitas aduaneiras (Porto) Quadro1 Ano Importadores Importagées (total em arrobas) 55% das importagées (n* de agentes) 1639 7 11.387 ie 1643 123, 31.177 10 1644 161 39.877 2 1647 160, 30.470 18 vicissitudes decorrentes da Revolta de Pernambuco, o tréfico brasileiro reani- mou-se, dando sentido a uma recuperacao fiscal nao totalmente invertida a partir de 1647, quando os 14.378.580 réis colectados ultrapassaram largamente os 7.070.068 réis de dizima corrente de 1639, ou os 12.863.330 réis de 1645. E se aquele montante de 1647 assinala uma baixa em relacao ao ano anterior, nele estao incluf- dos 6.434.116 réis correspondentes s6 a dizima do agucar brasileiro, valor superior ao arrecadado em 1644 (4.121.072 réis). Se houve oscilacdes no conjunto da dizima de cada ano, os valores absolutos das receitas provenientes do trafico brasileiro nao tragam uma linha descendente no perfodo de maior incidéncia do corso zelandés, o que garante a importancia dos capitais mobilizados neste trdfico eo seu paralelismo com uma maior dispersao so- cial do negécio do agticar." O quadro 1 sintetiza essa informacao. Os grandes mercadores de 1639 integram um grupo limitado a sete individu- os que asseguraram mais de 50% das importagoes. A entrada de novos operadores com as Tréguas nao impediu, contudo, que o grupo dos maiores importadores de aguicar se mantivesse restrito. Nesse estrato superior, convém notar a constancia de individuos com futuras conexées ao aparelho da Companhia Geral, como fosse Ni- colau Carvalho, Bento Ribeiro Torrado, Bernardo Pereira Camelo, Francisco de 48 Leonor Freire Costa, Barros e os parentes do cristao-velho Gaspar Pacheco, um dos primeiros deputa- dos da Companhia Geral do Comércio do Brasil. Retenha-se ainda a presenga, em- bora mais discreta, porque exterior a esta elite, do cristao-novo Henrique Fernan- des Mendes. Serd ele, ap6s a morte de Nicolau Carvalho em 1651, quem assumiré as fungdes deste como administrador no Porto da Companhia Geral. Nao se conhece uma fonte igualmente rica a dos Livros de Redfzimos para a ci- dade de Lisboa. Mas os anos de 1646-1648, pautados por uma reactivacao da pro- dugao pernambucana e pelo recrudescimento da navegacio, assistiram ao prota- gonismo da cidade nessas ligacdes arriscadas com a regiao isolada pela guerra." Em termos proporcionais, mas nao absolutos, o interesse da capital por Pernambu- co 86 se equipara ao de Viana do Castelo, onde, tal como em Lisboa, os navios apri- sionadosna rota para o nordeste se aproximaram dos 50% do total de baixas da fro- ta destes portos. Negécios em ascenséo embora ameacados. Compreende-se que a seguranca da navegacao tenha adquirido uma renovada acuidade, discutindo-se no Conse- tho Ultramarino a organizagao de frotas comboiadas por navios bem artilhados, acusando-se, em simultaneo, a precaridade de uma marinha encorpada por medio- cres caravelas que questionavam a reputac3o da monarquia. Foi estudada em Janeiro de 1647 a hipotese do recurso a navios estrangeiros para dar escolta a frotas que se queriam compostas por unidades de porte crescente.”* Tema s6 passivel de reandlise na medida em que 0 ensaio do sistema do comboio, com Salvador Correia de Sa, em 1644-1645, suscitara algumas contrariedades, sobretudo do lado da Bahia edo Rio de Janeiro. A sede do Governo enviou um emissério para revogar o regime de frotas, entre outras razées, alegava-se, porque se Ihe associara um novo tributo sobre o acticar para cobrir as despesas da escolta.® Salvador Correia de SA, um senhor de engenho, apoiado por outro membro do Conselho, Matias de Albuquerque, também ele, em tempos, senhor de engenho em Pernambuco, soube planear e propor um sistema de frotas escoltadas, no qual se comprometiaa investir oito navios de guerra no prazo de cinco anos, em troca do lugar de general. As forcas adversas da Bahia puderam encravar o proceso, reti- rando-lhe continuidade. Desta forma, ainda que as autoridades persistissem na ar- recadagao das avarias, a navegacao brasileira mantinha-se solta desde 1645 e a ac- Ao zelandesa dava razao aos adeptos de uma reestruturacio do tréfego, germi- nando e ganhando solidez, entre homens do negécio, a estratégia da criagao de fro- tas escoltadas por navios de armada. Contra o tratado O envolvimento do reino nas rotas brasileiras dificultaria a accao diplomatica, prendendo os movimentos de Sousa Coutinho. Recebeu o embaixador instrucdes em Janeiro de 1647 para que considerasse a possibilidade da restituigéo de Pernam- buco, caso a paz pela compra nao tivesse sucesso. Auscultou o terreno e PERNAMBUCO E A COMPANHIA GERAL DO COMERCIO DO BRASIL 49 apercebeu-se das vantagens de uma restituicdo para o desejado tratado de paz e, até, para atrasar os preparativos de uma armada da WIC de socorro a Pernambuco, em nome das promessas entretanto avancadas. Expediu uma assidua correspon- déncia para Lisboa, informando como a restituicao se tornara 0 tinico ponto de in- teresse para os Estados Gerais. Lisboa tardou em enviar-lhe resposta. Receoso, es- perou as noticias do impacto da sua actuacao, manobra que mais tarde dir ter sido apenas arquitectada como estratégia de dilacao.... Fosse oundo uma requintada en- cenagao, no Reino foi tomado a letra, nao escapando ao insultuoso rétulo de “Judas do Brasil”. Mas para grande alivio do embaixador, o Conselho de Estado deu-lhe luz verde. A ajuda-lo, iria a caminho o Pe. Antonio Vieira. Recebia carta do secreta- rio Pedro Vieira da Silva, datada de 13 de Novembro de 1647, narrando-lhe que “nao saberei nunca referir a vossa Mercé 0 contentamento que aqui recebemos to- dos e mais que todos S. Majestade de V. Mercé ter este negécio tanto adiante (...) Logo que se receberam as cartas se convocou Conselho de Estado e nelle aprovou S. Majestade tudo o que V. Mercé obrou em todo 0 progresso deste negocio”. Reite- rava-se, assim, 0 que 0 embaixador propusera, tornando-se agora determinante paraa paz definir os moldes em que se faria a restituicao.* Tarefa em que teve aseu Jado 0 eminente Jesusta, convicto de que a desisténcia de Pernambuco era louvada no Reino, visto o préprio Conselho de Estado se ter regozijado com as habilidades do embaixador. Enganava-se, e nesse engodo arrastou Sousa Coutinho, ficando ambos isolados. Pensava Vieira que bastaria 0 favor do Monarca, da Rainha, do principe e do Secretério para o plano ir por diante."* Mas, na verdade, todo o Reino teria ocasiao para se insurgir e D. Joao IV nao dispensaria incondicionalmente o apoio aos seus validos sem primeiro ponderar as consequéncias internas de um tratado de paz ao arrepio do pensamento dominante entre poderosas figuras do aparelho de Estado. Evitaria, assim, agir sem primeiro acautelar a uniao da monar- quia. Nao contrariou Sousa Coutinho nem o Pe. Anténio Vieira, mas também nao quis ratificar o tratado sem ouvir os tribunais e os homens de negécio. D. Joao IV decretou que fossem escolhidos dois representantes de cada Con- selho para coloquiar com Vieira, chegado em Outubro de Haia com os capitulos do tratado e, no Reino, de facto, o tinico defensor do documento que trouxera na baga- gem. Contrariamente as suas expectativas, deparou-se com uma generalizada opo- sido ao projecto de paz, tal como ele e Sousa Coutinho haviam idealizado. A frac- tura entre os escassos adeptos que encontrou no aparelho do Estado (segundo o proprio, “nao so mais de quatro os votos que temos pella nossa parte, D. Joao da Costa, o Conde Marechal, o Bispo do Porto e D. Rodrigo de Menezes”) e os que re- pudiaram aquela via de negociacao nao se identifica com uma cisdo entre “valen- tées e estrangeirados”, como a apresenta Cabral de Mello."* Mais de que uma ciso, os registos deixados por esta consulta aos Tribunais e aos “eleitos do Comércio” re: velam unanimidade em torno da percepcao dos riscos de uma guerra simultanea com duas poténcias europeias, os Estados Gerais e a Espanha. Portanto, a faccao maioritaria que rejeita o tratado nao define uma corrente de opiniao partidaria da guerra, nacionalista, contra os supostos pacifistas esclarecidos, “estrangeirados”. Expressa, sim, a fidelidade a linha de actuacio inicialmente seguida e inspirada nos alvitres de Gaspar Dias Ferreira sobre o montante a angariar para a compra do 50 Leonor Freire Costa territério pernambucano. Dava-se prioridade a paz, mas nao por um preco que abalasse a reputacao da monarquia.” A desisténcia de Pernambuco nao fazia mais do que isso.* Dai a importancia de recolocar a tnica na compra, embora se suspei- tasse da inviabilidade desse retrocesso, Ent4o, o caminho mais adequado, perante arecusa dos Estados Gerais, seria a dilac3o, uma estratégia que confiava na “valen- tia” dos homens de Pernambuco. Os acontecimentos recentes davam consisténcia a esta esperanca. Sem socorros efectivos, sem 0 apoio oficial do reino, que nao da armada de Vila Pouca de Aguiar, mas entdo, para salvar a Bahia, os luso-brasileiros tinham sido capazes de vencer os holandeses nos Guararapes. Ocalcanhar de Aquiles desta decisao residia, porém, no proprio sistema que financiava a revolta. A circulagao de acticar e dos géneros basicos carecia de uma navegacao regular mas segura. A dilagao pedia uma reforma na navegacao brasi- leira, de modo a travar o corso zelandés sobre as caravelas. Uma delapidaco siste- miatica, desde 1647, a p6r em causa as remessas da mercadoriae, se nao era suficien- te para afundar as receitas alfandegarias para niveis idénticos ao periodo filipino, comegava a aniquilar o negécio dos seguros maritimos.®' Um dos mais poderosos senhores de engenho, Joao Fernandes Vieira, chegou a cogitara proibicao da expor- taciio de agticar por reconhecer que boa parte dele cafa nas maos do inimigo.” Pro- vavelmente, nao mais do que uma ameaga, de forma a pressionar a Coroa a tomar medidas, pois tal solucao era contréria aos interesses locais: nao trazendo agticar, 0s navios nao teriam por que ir a Pernambuco com os géneros essenciais de que se sustentava a terra. Dois anos depois da Bahia ter movido as suas influéncias para impedir o regi- me de frotas, representantes das camaras de Igarassu, de Serinhaem, do Arraial do Bom Jesus e da Paraiba pediram a D. Jodo IV que fosse “seruido de acabar com os homens de negocio desa corte e ainda com os demais do Reino obrigando os com alguma mercé que V. Majestade lhes faca ou prometa a que ajao de fazer a estas ca- pitanias rendidas algum bom emprestimo para que junto com o que V. Maj for ser- vido concorrer possao elles em forma de companhia (sublinhado nosso) comprare ar- mar navios no mayor numero que houver lugar”, para ajudar a restaurag4o das pracas, assunto de muita conveniéncia geral para o reino, mas em particular para “os mesmos homens de negécio”; que se fizesse guerra 4 Companhia holandesa com outra Companhia. Um apelo de senhores de engenho com fortes ressonan- cias no Conselho Ultramarino. Lembrava-se, em consulta sobre a carta de Fernan- des Vieira alvitrando ser preferivel impedir a circulacao de navios de acticar, dado o estado das comunicacées infestadas de corsérios, que tais danos seriam remedia- dos se o monarca aceitasse “o offerecimento que os homens de negocio desta cidade lhe tem feito de armarem Navios de forsa e por sua conta e risco navegarem em frotas ao brasil” : Ainda era cedo para a Companhia arrancar, mas j4 nesse ano de 1648 se dera Tesposta aos revoltosos com a elaboragio de um assento, concedendo o monopélio dos mantimentos e munigées. Em carta de 6 de Setembro de 1648 ao Marqués de Niza, D. Joao IV assegurava estar na base da iniciativa a industria dos moradores de Pernambuco que, através dos seus procuradores no Reino, conseguiram a reali- Za¢ao de um contrato para serem enviados “12 navios de forca continuadamente PERNAMBUCO E A COMPANHIA GERAL DO COMERCIO DO BRASIL, 51 pelo descurso de tempo de 4 em 4 cada 4 meses ou de 6 em 6 cada 6 meses”. Um acordo que tera dispensado a mediacdo da Coroa, do estrito foro particular, envol- vendo os “mais grossos homens de negocio” da praca de Lisboa. Congrega- vam-se duas forcas que até lé tinham tido expressao em campos diferentes: por um lado, a utilizagao de navios de grande porte nas comunicacées brasileiras, os quais, naquela conjuntura, se encontravam nas maos de estrangeiros, por outro, a aceita- do do regime de monopélio como contrapartida desse esforgo bélico. Os testas de ferro do negécio foram Jerénimo Gomes Pessoa e Jorge Gomes Alamo, filho do conjurado Diogo Rodrigues de Lisboa. Um contrato nao isento de impropérios, vindos até de produtores da regiao.” no certamente os mesmos que no ano anterior haviam requerido a D. Joao IV que namorasse os homens de negécio para a constituicao de uma Companhia. Em al- guns aspectos, oassento de Jerénimo Gomes Pessoa, um dos accionistas deputados da Companhia Geral, abriu 0 caminho aos estatutos daquela empresa, no que se re- fere ao monopélio dos géneros basicos, mas noutros, 0 terreno carecia de novas la- vras. Destinando-se a iniciativa a assegurar as comunica¢des com os revoltosos, es- perava-se que o fluir dos acontecimentos decidisse qual a solucao a dar ao proble- ma, “ficando aqueles homens socorridos de maneira que poderao suportar por mais tempo a guerra”° No concerto diplomético, nado causava escandalo. Porque de uma negécio particular se tratava, D. Joao IV podia ainda representar o seu alheamento. Pouco depois do contrato com Jerénimo Gomes Pessoa, chegaria ao Reino o Pe. Anténio Vieira. Por decreto de 28 de Outubro de 1648 determinava-se a escolha de dois representantes de cada Tribunal para coloquiar com 0 Jesutta sobre os capi- tulos do tratado de paz assente na desisténcia portuguesa de Pernambuco. O pare- cer do Conselho da Fazenda em tudo se conformou com a exposi¢éo de Pedro Fer- nandes Monteiro, um jurista com inicio de carreira como Juiz do Crime da cidade de Lisboa em 1641. No ano seguinte, era nomeado Juiz dos Contos e Desembarga- dor da Casa do Porto, como mercé pelos bons servicos prestados nas “causas dos presos e castigados por crimes de leza Majestade”.® Tornava-se um dos homens de confianga de D. Joao IV numa época marcada pela conjura de 1641 que envolvera alguns dos mais importantes membros da comunidade mercantil, cristé-nova, en- tre os quais Diogo Rodrigues de Lisboa e Pedro de Baeca.' Em 1647 era Procurador da Fazenda, desempenhando nessas funcées um papel destacado pelos pareceres emitidos sobre as questées da navegacao brasileira. Nessa qualidade elaborou a marcante exposi¢ao que repudiava o tratado de paz, merecendo uma resposta do Pe. Anténio Vieira, conhecida por “Papel Forte”,” na verdade, um extenso articula- do de argumentos para contrariar as igualmente bem articuladas observacées de Pedro Fernandes Monteiro fornecidas ao Conselho da Fazenda. A notoriedade das suas acc6es levou-o a tomar o lugar de Conselheiro da Fazenda, fazendo parte, em 1655, do Conselho de Estado. Do texto que Pedro Fernandes Monteiro elaborou em Outubro de 1648, im- porta aqui sublinhar apenas os t6picos directamente relacionaveis com a formacao da Companhia Geral. Defensor da paz pela compra de Pernambuco, e antevendo as dificuldades de Sousa Coutinho, valoriza a estratégia da dilagado. Nada decidir e 52 Leonor Freire Costa instruir o embaixador para empatar as conversagdes com diversos estratagemas. Entretanto, o Reino deveria prepara-se para a guerra, sustentAvel se fossem garan- tidas as receitas alfandegarias dos portos. Fundamenta-o com a experiéncia dos anos precedentes, em que se assistira a um crescimento das receitas para valores nunca encontrados nos anos negros da uniao das Coroas. Os dados atrés apresen- tados nao o desmentem. Por af Fernandes Monteiro demonstrava como tinica saf- da para Portugal era uma eficaz proteccao a navegacao do Brasil. Insistiu, por isso, nalguns aspectos ja verbalizados num parecer estudado no Conselho Ultramarino em Janeiro de 1647, sobre a organizacao de frotas comboiadas por navios de estran- geiros, contratados por assento, ocasiao propicia para mais uma vez se condena- temas caravelas. No momento em questo, sé restava a alternativa do recurso aca- pitais dos homens de negocio para se organizarem as forcas navais necessérias a es- colta de frotas. Que se pressionasse o grupo a aderir a constituicéo de uma Com- panhia, pois os vassalos assim do Brasil como os do reino, “interessados nas vidas, casas e no aumento do comércio concorrerao com os cabedais para engrossarem 0 poder no mar”. A privatizagio da defesa parecia ser a solucdo posstvel e funda- mental para a recusa da restitui¢ao de Pernambuco. Os capitais nao faltariam “por- que os homens de negocio que comerceao no Brazil sao muitos e com muito bons cabedais e como so os da Companhia hio de negociar (sublinhado nosso) todos entra- rao”. A sugestéo do monopélio, Pedro Fernandes Monteiro acrescenta o convite ao monarca para entrar na Companhia “ndo como Rei, se nao como particular, en- trando pelo Livro da Companhia com quantia de duzentos mil cruzados, o que se pode fazer dando os navios que vierao de Amburgo, ho que valem’”. Finalmente, caso se gorassem as tentativas de aliciamento dos homens de negécio, que se fizes- se cumprir a legislacao que obrigava a navegarem para o Brasil navios de porte su- perior a duzentas toneladas. Conhecida a pobreza da marinha portuguesa, que se apostasse nos estrangeiros, ingleses, nomeadamente. Uma argumentacao pouco “nacionalista” e que nao revelava particular receio quanto a intromissao estrangei- ra nas rotas coloniais. Mais do queo Pe. Anténio Vieira, surpreendido com a oposicao dos mercado- es ao tratado de paz, Pedro Fernandes Monteiro conhecia o sentir da praca de Lisboa. A sua residéncia era frequentada por Duarte da Silva, onde o comerciante se terd até refugiado quando soube ser procurado pela Inquisicao.© A ideia da constituicdo de uma companhia germinava no seio desta elite que de perto lidava com os conselheiros da fazenda e que se descobre na arrematagao de assentos coma Coroa para abastecer as tropas de fronteira, para provimento as embaixadas ou para simples concessio de créditos (v. figura 1), Por isso, o trabalho de Pedro Fer- nandes Monteiro, do Conde de Odemira e do conselheiro Antonio Cavide, na per- suasdo dos homens de negécio para constituir uma Companhia de defesa das fro- tas do acticar, estava em parte encetado, pois entre os principais havia uma prévia ades&o ao projecto. As investidas da Coroa iniciaram-se com uma convocat6ria dirigida aos ho- mens de negécio em 3 de Novembro de 1648, para se reunirem na Casa do Conse- Iho onde lhes seria dadoa conhecer os papeis chegados da Holanda. Uma forma in- directa de pressao. Pelo caminho tomado pela diplomacia, a defesa do negécio do PERNAMBUCO E A COMPANHIA GERAL DO COMERCIO DO BRASIL, 53 Brasil pedia a aceitagdo ou de uma Companhia ou do sistema de frotas. Deve resul- tar desta conferéncia um papel assinado pelos “eleitos para responder a v. Majesta- de”, datado de 20 de Novembro, assinado por quatro dos primeiros deputados da Companhia Geral: Gaspar Malheiro, Baltazar Rodrigues de Matos, Francisco Fer- nandes Furna e Luis Dias Franco e por Duarte da Silva, embora ja enclausurado pela Inquisigao... Ai se respondeu afirmativamente a questao da disponibilidade do grupo para fazer “entre sy huma Companhia com cabedal bastante a armar trin- tae seis naus de guerra (...) para que em duas esquadras de dezoito cada huma e em cada hum anno desem comboy aos navios marchantes partindo todos juntos de Lisboa carregados a Pernambuco e deixarem em aquelles portos seus baixeis de guer- ra. com os mais navios que para elles fossem e navegando com os outros a Bahia fi- cassem allie o resto se partise ao Rio de Janeiro”. Insinuando a falta de coesao do grupo, aconselharam o reia cativar o comércio para por em prética esta companhia, to necesséria para levar os Estados Gerais a cederem a paz pela compra de Per- nambuco. Nao deixa de ser significativo o facto de terem opinado quanto aos peri- gos de uma restituicao, alegando queas 60 mil almas A residentes ficariam “cativas dos holandeses” porque seriam forcados a pagar as dividas, ndo tendo cabedais para 0 fazer. Estes “eleitos” expunham a sua simpatia pelos senhores de engenho, “cola- boracionistas”, endividados, ea Companhia surgia como um processoindirecto de envolvimento do Reino e da Coroa na contenda. Antes de nova conferéncia com o “comércio”, realizada em Janeiro de 1649, Gaspar Malheiro, um dos abaixo-assinados daquele papel, elaborou, a titulo pes- soal, em 5 de Novembro de 1648, uma exposicao onde sugeria os meios para alar- gar as bases do consenso entre comerciantes. Apresentou-se como um incondicio- nal defensor da formacao de uma companhia ou de frotas comboiadas, mesmo que os Estados Gerais viessem a acordar a paz, pois a actividade de piratas e corsdrios ameacava também a costa portuguesa, infestada de biscainhos, dunquerqueses e berbéres. Mostrou-se atento as dificuldades financeiras para a criagao de uma com- panhia, “pella muita gente que nelle (Reino) falta de pouco tempo a esta parte, como pelos grandes cabedais que levardo e outros que tem posto em Italia e outras partes do norte”, uma evidente alusao ao éxodo de cristéos-novos, notavel desde 1646, quandoas inquiricées na Bahia se repercutiram nas redes do reino. Masacres- centou, “contudo, se com esta gente se puder ter algum meio para que recolhesem seus cabedaes e os metesem na companhia’”...°” A isencao do confisco, ou outra for- ma de rever a acco do Santo Oficio, estaria implicita nestas palavras. Gaspar Ma- lheiro, cristao-velho, nao repudiava os investimentos controlados por mercadores cristos-novos, e s6 aqui ressoam as ideias havia algum tempo defendidas pelo Pe. Anténio Vieira. AB de Janeiro de 1649, dando continuidade as soludes propostas por homens do comércio e destruindo o trabalho de Sousa Coutinho e do Jesuita, D. Joao IV orde- nou ao Conde de Odemira, a Pedro Fernandes Monteiro e a Ant6nio Cavide que reu- nissem novamente com os homens de negécio de Lisboa, porque “convinha fazer huma Companhia’ e cabia Aqueles emissdrios “persuadillos a que fagam esta compa- nhia (...) dizendo lhes em meu nome que todo o servigo que neste particular me fize- rem tere} por muito grande e lhes mandarei fazer por elle toda a honra e mercé”, 54 Leonor Freire Costa A génese da Companhia Geral vincula-se, pois, a acco da maioria que recu- sou o tratado engendrado pelos dois “estrangeirados” e no, como cré Evaldo Ca- bral de Melo, a acg&o daquela minoria, onde se inseria o monarca, ainda crédulo nas virtudes de uma paz.a qualquer preco.” Para vingarem as propostas de Pedro Fernandes Monteiro, secundadas pelos principais tribunais, urgia uma solugao que coligasse a maioria dos homens de cabedal. Nesse sentido, a Companhia Geral emergia como um trunfo contra o Pe. Anténio Vieira. S6 desta maneira se vislum- bra alguma coeréncia no texto do “Papel Forte” onde, numa defesa panfletaria da sua missao em Haia, 0 Jesuita se distanciou do que pregara em 1644, em S. Roque, quando mobilizava a opiniao publica para a fundagao de companhias a semelhan- ga dos potentados donorte da Europa. No afa de desmontar a argumentacao de Pe- dro Fernandes Monteiro nos capitulos respeitantes a sustentagdo de uma guerra através da escolta oferecida por uma Companhia e pela extincio de caravelas, Vieira, ou por simples retérica ou por conviccao conjuntural, ignorou uma das principais linhas do seu pensamento econémico, denegrindo a estratégia subjacen- te a constituicdo “da nova companhia em que se diz hé de haver trintae seis navios de guerra”. Em Marco de 1649 estava criada a Companhia Geral do Comércio do Brasil, resultado de um contrato entre a Coroa e os homens de negécio. Sendo que 0s tilti- mos passos que lhe deram corpo resultaram sobretudo da insisténcia do monarca, havia a prévia simpatia de uma elite, sempre presente nos assentos com a Coroa e que néo se inseria exclusivamente no grupo cristo-velho ou cristéo-novo.” A Companhia foi por diante porque esses individuos, tornados primeiros deputados econselheiros, estavam atentos a causa dos revoltosos e aos dividendos do trafico brasileiro. Os homens de negécio nao quiseram desistir de Pernambuco. Afasta- vam-se daquele que, na historiografia portuguesa, tem sido visto como o porta-voz dos interesses mercantis, “burgueses”, da Restauracao, o Pe. Anténio Vieira” e co- lavam-se a Pedro Fernandes Monteiro, feito Juiz Conservador da Companhia, per- sonagem que encarna a promiscuidade entre os quadros dirigentes da empresa eo aparelho de Estado. Os deputados da Companhia Apés a promulgacao dos seus estatutos, abriu-se um perfodo breve de venda pti- blica de accdes: um més na cidade de Lisboa e trés meses nas restantes localidades do Reino.” Juntou-se a maquia de 1.300.000 cruzados,” nela inclufdos 40.000 dos Botelho (Francisco Botelho Chacao), 40.000 dos Serrdes (Afonso Serrao de Oli- veira), 60.000 dos Carvalho (Nicolau Carvalho ?), 16 000 de Francisco Dias de Leao; 15.000 de Gregorio Mendes da Silva, 15 000 dos Silveiras (Diogo e Duarte da Sil- veira); 15.000 de Gaspar Dias de Mesquita, 15.000 de Alvaro Fernandes d’Elvas e 15.000 de Jerénimo Gomes Pessoa. Alguns destes aparecem como primeiros depu- tados e conselheiros, mas falta a lista dos contributos dos restantes dirigentes, PERNAMBUCO E A COMPANHIA GERAL DO COMERCIO DO BRASIL. 55 geralmente esquecidos na historiografia da Companhia, de sangue cristao-velho e visiveis nos assentos realizados com a Coroa. A cabega, no alvar4, consta a assina~ tura de Gaspar Pacheco. Acrescente-se Gaspar Malheiro, Matias Lopes, Sebastiao Nunes, Francisco Fernandes Furna. Alguns com trajectos pessoais que contam como entre o micleo dos principais accionistas havia quem tivesse sérias razdes para agarrar o projecto de Pedro Fernandes Monteiro. Nao é s6 a presenga de Jerénimo Gomes Pessoa, 0 assentista de Pernambuco, entre os primeiros deputados, que intercepta a historia da Companhia com os acontecimentos desenrolados na regio isolada pela guerra. Destaque-se apenas 0 caso de Gaspar Pacheco. Em 1625 intrometera-se na produgao sacarina em socieda- decom Miguel Arnau, comprando a Jerénimo Cavalcanti de Albuquerque dois en- genhos, 0 S. Filipe e Santiago, na serra do Rosario na capitania de Itamaracé, pelo valor de 10.000 cruzados.” Foi ainda nesta década que adquiriu na Goiana um en- genho real, que ser4 queimado com 300 caixas de acticar,* com a entrada dos Ho- landeses. As suas raizes nesta capitania té-lo-40 posto em contacto com Miguel Dias Santiago, de quem se conhece um livro de transacgées realizadas no final do século XVI.” Santiago residia no Porto na segunda metade da década de vinte de Seiscentos e af operava por conta de Gaspar Pacheco. Com o tio deste, Sebastiao Pa- checo, enquanto procurador de Diogo Cardoso, que, por sua vez, estaria em rede com ocelebrado Gaspar Dias Ferreira, radicado em Pernambuco pelo menos desde 1628, realizaram parcerias na posse de navios em transito para 14.” Perdendo Gas- par Pacheco os engenhos com a invaso holandesa, desapareciam dos seus hori- zontes os portos de Pernambuco. Partilhava esse infortinio com outros senhores da Goiana, um dos casos extremos de abandono de engenhos, onde a familia Ca- valcanti, a quem Gaspar Pacheco comprara os seus, teré exercido uma forte in- fluéncia, coagindo os vizinhos a nao colaborar com os invasores.” Neste particular, um dos deputados da Companhia Geral teria uma trajectéria comum a muitos ou- tros senhores de engenho coniventes com os revoltosos, nao para liquidar dividas, mas para reaver os seus bens. Esperanga que julgou logo concretizada, pois em tes- tamento redigido em 1654, no ano da capitulagao do Recife, referia os dois enge- nhos adquiridos em sociedade com Miguel Arnau, avaliando-os em 20.000 cruza- dos.™ Os dezasseis primeiros membros da Junta do Comércio da Companhia Geral revelaram a forca dos interesses forjados pelo trafico brasileiro. Eram armadores, mercadores, alguns até, como Matias Lopes e Sebastido Nunes, envolvidos nos ne- gocios pessoais do Governador Anténio Teles da Silva,*" essa figura cuja responsa- bilidade na revolta nao suscita grandes diividas. Sofreram na pele as consequén- cias do corso, reconhecendo que as frotas eram preferiveis ao risco, tornado insus- tentavel, da aposta em caravelas. Mas acima de tudo, entre eles, havia senhores de engenho expropriados ou associagées aos colaboracionistas endividados. ACom- panhia representava cortar as asas a Sousa Coutinho e esquecer a restituigao de Pernambuco. Se entre esta elite mercantile de banqueiros de D. Joao IV havia razdes sobejas para agarrar as ideias de Pedro Fernandes Monteiro, a envergadura do investimen- to inicial, 36 navios de armada para dar escolta a dois comboios anuais, criaria

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