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Locke, Descartes e o Paradoxo Weberiano’ José R. Maia Neto” 1. O paradoxo weberiano atinge a racionalidade da acao instrumental em que meios sdo utilizados para a realizagao de fins. No caso tipico-ideal {no sentido weberiano do termo), os meios séo desprovidos de valor intrinseco, possuindo valor puramente instrumental, e os fins sdo constitui- dos por, ou referidos a, valores espirituais (sobretudo de natureza ético-re- ligiosa). O paradoxo eventualmente surge quando o prolongado emprego de meios ocasiona sua valoragao pelos atores que os utilizam. Meios se tornam fins em si mesmos e os fins originais que atribuiam sentido a agao instrumental sio esquecidos ou relegados a um segundo plano. Em Weber este paradoxo é uma hipdtese explicativa da configuracéo cultural do mundo ocidental moderno, sobretudo, do surgimento do capitalismo. A metodizacao do trabalho e a acumulacao de bens temporais sdo, de acordo com a ética protestante, meios de testemunhar a predestinagao divina. Com a pratica prolongada desta ética, a acumulagao e racionalizacao do trabalho se tornam fins em si mesmos, sua motivacdo e justificacéo religiosa originais desaparecem, e 0 capitalismo se estabelece como pratica econémi- co-social totalmente secular”. 2. O Ensaio sobre o Entendimento Humano foi inicialmente concebido por Locke como uma investigacéo propedéutica, objetivando a clarificagio de Departamento de Filosofia da Washington University, St. Louis. 1 Este artigo 6 dedicado a Jenny Case. As conversas que mantivemos sobre Max Weber e sobre a ica da filosofia da ciéncia originaram algumas das idéias aqui expostas. Agradego tamibém os comentirios de Richard Watson, Steven Schwarzschild ¢ Plumley. 2 Weber, Max, The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism, trad. Talcott Parsons, New York, Scriber, 1956, O que nos faz penser, n* 3, Setembro de 1990 Locke, Descartes e 0 Paradox Weberiano 7 questGes relacionadas aos « principles of morality and revealed religion », surgidas em um debate ocorrido em 1670°. Trés décadas separam este debate da primeira edicdo do Ensaio. 3. Nao ha muito sobre princfpios de ética e de religiao revelada no Ensaio. Esta lacuna é significativa dada a motivacdo e propésito originais de Locke (eu volto a este ponto no item 5). O que é importante observar aqui 6 que apesar deste relativo siléncio, ha significativos sinais da intencdo original de Locke. Em grande medida as teses epistemolégicas do Ensaio visam (séo meios para) a assercdo e justificagio de posigées eminentemente normativas. 3.1. O livro IV é, para Locke, o principal. As discussao sobre a natureza das idéias (livro Il) e palavras (livro III) suporta a teoria normativa de assentimento que constitui o cerne do livro IV. O grau de probabilidade de uma proposicao ou crenga indica o grau de certeza que ela permite e, portanto, o grau apropriado de convicco com que deve ser assumida. 3.2. A critica ao inatismo do livro I visa 0 encorajamento do uso das faculdades intelectuais de maneira a reduzir ao minimo possivel a dependén- cia do conhecimento na autoridade e tradicao. 3.3. A tese fundamental de Locke da impossibilidade de conhecimento das esséncias reais de substancias visa desviar nossos esforgos intelectuais da inutil busca por esséncias para os objetos apropriados a condic’o e cognigéo humana, a saber, e nesta ordem de importancia, Deus, ética, e os fendmenos da natureza que tenham utilidade pratica. 3.4. O ceticismo de Locke a respeito da possibilidade de conhecimento de substancias tem um fundamento religioso e uma fungdo apologética. Locke diz que nado importa quantas idéias simples sejam adicionadas a esséncia nominal de uma substancia, sua esséncia real permanecerdé sempre para além de nossa compreensdo. Somente Deus conhece esséncias reais uma vez que tal conhecimento pressupde onisciéncia. As « qualidades tercidrias » ou « poderes » de substancias s4o fungées da interagdo de cada substancia particular com uma infinidade de outras no universo (IV, vi, 11). Pretender ter conhecimento de esséncias reais revela uma pretensao, epistemolégica e religiosamente equivoca a onisciéncia. E importante ressaltar que Locke nao pée em diivida a existéncia de esséncias reais ou a regularidade da natureza. Ao contrério, é porque as leis da natureza e as esséncias reais sao por demais complexas que nés, frégeis criaturas, somos incapazes de compreendé-las. O ceticismo de Locke revela, portanto, a estreiteza do conhecimento humano por um lado, ea grandeza da sabedoria 3 Locke faz uma referénca a este debate na introdugio do Ensaio (Locke, John, An Essay Concerning Human Understanding, 2 vols, Alexander Fraser (org.), New York, Dover, 1959, vol. 1 p-31. Todas as ctagGes de Locke que se seguem sio desta edigio), e James Tyrrell, um dos patticipantes, especifica 08 t6picos discutidos (¢f. Fraser, op. cit., p. xvii). 78 José R. Maia Neto divina por outro (eg., IV, iii, 28)". Locke repetidamente denuncia como inaceitavel presunco a tentativa humana de atravessar esta linha. 4. O item 3.3 merece exame mais préximo. Locke afirma serem a ética ea religido matérias « of the highest concernment » (III, ix, 22). Uma outra 4rea para a qual Locke também solicita a atengao dos filésofos é a filosofia natural, nao a peripatética, « especulativa », mas a « nova ciéncia » experimental, capaz de trazer beneficios para a vida pratica. Mesmo esta ultima, porém, tem impor- tancia secundéria. Locke afirma que « morality is the proper science and business of mankind in general », enquanto que as ciéncias experimentais sdo « the lot and private talent of particular men » (IV, xii, 11). 5. Embora 3.4 possa sugerir 0 contrrio, 0 fato é que o Ensaio ndo cumpriu {ou, pelo menos, nao plenamente) seu propésito original. No que diz respeito & clarificacio dos principios éticos, o objetivo visado certamente nao foi atingido. Embora Locke afirme que a ética é passivel de demonstracéo matemitica (III, xi, 16), e que sua demonstragao é matéria da maior importan- cia, Locke admite tratar-se de empreitada extremamente dificil. As idéias préprias da ética nao permitem a mesma significacdo precisa por palavras que permite as idéias mateméticas (III, ix, 8-9). No que diz respeito a religido tevelada, se alguma conclusao pode ser extraida do Ensaio, esta 6 certamente negativa. Locke reconhece a validade de revelagées originais mas é extrema- mente critico da validade de sua transmissio através das geracdes pela tradicdo (oral e escrita). Mesmo o estatuto de uma revelacao original é em grande medida subvertido, uma vez que Locke afirma ser necessério 0 escrutinio das verdades reveladas pelas luzes naturais de maneira que sua autenticidade divina seja atestada (IV, xviii). Além disto, todo cuidado ao lidar com questées relacionadas A religio revelada é necessério para evitar « entu- siasmo » (IV, xix) e para mitigar a autoridade da tradicao (IV, xviii). 6. Dada a dificuldade aludida no que concerne a ética, ea suspeita e limitagdo que envolvem a religido revelada, estas duas 4reas de interesse primdrio sio relegadas a um segundo plano ea ciéncia experimental, de importancia secun- daria comparativamente a ética e religido, torna-se o principal objeto de conhe- cimento. Embora esta terceira 4rea de interesse humano também tenha justificagdo normativa em Locke, trata-se de esfera desprovida de significagdo propriamente espiritual comparativamente as duas outras, O lado normativo de Locke indicado em 3. é portanto obscurecido. O que é realcado € 0 Locke fildsofo da ciéncia. O cardter antimetafisico do Ensaio j4 nao é visto no contexto da 4 Locke observa que ainda que fosse possivel conhecer as microscSpicas qualidades primérias que causam idéias secundarias, tal conhecimento néo seria desejével. Pois neste caso, a fungio prética principal das idéias secundirias, viz., possibilitar a orientagio do nosso corpo no mundo em que Deus nos colocou, ficaria comprometida (Ml, xodll, 12). Locke, Descartes e 0 Paradoxo Weberiano 79 teologia negativa que denuncia o cardter anti-religioso da pretensdo humanaem conhecer substancias, sendo antes explicado em fungao da inutilidade (do ponto de vista pragmitico da ciéncia experimental) de tal conhecimento, O trabalho de Locke como um « under-labourer clearing the ground, and removing some of the rubbish that lies in the way to knowledge » (« Epistola ao Leitor », p. 14), que seria, originalmente, de importancia secundaria e meramente instrumental, torna-se primério e possuido de valor intrinseco. Ao invés de uma propedéutica para a ética e religido, a filosofia torna-se serva da ciéncia, isto é, torna-se filosofia da ciéncia. Os livros 1] e Ill, contrariamente a intengao de Locke (Introducio, p. 27 & I], x

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