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Sobre a critica do poder como violéncia®® Bo alemio usado por Benjamin neste titulo (Gewalt) designa tanto 0 “poder” *yioléncia”. Na leitura deste ensaio deve, por isso, ter-se sempre presente ja do termo, cujas valéncias semainticas muitas vezes sio intercambiiveis. 4 palavra portuguesa “poder” estaré, por isso, quase sempre também a da violéncia, e nas passagens em que se usa “violéncia” cla é também inte a violéncia do poder. (N.T.) A tarefa de uma critica do poder pode ser circunscrita como 4 apresenta¢io das suas relagdes com o Direito e a Justica. De fato, jet que seja a forma como uma causa atua, ela s6 se transforma p violéncia no sentido mais forte da palavra quando interfere com Ges de ordem ética. Sdo os conceitos de Direito e Justiga que itam a esfera dessas relagdes. No que se refere ao primeiro desses jonceitos, é evidente que a condi¢io elementar de toda ordem juridica }dos meios e dos fins. A isso haveria a acrescentar que, em principio, cia s6 pode ser procurada no ambito dos meios, ¢ nao dos fins. as constatagdes dizem mais, e certamente também coisas diferen- , Sobre a critica do poder do que pode parecer 4 primeira vista. Na , sea violéncia for um meio, podera parecer que dispomos um critério para a sua critica, que se manifesta na pergunta sobre determinados casos, a violéncia € um meio para fins justos ou . A ser assim, a sua critica estaria implicita num sistema de fins . Mas na realidade nao é isso o que acontece. Porque, partindo ) principio de que ele esta acima de qualquer davida, o que um tal incluiria nao seria um critério da prépria violéncia enquanto pio, mas um critério ajustado aos casos em que ela se aplicasse. eceria em aberto a questio de saber se a violéncia em ab- , como principio, mesmo sendo um meio para fins justos, tem fundamento moral. Para decidir sobre essa questo precisamos 59 Tecorrer a outro critério, mais exato, a uma distingao na esfera de proprios meios, sem considerar os fins que servem. A climinagao desse tipo de pergunta critica mais exata caracteri uma das grandes correntes da filosofia do Direito, e é mesmo o seu trago mais marcante: falamos do Direito natural. Essa orientacio do. Direito nao vé qualquer problema na aplicacio de meios violentos P fins justos, tal como o ser humano nio 0 vé no “direito” que lhe assiste de mover o corpo até chegar a um determinado ponto. De acordo: com essa concepgao (que serviu de base ideolégica ao terrorismo na Revolugao Francesa), a violéncia é um produto da natureza, qualquer coisa como uma matéria-prima para cujo uso nao ha entraves, a nao ser que se abuse da violéncia para fins injustos. Se, como diz a teoria politica do Direito natural, os individuos prescindem de todo o sew poder em favor do Estado, isso acontece na condi¢ao (expressamente constatada, entre outros, por Espinosa no Tratado Teolégico-Politico™) de 0 individuo, no fundo, e antes de firmar esse contrato ditado pela tazao, exercer de jure todo e qualquer poder que de facto possua. Talvez essas ideias tenham sido reanimadas mais tarde pela biologia de Darwin, que, de forma absolutamente dogmatica, e a par da selegio natural, aceita apenas a violéncia como meio original e adequado a todos os fins vitais da natureza. A filosofia popular darwinista mostrou muitas vezes como é pequeno o passo que leva desse dogma da hist6ria natural aquele outro, ainda mais grosseiro, da filosofia do Direito, que pretende que toda violéncia adequada quase exclusivamente a fins naturais seria, 86 por isso, também legitimavel. Contra essa tese do Direito natural do poder apresenta-se, numa posicao diametralmente oposta, a do Direito positivo, que vé o poder como dado historicamente adquirido. Se o Direito natural € capaz de ajuizar de qualquer Direito existente apenas através da critica dos seus fins, j4 0 Direito positivo o faz em relacio ao Direito em devir apenas através da critica dos seus meios. Se a justiga é 0 critério dos fins, a legitimidade € 0 critério dos meios. Nao obstante essa oposi- 40, as duas escolas encontram-se num dogma fundathental comum: os fins justos podem ser alcancados por meios legitimos, e os meios ™ Cap. 16: “Sobre os fundamentos do Estado, sobre © Direito natural ¢ civil do individuo ¢ sobre 0 Direito dos poderes superiores”, (N.T.) Re FILBBENJAMIN itimos, aplicados para alcangar fins justos. O Direito natural aspira itimar” os meios pela natureza justa dos fins; o Direito positivo “garantir” a natureza justa dos fins pela legitimidade dos meios. inomia revelar-se-ia insoltivel no caso de © pressuposto dogmiatico ser falsd, ou seja, se os meios legitimos, por um lado, ¢ os fins Por outro, se encontrassem numa contradi¢ao inconciliavel. a percepcao desse estado de coisas nao seria possivel antes de sair lo e de estabelecer critérios independentes, tanto para os fins como para os meios legitimos. O dominio dos fins, ¢ com isso também a busca de um critério iga, exclui-se, para ja, dos objetivos desta investigagio. Em tida, torna-se central a questdo da legitimidade de certos que constituem o poder. Os principios do Direito natural nio decidir sobre esse ponto, levam apenas a uma casuistica sem t De fato, se o Direito positivo nao tem olhos para a natureza cional dos fins, no Direito natural acontece 0 mesmo com o ismo dos meios. Ja a teoria do Direito positivo é aceitavel undamento hipotético no ponto de partida da investigacao, estabelece uma distingao basica, atendendo aos tipos de violén- dentemente dos casos em que sio aplicados. Essa aplicacao a violéncia historicamente reconhecida, ou sancionada, e mcionada. O fato de as consideragSes que se seguem partirem tin¢ao nAo significa que uma determinada forma de violéncia ficada 4 luz do critério do sancionado ou nfo sancionado, ja critica da violéncia 0 critério do Direito positivo no pode , Mas tao somente avaliado. A questao aqui presente é a consequéncias se podem extrair para a esséncia do poder um tal critério ou de uma tal distingdo lhe poderem ser u, por outras palavras, trata-se de saber qual ¢ 0 sentido distingio. Mais adiante ficar claro que aquela distingio pro- lo Direito positivo faz sentido, é perfeitamente fundamentada outra a pode substituir; mas ao mesmo tempo far-se-4 luz ca esfera em que essa distingdo pode ter lugar. Numa pa- itério proposto pelo Direito positivo para a legitimidade ia sO pode ser analisado em fungio do seu sentido, a esfera "ago s6 pode ser criticada em fungao do seu valor. E pre- encontrar um ponto de vista fora do Direito positivo, mas 61 também fora do Direito natural. O que vamos tentar esclarecer é em que medida apenas o estudo do Direito no ambito de uma filosofia da Histéria permite chegar a esse ponto de vista. Em si mesmo, nio é dbvio o sentido da distingdo do poder entre _ legitimo e ilegitimo. Deve ser recusado de forma clara o mal-entendido do Direito natural que afirma que tal sentido se encontra na distingao da violéncia para fins justos ou injustos. Pelo contrario, sugerimos j4 que 0 Direito positivo exige a toda forma de poder uma explicacao sobre a sua origem histérica, da qual depende, em determinadas condigées, a sua legitimidade, o ser ou nao sancionado. Uma vez que o reconhecimento — da legitimidade do poder se manifesta de forma mais palpavel na obe- diéncia aos seus fins, por principio sem resisténcia, pode considerar-se_ como base hipotética para a classifica¢ao dos poderes a existéncia ou a falta de um reconhecimento histérico universal dos seus fins. Os fins que prescindem desse reconhecimento podem ser designados de fins naturais, enquanto os outros serio fins de Direito. E as diversas fungdes do poder, consoante servem fins naturais ou de Direito, poderio ser demonstradas de forma mais clara tomando como base determinadas relag6es juridicas. Para simplificar 0 problema, as consideragdes que se seguem tomam como referéncia a situa¢ao na Europa atual. Nessas relagdes juridicas, e no que concerne ao individuo en- quanto sujeito de Direito, a tendéncia dominante é a de nao admitir fins naturais em todos os casos nos quais a realizagdo desses fins pudesse eventualmente ser alcancada adequadamente pelo uso da violénci Ou seja: essa ordem juridica empenha-se em instituir, em todos os dominios nos quais os fins de pessoas individuais possam ser alcanga~ dos adequadamente pelo uso da violéncia, fins de Direito que apenas © poder judicial pode concretizar desse modo. Empenha-se mesmo em cercear, com recurso a fins de Direito, dominios nos quais, por principio, os fins naturais so livres adentro de amplos limites, como acontece com a educagao; isto, sempre que esses fins naturais possam ser alcancados com um excesso de violéncia — veja-se © caso das leis sobre os limites das competéncias quanto 4s punigdes escolares. A atual legislacio europeia rege-se por uma maxima geral que pode ser formulada nos seguintes termos: todos os fins naturais de pessoas indi. viduais colidem com os fins de Direito, desde que sejam perseguidos com maior ou menor violéncia (a contradi¢ao em que o direito de 62 FILGBENJAMIN: defesa cai em relagao a essa maxima esclarecer-se-4 por si no 0 desta reflexio). Dessa maxima deduz-se que o Direito vé o nas mios de pessoas individuais como um perigo de subversao da em estabelecida. Como um perigo que implica o fracasso dos fins Direito ¢ do poder executivo judicial? Nao é esse 0 caso, porque, er assim, nad se condenaria a violéncia em si mesma, mas apenas a cia orientada para fins ilegitimos. Poder dizer-se que um sistema le fins de Direito é insustentivel se abrir a possibilidade de se chegar naturais por meio da violéncia. Mas isso, por agora, nao passa um dogma. Talvez tenhamos antes de dar atengao a surpreendente dade de o interesse do Direito pela monopolizagao do poder de Direito, mas antes o proprio Direito. Trata-se da possibili- de o poder, quando nao cai sob a algada do respectivo Direito, , nao pelos fins que possa ter em vista, mas pela sua simples éncia fora do ambito do Direito. A mesma suposi¢ao pode ser , de modo mais drastico ainda, se nos lembrarmos de como a do “grande” criminoso, por mais repugnantes que tenham sido is fins, suscitou tantas vezes a secreta admira¢ao do povo. Isso acontecer devido aos seus atos, ¢ nao 4 violéncia de que dao ho. Nesse caso, o poder — que o Direito atual procura retirar \dividuo em todos os dominios de atuag4o — constitui-se realmente ameaga e, mesmo em situacao de desvantagem, desperta ainda a patia da multidao, em oposi¢ao ao Direito. Através de que funcio o da violéncia parece, e com razio, tio ameagador para o Direito 0 temido por ele? Isso sé se manifesta nos casos em que, mesmo da ordem juridica atual, o recurso 4 violéncia é admitido. ‘O primeiro exemplo poderé ser o da luta de classes, sob a forma ito 4 greve garantido aos trabalhadores. O operariado orga- &, hoje em dia, 0 tinico sujeito juridico, além do Estado, ao concede o direito 4 violéncia. Contra esse ponto de vista, é objetar-se que a recusa de agir, a nao ago — coisa que, instancia, a greve é —, de modo algum pode ser referida ioléncia. Foi provavelmente esse fato que facilitou ao poder a aceitagao do direito 4 greve, quando esta ji nao podia ser a. Mas a sua validade nio € ilimitada, porque nao se trata de uma 0 incondicional. E certo que a recusa de uma a¢3o ou de um 63 servi¢o, nos casos em que equivale simplesmente a uma “quebra relacgdes”, pode ser um meio limpo e nao violento. E como, do pot de vista do Estado (ou do Direito), o direito 4 greve nao concede trabalhadores um direito 4 violéncia, mas antes o de se subtrair a (quando esta possa ser exercida de maneira indireta pelo patrao), ocorrer de vez em quando um caso de greve que corresponda a és pressupostos e pretenda apenas manifestar um “voltar costas”” ou ¥ “alheamento” em rela¢io ao patrao. O momento de violéncia pod no entanto, acontecer no ambito dessa recusa, sob a forma de cl tagem, nomeadamente quando naquela se encontre uma dispos de principio para voltar a praticar a a¢ao recusada em determi: condigdes que ou nio tém nada aver com ela ou atuam apenas sob © seu aspecto exterior. E nesse sentido que, do ponto de vista d operariado, que se opde ao do Estado, o direito 4 greve correspond ao direito de exercer a violéncia para alcangar determinados objeti vos. O antagonismo dessas duas posi¢des manifesta-se na sua acuidade na situagio da greve geral revolucionaria. Nessa situagao, classe trabalhadora reclamard sempre o seu direito 4 greve, enq o Estado vera nessa reivindicag¢io um abuso, uma vez que 0 direito greve nio deve ser entendido “assim”, e promulgaré decretos espe De fato, o Estado se sentira no seu direito de declarar que o exercicil de uma greve simultanea em todas as empresas ¢ ilegitimo, uma vez que nao pode ter em cada empresa 0 motivo especifico previsto pi legislador. Nessas diferentes interpretagdes espelha-se a contradigao objetiva da situagao juridica segundo a qual o Estado reconhece poder a cujos fins, enquanto fins naturais, é indiferente, mas que de forma hostil quando a situacio se agrava (com a greve geral re- voluciondria). Em determinadas circunstancias, e por mais parado: que isto possa parecer 4 primeira vista, pode ser visto como violéncia também um comportamento assumido no exercicio de um direito. Um tal comportamento sera designado de violento quando for assumido de: forma ativa, sempre que exercer um direito que lhe assiste com vista a derrubar a ordem juridica pela qual tal direito lhe foi dutorgado; se for um comportamento passivo, podera igualmente ser designado assim sempre que se trate de chantagem, no sentido da reflexdo proposta antes. Por isso, estamos apenas perante uma contradi¢ao objetiva na situagio juridica, mas nao perante uma contradi¢ao légica do Direito, 64 FILO BENJAMIN do este, em determinadas circunstancias, se opde com violéncia grevistas enquanto agentes da violéncia. Na verdade, o que 0 Es- do mais teme na greve é aquela fungao da violéncia que esta anilise nde investigar como tinico fundamento seguro da sua critica. a violéncia fosse, como parece ser, apenas o meio de se apoderar tamente'do que quer que seja que se pretende num dado mo- , s6 poderia alcangar os seus fins sob a forma da violéncia de um O poder da violéncia seria, nesse caso, completamente inapto instaurar ou modificar relacdes de forma relativamente estavel. mplo da greve, porém, mostra que ela é capaz disso, que tem dicg6es de instaurar e modificar relagdes juridicas, por mais que 0 mento de justica possa sair ofendido. E facil objetar-se que uma ‘io do poder da violéncia é ocasional e esporadica. A anilise da ia da guerra refutara essa obje¢ao. A possibilidade de um direito 4 guerra assenta exatamente nas nas contradi¢des objetivas que a do direito 4 greve, concretamente © de 0s sujeitos juridicos sancionarem formas de violéncia cujos anecem, para os que sancionam, fins naturais, e que, por situacdes extremas podem entrar em conflito com os seus fins de Direito ou naturais. A violéncia da guerra, no entanto, ra desde logo alcangar os seus fins de forma imediata e com a cia do assalto. Apesar disso, é mais do que evidente que até em primitivos — ou precisamente ai —, que mal conhecem os sntos das relagdes baseadas no Direito politico, e mesmo nos em que 0 vencedor entrou na posse de algo agora inalienavel, sempre que o cessar das hostilidades seja assinalado com um de paz. A palavra “paz” designa mesmo, na correlagdo belece com “guerra” (porque existe ainda um outro sentido, hente nao metafrico e politico, que é aquele em que Kant fala perpétua”), a priori um tal sancionamento de toda e qual- ia, necessario e independente de todas as outras relagdes € que consiste em reconhecer a nova situagio como uma de “Direito”, antes mesmo de se saber se essa situagio ‘ou nao, de facto, de alguma garantia para ter continuidade. mdo, se a violéncia da guerra, enquanto forma primordial e , pode ser tomada como modelo de toda violéncia para , inerente a todas essas formas de violéncia e poder um 65 carater legislador. Voltaremos mais adiante a essa dedugao e€ as implicagées, pelas quais se explica a tendéncia do Direito mod atras referida, de retirar, pelo menos 4s pessoas individuais enq) sujeitos juridicos, todo o poder que vise fins naturais. Na figura 4 grande criminoso, o Direito vé-se confrontado com esse poder sua ameaga de instituir um novo Direito, uma ameaga que, api sua impoténcia, nos casos mais significativos faz estremecer 0 po} hoje em dia como nas épocas arcaicas. O Estado, porém, teme € poder essencialmente pela sua possibilidade de instituir um Direite do mesmo modo que tem de reconhecé-lo como tal quando poténd estrangeiras ou classes sociais 0 obrigam a conceder-lhes, respecti mente, 0 direito de fazer a guerra ou a greve. Quando, na tiltima guerra, a critica do poder militar se to ponto de partida de uma acesa critica da violéncia em geral — critica q pelo menos, ensina que ela nio pode ja ser exercida de forma i nem tolerada —, aquele poder transformou-se em objeto de critica, apenas por querer instituir um Direito; ele foi julgado de forma talv ainda mais arrasadora no que respeita a uma outra fun¢io. O que, fato, caracteriza o militarismo — que s6 chegou a ser 0 que é devido servico militar obrigatério — é uma duplicidade na fungao da violéncia. € militarismo é a compulsao ao uso generalizado da violéncia como para atingir os fins do Estado. Essa compulsio ao uso da violéncia fo recentemente condenada com igual ou maior énfase do que o prépmi uso da violéncia. Nela, a violéncia mostra-se numa fungao totalmen diferente da do seu uso simples para fins naturais. Consiste no uso violéncia como meio para fins juridicos, pois a submissao dos cidada as leis — no caso vertente, a lei do servi¢o militar obrigatério — é u fim juridico. Se aquela primeira fungao da violéncia chamamos a instituidora do Direito, a segunda pode ser vista como a fungao que’ mantém. Uma vez que 0 servigo militar obrigatério constitui um ca de aplicagao do poder que mantém 0 Direito — em principio idénti outros —, a sua critica realmente eficaz nao é tio simples como queren os pacifistas e os ativistas com as suas proclamagées. Cdincide antes con a critica de todo o poder judicial, ou seja, com a critica do poder | ‘ou executivo, e nao pode ser levada a cabo num quadro mais restrito Nem pode também — se nao quisermos proclamar um anarquismo sen divida infantil — ser levada a cabo pela recusa da aceitagao de toda 66 FILBBENJAMIN qualquer coagao exercida sobre 0 individuo, e pela proclamagao do principio: “Faris o que te agradar”.** Maximas como essa se limitam a excluir a reflexio sobre a esfera ético-hist6rica e, com isso, sobre qualquer sentido da aco ¢ mesmo da realidade em geral, sentido esse nao instau- ravel quando a “‘a¢io” for arrancada ao seu contexto. Mais importante "sera a constatacio de que também nao é suficiente, para sustentar essa critica, a referéncia ao imperativo categérico com o seu inquestionavel ZI minimo”: Age de tal modo que a cada momento possas usar humanidade sempre como fim, e nunca apenas como meio, tanto o que se refere 4 tua propria pessoa como 4 de um outro.” De fato, Direito positivo, se estiver consciente das suas raizes, reivindicara © interesse da humanidade devera ser reconhecido e fomentado a pessoa de cada individuo. Esse Direito descobre o referido interesse ‘na apresentagio ¢ manuten¢ao de uma ordem dependente do destino. Do mesmo modo que nio devemos poupar a criticas essa ordem, que Direito, com razio, pretende conservar, assim também qualquer con- em nome de uma “liberdade” sem forma, sem possibilidades de cia aquela ordem superior de liberdade. E sera impotente em ito se nao contestar o proprio corpo da ordem juridica, mas apenas ‘ou costumes juridicos isolados, que o Direito protegera entéo com poder, um poder que se reclama de que s6 existe um destino ¢ precisamente o estado de coisas vigente e o elemento ameagador ncem irrevogavelmente 4 sua ordem. Porque o poder que tende rvar o Direito é um poder ameagador. Essa ameaga, porém, nio ler-se no sentido de intimidag40, como acontece com certos ted- liberais desinformados. A intimidag’o no sentido exato do termo giria uma determinidade que contraria a esséncia da ameaga, que ao ¢ abrangida por nenhuma lei, uma vez que existe a esperanga de Gitagio € da pega de Goethe Torquato Tasso, v. 994 (trad. de Jo3o Barrento. Relogio d’Agua, 1999, p. 26). (N.T.) “programa” vem da obra de Kant Fundamentagao da Metafisica dos Costumes, 2* ‘seco. (N.T.) "Poderia questionar-se este célebre postulado indagando se ele, afinal, nio peca por 0, concretamente: se é licito deixar-se servir ou servit-se de si proprio ou de tra pessoa como um meio, em qualquer situag30. Ha muitas ¢ boas razSes para daivida. 67 escapar ao seu braco. Essa é mais uma razao para a lei se revelar amea~ ¢adora como o destino, no qual esta escrito se o criminoso ira ou nao cair sob a sua algada. O sentido mais profundo da indeterminidade da ordem juridica s6 sera apreendido pelas considerac6es posteriores sobre a esfera do destino, que € a origem dessa ordem. Um indicio precioso dela encontra-se no dominio penal. Desde que a validade do Direito _ positivo foi posta em causa, o que nesse dominio mais suscitou a critica foi a pena de morte. Se os seus argumentos, na maior parte dos casos, tém sido pouco fundamentados, j4 os seus motivos foram e sio apre- sentados como questées de principio. Os seus criticos sentiam, talvez sem serem capazes de fundamenti-lo, provavelmente até sem desejarem senti-lo, que a contestagao da pena de morte nao atinge uma medida punitiva nem determinadas leis, mas 0 proprio Direito nas suas raizes. Se a violéncia, uma violéncia coroada pelo destino, constitui a sua origem, por outro lado nao é dificil supor que no poder supremo — o poder sobre a vida e a morte que se manifesta na ordem juridica — as origens do “poder-como-violéncia” interferem de forma significativa na ordem vigente, manifestando-se nela de forma terrivel. Em consonancia com isso, vemos que em contextos juridicos primitivos a pena de morte se aplica também a delitos como o atentado contra a propriedade, em relacao aos quais parece ser absolutamente “desproporcionada”. O seu sentido nao é entao o de punir a infracao da lei, mas o de afirmar 0 novo Direito. Na aplicagao do poder sobre a vida e a morte, mais do que em qualquer outra aplicagio da lei, é o préprio Direito que se fortalece, Mas é ai que, ao mesmo tempo, se anuncia algo de podre no reino do Direito, especialmente para sensibilidades mais refinadas, que se sabem_ muito distantes de situagdes nas quais o destino tenderia a mostrar-se em toda a sua majestade para fazer cumprir a lei. Mas 0 entendimento precisa se aproximar o mais possivel dessas situagSes, se quiser por termo a critica do poder que institui e daquele que mantém 0 Direito. Essas duas formas de poder encontram-se presentes, numa relag0 muito mais antinatural do que na pena de morte, num hibridismo por assim dizer fantasmatico, numa outra instituic¢io do Estado moderno: a da policia. Trata-se, é certo, de um poder para fins juridicos (com direito de execug’o), mas ao mesmo tempo com autoriza¢ao para instituir tais fins adentro de amplos limites (através do direito de decretar medidas). O lado infame de uma tal instituigdo — que s6 por poucos é sentido, jé 68 FILOBENJAMIN as competéncias da policia raramente sao suficientes para intervir forma mais brutal, podendo, no entanto, exercer-se mais cegamente areas vulnerdveis e pessoas sensatas, contra as quais o Estado nao protegido pelas leis — reside no fato de nela nio se verificar a Ao entre o poder que institui e o que mantém o Direito. Ao iro pede-se a legitimagio pela vitéria, o segundo esta sujeito 4 tacao de nao poder postular novos fins para si proprio. O poder ial esti isento dessas duas condigdes. E um poder instituinte do — porque, nao sendo sua fungao promulgar leis, pode decretar com validade juridica — e que mantém o Direito, porque se 4 disposigio daqueles fins. A afirmag3o segundo a qual os fins do der policial seriam sempre idénticos aos do restante Direito, ou pelo enos ligados a eles, é absolutamente falsa. Pelo contrario, o “Direito” da cia designa aquele ponto em que o Estado — seja por impoténcia, seja ido as ligacdes imanentes de toda a ordem juridica — no esti j4 em adigdes de garantir, através dessa ordem juridica, os seus fins empiricos, € pretende atingir a qualquer prego. Por isso a policia intervém em osos casos “por razdes de seguranca”, quando a situagio legal nao para nao falar dos casos em que, sem qualquer consideragio de idicos, constitui um incémodo brutal que acompanha os cidadaos de toda uma vida regulamentada, ou pura e simplesmente o Em contraste com o Direito que reconhece na “decisio” fixada paco e no tempo uma categoria metafisica gracas 4 qual reclama u direito A critica, a ocupagdo com a instituigao policial nao depara mada de essencial. O seu poder é amorfo, tal como a sua imagem ca, intangivel e onipresente na vida dos Estados civilizados. esar de nao ser muito diferente de uns lugares para outros, nao se € negar que o espirito da policia é menos detestavel na monarquia uta, em que representa a figura do soberano que concentra em si ‘0 poder legislativo ¢ executivo, do que nas democracias, em que a exist€ncia, nao sustentada por nenhuma relacao desse tipo, ¢ teste- o da maior degeneracio do poder que se pode imaginar. ‘odo poder, enquanto meio, tem por fungio instituir o Direito manté-lo. Se nao se reclamar de nenhum desses predicados, re- com isso a qualquer validade. Daqui resulta, porém, que todo -enquanto meio, mesmo nos casos mais favoraveis, participa da Atica geral do Direito. E apesar de nao podermos ainda, no HISTORIA 69 ponto a que chegamos nestas consideragGes, discernir bem o alcance dessa problematica, depois do que ja se disse, o Direito apresenta-se a uma luz tio ambigua do ponto de vista ético que se impée a pergunta: nio haverd, para a resolugao de conflitos de interesses entre humanos, outros meios que nio os violentos? A pergunta leva-nos sobretudo a constatar que uma solu¢ao totalmente nao violenta de conflitos nunca podera desembocar num contrato juridico. Por mais pacifico que tenha sido o clima que levou as partes a firm4-lo, um contrato desse tipo pode acabar sempre por conduzir 4 violéncia, porque concede a cada uma delas o direito de reclamar o recurso a alguma forma de violéncia contra a outra, no caso de esta violar o contrato. E nao é sé isso: a propria origem de todo contrato aponta para a violéncia, tal como o seu desfecho. Enquanto poder que institui o Direito, esta nao precisa estar diretamente presente nele, mas esta nele representada desde que © poder que garante 0 contrato juridico tenha, por seu lado, origem violenta, ainda que nao tenha sido aplicada legalmente no contrato com recurso 4 violéncia. Quando desaparece a consciéncia da presenga latente da violéncia numa instituigio de Direito, esta entra em decadén- cia. Exemplo disso no momento atual sao os parlamentos. Oferecem 0 triste espetaculo que conhecemos porque perderam a consciéncia das forcas revolucionarias a que devem a sua existéncia. Particularmente na Alemanha, a tiltima manifestag3o de tais poderes nao teve consequéncias nos parlamentos. Falta-lhes o sentido do poder instituinte do Direito, que neles est4 representado. Nao admira que nao cheguem a tomar resolugdes dignas desse poder, entregando-se, pelo contrario, a praticas de compromisso que espelham uma forma pretensamente nio violenta de tratar assuntos politicos. O resultado é um “produto que, apesar de desprezar toda violéncia aberta, se insere na mentalidade da violéncia, porque os esforgos que levam ao compromisso sio motivados nao por si mesmos, mas a partir de fora, pelas tendéncias opostas; porque o carater compulsivo é inerente a todo compromisso, por mais voluntaria que tenha sido a sua aceitacio. ‘Uma solugio diferente terja sido melhor’ = eis a sensa¢io subjacente a todo compromisso”.* © % Erich Unger, Politik und Metaphysik (Die Theorie. Versuche zu philosophischer Politik, 1. Verdffentlichung) [Politica e Metafisica (A teoria. Ensaio de politica filoséfica, 1* publicagio)}. Berlim, 1921, p. 8. 70 FILOBENJAMIN, E significativo que a decadéncia dos parlamentos tenha desiludido tanto as pessoas do ideal de uma resolu¢io pacifica dos conflitos poli- quanto a guerra o havia fomentado. Aos pacifistas opdem-se os hevistas € os sindicalistas. Fizeram uma critica radical e globalmente ta aOs patlamentos atuais. Por mais desejavel e satisfatério que, ypesar de tudo; seja um parlamento que funcione bem, por compara¢ao outros regimes, a discussio dos meios, por principio pacificos, do entendimento politico nao poder passar pelo parlamentarismo. Na de, o que este consegue alcangar no que se refere a questGes vitais 9 apenas aquelas ordens juridicas reféns da violéncia a entrada e A saida. Mas sera a resolugo nao violenta de conflitos em principio sivel? Sem diivida. As relagdes entre pessoas singulares estio cheias exemplos disso. O entendimento sem violéncia encontra-se por a parte onde a cultura do coragio ofereceu 4s pessoas meios puros ara se entenderem. Aos meios legais ¢ ilegais de toda a espécie, todos es expressio da violéncia, podem contrapor-se, como meios puros, que renunciam 4 violéncia. Os seus pressupostos subjetivos sio a icadeza, a simpatia, o amor da paz, a confianga e outras qualidades poderiamos acrescentar. Mas é a lei — cujas imensas implicagSes 9 podemios comentar aqui — que determina a sua manifestago ob- dizendo que meios puros nunca poderio servir para solugdes , mas apenas mediatizadas. Por isso eles nunca se relacionam ente com a resolugao dos conflitos entre uma pessoa e outra, tém sempre de passar pelas coisas. E nos casos em que 0s conflitos os se relacionam de modo mais objetivo com bens materiais se abre o dominio dos meios puros. Por isso a técnica, no sentido is amplo do termo, é a sua drea de eleigao. O seu exemplo com ais fundas consequéncias é talvez o didlogo, visto como uma técnica entendimento civilizado. Nele nao sé se torna possivel um acordo 9 violento como se prova explicitamente a rentncia de principio joléncia, com base numa relacio importante: a da impunidade da ira. Talvez nao exista no mundo nenhuma legisla¢ao que origi- mente puna a mentira. O que quer dizer que existe uma esfera da violéncia na convivéncia humana que é totalmente inacessivel 4 léncia: a esfera propriamente dita do “entendimento”, a linguagem. is tarde, e num estranho processo de decadéncia, o poder judicial diu, ao punir a fraude. De fato, enquanto a ordem juridica, nas ODA HISTORIA 71 suas origens ¢ confiando no seu poder vitorioso, se limita a castigar a ilegalidade onde esta se manifeste, e a fraude, uma vez que nao é em si mesma de natureza violenta, nao era punivel no Direito romano € no germinico antigo (segundo os principios ius civile vigilantibus scriptum est ou “A vigilancia vale dinheiro”), o Direito de épocas mais tardias, a quem faltava a confianga no seu préprio poder, deixou de se sentir a altura de qualquer poder alheio. Pelo contrario: 0 medo desse poder e a falta de autoconfianga mostravam como esse Direito estava abalado. Comegou a postular fins com a intengio de poupar a mais fortes provagdes o poder que mantinha o Direito. E yolta-se contra a fraude nio por razdes morais, mas por receio dos atos violentos que ela pode despoletar naquele que foi enganado. Como esse receio entra em contradic4o com a propria natureza do poder do Direito, que lhe vem das origens, tais fins revelam-se inadequados aos meios legitimos do Direito. Neles manifesta-se no apenas a decadéncia da sua propria esfera, mas também uma redugio dos meios puros: com a proibigio da fraude, o Direito limita 0 uso de meios totalmente nao violentos, porque estes poderiam provocar uma reagio violenta. Essa tendéncia do Direito também contribuiu para a concessio do direito 4 greve, que contradiz os interesses do Estado. O Direito concede-o porque ele pode prevenir agGes violentas que receia enfrentar. Antes, os operarios _ recorriam imediatamente 4 sabotagem e pegavam fogo 4s fabricas. Para convencer as pessoas a resolver pacificamente os seus conflitos de interesses aquém da ordem juridica existe, para li de todas as virtudes, um motivo eficaz que, frequentemente, oferece até a mais renitente das vontades aqueles meios puros, em vez dos violentos: 0 receio de desvantagens comuns que podem resultar de um confronto violento, qualquer que seja a sua natureza. Tais desvantagens tornam-se evidentes em muitos casos de conflitos de interesses entre pessoas singulares. Outra € a situagao no caso de disputas entre classes e nagdes, em que aquelas ordens superiores que ameacam esmagar tanto os vencedores como os vencidos permanecem inacessiveis 4 sensibilidade da maioria e a inte- ligéncia de quase todos. Nesses casos, a busca dessas ofdens superiores e dos interesses que lhes sio comuns, que constituiriam o motivo mais forte para uma politica dos meios puros, levaria longe demais.” Por ” Mas veja-se Unger, op. cit., p. 18 segs. 72 FILBBENLAMIN ‘isso aludiremos apenas aos meios puros da politica enquanto andlogos No que se refere as lutas de classes, nelas a greve tera de ser vista, sm determinadas condi¢des, como um meio puro. E preciso caracte- pormenorizadamente duas modalidades de greve essencialmente ferentes, a que ja nos referimos antes. Cabe a Sorel o mérito de té-las inguido pela primeira vez — mais por raz6es politicas do que teéri- s. Opde A greve geral politica a greve geral proletaria, reconhecendo existe entre as duas uma oposi¢ao também no que se refere 4 oléncia. Os partidérios da primeira afirmam: “O fundamento das s concep¢ées é 0 fortalecimento do poder do Estado; nas suas atuais Ses, os politicos (i.e., os socialistas moderados) preparam ja ituicio de um poder fortemente centralizado e disciplinado, que 0 se deixar4 impressionar pelas criticas da oposi¢ao, que sabera impor ) siléncio e promulgar os seus decretos hipécritas”.“’ “A greve geral olitica [...] demonstra como o Estado nada perder da sua fora, como poder dos privilegiados passara para os privilegiados, como a massa produtores mudari de donos.”*! Contra essa greve geral politica ja formula parece ser a da passada revolugao alema”), a proletiria n como iinica tarefa a destruigio do poder do Estado. “Elimina das as consequéncias ideolégicas de qualquer politica social, seja ela for; os seus partidarios veem todas as reformas, mesmo as mais res, como burguesas.”? “Esta greve geral anuncia claramente a indiferenga em relacao ao ganho material da conquista, ao declarar quer acabar com o Estado; o Estado era realmente [...] a razdo de ¢ dos grupos dominantes que tiram proveito de todos os empreendi- $ Cujo Snus recai sobre a generalidade da populacao.”* Enquanto rimeira forma da suspensio do trabalho é violenta, visto que s6 pro- uma modificagaio exterior das condigdes de trabalho, a segunda, ges Sorel, Réflexions sur la violence. 5. ed. Paris, 1919, p. 250. Sorel, op. cit., p. 265 A fase revolucioniria e das “Reptiblicas dos Conselhos” que se seguiu ao fim da imeira Guerra Mundial (1918-1919), antes do estabelecimento da Repiblica Weimar. (N.T.) op. ait., p. 195. , op. cit., p. 249. 0 DA HISTORIA 73 enquanto meio puro, é nao violenta, pois nao acontece com a disposi¢ao de retomar o trabalho depois de algumas concessées secundarias ou mudangas nas condi¢6es de trabalho, mas sim com a decisao de apenas retomar o trabalho se ele for radicalmente transformado, se deixar de ser imposto pelo Estado, ou seja, uma rebelido, nao s6 desencadeada mas também levada a cabo por esse tipo de greve. Por isso a primeira forma de greve é instituinte do Direito, ao passo que a segunda é anarquista. Apoiando-se em afirmag6es ocasionais de Marx, Sorel rejeita, para 0 movimento revolucionario, toda espécie de programas, utopias; numa palavra, a institui¢do de qualquer forma de Direito: “Com a greve ge- ral, todas essas belas coisas desaparecem; a revolucao surge como uma revolta clara e simples, e nela nao ha lugar nem para sociélogos nem para os elegantes defensores de reformas sociais, nem tampouco para 0s intelectuais que assumiram a profissio de pensar pelo proletariado”.” A essa concep¢ao profunda, ética e autenticamente revolucionaria nao se pode contrapor nenhuma consideragdo que pretenda estigmatizar como violéncia uma tal greve geral, tendo em conta as suas possiveis consequéncias catastroficas. Ainda que se possa dizer, com razio, que toda a economia atual é comparavel nao tanto a uma maquina que para quando o fogueiro a abandona, mas mais a uma fera que se enraivece quando o domador lhe volta costas, do mesmo modo a violéncia de uma agao deve ser julgada nao pelos seus efeitos ou pelos seus fins, mas apenas segundo a lei dos seus meios. O poder do Estado, porém, ao considerar apenas os efeitos, opde-se precisamente a essa greve como” suposta violéncia, ao contrario das greves parciais que, na maior parte dos casos, sio meras formas de chantagem. Sorel explicou com muita’ perspicacia em que medida uma tao rigorosa concep¢io da greve geral é, enquanto tal, um bom instrumento para diminuir as possibilidades de eclosao da violéncia propriamente dita nas revolugées. Por outro lado, temos um caso exemplar de suspensio violenta, mais imoral e brutal do que a greve geral politica, comparavel ao blo- queio: a greve dos médicos, tal como a conhecemos de varias cidades alemis. Ela revela da maneira mais repugnante o uso da violéncia sem escrapulos, que chega a ser perversa numa classe profissional que, durante anos e sem a menor tentativa de resisténcia, “assegurou a Sorel, op. cit., p. 200. 74 FILOSENJAMIN orte a sua parte”, para depois abandonar deliberadamente a vida na eira ocasiao. De maneira mais evidente do que nas recentes lutas classes, foram-se consolidando ao longo dos milénios de histéria dos E: 1S OS meios nio violentos de entendimento. S6 esporadicamente missio dos diplomatas nas relagdes bilaterais consiste na altera¢ao das or juridicas. No essencial, o seu papel ¢ 0 de, por analogia com acordos entre pessoas singulares, em nome dos respectivos Estados, ‘caso a caso os seus conflitos de forma pacifica e sem contratos. tarefa delicada, solucionada de maneira mais resoluta pelos tribu- arbitrais; mas trata-se de um método superior ao da arbitragem, vez que se situa para além de toda a ordem juridica e, portanto, ioléncia. Desse modo, a convivéncia entre diplomatas, tal como des entre pessoas singulares, fez nascer formas e virtudes que, que se tenham tornado secundarias, nem sempre foram assim. Em toda esfera dos poderes que pressupdem um Direito natural ‘positivo nio se encontra um tinico que nfo seja afetado pelos gra- problemas atris referidos, inerentes a qualquer poder judicial. No nto, como toda ideia de uma solugo imaginavel para as tarefas — sem falar da libertagao do circulo onde cairam todas as existenciais da hist6ria universal até hoje — continua a nao ossivel com total exclusio, por principio, de qualquer violéncia, e a pergunta sobre a existéncia de outros tipos de violéncia pao aqueles sempre considerados pela teoria do Direito. E ao mo tempo a pergunta sobre a verdade do dogma fundamental im Aquelas teorias: fins justos podem ser alcangados com meios mos, meios legitimos podem ser usados para fins justos. O que teceria entio se esse tipo de poder dependente do destino e que neios legitimos se encontrasse num conflito inconciliavel com fins em si? E se ao mesmo tempo fosse previsivel um poder de outro que entio nio pudesse ser o meio legitimo nem ilegitimo para ancar aqueles fins, por se relacionar com eles néo como um meio, outro modo qualquer? Langaria assim luz sobre a estranha e logo desencorajante experiéncia da indecidibilidade de principio 08 problemas juridicos (provavelmente s6 comparivel, no iter aporético, 4 impossibilidade de uma decisio vinculativa © que é “certo” ou “errado” nas linguas em devir histérico). Na dade, quem decide sobre a legitimidade dos meios ¢ da justeza dos DA HISTORIA vi) fins nunca é a razio, mas um poder do destino acima dela, acima do qual, por sua vez, esta Deus. Um ponto de vista que sé é raro porque domina o habito tenaz de pensar aqueles fins justos como fins de um Direito possivel, ou seja, nao apenas como tendo validade universal (0 que é uma consequéncia analitica do trago distintivo da justi¢a), mas também como sendo suscetiveis de generalizagao — 0 que, como se poderia provar, contradiz aquele tra¢o distintivo. Os fins que se afiguram justos, universalmente reconhecidos e universalmente validos numa situa¢4o nao o sao para outra, por mais parecida que ela seja sob outros aspectos. Uma fun¢ao mediata da violéncia, tal como a vamos propondo 4 discussao aqui, est4 presente na nossa experiéncia da vida’ quotidiana. No que aos seres humanos se refere, a célera, por exemplo, leva-os as mais evidentes explosdes de violéncia, uma vez que nao s€ relaciona, enquanto meio, com um fim proposto. Nao é meio, mas manifestacao. E essa forma de violéncia conhece manifestacdes objetivas nas quais pode ser sujeita a critica. Tais manifestagdes encontram-se, em primeiro lugar e de forma muito significativa, no mito. O poder mitico, na sua forma arquetipica, é mera manifestaga dos deuses. Nao meio para os seus fins, dificilmente manifestacao da si vontade, em primeiro lugar manifestag4o da sua existéncia. A lenda Niobe“ contém um exemplo excelente desse poder. Poderia pensar- que a aco de Apolo e Artemisa é apenas um castigo. Mas o seu pot representa muito mais a institucionalizagao de um Direito novo que a punicao pela transgressao de um existente. A hybris de Niobe recair sobre si a fatalidade, nao por transgredir a lei, mas por desafiar destino — para uma luta em que ele vencerd, fazendo eventualm nascer da vitéria um novo Direito. Esse poder divino no sentido anti nao se confunde com o poder da puni¢ao, que tende a manter o Direit vigente: isso esta bem patente nas lendas dos herdis em que estes, p exemplo Prometeu,”” desafiam o destino com dignidade e co: lutam contra ele com melhor ou pior sorte, e a narrativa nao d de Thes dar a esperanca de um dia virem a conseguir um novo Direlt para os humanos. E esse tipo de heréi e o poder juridico que ao mito, de que ele é parte integrante, que ainda hoje 0 povo pro: “ Vd. Iliada, Canto 24, v. 605-617; e Ovidio, Metamorfoses 6, v. 146-315. (N.T.) Vd. Hesiodo, Teogonia, v. 507-616; € Erga, v. 47-105. (N.T.) 76 FILOBENJAMIN: ntificar quando admira os grandes criminosos. A violéncia cai entao obre Niobe a partir da esfera insegura e ambigua do destino. Nao é opriamente destruidora. Apesar de provocar a morte sangrenta dos filhos de Niobe, suspende-se perante a vida da mie, que deixa para tras s culpada do que antes, carregando eterna e mudamente essa culpa, m marco que assinala a fronteira entre homens e deuses. Se esse poder ercido diretamente nas manifestagdes miticas pretende mostrar a sua finidade, ou mesmo identidade, com um poder instituinte do Direito, outra problemitica se projeta dele para o poder instituinte do ito, na medida em que — na exposi¢3o da violéncia da guerra que emos antes — 0 caracterizamos como um poder apenas dos meios. Ao 0 tempo, essa articulag3o promete esclarecer melhor o destino, empre subjacente ao poder juridico, ¢ levar até o fim as grandes linhas la sua critica. E que a fungdo do poder como violéncia na instituigo 9 Direito é dupla, na medida em que essa institui¢do se propde ser milo que se institui como Direito, como seu fim, usando a violéncia omo meio; mas, por outro lado, no momento da aplica¢ao dos fins m vista como Direito, a violéncia nao abdica, mas transforma-se, um sentido rigoroso e imediato, em poder instituinte do Direito, na medida em que estabelece como Direito, em nome do poder politico, o um fim livre e independente da violéncia, mas um fim necessaria intimamente a ela ligado. A instituigio de um Direito é instituigao um poder politico e, nesse sentido, um ato de manifesta¢ao direta violéncia. A justiga é 0 principio de toda institui¢ao divina de fins, poder politico, o principio de toda instituigio mitica de um Direito. Este ultimo principio tem no Direito politico uma aplicagao consequéncias imensas. De fato, na sua esfera, o estabelecimento limites — presente na “paz” de todas as guerras da era mitica — é quifenémeno por exceléncia do poder instituinte do Direito. Ai se ‘mostra 4 evidéncia que o poder politico tem de ser garantido por todo poder instituinte do Direito, muito para além da mera posse mais ou simplesmente eliminado; sio-lhe concedidos direitos, ainda que 0 de dominagio esteja do lado do vencedor. Direitos “iguais”, num sentido demonjaco e ambiguo: é uma e a mesma a linha de fronteira que nao pode ser transgredida. Estamos perante aquela “mesma ambiguidade mitica, terrivelmente arcaizante, das leis que DANIO DA HISTORIA 7 nao podem ser infringidas, de que fala satiricamente Anatole France quando diz que elas proibem igualmente a pobres e ricos pernoitarem debaixo das pontes.** Também Sorel parece tocar numa verdade meta~ fisica, e ndo apenas histérico-cultural, ao sugerir que nas origens todo o Direito (Recht) assentava no direito de prerrogativa (Vor-Recht) dos reis e dos grandes, em suma, dos poderosos. E assim continuari a ser, mutatis mutandis, enquanto existir o Direito, porque do ponto de vista do poder-violéncia (0 tinico que pode garantir o Direito) nao existe’ igualdade, mas, na melhor das hipteses, poderes da mesma escala. Mas © ato da instituic¢ao de limites é importante para 0 reconhecimento do Direito ainda sob outro aspecto. As leis e os limites tragados perma- necem, pelo menos em eras primitivas, leis nao escritas. O individuo pode infringi-los sem ter consciéncia disso, ¢ sujeitar-se assim a uma expiagio. Toda intervengao do Direito motivada pela infragao da lei nao escrita e desconhecida recebe o nome de “expiagio”, € com isso se distingue da puni¢io. Mas, por maiores que sejam as desgracas que ela inflige ao transgressor inconsciente, a sua interven¢io, no sentido do Direito, nio se deve ao acaso, mas ao destino, que uma vez mais se mostra aqui na sua ambiguidade deliberada. Jé Hermann Cohen, numa breve anilise da ideia antiga do destino, se referiu a isso como “um determinismo inexoravel”, dizendo que “é a sua propria ordem que parece provocar essa transgressao ou infracao”.*” Um testemunho moderno desse espirito do Direito é 0 postulado de que a ignorincia da lei nao exime ninguém de punigio, tal como a luta pelo Direito escrito na fase arcaica das comunidades antigas deve ser entendida como rebeliao contra o espirito da lei mitica. Longe de abrir uma perspectiva mais pura, a manifesta¢do miti- ca imediata do poder revela-se, no seu 4mago, idéntica a todo poder juridico, e transforma a suspeita do seu lado problemiatico em certeza quanto ao carater nefasto da sua fungao histérica, postulando assim a sua “ Anatole France, Le lys rouge, Paris, 1894, cap. VII (@ traducio alema utilizada por Benjamin, Die rote Lylie, saiu em Munique em 1919). A passagem do romance a seguinte: “E obrigacio dos pobres sustentar 0 poder e © écio dos ricos. Para isso, permite-se-Ihes que trabalhem sob a igualdade majestosa de uma lei que prosbe, a ricos como a pobres, dormir debaixo das pontes, mendigar nas ruas ¢ roubar pio”. (N.T.) ” Hermann Cohen, Ethik des reinen Willens [Etica da Pura Vontade], 2. ed. revista. Berlim, 1907, p. 362. 78 FILOBENJAMIN:

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