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no ensino médio: Peru: IVANDA MARTINS 1. LEITURA DA LITERATURA E ENSINO DA LITERATURA uitas discussdes existem sobre a insergao da leitura literaria na escola, mas o grande desafio de tais reflexdes ainda é fornecer subsidios tedricos ¢ metodol6gicos para auxiliar a pritica pedagd- gica dos professores. Certamente, 0 professor jA deve ter se questionado: “Como devo trabalhar a literatura em sala de aula, visando A motivacao dos alunos para anilise ¢ interpretacZio de obras literarias?” Encon- {rar uma resposta para esse questionamento nao é tarefa facil, se considerarmos, principalmente, que a leitura literdria vem competindo com outros meios de comunicagao, como a internet, por exemplo, os quais tornam-se mais atrativos para os alunos e criam possibilidades de o individuo ficcionalizar, imaginar; fungdes antes mais ativadas pela leitura literdria. Em sala de aula, a literatura sofre um processo de escolarizagio, tornan- do-se alvo de discusses sobre como trabalhar o texto literério sem tornd-lo pretexto para o ensino-aprendizagem de outras questdes, como, por exemplo, algumas nogées gramaticais. Como se estabelece a relagao entre o aluno-leitor € 0 texto literério? De que modo nogies da teoria literaria podem facilitar 0 tratamento dado ao texto literdrio no contexto escolar? Visando refletir sobre tais questionamentos, é importante investigar 0 papel da literatura na escola. No ensino médio, a sistematizago de certos conceitos especificos da teoria ¢ critica literdrias precisa alcangar maior profundidade, exigindo-se do aluno um repertério mais amplo de leituras e 0 conhecimento da organizagao estética da obra literdria. A caréncia de nogdes tedricas e a escassez de praticas de leituras literdrias so fatores que contribuem para que o aluno encare a literatura como objeto artistic de dificil compreensio. Essa situagHo 6 certa- 84 wavps users mente heranga das lacunas do ensino fundamental, como também decorre do préprio encaminhamento dado ao estudo de literatura no ensino médio, con- siderando, por exemplo, a selegao inadequada de obras literdrias, sem levar em conta as leituras prévias dos alunos e as expectativas desse publico leitor. Além disso, as técnicas de abordagem ao texto literario nao so diversificadas, con- tribuindo para que o educando desenvolva uma compreensio mitificada e homogénea do fenédmeno literdrio. Ao longo da trajetéria escolar, da educacdo infantil ao ensino médio, a leitura literdria deveria ser mais valorizada como meio de 0 aluno desenvolver a criatividade ¢ a imaginacSo na interagao com textos que inauguram mundos possiveis, construidos com base na realidade empirica. E fundamental que a leitura literdria seja abordada na escola, tendo em vista as contribuigdes da teoria da literatura, as quais certamente podem facilitar a interac3o do leitor com o texto literdrio. Alguns autores acreditam que as teorias literdrias, embora nao tenham contribuido diretamente para a pratica escolar, influenciam bastante o contexto de sala de aula (cf. Lajolo, 1993, apud Abreu, 1995:117). No entanto, observamos que, se as praticas escolares direcionadas 4 litera- tura acompanhassem as teorias literdrias contempordneas, no estarfamos anali- sando a obra literéria nas escolas, segundo abordagens formalistas, estruturalis- tas, biograficas, entre outras. Se a teoria da literatura tivesse uma maior penetra- g&o em sala de aula, a voz do aluno, no ato da recepgdo textual, nao seria recalcada pelos roteiros de interpretaciio, pelas fichas de leituras, pelos exercicios Propostos pelos livros didaticos e pela Jeitura jé instituida pelo professor. Quando se discute a presenca da literatura na escola, é pertinente considerar as ideias de alguns autores, como Beach & Marshall (1991), por exemplo, no senticlo de estabelecer distingdes entre eizura da literatura e ensino da literatura. A compreensio desses dois niveis implica posturas distintas em face do objeto literario, o que, consequentemente, influenciaré a interago texto-leitor na escola. Segundo Beach & Marshall (1991: 38), a ed:ura da literatura esta relacio- nada 4 compreensio do texto, a experiéncia literdria vivenciada pelo leitor no ato da leitura, ao passo que 0 ensino da literatura configura-se como o estudo da obra literdria, tendo em vista a sua organizacio estética. Na verdade, esses dois niveis estdo imbricados, na medida em que, ao experienciar 0 texto, por meio da leitura literdria, o aluno também deveria ser instrumentalizado, a fim de reconhe- cer a literatura como objeto esteticamente organizado. No entanto, a escola parece dissociar esses dois niveis, desvinculando o prazer de ler o texto literario A LITERATURA NO EYSINO MEDIO. 5 (produzido pela /eitura da literatura) do reconhecimento das singularidades estéticas da obra (proporcionado pelo estudo/ensino da literatura). E preciso que a escola amplie mais suas atividades, visando a /eitura da fiteratura como atividade lidica de construgao e reconstrugao de sentidos. Contudo, parece-nos que o contexto escolar privilegia o ensino da literatura, no qual a leitura realizada pelos professores, inevitavelmente, é diferente da- quela efetivada pelos alunos, pois a diversidade de repertérios, conhecimento de mundo, experiéncias de leitura influenciam diretamente o contato do leitor com o texto. Tanto a Jettura da literatura, quanto 0 ensino da literatura deve- riam estar presentes no contexto escolar, de modo articulado, pois so dois niveis dialogicamente relacionados. Como afirmam Beach & Marshall (199f: 39), 0 desafio do professor é ajudar os alunos a elaborar ou rever suas interpretagées iniciais, sem descartar totalmente suas primeiras leituras. © professor deveria colaborar com os alu- nos, visando a construco/reconstrugao de interpretagdes e nao simplesmente apresentando leituras j4 prontas. Conforme esses autores (1991: 9}, uma das formas de mapear alguns problemas relacionados ao ensino de literatura é considerar a interagio entre professor, alunos ¢ texto literario. E preciso, ainda segundo Beach & Marshall, que o professor reconheca dois niveis de leitura. Por um lado, ha a leitura realizada pelo aluno que esté construindo sua interpretagdo a partir, muitas vezes, de um tinico contato com © texto. Por outro lado, hd a leitura do professor, em que entram fatores mais complexos, tais como: o saber linguistico, o conhecimento de dados contextuais, além da nogHo de elementos instrumentais especificos da teoria e critica literdrias. Os autores também argumentam: o professor deveria confrontar o aluno com a diversidade de leituras do texto literario, para que o educando reconhe- ga que 0 sentido nao esta no zexto, mas é construido pelos leitores na interagéo com textos. F: justamente a partir dessa interagdo do aluno com textos que 0 estudo da literatura se torna significativo. Objeto de anilises superficiais, na escola, o texto literrio é tratado de modo isolado, como espécie de expressiio artistica que por si sé j4 carrega significacdo propria e independe da atualizacao do aluno leitor. Além disso, como afirma Rouxel (1996: 73), a escola ainda cultiva uma visio tradicional da literatura, considerada como um conjunto de textos a ser admirado, e caracterizada por um “bom estilo”, digno de ser imitado pelos alunos. A concepgao de literatura como objeto artistico ancorado num proceso histé- 8G waxns warms tico-social precisa ter uma penetragao maior no espaco de sala de aula. Segun- do Rouxel (1996: 73), é fundamental que a escola reavalie a nogio da literatura como expressiio de “bela linguagem”. Na perspectiva de Zilberman (2001), a escola, a critica literaria, a academia ¢ a imprensa sao instituig6es capazes de conferir e legitimar 0 estatuto de certas produgées artisticas em detrimento de outras. Segundo a autora (2001: 82), tais entidades estabeleceram a concepgao de literatura enquanto “belas letras” © passaram a colocar normas e exigéncias aos escritores. A nogio da literatura como “belas letras”, apontada por Zilberman, ou como um conjunto ce textos marcados pelo uso de uma “bela linguagem”, conforme Rouxel, promove uma elitizaggio das obras literdrias, supervalotizando 0 canon literario, o que pode distanciar a literatura do aluno. A visio da escola sobre a literatura difere consideravelmente da nog3o que o aluno leitor tem acerca do literdrio. E preciso repensar os julgamentos de valor disseminados pelas instituigdes que abordam a literatura sob prismas distintos (a escola, a critica literaria, a imprensa etc.), quando consideramos que cabe ao leitor construir 0 seu préprio “canon literario”, valorizando seu repertotio de leituras. 2. Lerrura, LITERATURA E INTERDISCIPLINARIDADE Como manifestagao artistica concretizada na articulagdo entre motivagdes politicas, histéricas, sociais, econdmicas, enfim, motivages diversas que re- percutem no fazer estético, a literatura nao pode ser compreendida como objeto isolado, sem as interferéncias do leitor, sem 0 conhecimento das condigdes de producao/ recepgdo em que o texto foi produzido, sem as contribuicdes das diversas disciplinas que perpassam o ato da leitura literdria, inter/multi/ transdisciplinar pela propria natureza plural do texto literdrio. Retomamos a conhecida citag%io de Barthes (qpud Lajolo, 1993: 15), aa qual 0 autor apresenta uma visdo interdisciplinar da literatura: Se, por nao sei que excesso de socialismo ou barbarie, todas as nossas disciplinas devessem set expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literétia que deveria ser salva, pois todas as ciéncias esto presentes no monumento literario. Essa visio da literatura como disciplina que envolve ¢ correlaciona outras areas do conhecimento (histéria, filosofia, geografia etc.) ainda precisa ser mais difundida no espago escolar. A LITERATURA No ESSINO MEDIO. BT O texto literdrio é plural, marcado pela inter-relagio entre diversos cédigos (tematicos, ideolégicos, linguisticos, estilisticos etc.), ¢ 0 aluno deveria compre- ender a interagao entre literatura e outras dreas que se relacionam no momento da constituicio do texto. Segundo Reuter (1986: 76), “a leitura é um objeto largamente transdisciplinar”, por isso qualquer discussiio teérica sobre 0 ato de ler deve considerar a reflexo sob uma perspectiva mais ampla que envolva as diversas dreas atreladas 4 pratica da leitura como ato politico e social. Na 6tica de Kleiman & Moraes (1999: 30), “a leitura poderia ser carac- terizada como uma atividade de integrago de conhecimentos contra a frag- mentagaio”. Essa perspectiva das autoras ressalta a natureza interdisciplinar da leitura, devido a abertura que o texto proporciona ao leitor para relacionar o assunto que esta lendo a outros assuntos que j4 conhece, favorecendo a arti- culagSo de diversos saberes. Nesse sentido, leitura e literatura mantém relagées dialégicas, pois reve- lam uma natureza interdisciplinar quando convergem para um mesmo ponto: o didlogo entre as diversas 4reas do conhecimento subjacentes ao ato da leitura e 4 recepco do texto literario. Abordar a literatura, tendo em vista as nocgdes de intertextualidade, interdisciplinaridade, transversalidade e intersemiose é, sem divida, uma pre- missa fundamental para que o aluno desenvolva uma compreensao mais critica do fendmeno literario, sendo este inserido nas praticas sociais ¢ culturais. Como exemplo para essa abordagem plural do texto literdrio, sugerimos a andlise do texto Poema tirado de uma noticia de jornal, de Manuel Bandeira, © qual é muito recorrente nos livros didaticos e pode ser trabalhado pelo professor de modo critico. Poema tirado de uma noticia de jornal Manuel Bandeira Joao Gostoso era carregador de feira livre ¢ morava no morro [ca Babilénia num barrecdo sem numero Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dangou Depois se atirou na iagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. {BANDEIRA, Manuel. In: Antologia poética. 7. ed. Rio de Janeiro, José Olympic, 1974. p. 81) Todas essas nogdes a seguir analisadas — intertextualidade, interdisciplinaridade, transversalidade ¢ intersemiose — esto imbricadas, na medida em que convergem para um ponto: a critica 4 fragmentagio dos con- teddos curriculares apresentados aos alunos sem articulacdo com o social. TANDA MARTINS. 88 >. NogAo Intertextualidade Segundo Kristeva (1974: 64 “todo texto se constr6i como mosaico de citagdes”, ou seja, todo texto apresenta relagdes dialdgicas com outros textos, que configura o principio da intertextualidade como consiitutivo das praticas textuais, Alleitura literaria é, por natureza, intertextual, assim como outras praticas de feitura. Interdisciplinaridade A pratica pedagdgica interdisciplinar envolve a integracao de educadores num trabalho conjunta que revele 20 aluno a necessidade, cada vez mais usgente, de construgzo de um conhecimento critico e global, capaz de perceber a realidade nao como dado estavel, mas como fenémeno dindmico, mutavel. A interdisciplinaridade prope a integracio entre teoria € pratica, contedidos curriculares e realidade, professor e aluno, Ieflexdo ¢ acdo (cf. Lick, 1994), Intersemiose Envolve as relagées entre Ciferentes linguagens, pertencentes a diversos cédigos semidticos, que se inter-relacio- nam na produgio artistica. ‘Transversalidade Os temas transversais ndo se constituem em novas areas, mas | ATIVIDADE Trabalhar os diversos niveis de intertextualidade, reconhecendo o processo de absor¢ao e transformacao de um texto em outro. 1. Intertextualidade heteroautoral (relacdes entre textos produzidos por diferentes autores): realizar uma leitura intertextual do poema, considerando as relacGes dialagicas entre esse texto de Bandeira ¢ 0 Poema do Jornal, de Drummond. ' 2. Intertextualidade exoliteraria {relacdes entre , textos literdrios nao-literarias): estabelecer relagdes entre o texto literatio de Bandeira e textos ndo-literarios (noticias de jornais), focalizando as semelhancas (tema abordado) e diferencas (forma, ritmo poético, recursos estilisticos, discursivos etc.) entre os textos. — Abordar as relagées entre literatura brasileira (contextualizando as caracteristicas modernas do texto, atticulando 0 texto ao contexto em que foi produzido) e lingua portuguesa, sem utilizar 0 texto como pretexto para anélises gramaticais. Observar o estilo, a conciséo do texto, a estrutura relacionada a tematica abordada, a coeréncia, 0 ritmo postico, 0 carater narrativo do texto, 0 hibridismo dos géneros literarios etc. — Enfatizar o estudo do texto literario, com base nas contribuigdes de diversas disciplinas: histéria, geogratia, sociologia etc. Focalizar o proceso de marginalizacao social « do individuo que mora na periferia ("morro da Babilénia, num barracéo sem niimero”), em um lugar qualquer, sem identificagdo. Considerar aspectos da geogratia, identificar os espacos geogréficos (morro da Babilénia, bar, barracdo, | lagoa Rodrigo de Freitas), observando a questéo ambiental, clém de enfatizar o espaco social. © personagem nao tem um sobrenome (Jodo Gostoso), o que ratifica a sua falta de identidade enquanto cidaddo que vive em condigées precérias, sem emprego reconhecido (“carregador de felra livre”), sem condicées dignas de vida, ~— Considerar 0 didloge entre literatura e outras artes (pintura, musica, fotografia etc.), reconhecende a diversidade * de linguagens e cédigos. Analisar 9 texto de Bandeire, relacionando-o a fotogratias, pinturas e misicas direcionades ao tema abordado no poema Na andlise do poema de Bandelta, podem ser enfatizados os | seguintes temas transversais: a) ti 0 suicidio de Joo Gostoso envolve principios éticos A-LITERATURA NO EYSINO MEDIO. BQ num conjunto de temas que € religiosos que podem ser abordados pelo professor na aparecem transversalizados, interagdo com 05 alunos; permeando a concepcio das | b) satide: as condigées de vida de Jodo Gostoso, habitante diferentes dreas, seus objetivos, | da periferia, no morro da Babildnia, sem saneamento bésico, contedos ¢ orientacées | espaco distante dos postos de satide. Focalizar 0 ato de didaticas. Os PCN do Ensino \ Jodo Gostoso beber, talvez como forma de fugir da Fundamental (1998c) propdem os | realidade, buscando, na bebida, um refigio. Essa discusséo seguintes temas transversais: | envelveria um debate mais amplo sobre as drogas; ética, satide, orientacio sexual, | c) meio ambiente: a degradacaa do espaco socioambiental, trabalho e consumo, meio {a poluigio da lagoa Rodrigo ce Freitas, a moradia na zona ambiente e pluralidade cultural, | urbana de maior prestigio versus a habitacéo nos morros e "A transversalidade 56 faz ! periferias; sentido dentro de uma concepcéo | d) trabalho e consumo: destacar a condigda de Joao interdisciplinar do conhecimento" 1 Gostoso como “carregador de feira livre”, consideranda o {Busquets et el., 1998). | direito de todo cidadao ao trabalho socialmente ' reconhecido, com carteira assinada. Debater sobre empregos ' de maior prestigio ¢ aqueles de menor presiigio, discutindo i © preconceito social em funcéo do trabalho que cada um ) desempenha na sociedade. Nao pretencemos reduzir o texto de Bandeira a um “modelo” on “roteiro de leitura” preestabelecido, visto que a natureza polissémica da literatura supera os limites dos esquemas de leitura. No entanto, propomos uma reflexdo, na tentativa de construir, juntamente com o aluno, uma compreensio mais ampla e critica da literatura, reconhecendo 0 carater plural do fazer artistic. Nesse sentido, o exemplo dado funciona apenas como uma leitura possivel do texto literario, que sé fara sentido quando compartilhada com outros leitores, sendo alterada, transformada, enriquecida com base nas outras leituras que certamente existirao. 3. ESCOLARIZACAO DA LEITURA LITERARIA Atualmente a escolarizagio da leitura literdria é um tema muito debatido, por diversos autores. Soares (1999: 25), por exemplo, distingue dois tipos de escolarizagao do texto literdrio: uma adequada, que conduz eficazmente as pra- ticas de leitura presentes no contexto social; e outra inadequada, aquela que ocorte frequentemente em sala de aula, provocando a resisténcia ¢ a aversio dos alunos aos livros, além de apresentar-se distante das praticas sociais dé leitura. Numa escolarizacao inadequada, observa-se a auséncia de uma proposta de ensino interdisciplinar, fator que contribui para o estudo do texto literatio como elemento isolado das demais disciplinas, pois o aluno nao percebe a integragao entre a literatura e as demais 4reas do conhecimento. Soma-se a isso 90 mass xanrass © fato de a escola explorar atividades que tratam a literatura como uma espécie de “universo de signos agradaveis, tranquilizadores e decorativos, que ‘ajuda’ co aluno a escrever sem erros de sintaxe ou de ortografia, ¢ indicar as datas das obras ‘principais’ e a biografia dos seus autores e — o que é mais importante — ase preparar para ser um bom consumidor de ‘bens culturais’”” (Gongalves Filho, 1990: 25). Essa concepgao de literatura como fendmeno decorativo e belo — trans- mitida pela maior parte das escolas — reflete-se na propria dinamica de sala de aula em que se privilegia a leitura de obras classicas produzidas por eseritores ja consagrados pelo canon literdrio. Sem divida, é preciso que a escola incen- tive a leitura de obras classicas, mas o ensino de literatura ndo pode ficar confinado apenas A tradigSo classica. E imprescindivel que o professor reavalie suas leituras, a fim de também levar a produgdo de autores contempordneos para a sala de aula, até com o objetivo de questionar o cdnon literétio. Além disso, é preciso considerar que varias obras, apesar de no terem grande representatividade no canon, merecem ser lidas e estudadas pela riqueza tematica e estética que apresentam. Nesse sentido, é interessante trabalhar a literatura a partir de uma abordagem que considere, por um lado, a diacronia, ou seja, o estudo do texto literario por meio de uma perspectiva histérica que resgate as obras do passado, e, por outro lado, a sincronia, isto 6, a andlise da obra considerando as manifesta- ges sociais e culturais do presente que influenciam a producio e a recepedo do objeto literdrio. E necessdrio que o aluno compreenda a literatura como fendmeno cul- tural, histérico e social, instrumento politico capaz de revelar as contradi¢des e conflitos da realidade. Ao trabalhar com a leitura literdria, o professor pode orjentar os alunos para a funcdo ideoldgica dos textos literarios, na medida em que “antes de se transformar em discurso estatico, subverter a ordem provavel da lingua para alcangar determinados efeitos de comunicagio, a literatura ‘se alimenta’ na fonte de valores de cultura” (Gongalves Filho, 2000: 104). Desse modo, a literatura deveria ser compreendida como producio artis- tica inserida na cultura, sofrendo influéncias de ordem politica, social, ideo- légica, hist6rica, entre outras. Porém, normalmente, o aluno nao apresenta essa compreensio mais ampla, nZio conseguindo entender que a obra literaria € produto de um contexto maior, no qual visées de mundo, valores ideold- gicos de uma época, costumes, lendas, enfim, a diversidade de elementos culturais participa ativamente, influenciando a constituigdo do texto. A LITERATURA NO ENSING MEDIO. OY Concordamos com Lopes (1994: 368), quando afirma que “ensinar literatura nao pode deixar de ter em conta esta dupla dimensio dos textos literdrios pela qual, ao mesmo tempo que fazem parte da cultura, e por conseguinte do campo da opiniao ou das significagdes consensuais, sio sobretudo o abalar destas”. Ensinar literatura n3o é apenas elencar uma série de textos ou autores e classificd-los num determinado perfodo liter4rio, mas sim revelar ao aluno o carater atemporal, bem como a fungio simbélica e social da obra literaria. Considerando essa fungSo social da literatura, retomamos as consideragdes de Beach & Marshall (1991:17): “O estudo da literatura poderia ser justificado por sua habilidade para ajudar os alunos a compreenderem a si prdprios, sua comunidade e seu mundo mais profundamente”. F, essa integrac&o enire 0 texto literario e a dimensio social que a escola poderia mostrar aos alunos. Estes deveriam perceber as possibilidades de si cago que o texto literdrio permite, como objeto artistico polissémico que transgride convengdes e envol- ve o leitor num jogo de descobertas e redescobertas de sentidos. No entanto, essa tarefa de colocar o aluno diante do texto literario, como objeto hidico de construg%o ¢ negociagao de sentidos, ainda se revela como um desafio no contexto escolar. Conforme Résing (1988: 14), “o que vem acontecendo no Brasil é uma pratica de ensino de literatura predominantemen- te empirica, em que é desconsiderada, ou por omiss&o ou por desconhecimen- to, a natureza da leitura, da literatura e suas implicagdes”. Nesse sentido, ha uma necessidade evidente de reavaliagao das metodologias direcionadas ao ensino de literatura, visando 4 busca de alternativas didaticas de ensino-aprendizagem capazes de motivar os alunos a leitura por prazer. Nao cale mais continuar privilegiando uma escolarizagéio inadequada da literatura, encarando-se 0 texto literario como simples pretexto para questdes de anélise gramatical. Também a escola nao deveria continuar trabalhando a literatura como um fenémeno isolado das outras disciplinas, privilegiando enfoques estruturalistas, formalistas e biograficos de abordagem do texto lite- rario, subestimando o papel do aluno leitor na reconstrugio textual. Na visao de alguns autores como Bordini & Aguiar (1983: 17), por exem- plo, os problemas do ensino da literatura no esto nos contetidos trabalhados em sala de aula, mas no modo como eles so abordados, dada a auséncia de uma discussio metodolégica capaz de auxiliar a pritica pedagégica. Essa situac%o pela qual passa a literatura certamente estd relacionada a certos mitos presentes na escola, os quais reforgam visdes estereotipadas acerca das relagdes entre o texto literario e o aluno leitor. 92 wanna warrins 4. LITERATURA E ESCOLA: RELAGAO MARCADA POR MITOS A relagao entre literatura e escola apresenta-se, normalmente, marcada por concepgies estigmatizadas sobre o fendmeno literario, concepgdes subjacentes aos materiais didaticos e paradidaticos, bem como a pratica pedagdgica dos professores. Sentimos a necessidade de refletir sobre essas noges estereotipadas, verdadeiros mitos que orientam o trabalho com a literatura em sala de aula. Estamos considerando a nogio de mito de acordo com a abordagem de Bagno (2001), em seu livro 4 dramdsica da lingua portuguesa. Para 0 autor, 0 mito tende para o provérbio, é formado pelo chavo de natureza acritica que, repetido a exaustio, se torna pura metalinguagem. 41, Literatura € muito dificil (mito 1) A escola, de modo geral, perpetua esse mito quando incentiva apenas a leitura de obras classicas, as quais apresentam uma linguagem pertencente a contextos espacotemporais distantes da realidade do aluno. Nem sempre, essas obras s&o contextualizadas, de modo a mostrar aos alunos as conexées entre as caracteristicas estilisticas do texto e 0 contexto em que ele foi produzido. As atividades com a literatura no ambiente escolar se dio, na maior parte das vezes, por meio de textos fragmentados, extraidos dos livros didaticos, dos paradidaticos e das apostilas. O professor sabe que a literatura deve ser traba- lhada por meio de textos, mas, sob 0 estresse do dia a dia, tendo de dar aulas em diversas escolas, sem tempo para ler e fazer a sua propria selegio de textos, o educador geralmente encontra nos materiais diddticos a ferramenta de tra- balho mais acessivel. Nao estamos afirmando que o livro didatico de literatura deva ser abo- lido pelo professor no trabalho com a leitura literdria, pois atualmente se percebe a preocupacao de varios manuais didaticos com a qualidade das pro- postas de abordagem direcionadas ao texto literdrio. Muitas contribuicdes da teoria ¢ critica literéria também podem ser visualizadas em diversos livros didaticos que propdem enfoques intertextuais, interdisciplinares ¢ intersemié- ticos, enfatizando a diversidade de géneros, textos e linguagens na organiza- a0 didatica dos contetidos. No entanto, a leitura literria, como qualquer outra pratica de leitura, no deveria se restringir ao livro didético, pois os alunos comegam a ler apenas os fragmentos de textos apresentados nos manuais didaticos, sem, muitas vezes, conhecerem as obras originais. Tudo depende da formacao do professor e de sua A LITERATURA No EXSINO MEDIO 93 habilidade para transformar o livro didético em aliado na motivagio dos alunos em sala de aula e ndo em apenas um tinico recurso que, utilizado a exaustao, pode tornar as aulas cansativas. E preciso, pois, diversificar as atividades e os recursos didaticos utilizados, para atrair o aluno ao estudo da literatura. Diante da superabundancia de textos fragmentados, apresentados por diver- sos manuais didaticos, o aluno pode perder-se, sem saber que caminhos trilhar, quais textos ler, Assim, o ato de ler transforma-se, para o aluno, no consumo rapido de textos, cuja decodificacao se torna superficial. Sem conseguir “ler as entreli- nhas”, ou “ler para além das linhas”, como propés Silva (1998), sem entender as xelagGes intertextuais, reconstruindo o nao dito, fazendo inferéncias, o aluno en- cara a literatura como algo complexo, dificil de ser compreendido. Além disso, quando aborda a andlise e a interpretacio de textos literdrios, a escola parece supervalorizar a intencfio do autor, como se toda a responsa- bilidade sobre a significagao textual recaisse sobre o produtor do texto. A literatura torna-se, assim, um objeto impenetravel, indecifravel, e 0 aluno- leitor nao se conscientiza de sua participago como coenunciador do texto, pois seu papel na recepgao textual no é tio privilegiado. A leitura literaria deveria ser compreendida, na escola, como ato de enunciagdo e coenunciagdo', tendo em vista o carater dialégico instanrado entre autor-texto-leitor na negociagao de sentidos que a obra literaria sugere. Como afirma Maingueneau (1996: 32), “€ © coenunciador que enuncia a partir das indicagdes cuja rede total cons titui o texto da obra, Por mais que uma narrativa se ofereca como a repre- sentagdo de uma histéria independente, anterior, a histéria que conta sé surge através de sua decifracio por um leitor.” Por meio da disseminagao do mito /teratura é muito dificil, muitos alunos mostram-se avessos a pratica da leitura literaria, por nao encontrar uma fung3o pragmética no ensino-aprendizagem da literatura. Perguntam-se: “Por que € para que estudar literatura?” Segundo Zilberman (s/d: 32), s6 o vestibular explica a presenga da literatura no ensino médio, pois 1 Conforme Mainguencau (1996: 5), todo enunciado é produto de uma enunciaco, que supde um enunciador, um destinatitie, um momento € um lugar particulares. Esse conjunto de elementos define a simagio de enunciagéo que apresenta uma natureza dialégica, na medida em que o destinatatio participa ativamente na recepgio do enunciado, atuando na coenunciagio textual. Em outros termos, quem enuncia tem sempre em mente o seu coemanciador, dado © caréter dialgico da linguagem, como propés Bakhtin (1993). 94 svaxpa wants © conhecimento da literatura no é propriamente profissionalizante: o alu- no, ao estudé-la, nao adquire nenhum saber pratico com 0 qual possa se manter financeiramente; logo, no se justifica enquanto “terminalidade”. De outro, os estudos literdrios ndo sio fundamentais para o percurso aca- démico do universitirio, a no ser que se dirija ao curso de letras; portanto, a “continuidade” também nao comparece. Desse modo, o aluno estuda a literatura para “passar no vestibular”, sem compreender o fendmeno literdrio 3 luz de uma perspectiva mais ampla que con- sidere a natureza interdisciplinar da leitura literdria, a fungo social da literatura como um meio de conhecer 0 universo transfigurado, reinventado no texto. 4.2. E preciso ler obras literdrias para escrever bem (mito 2) Existe o mito de que, para o aluno desenvolver estratégias comunicativas edominar a norma-padrao, é necessario o estimulo a leitura de obras literarias, geralmente os consagrados classicos, como Machado de Assis, José de Alencar € outtos. As prdprias gramaticas normativas perpetuam esse mito, quando exemplificam 0 uso da norma linguistica com fragmentos de textos literarios, desconhecendo que o fazer artistico ndo se prende a regras, mas transcende os limites da gramatica padrao. N&o é valorizada a intengao estética que propicia a liberdade criativa do autor, o qual pode fugir da norma culta se sua intencio é representar o dialeto nao padrao, por exemplo. Na escola, incentiva-se a quantidade de obras literdrias lidas durante 0 ano, mas no ha uma real preocupagao sobre como tais obras sfo de fato lidas, de que modo se estabelece a relacZo texto-leitor. O aluno ndo consegue acom- panhar o ritmo de leituras indicadas pelo professor e comega a encarar a leitura literdria como pritica cansativa. Nessa perspectiva, a leitura de obras literarias tem quase sempre como objetivo final a produgao de uma redagio sobre 0 texto lido ou o preenchi- mento das tradicionais fichas de leitura. Cria-se no aluno a expectativa de que, apés a leitura de uma obra literdria, o professor ir avaliar a recepgao do leitor por meio de exercicios que, de modo geral, iro de fato avaliar uma “compe- téncia” no dominio da norma gramatical, do registro escrito, e ndo a “com- peténcia leitora” dos alunos. Sabe-se que a leitura e a escrita mantém relagao dialégica, na medida em que autores-textos-leitores interagem no processo de producdo e recepgiio dos textos que circulam dentro e fora da escola, O papel do autor pressupde a atividade cooperativa do leitor, sem a qual a reconstrugao da significagio ALITERATURA NO ENSINO MEDIO QB, textual ndo ocorreria como processo de coenunciacao. Portanto, nao se deve- ria trabalhar a leitura literaria apenas com a finalidade de realizar tarefas como produgio textual, resumos, preenchimento de fichas de leitura. Ratificamos ser necessario diversificar as atividades voltadas 4 leitura, incentivar 0 aluno a ler sem, necessariamente, ser avaliado, deixando-o sentir-se livre na escolha de seus proprios textos. Sé assim, talvez, o aluno se sinta mais motivado 4 leitura literaria. O ato de ler precisa ser compreendido como pratica social. E necessatio ler literatura para experienciar o texto, transformar-se no ato da leitura, enten- der o mundo contido nos textos, articulando-o com a realidade empirica. O mito 2 perpetua uma escolarizac&o inadequada da literatura, segundo a qual a jeitura literaria esté diretamente atrelada ao cumprimento de tarefas escolares. 4.3. A linguagem literdria é marcada pela especificidade (mito 3) Essa visio da especificidade da linguagem literdria est ainda presente no contexto de sala de aula, em que a obra literdria € analisada com base em enfoques formalistas e estruturalistas. As relagdes entre texto-leitor, texto-con- texto muitas vezes nao sao consideradas como deveriam. ‘Varios autores discutem as relagdes dialdgicas entre a linguagem literdria ea nao literdria, desmistificando-se a visio dos formalistas russos*. Pratt (1977), por exemplo, propée o estudo da obra literéria como representacio de fala diretamente relacionada ao contexto comunicativo. A abordagem de Pratt pretende integrar o discurso literério numa descrigao geral de todas as nossas atividades comunicativas, questionando a perspectiva dos formalistas russos quanto a especificidade de uma “linguagem literdria”. Na 6tica da autora, como o narrador de narrativas naturais, o falante de uma obra literéria expde uma experiéncia, criando uma versio verbal, na qual ele e nés, juntamente com ele, contemplamos, interpretamos e avaliamos os fatos narrados. Nesse sentido, o processo interpretativo é um dos mais impor- tantes usos da linguagem, uma vez que as obras literdrias se desenvolvem num contexto e, como qualquer elocucio, nao podem ser analisadas independen- 2 Os formalistas russos entendiam a obra literdria marcada pela literariedade, ou seja, recursos estéticos € estilisticos que diferenciavam a literatura do discurso cotidiano. Os formalistas analisavam a obra em sua imanéncia, sem privilegiar outros componentes essenciais na comanicagio literiria, como a participago efetiva do leitor, a relagio da obra com 0 contexto etc. Nesse sentido, priorizavam a especificidade de uma linguagem literaria, espécie de violencia simbélica em relagio & linguagem no uso cotidiano. 96 wanna wares temente da situagdo que envolve o didlogo autor-leitor via texto, conforme as condigdes de produgao e recepgao. Desse modo, a relagao entre linguagem literdria e nao literria precisa ser abordada na escola a partir dos pontos de confluéncia entre a literatura ¢ os discursos que produzimos cotidianamente. O que diferencia 0 literario do nao literario no esta imanente ao texto, mas participa de um processo mais amplo que envolve as condigdes de produgo, recepcdo e a mediagao entre autor- -texto-leitor. Segundo Lajolo (2001:18): Para que um texto seja considerado literatura [...] é preciso algo mais do que interagao entre seu autor e seus leitores. A literatura tem de ser procla- mada, ¢ s6 os canais competentes podem proclamar um texto ou um livro como literatura. Entre as instincias responsaveis pelo endosso do cardter literario de obras que aspiram ao sratus de literatura, a escola é fundamental. A escola é a instituigio que hd mais tempo e com maior eficiéncia vem cumprindo o papel de avalista e de fiadora do que é literatura. Ela é uma das maiores responsa¥eis pela sagragio ou pela desqualificag&o de obra ¢ de autores. Ela desfruta de grande poder de censura estética — exercida em nome do bom gosto — sobre a produgdo literéria. Como se observa, a escola parece atuar como instituic&o que define quais so os textos literdrios, quais sio os nao literarios, quais sao os melhores e os piores autores, quais obras deveriam ser lidas, visando, predominantemente, apresentar aos alunos que a literatura é marcada por uma especificidade da linguagem e quanto maior o grau de fiterariedade de um texto, melhor ser4 © seu valor estético. Em resumo, os mitos apresentados disseminam perspectivas ideolégicas preconceituosas subjacentes a pratica pedagdgica que precisa ser repensada. Ao perpetuar esses mitos, a escola contribui para a formagio de leitores possivelmen- te acriticos, com uma visio reduzida do fendmeno literério e promove a manu- tengo do status daqueles que encontram, na leitura literaria e nas habilidades intelectuais, uma forma de poder, discriminando aqueles que nao percebem a dimensio polissémica, simbélica, transgressora do fazer artistico-literdrio. 5, ENSINO DE LITERATURA E NOVAS TECNOLOGIAS: QUAL © PAPEL DA ESCOLA? As novas tecnologias vém requerer uma postura diferente em face da literatura. O ensino de literatura, como qualquer outra forma de ensino- ALLIFSRATURA NO ENSINO MEDIO. QT -aprendizagem, precisa estar atrelado ao contexto dindmico das novas ferra- mentas tecnolégicas. No contexto atual, marcado pela cibercultura, nos termos de Lévy (1999), a literatura busca caminhos para se adaptar a era dos recursos eletrénicos e da hipermidia, para no perder espago diante de outras formas atrativas de comunicacéio, como e-books, blogs, chats ete. Varios criticos discutem o futuro da literatura na era digital, em que autores e leitores assumem papéis ainda mais dindmicos, diante da interatividade dos meios eletrénicos. Cornis-Pope (2002: 6), por exemplo, acredita nfo ape- nas nas facilidades trazidas pelo computador, mas também num importante lugar que a literatura e as praticas de leitura literdria esto assumindo rapida- mente nesse contexto de revolugao tecnolégica. No entanto, o papel da lite- ratura precisa ser cuidadosamente reavaliado, a fim de garantir o espago da leitura literaria nesse novo contexto. Nossa mais urgente tarefa enquanto professores é, ainda segundo o autor, integrar a literatura num ambiente global, informacional, no qual o texto lite- rario possa funcionar como objeto imaginativo, inserido nas praticas culturais. Com o advento da internet, tanto a leitura literria como outras praticas de leitura e de escrita estéo assumindo novas fungdes, ou seja, estamos, aos poucos, ajustando nossas estratégias comunicativas e interativas. Aos textos impressos, somam-se os textos eletrénicos, formados pelas relagGes intra e intertextuais que exigem um leitor familiarizado com a articu- lagdo de diferentes linguagens. Do leitor, passa-se 4 nogo de navegador, o individuo que parece perdido diante do aciimulo de informagies e da rapidez com que o conhecimento se propaga pela wed. Mas esse leitor navegador esta sujeito a desenvolver uma leitura superficial, pela rapidez no acesso as infor- magGes disponibilizadas pelos recursos da era digital. Parece-nos que a escola, de modo geral, ainda precisa desenvolver estra- tégias diversificadas, visando a formacio desse leitor navegador como aquele capaz de ultrapassar a superficialidade da leitura como mera decodificagio e atingir a leitura do nio dito, das entrelinhas, enfim a leitura critica atrelada a transformagao social. Portanto, cabe a escola abordar esses novos textos (textos eletrénicos), que subvertem os paradigmas na interac3o autor-texto-leitor. © aluno deveria ser persuadido, motivado a gostar de ler, atraido pelo texto literario, encarando a leitura literdria como um jogo, nos termos de Iser (1999), em que o autor dita as regras de funcionamento do jogo por meio da tessitura textual eo leitor descobre e redescobre como jogar, negociando 98 rvanoa warns sentidos, decifrando pistas, fazendo inferéncias, enfim, reconstruindo o jogo, antes dirigido pelo autor. Enquanto os alunos nao encontrarem esse sentido para a leitura literaria, continuardo a ler sem prazer, lendo apenas os resumos das obras classicas disponiveis na web, tecortando e copiando textos da internet, fazendo da pesquisa na escola mera cépia, diminuindo sua capacidade imaginativa, res- tringindo seu potencial de coprodugio textual enquanto leitores criticos. 6. LrreRATURA EM SALA DE AULA: SUGESTOES METODOLOGICAS Em decorréncia das frequentes e rapidas mudancas contextuais, além das novas propostas curriculares, os professores sentem a necessidade de repensar constantemen- te sua pritica pedagdgica com base em algum suporte tedrico-metodolégico. Em geral, os documentos produzidos como referencial para os professo- res apresentam apenas contribuigGes tedricas, mas ndo discutem, em termos metodolégicos, como os educadores poderiam articular a teoria 4 pratica em sala de aula. Pensando em diminuir essa distancia entre teoria e pratica, pro- pomos uma reflexdo sobre como a literatura poderia ser trabalhada na escola, tendo em vista algumas contribuig6es da teoria da literatura. Portanto, apresentamos algumas reflexes sobre o ensino da literatura. + Desmistificar a concepgio escolarizada da literatura como fendmeno decorativo, belo, cuja leitura ajudard o aluno a escrever bons textos. + Incentivar o trabalho com textos classicos ¢ contemporaneos, reavaliando-se a producio de autores que, muitas vezes, nao sao enquadrados no cfinon literério, mas cuja produgdo literdria foi re- presentativa de uma época. + — Reavaliar os enfoques que orientam o trabalho com a literatura em sala de aula (estruturalismo, formalismo, biografismo e outros). * — Evitar trabalhar a literatura apenas por meio de textos fragmentados e descontextualizados, apresentados pela maioria dos livros didaticos. * Considerar a diversidade de leituras produzidas pelos alunos em contextos nao escolares, reconhecendo a importancia de valorizar o leitor na atualizacdo da significacdo textual. * Diversificar o trabalho com textos do ponto de vista didatico-peda- gogico. Incentivar diferentes formas de o aluno apresentar a sua leitura, tais como: dramatizagées, jiri simulado, produgaio de mu- A LITERATURA NO EXSINO EDIO. QQ yais, recontar a histéria a partir de outras linguagens (desenho, pin- tura, revista em quadrinhos etc.). Desenvolver andlises comparativas entre textos produzidos por au- tores diversos em contextos distintos. Incentivar a leitura intertextual da obra literaria, enfatizando os diversos niveis de intertextualidade: homoautoral, heteroautoral, endoliterdria, exoliteréria (Aguiar & Sil- va, 1988), como ilustramos na tabela a seguir. Nivel de ss ] Exemplo intertextualidade Definicao i Homoautoral Relagao entre textos Na obra machadiana, analisar a | produzidos por urn mesmo | representacdo dos pesfis femininos (Capitu, autor. Virgilia etc.) que dialogam constantemenie. Heteroautorat Didlogo entre textos de , Abordar as relacdes entre a obra * autores distintos, | machadiana Dom Casmurroe a tragédia Endoliteraria Exoliterdria j shakespeariana Ote/a, | RelacOes intertextuais entre | Considerar as relagdes entre obras literdrias | textos que fazem parte do | como Missa do Galo, de Machado de Assis, sistema literario. e Missa do Geto, de Gilvan Lemos Relacdes intertextuals entre Relacdes entre o romance Baca do inferno, uma obra literatia e outro de Ana Miranda (obra literéria), e os texto que nao participa do. documentos histéricos que forneceram | sistema literério. | subsidios para a autora ficcionalizar a biogrefia de Gregorio de Matos. A partir do trabalho com a intertextualidade, incentivar a produgio de resenhas, parédias, resumos de textos literarios como forma de o aluno recriar 0 intertexto literario e assumir 0 papel de coprodutor do texto a partir de sua leitura. Dissociar a leitura do texto literdrio de andlises puramente gramati- cais, estilisticas etc. Incentivar a leitura de textos contempordneos produzidos por auto- res locais, promovendo férum de debates, entrevistas com autores, a fim de estimular maior interacao entre autores e leitores. Considerar as escolhas pessoais dos alunos em momentos adequa- dos, desvinculando-se 0 ato da leitura das praticas escolares (“ler para fazer exercicios”, “ler para realizar provas”). £ preciso incenti- var o carter lidico da leitura como ato de prazer. Mas, para que isso aconteca, cada leitor deve buscar e encontrar seu préprio texto. 100 manna marrins + Considerar a diversidade de textos pertencentes a géneros e épocas diferentes. + Estabelecer comparagies entre a leitura literdria no espago cibernético ea leitura do texto impresso, revelando as diversas estratégias usadas na recepgao do texto, conforme a situago comunicativa. + Investir no ensino da literatura a partir de uma perspectiva intersemidtica, promovendo o didlogo entre literatura e outras artes. * Valorizar as histérias de leitura dos alunos. Nao pretendemos, com essas sugestdes, afirmar qual seria o modo “certo” ou “errado” de se trabalhar a literatura em sala de aula, mas sim refletir sama- riamente sobre estratégias capazes de contribuir para o nosso trabalho, enquan- to professores de literatura, sempre dispostos a refletir, analisar e reavaliar nossa pratica pedagégica direcionada ao texto literario. Como salienta Leahy-Dios (2001: 49), é preciso que 0 aluno reconheca a literatura “como uma figura geométrica tridimensional, um triangulo multi/ inter/transdisciplinar que utiliza a 4ingua como instrumento de realizagao artistica; que se define como expresso de arte e cultura; ¢ que se situa em dado contexto social, politico, histérico de produgS0 ¢ consumo”. Enquanto isso nao ocorrer, as aulas de literatura continuarao desinteres- santes, devido aos exercicios fragmentados e repetitivos de boa parte dos livros didaticos, 4 postura tradicional diante do texto literario, a avaliagao da leitura literéria como forma de punic&o e ndo de prazer. Lembremos as vozes de diversos professores, as quais ainda ressoam: “Vocés devem ler oito/dez/doze romances este ano para passar no vestibular”. E a qualidade da Ieitura literaria? Serd que a interag&o entre 0 leitor 0 texto literdrio estara fadada a cair nos limites das questdes objetivas e dos exercicios superficiais de leitura? Ao aluno leitor nao sera dado o direito de divergir, concordar, inferir, refletir sobre o dito, articulando-o com 0 nio dito, imagi- nar, experienciar o texto no ato dindmico da leitura? Enquanto as formas de encarar o texto literdrio nao forem repensadas, os professores irdo se deparar com a negacio da leitura por parte dos alunos, cada vez, mais desinteressados e desmotivados diante da literatura. E importante que nés, professores, reavaliemos as concepgdes de litera- tura que norteiam nossa pratica pedagdgica, desconstruindo os mitos que ainda circulam na escola e limitam as relagdes entre leitor ¢ texto literario em sala de aula. As vozes dos nossos alunos merecem ser ouvidas e valorizadas na recepgao do texto literdrio. A LITERATERA NO ENSIVO KEDIO LOL 7. CONSIDERAGOES FINAIS Diante dos avancos das novas tecnologias da informacSo ¢ da comunicacio, a escola precisa reavaliar 0 papel da literatura dentro e fora da sala de aula, a fim de estreitar as relagties entre os alunos ¢ a leitura literdria. O futuro da literatura sera garantido pela capacidade de ficcionalizagao, como propés Iser (1998), pois o homem sempre precisard de meios capazes de representar seus anseios, desejos, sonhos, enfim, algo que mantenha sua imaginagao sempre viva e ativa. A escola parece ainda no ter conseguido se adaptar 4s exigéncias do mundo moderno, no que se refere ao tratamento dado 8 literatura. Esta ainda é trabalhada, de modo geral, como objeto auténomo, distante das interferén- cias criativas dos alunos leitores, visto que so priorizadas andlises tradicionais que desmotivam a leitura por prazer e enfatizam a leitura como uma forma de obrigacao, sempre atrelada aos exercicios escolares. A escola ainda enfatiza uma “educagao pela Literatura”, quando o texto se torna espago intermedidrio para atividades que nao consideram a polissemia da obra literdria, Na verdade, concordamos com Lajolo (apud Amaral, 1986: 5), quando propée uma “educagéo para a literatura”, que desperte o aluno para a compreensdo do texto enquanto multiplicidade de significados dentro das esferas cultural, ideolégica, social, histrica e politica. No ensino médio, a literatura continua sendo vitima de abordagens que privilegiam a historia da literatura, na medida em que parece haver uma supervalorizagao das caracteristicas estéticas e estilisticas presentes nos textos produzidos nos mais diversos periodos literérios. O aluno no consegue perceber a plurissignificacio do texto literario, pois a preocupagio com a identificagio de caracteristicas estéticas dos periodos literarios, bem como a necessidade de classificar rigidamente os textos literarios nos limites cronolé- gicos dos rétulos barroco, Arcade, roméntico etc. sufoca a leitura por prazer. A teoria literdria é capaz de fornecer subsidios ao professor do ensino médio, de ampliar 0 conceito da literatura como instrumento de transformacio social. E importante estreitar as relagdes entre teoria literaria e ensino de lite- ratura, pois enquanto aquela nfo penetrar consideravelmente no contexto escolar, as aulas de literatura continuardo restritas ao estudo biografico, as questées puramente formais, gramaticais ou a historia da literatura, ao passo que a multissignificagao do texto seri relegada a um segundo plano de andlise. A educagio literéria proposta pela escola e pela propria academia merece ser reavaliada, a fim de que nossos alunos leitores possam encontrar razdes 102 svanpa eanrins concretas para 0 estudo da literatura como fendmeno artistico atrelado as transformagdes histéricas, sociais, politicas, culturais. Retomamos as conside- ragdes de Leahy-Dios (2001): de que adianta “ensinar” os alunos a memorizar caracteristicas dos diferentes estilos de época, situando-se a produgio literaria em “blocos monolfticos de perfodos literarios”, se os alunos no conseguem ter uma compreensio mais ampla e critica do objeto literario? Urge que se faga uma reavaliagdo das metodologias direcionadas ao ensino de literatura, visando 4 explorago de alternativas didaticas de ensino- aprendizagem, capazes de motivar os alunos 4 leitura por prazer, ou melhor, 4 leitura critica do texto. ATIVIDADES \ 1. Quais as habilidades e competéncias que o aluno de ensino médio deveria apresentar nas aulas de literatura? 2. Que instrumentos didaticos sao utilizados nas aulas para motivar os alunos ao estudo da literatura? O livro didatico é utilizado & exaustao ou o professor recorre a outros recursos para organizar suas aulas de literatura? De que modo 0 livro didatico vem sendo utilizado em sala de aula? 3. Na era do mundo digital, qual o papel da escola na ampliagéo das praticas de leitura literéria dos alunos, incentivando-os 4 leitura estética do texto literdrio, visando despertar o prazer de ler? Ivanpa Maria Martins Suva é doutora em Letras pela UFPE (2003), professora de Lingua Portuguesa da Faculdade Integrada do Recife (FIR). Também tem atuado em Programas de Pés-Graduacao da UFPE, FAINTVISA, FACHO e FAFIRE, como professora colaboradora. Tem publicacdes na area de ensino de lingua portuguesa e de literatura, abordando temas como letramento, leitura literdria e novas tecnologias, PCN, literatura pernambucana, entre outros. € autora do livro Literatura em sala de aula: da teoria fiterdria 4 prética escolar {no prelo). E-mail ivanda@firbr

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