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Dossi DO! ~ 10.5752/P.2175-5 Juventude e religiosidade: cartografia dos processos de uventude e Religido — Artigo original 1841.2012v10n26p476 subjetivacdo de jovens catdlicos em uma comunidade de fé Youth and religiousness: mapping the subjectivation processes of the catholic youth in a community of faith Mary Rute Gomes Esperandio” Alexsander Cordeiro Lopes” Resumo Este estudo apresenta os resultados de uma pesquisa motivada pela constatagdo de que muitas subjetividades juvenis catdlicas do Brasil vivem uma situago de fragmentagio, que faz. emergir distinios grupos identitérios e graves conflitos no seio das comunidades de f. Por meio de uma pesquisa-intervengao, realizada em numa pardquia catélica na regido metropolitana de Curitiba, procedeu-se a uma cartografia dos processos de subjetivago (criagio de modos de existéncia) da juventude catdtica nessa comunidade. Pretendeu-se, com a cartografia, colocar em evidéncia tanto o modo como tais processos de subjetivagdo so forjados quanto as linkas de fuga presentes nesses processos. A utilizagdo da pesquisa-intervengao como titica para a realizagio da cartografia possibilitou a constatagdo de que, mesmo no interior dos grupos identitérios, ha brechas no instituido, por onde se pode fazer passar outras intensidades, com vistas & promogio de modos de existéncia menos fechados ¢ mais afirmadores de uma unidade que nio abre mao da pluralidade e da diferenca Palavras-Chave: Processos de subjetivagao, Cartografia. Juventude. Grupo- dispositivo, Pesquisa-intervengaio. Abstract ‘The present study results from a research motivated by the fact that many Catholic youth in Brazil live a fragmented situation that brings out distinct identity groups and Serious conflicts within communities of faith. By conducting a research intervention in a Catholic parish in the metropolitan region of Curitiba, we proceeded to mapping the subjectivation processes (creation of modes of existence) of Catholic youth in this community. It was intended to make a cartography to highlight both how such subjectivation processes are forged, as the lines of flight present in these processes. The utilization of intervention research as a tactics to perform the mapping allowed us to observe that even within the identity group there are gaps in the set where other intensities can go through in order to promote modes of existence less closed and more affirming the unit without losing plurality and difference. Keywords: Subjectivation processes. Cartography. Youth. Device group. Intervention research. Artigo recebido em 20 de margo de 2012 ¢ aprovado em 26 de juno de 2012, * Doutora em Teologia (FST/IEPG). Professora Adjunta no Programa de Pés-Graduagio, Mestrado em Teologia na PUCPR. Pais de origem: Brasil. E-mail: mresperandio@gmeil.com * Mestre em Teologia (PUCPR). Padre Catblico. Assessor do Setor Juventude da Arquidiocese de Curitiba. Pais de origem: Brasil. E-mail: pe.alexcordeiro@ gmail.com Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, p. 476-499, abr.jjun. 2012 ISSN: 2175-5841 476 “Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes Introdugao Desde meados dos anos 1980, constata-se 0 crescimento de novas expressbes religiosas no meio da juventude catélica. Esse processo atinge seu apice no inicio do século XXI, com a consequente configuragZo de uma pluralidade de grupos de juventude no interior do catolicismo, desde as diversas comunidades de base, com muitos grupos de jovens de Pastoral da Juventude (PI), como, também, 0 Ministério Jovem da Renovagio Carismitica Catdlica (MJ RCC), e uma organizagio de retiros de Treinamento de as (TLC), Se, por um lado, tal pluralidade pode ser vista como saudavel até desejivel em Liderangas Crist fungdo de oferecer aos jovens varias altemativas de identificago e pertencimento no interior da propria reli if, por outro lado, a relago entre os diferentes grupos passou a ser mais de defesa da identidade religiosa do grupo do que de cooperago entre si, tendo, como efeito, uma configuracdo grupal fechada & produgio do comum e da unidade espiritual entre 0 grupos distintos. Na Comunidade pesquisada, objeto deste estudo, os jovens se encontravam em situagdes conflitantes profundas, com discérdias histéricas e desconforto ha varios anos. As trés expressdes juvenis (TLC, PJ e MJ RCC), clara ou veladamente, disputavam entre si os espagos de controle dos grupos juvenis presentes nas comunidades catélicas de base. E, apesar dessa disput todos eram jovens que trabalhavam pelos jovens, na mesma ‘comunidade paroquial da mesma Igreja Catélica Era desejo do paroco local, que assumiu 0 cargo no inicio de 2010, valorizar a diferenga presente nos grupos ¢, a0 mesmo tempo, favorecer novas formas de organizagao eclesial, fim de que a diversidade, ao invés de funcionar como expresso de fragmentago ¢ impedimento a uma convivéncia de maior comunhdo, possa constituir-se como poténcia no proceso de produgdo da unidade da Igreja. Como produzir, entio, maior unidade sem supressio das diferengas? Como alcangar uma unidade cclesial fora dos processos homogeneizantes de produgdo identitéria no interior da Igreja? Como ser, simultaneamente, Igreja diversa ¢ una? Motivados pelo paroco, com o apoio do lider nacional da juventude, € 477 Horizonte, Belo Horizonte, v. 10,n. 26, p.476-499, abr.jun.2012 - ISSN: 2175-5841 Doss: Juventude¢ Religio— Art. Juventud reigosidade: arog dos poe de subjetvagio de ovens catiios rua com de aproveitando a ocasido para um estudo académico sobre essa experiéncia, alguns jovens aceitaram o desafio de iniciar esse proceso’, Assim, 0 estudo teve por finalidade evidenciar os processos de subjetivagao (criagdo de modos de existéncia) dos jovens nessa paréquia, Os resultados aleangados jé tém servido como ponto de partida para o planejamento de novas politicas de atengdo 4 juventude eatolica. Quer-se, pela via do trabalho com grupos nas comunidades de fé, buscar alternativas possiveis de superagiio de uma realidade que diminui a poténcia dos jovens ‘quando estes se prendem a certos limites identitérios 0 objetivo deste artigo, portanto, é apresentar a cartografia da pesquisa-intervengao realizada nessa comunidade de fé. Assim, partindo de uma discussio sobre o contexto juvenil catdlico, apresenta-se © método utilizado na pesquisa, seguindo- . dai, a exposigao dos achados na pesquisa intervencdo. Por fim, faz-se uma breve discussio sobre as implicagdes teolégico-pastorais que o estudo aponta. 1 Processos de subjetivacao dos jovens catélicos: o que a cartografia faz ver? Comecemos por esclarecer 0 que é subjetivagio. Trata-se de um conceito foucaultiano bastante explorado por Deleuze. Os estudos de Foucault sobre 0 poder levaram-no a lidar com uma necessidade conceitual que pudesse representar a possibilidade de transpor aquilo que foi estabelecido pelo poder e pelo saber, fazendo nascer novas configuragdes do social, novas formas de existéncia, Assim, Foucault chega & ideia de subjetivagio. Subjetivagdo, portanto, diz respcito & criagdo de modos de existéncia, de estilos de vida, [.-.] ou da invengdo de possibilidades de vida. (..] Trata-se de inventar modos de existéncia, segundo regras facultativas, eapazes de resistir ao poder, bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tenta penetré-los ¢ o poder tenta apropriar-se eles. (DELEUZE, 1992, p. 116) Como caracterizar os processos de subjetivagio dos jovens catélicos hoje? E necessirio colocar em pritica o método de pesquisa escolhido: a cartografia, Quando Essa experigncia de intervengo ocorreu, portanto, como fruto de uma necessidade local no trabalho com os ‘grupos de jovens e como estudo académico em nivel de pés-graduagdo (mestrado), Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, p. 476-499, abr.jjun. 2012 - ISSN: 2175-5841 478 “Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes ilizar os modos de subjetivagdo de determinada configuragao histérica ¢ social, isto & fazer uma cartografia, Apresentar os grupos constituidos na comunidade pesquisada, evidenciando seu carter identitério, contextualizando-os num universo mais amplo do que o interior da comunidade de f é, pois, o inicio de uma pritica cartografica, A cartografia” busca “o processo, a histéria, 0 movimento. Na cartografia buscam-se as condigdes que possibilitaram a emergéncia do atual, ou seja, os processos que possibilitaram e produziram subjetivagées” (ESPERANDIO; LOPES, 2011, p. 164). Por essa raziio, é preciso retroceder um pouco na histéria, mas no como uma busca pela origem. Como explica Deleuze, [uJ niio busearfamos origens, mesmo perdidas ou rasuradas, mas pegariamos as coisas onde elas erescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar as palavras. Nio bbuseariamos o etemo, ainda que fosse a eternidade do tempo, mas a formagdo do novo, a emergéncia ou o que Foucault chamou de “a atualidade”, (DELEUZE, 1992, p. 109) Nesse sentido, essa forma de apresentagdo da pesquisa realizada ja se bascia no método escolhido. Na pritica da cartografia, busca-se capturar o desenho das linhas que constituem territérios existenciais, Por territério entende-se tanto [..] um espago vivido, quanto um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente “em casa”, O territério & sindnimo de apropriagSo, de subjetivagio fechada sobre si mesma. Ele € 0 conjunto dos projetos e das representagGes nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e 08 espagos sociais, culturais, estéticos, cognitives. (GUATTARI; ROLNIK, 1999, p. 323) Ressalta-se que um tertitério pode se “destertitorializar”, isto é, abrir-se, engajar-se em processos de diferenciagao. Tais processos de diferenciago — também denominados desterritorializag&o — podem desembocar tanto em mudangas na forma desse territério, quanto podem provocar sua propria dissolugdo. Assim, um processo de desterritorializagao — de mudanga efou de desmanche de dada configurasio — implicaré, também, 10 desse tervitério reterritorializagdo, ou scja, wma tentativa de _recomposi destertitorializado: um movimento continuo, portanto, de produgio subjetiva de criagdo de um territério que se transforma, desterritorializa-se e retertitorializa-se em novas formas/configuragdes. ® Para maior aprofundamento a respeito da cartografia como método de pesquisa em Teologia, ver Esperandio e Lopes (2011). 479. Horizonte, Belo Horizonte, v. 10,n. 26, p.476-499, abr.jun 2012 ~ ISSN: 2175-5841 Doss: Iuvetude« Religio Ast Tuvetate¢reigosiade: artogdo pode subjetvago de joven ctéics erm uma com 8 Deleuze (1998) afirma que tanto as configuragdes do social quanto as singularidades pessoais sio constituidas por pelo menos trés linhas: as linhas da segmentaridade dura, as linhas flexiveis e as linhas de fuga. As linhas de segmentaridade dura sto “todas as espécies de segmentos bem determinados, em todas as espécies de diregdes” (DELEUZE, 1998, p. 145). Por exemplo, © percurso linear da familia & escola, da escola ao exército, do exército a0 trabalho, do trabalho 4 aposentadoria, “So linhas bem visiveis e ficeis de detectar, geralmente referentes & formagdo dos sujeitos. As linhas de segmentaridade dura comportam dispositivos de poder que definem as relagdes” (ESPERANDIO; LOPES, 2011, p. 164). J4 as linhas flexiveis “tragam modificagdes pequenas, perpassando os individuos, os grupos, as sociedades. Sio apreendidas pelo desejo, pelo estético, pela atragio ou repulsa” (ESPERANDIO; LOPES, 2011, p. 164). Por fim, as linhas de fuga “correspondem a desterritorializacdo, a queda vertiginosa, A edificagdo de algo novo, que desestabiliza e gera angiistia, posto que ndo se sabe ao certo qual sua destinagdo” (ESPERANDIO; LOPES, 2011, p. 164) A cartografia, como método, busca, entio, desemaranhar essas linhas, visibilizando- as no estudo dos processos de subjetivagao. A convergéncia de forgas na década de 1960 viabilizou o borbulhar de novas formas de subjetivacdo juvenil. Abandonando um lugar passive em relagio as formas de organizag3o do mundo adulto, os jovens assumiram um papel fundamental na construgao dos modos de existéncia ocidentais. Mas essa conquista ndo se deu de modo pacifico. Maio de 1968 ¢ os demais movimentos que dele decorreram apontam uma nova compreensao que a propria juventude fez de si mesma nesse periodo, 0s anos 1960 foram mareados, no Ocidente, pela eclosio de uma cultura juvenil ‘nunca antes tomada visivel na cena piblica, Teria se dado, naquela ocasito, uma smudanga radical nos modos pelos quais as geragSes se relacionavam (..] Massas de jovens, coesas justamente por conta de sua relativa homogeneidade etéria, entraram bruscamente no espago da cena piiblica, buscando inventar os seus priprios territorios existenciais e politicos. (ANGRA DO ©, 2009, p. 25) Internamente, na Tgreja, um alvorecer de novas ideias, impulsionado pelo Concilio Vaticano Il, abriu as portas das estruturas eclesiais para o novo tempo que se descortinava no Ocidente, Além disso, os leigos abandonaram uma forma mais passiva em rel Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n, 26, p. 476-499, abr.jjun. 2012 - ISSN; 2175-5841 480 “Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes decisdes hierérquicas, para assumir um papel protagonista na histéria da Igreja, propiciando aos jovens um novo espago de expresso de seu ser, recentemente emancipado, As transformagdes propostas pelo Concilio Vaticano IT (abertura eclesial ao mundo moderno & fortalecimento do laicato), a0 comporem forgas com a nova juventude dos anos 1960 viabilizaram a emergéncia dos diversos Movimentos Juvenis fortemente presentes em todo tertitério nacional até nossos dias — como o TLC e a RCC; bem como o surgimento, na América Latina, de um novo modo de se fazer teologia: a Teologia da Libertagio, impulsionada pelo Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) ¢ suas conferéncias de Medellin e Puebla — que possibilitaram a organizagao e reflexio das Pastorais da Juventude. Essas “linhas de fora” (Teologia da Libertagdo, TLC e RCC, Coneilio Vaticano TI, apenas para mencionar algumas) entraram em relagdo com as geragdes contemporineas, fazendo nascer algumas configuragdes na comunidade de fé pesquisada: 1) © grupo denominado Treinamento de Lideranga Cristi (TLC). Especialmente “depois de 1969, nasceram com grande rapidez numerosos movimentos de jovens Estes movimentos promoveram encontros [...] [que] empregavam metodologia de impacto emocional” (CELAM, 1987, p. 61). Muitos deles existem com muita forga até nossos dias, caracterizados pela emogio, arte, beleza, alegria e por um olhar positive sobre a potencialidade de os jovens assumirem seu papel na Igreja. O Treinamento de Lideranga Cristi surgiu como uma dissidéncia do Cursilho de Cristandade (encontro querigmético para adultos surgido na Espanha, no final do Século XIX). Segundo o site do movimento (TLCC, 2012), 0 trabalho evangelizador do TLC tem como principal atividade a realizagao de encontros de finais de semana, Sio dois dias de encontro com diversas palestras de cunho querigmédtico, de tom alegre ¢ cheias de testemunhos pessoais dos dirigentes. Trés etapas ajudam os participantes a se encontrar consigo mesmos, com a pessoa de Jesus Cristo © com os irmios. Muita misica e dindmicas conduzem os cursistas a uma decisio pessoal de adesio & proposta do Evangelho ¢ uma profunda mudanga nos valores que direcionam suas vidas. 2) © “Ministério Jovem da Renovagio Carismética Catélica” (MI RCC), Desde 0 inicio do Século XX, aportaram no Brasil diversas experiéncias religiosas que ficaram conhecidas como pentecostais. As forgas do capitalismo modemo e 481 Horizonte, Belo Horizonte, v, 10, n. 26, p.476-499, abr.jun.2012 - ISSN: 2175-5841 Doss: Juventudee Religio— Art. Juventud religosidade arog dos poe de subjetvagio de ovens catiios m uma com de contemporineo, 20 comporem com aquelas linhas decorrentes do Maio de 68 — que exaltavam a emogiio, a liberdade e a criagdo — viabilizaram a emergéncia de modos de experimentago religiosa que exacerbam a realizagio dos desejos e sonhos, frazendo a baila o emocional, a experiéncia pessoal, a escuta do interior, ri contrapondo-se aos modelos religiosos mais racionais, caracteristicos das Igrejas protestantes tradicionais eda maioria dos catélicos. da modemidade (ESPERANDIO, 2006, p. 95-106). As primeiras experiéneias da RC — a expresso pentecostal da Igreja Catélica — ocorreram nos EUA, também como fruto de novas experiéncias proporcionadas pelos tenteios da renovaco do Concilio Vaticano IL. A RCC surgiu e desenvolveu-se primeiramente no meio juvenil. Aos poucos, porém, 0 mundo adulto foi sendo cativado © passou a participar mais ativamente do movimento. Por isso, com 0 passar dos anos, sentiu-se a necessidade de uma organizagio propria dentro da RCC, para articular a evangelizagio especifica da “Secretaria juventude do movimento, Essa organizagdo chamou-se, primeiramente, Marcos” e, alguns anos depois, foi denominada “Ministério Jovem da RCC”, contando, hoje, com uma organizagao que atinge praticamente todas as dioceses do Brasil. © Ministério Jovem da RC em nossos dias, uma das maiores agremiagdes da juventude catélica brasileira 3) AS Pastorais da Juventude (PJ). Diversos movimentos, como 0 TLC e a RCC. eresceram e se desenvolveram sem 0 apoio direto da Conferéncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ou outras estruturas oficiais da Igreja do Brasil. Contudo, sem sua existéncia no seria possivel a criagdo das Pastorais da Juventude (Pls), a organizagdo que contou com o apoio da hierarquia, em especial nas décadas de 1980 € 1990. A emergéncia das PJs ocorreu num periodo em que houve um significative aumento do nimero de jovens que participaram dos movimentos de encontro pretendiam dar continuidade em sua participago eclesial. Uma nova forma de ser Igreja jovem surgia. Se na década de 1970 valorizava-se a emogdo, a poesia, 0 centir” mais do que o “agit”, os anos 1980 viram florescer uma nova juventude. A militncia renascia na Igreja jovem, adormecida havia algumas décadas, com o final da Agdo Catélica Especializada e a repressdo do Regime Militar. Mas, entdo, essa militancia ressurgia alimentada por uma teologia — a da Libertago, uma pastoral ¢ Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n, 26, p. 476-499, abr.jjun. 2012 - ISSN: 2175-5841 482 “Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes ‘uma espiritualidade proprias (ESPERANDIO, 2006). Animados pelo documento de Puebla (1978), os bispos do Brasil apoiaram a criagdo oficial da nova estrutura evangelizadora, que articulasse os grupos paroquiais de jovens, criando uma “Pastoral da Juventude”, ou simplesmente PJ. Esta foi considerada a tinica ida oficial na evangelizagio catdlica juvenil por cerea de duas Durante os anos em que as Pastorais da Juventude foram consideradas as tnicas expressGes oficiais na evangelizacio da juventude catélica brasileira (década de 1980 até meados dos anos 2000), nfo foram poucos os embates entre seus membros e as demais expresses juvenis catdlicas que surgiram nas décadas anteriores, Os movimentos juvenis foram, durante muitos anos, forgados @ caminhar entre duas posigdes: ou adequar-se aos moldes apresentados pela pastoral oficial (no modelo da PJ) ou organizar-se para além do apoio oficial da hierarquia, representada pela CNBB, posto que sua identidade nunca foi, de faltaram criticas quel fato, reconhecida com valida nesse periodo, submetiam aos seus ditames, No auge das Pastorais da Juventude, em 1987, 0 Consetho Episcopal Latino- Americano langou o estudo intitulado “Pastoral da Juventude, sim 4 Civilizago do Amor” no qual caracterizou os movimentos como alienantes, com pouca consciéncia critica, nfo vinculados & estrutura oficial e, por isso, sem possibilidade de controle institucional. Algumas das criticas feitas pela Conferéncia sobre os Movimentos assim versam: nao despertam consciéncia critica diante da realidade; arregimentam membros da hierarquia, independentemente da organizagio das Igrejas locais; no seguem os planos pastorais das dioceses e nacionais; versam apenas sobre os problemas da classe média cional (insinuagdo de ingeréncia homogénea ¢ internacional; a literatura & sempre intern: estrangeira em territério nacional); trazem respostas 4s aspiragdes da classe média, sem questionamento das opgdes profissionais ¢ politicas de seus membros; usam de forga psicologica, afetiva © centrada nas emogdes; ndo insistem em formagio teoldgica, acentuando-se mais a emotividade do que a intelectualidade; valorizam uma salvagio que se centra apenas nos pequenos dramas pessoais e familiares (CELAM, 1987, p. 62-63). Em outras palavras: 483 Horizonte, Belo Horizonte, v, 10, n. 26, p. 476-499, abr.jun.2012 - ISSN: 2175-5841 Doss: Juventude¢ Religio— Art. Juventud reigosidade: arog dos poe de subjetvagio de ovens catiios rua com de [.-] 4 instituiedo oficial ndo soube escutar a voz dos novos tempos que jé haviam surgide em 1968 ¢ agora explodiam de vez no catolicismo latine-smericano, Claramente, a hierarquia desqualifica a emosio, 0 afeto, os problemas pessoais, supervalorizando-se a estrutura oficial, a racionalidade, a militincia ~ as linhas duras ¢ inflexiveis de sua instituiglo, Nao houve, neste periodo histGrico, a acuidade para enxergar os novos modos de subjetividade surgindo no meio eclesial. (LOPES, 2011, p. 70) Ou, seja, ainda imperava a tendéncia a tudo uniformizar. O embate entre as Pastorais da Juventude e os movimentos continuou pela década de 1990 afora, levando a verdadeiras disputas e choques nas comunidades da base. Porém, por mais esforgos que se fizessem, os movimentos cresciam © multiplicavam-se, fragmentando mais e mais as estruturas oficiais, A CNBB foi cada vez mais percebendo a necessidade de realizar algo novo em sua organizagdo. Porém, apesar de entender a gravidade da situagi0, continuou mantendo a oficialidade apenas as Pastorais da Juventude até meados da década de 2000, sempre considerando a reversibilidade da tendéncia de crescimento dos movimentos juvenis. Naquele momento, nfo se percebeu com a devida acuidade as transformagées da subjetividade juvenil e a necessidade de se abrir espagos para as novas formas de organizagdo que essas subjetividades produziam. © conflito entre as estruturas oficiais da CNBB ¢ os diversos grupos emergentes apontam, assim, algo além de uma suposta desorganizagao institucional. O conflito entre modelos cclesiais expressa modos diferentes de perceber, ser e estar no mundo. Desestabilizindo as relagdes, taisconflitos oportunizam um proceso. de desterritorializagio, em fungdo do choque entre diferentes modos de subjetivagdo, As desestabilizagées causadas pelos conflitos identitarios dos grupos evidenciam nao apenas 0 fechamento dos grupos em si mesmos, na defesa de sua identidade. Elas também apontam, simultaneamente, as brechas no instituido que possibilitam novas configuracées, afirmativas da vida. E 0 que se poder perceber com a pesquisa. 2A tética cartografica - a pesquisa-intervencao A oportunidade para a alizagdo da pesquisa-intervengio em pardquia na Regio Metropolitana de Curitiba surgiu apés a busca de uma comunidade que pudesse refletir a Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n, 26, p. 476-499, abr.jjun. 2012 - ISSN: 2175-5841 484 “Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes situago que emergia em diversos locais do pais. Colombo é um municipio vizinho a Curitiba, com cerca de 215 mil habitantes. E parte integrante da Grande Curitiba e um dos municipios que mais cresce populacionalmente na Regio Metropolitana. E a 8* cidade do Parani em populagio, tendo sido composta, primeiramente, pela colonizagZo italiana do final do século XIX (ENOMOTO, 2004, p. 64). Durante 0 século XX e nestas décadas iniciais do XXI, o némero de habitantes cresceu de modo significative com a chegada de familias vindas do interior do estado do Parana. A maior parte da populagdo & de classe média baixa, com uma parcela consideravelmente empobrecida, Muitos bolsdes de pobreza crescem de modo desordenado em muitas localidades. A violéncia grasa em muitas localidades, como decorréncia, sobretudo, dos problemas relacionados a droga e a drogadigao. A convergéncia dos modelos catélicos tradicionais das colénias italianas com as experigncias das comunidades advindas de outras localidades tradicionais do interior do Parana, junto com a realidade de pobreza e exclusio vivenciada por uma parte considerdvel dos fiéis, fez surgir um catolicismo deveras forte, tradicional e com impacto transformador, sentido por meio das diversas pastorais sociais e organizagées comunitarias, que fazem com que a presenga da igreja na sociedade colombense seja muito marcante. O municipio possui cinco paréquias, que se organizam em dezenas de comunidades eclesiais de base’, articuladas entre si, Todas as paréquias de Colombo apresentam grande movimentagao pastoral, com diversos movimentos ¢ organizagées eclesiais e consagradas. A Paréquia Santa Teresinha de Lisieux é, atualmente, a maior. Possui 20 comunidades eclesiais organizadas em um territério com cerca de 80 mil habitantes. A juventude presente nessa pardquia articula-se em cerca de 25 organizagdes juvenis agregadas ao redor de 3 movimentos aqui apresentados: Pastoral da Juventude — 0 mais presente ¢ forte; 0 Ministério Jovem da Renovagdo Carismatica Catélica, e 0 Movimento Treinamento de Lideranga Crista (TLC). Apés os primeiros contatos com essa comunidade, constatou-se algumas dificuldades de integragio entre as organizagdes juvenis: disputas por espago intracomunidade, problemas para dialogar, presenga de liderangas que ora * Comunidades menores, que se agregam as paréquias e recebem orientagao e servigas do piroco local 485 Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, p.476-499, abr.jun.2012 ~ ISSN: 2175-5841 Doss: Juventude¢ Religio— Art. Juventud reigosidade: arog dos poe de subjetvagio de ovens catiios rua com de supervalorizavam uma identidade grupal, ora outra, enfim, havia um grande fechamento & diferenga e a alteridade em fungio da defesa da identidade fixa de cada grupo — uma identidade que se cristalizava e se enrijecia diante de cada desestabilizagao de seu territério. © piroco local, percebendo o problema sentido pelos jovens, sugeriu-thes a busca de caminhos de maior comunhio. Diante dessa realidade, pesquisador e orientadora, buscaram desenhar, em conjunto com as liderangas da comunidade local, as estratégias de uma pesquisa-intervengao: A Pesquisa-Intervencao ¢ uma forma de Pesquisa Participativa, ou seja, um ‘trabalho no qual o papel ativo e protagonista das pessoas envolvidas no estudo & considerado fundamental, © grupo nio & apenas um simples objeto de estudos para o cientists. Pesquissdor e pesquisades formam como que um sé grupo, quebrando a dicotomia entre sujeito e abjeto de pesquisa. (LOPES, 2011, p. 29) E necessario destacar, porém, que a intervencdo nao é qualquer tipo de pesquisa participativa, nem pode ser confundida com a pesquisa-agdo. Embora nos dois modelos haja participagao ativa do/a pesquisador/a no grupo pesquisado, a pesquisa-agdo tem por ‘objetivo principal a conscientizagio do grupo a respeito de sua condig&o oprimida e pretende oferecer “oportunidades para que, a partir da concepgio pré-estabelecida teoricamente, todos possam construir novas pereepgdes a respeito de si ¢ da situagdo social (LOPES, 2011, p. 29). vigente, O mote deste tipo de andlise & ‘conhecer para transformar’ Em outras palavras, enfatiza-se uma verdade conhecida a priori pelofa pesquisador/a que, servindo-se dessa mesma verdade, da qual é porta-voz, busca conscientizar os participantes do grupo a respeito dela. “A pesquisa-intervencao, por sua vez, relativiza a ideia de verdade, ¢ opta por outro principio: ‘transformar para conhecer"” (LOPES, 2011, p. 29). Como titica da pesquisa-intervengdo, buscou-se criar um grupo-dispositivo, apostando que as relagdes de forgas experienciadas nesse grupo seriam capazes de favorecer novos processos de subjetivagio. Dispositivo é, segundo Foucault, a rede que se pode estabelecer entre elementos discursivos ndo discursivos, o dito ¢ © ndo dito, o jogo que existe entre os elementos discursives e ndo discursivos, mudangas de posigdo, modificagdes de fungdes, enfim, “um tipo de formagdo que, em um determinado momento Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n, 26, p. 476-499, abr.jjun. 2012 - ISSN: 2175-5841 486 Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes histérico, teve como fungdo principal responder a uma urgéncia O dispositive tem uma fungdo estratégica dominante” (FOUCAULT, 1999, p. 244. © grupo-dispositivo foi criado como titica de intervengdo © reuniu 15 jovens participantes dos diversos grupos juvenis presentes e atuantes na comunidade pesquisada, a saber: TL¢ PJ e MJ RCC. Através dessa estratégia pretendeu-se: cartografar os processos de singularizagio ali produzidos; caracterizar as identidades grupais e os modos de pertenga dos varios grupos de juventude da comunidade; evidenciar brechas no instituido que apontavam possibilidades de criagio de novos modelos eclesiais de vivéncia coletiva da fé Optou-se por escolher jovens nas liderangas de grupos de base que tivessem conhecimento da histéria, metodologia e perspectivas do grupo que se estava representando. Foram selecionados jovens com idade superior a 18 anos ¢ inferior a 29, considerando a determinagiio da ONU na definigdo do que seja juventude (pessoas com idade entre 15 e 29 anos)’, que fossem liderangas atuantes de um dos movimentos ou pastorais de juventude da Arquidiocese de Curitiba presentes na comunidade pesquisada. Por lideranga entende-se, aqui, jovens que tenham a formagdo necesséria para refletir sobre a identidade de seu grupo e, ao mesmo tempo, possam conduzir atividades em suas comunidades locais. O grupo-dispositivo precisaria ser plural e sem hegemonias, portanto, procurou-se, a principio, escolher do modo mais equitativo possivel o mimero de jovens representantes de cada expressio catélica juvenil. Esse nimero, porém, conforme verificado mais adiante, ndo se manteve fixo durante os encontros. Nio foram accitos jovens que nao tivessem tempo suficiente de participagdo em sua expresso juvenil, que nio a conhecessem adequadamente ou no pudessem conduzir atividades com os grupos. Para esse processo de escolha foi de fundamental importincia a parti ipagdo efetiva das coordenagdes locais, indicando jovens que consideravam capacitados o suficiente para participar do estudo. A cartografia dos processos de subjetivagao dos jovens catélicos dessa comunidade foi sendo realizada através do acompanhamento do grupo-dispositivo. Assim, os encontros foram registrados em video e também foram anotadas todas as falas dos participantes * Mais tarde, adultos assessores que acompanham os processos de evangelizagao juvenil na paréquia também aderiram 4 proposta, a pedido dos proprios participantes do estudo, conforme paderd ser verificado mais adiante, 487 Horizonte, Belo Horizonte, v 10, n. 26, p.476-499, abr.jun.2012 - ISSN: 2175-5841 Doss: Juventude¢ Religio— Art. Juventud reigosidade: arog dos poe de subjetvagio de ovens catiios rua com de durante os encontros, a fim de se verificar os processos de reconfigurago das subjetividades a partir de suas falas e posturas nas reunides, A proposta planejou, em principio, a realizagio de 4 encontros, com duracdo aproximada de 90 minutos. Ao final da quarta reunio, porém, o grupo sentiu a necessidade de continuar os trabalhos com a presenga do pesquisador por mais algumas semanas. A pesquisa englobou ao todo, a realizagio de 8 reunides (uma delas sem a presenga do pesquisador — a oitava — com relatério encaminhado a ele), além do acompanhamento dos debates via e-mail, conforme sugestio do préprio grupo, e do acompanhamento de uma atividade construida coletivamente tendo em vista a descoberta de problemas comuns a ser enfrentados por eles enquanto comunidade de f&. A seguir, descreve-se o desenrolar dessas atividades © 0 desenho cartogrifico do caminho percortide pelo grupo-dispositive. Vale registrar que esta pesquisa foi devidamente aprovada pelo Comité de Etica em Pesquisa da Pontificia Universidade Catélica do Parand (PUC-PR). No primeiro encontro do grupo-dispositivo, evidenciou-se a forte organizagao geogréfica a delimitar os temitérios dos grupos. Percebia-se claramente a divisio ¢ a tribalizagdo entre os participantes pelos agrupamentos no espago ocupado. PJ, TLC e MI RCC ficaram sentados em grupos distintos na sala, que estava organizada em circulo. Essa configuragZo perdurou até o final, na realizagio da atividade de 10 de outubro, com algumas pequenas mudangas em algumas reunides. Segundo Deleuze, (1998), a primeira “dobra” da subjetivago (processo de eriago de modos de existéncia) corresponde A ordenago dos corpos ¢ sua configuragio ‘geogrifica. Os corpos dos jovens organizam-se a partir da identidade do grupo a que pertencem, permanecendo perto uns dos outros de acordo com a proximidade ideoldgica de cada expresso grupal ~ reproduzindo 0 modo identitirio como se posicionam no territério eclesial. A fragmentagio em grupos distintos, tribais, e hostis aparece no modo como ‘ocupam os espagos, e delimitam as fronteiras dos territérios fisicos de protegdo diante do mundo perigoso do outro. Nada hé mais seguro do que o pequeno grupo a que se pertence, pois todo o resto, especialmente as grandes instituigdes, & incerto e arriscado para essas subjetividades. Quais sto as condigdes para o surgimento dessa configuragio? Segundo Virno (2003), nossas sociedades estabeleceram-se e organizaram-se a partir da inseguranga Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, p. 476-499, abr.jjun. 2012 - ISSN: 2175-5841 488 “Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes primaria do ser humano diante do mundo, que a principio se apresenta hostil. A “cidade”, “vila” ou “tribo” primitivas significava a seguranga diante do outro — diferente e, talvez, perigoso — e das forgas desconhecidas ¢ hostis da natureza ¢ seus animais selvagens. Na “polis”, o ser humano sentia-se em casa, seguro, e com capacidade para mais vida. Nela se esté com os “seus”, que defendem do inimigo, dio estabilidade e 0 minimo de conforto para se poder sobreviver diante da hostilidade do mundo, O “outro” & o inimigo potencial, dessa organizagdo © pode destruir 0 mundo tranguilo que existe dentro dos muros da cidade. © corpo analisador desse modo de organizagao social € 0 muro de protecdo a cercar as cidades e tribos ha até poucos séculos atris, bem como as fronteiras bem marcadas & protegidas dos Estados, com suas aduanas ¢ fiscalizagao protetora (BENEDETTI, 2009, p. 19). Esse modo de subjetivagio perdurou por séculos e encontrou seu auge na organizago dos Estados Absolutos do inicio da Moderidade, que, por intensificarem a identidade do povo (com cultura © organizagdo proprias), produziram guerras © mortes, inquisigdes e cruzadas; e, por iltimo, os grandes conflitos xenofdbicos do século XX. Essa configuragdo social fez surgit modelos eclesiais fechados, ligados a regimes de verdade incapazes do didlogo com 0 “outro”, considerado herege e posto para fora da comunhdo, excluido para 0 exterior dos muros eclesiais. A Igreja Catélica (e, também, outras), com seu regime de verdades medievais ¢ modemas, transformou os muros fisicos das cidades em muros invisiveis. E, no seio da propria Igreja, 0 muro que separava 0 “eu- eclesial” do “outro-herege”, evoluiu para as separagdes internas as préprias organizagdes eclesiais ¢ seus regimes de verdade: 0 “eu-PJ” € 0 “outro-herege”, 0 “eu-RCC” e 0 “outro- herege”, 0 “eu-TLC” e 0 “outro-herege” (sendo que, por “outro” se compreende 0 movimento ou pastoral “concorrente”). Mas, como 0 proprio desenrolar desta pesquisa vai evidenciar, esse modelo de organizagio social ¢ eclesial esté submergindo. Brechas so abertas © novos modos de subjetivagio, mais afeitos 4 pluralidade, estio brotando. Os jovens comegam a viver a inseguranga da desterritorializagao desses modelos antigos e, alguns, arriscam-se a caminhar em novos territérios No segundo encontro, o objetivo principal foi caracterizar as identidades grupais ¢ 05 modos de pertenga nos varios grupos de juventude paroquial, dando continuidade ao primeiro encontro, a fim de que os jovens conhecessem mais profundamente as demais 489) Horizonte, Belo Horizonte, v, 10,n. 26, p.476-499, abr.jun 2012 ~ ISSN: 2175-5841 Doss: Juventude¢ Religio— Art. Juventud reigosidade: arog dos poe de subjetvagio de ovens catiios rua com de expresses presentes na pardquia, Durante os didlogos desse segundo encontro, um dos patticipantes da PI, deixou vislumbrar uma possibilidade de linha de fuga para as situagdes conflitantes vividas por aqueles jovens. Ele, membro da PJ, queixou-se da maneira como os membros adultos da Pardquia excluiam a RCC e o TLC das reunides deliberativas acerca da condugo pastoral da mesma. Sua fala provocou mudanga visivel de humor em todo 0 ‘grupo, que comegou a perceber a possibilidade de verdadeira mudanga nos comportamentos excludentes de suas estruturas, Alguns jovens do grupo-dispositivo deixaram transparecer a fiustragdo com os regimes de verdade da instituigo “Igreja” e seus muros preconceituosos, visiveis pela exclusio para com os membros da Renovagdo Carismatica Catélica. O tnico saber aceito como legitimo pela instituigo, em suas linhas duras ¢ inflexiveis, ndo contemplava a diversidade da RCC e do TLC. O medo da desestabilizagio desses saberes naturalizados impedia a abertura e 0 confronto com a alteridade dos movimentos. A concordincia dos jovens com as observagdes feitas por este participante ratificava © deserédito de alguns membros do grupo para com as racionalizagdes de carter tipicamente modemo: totalizadoras, impositivas © homogeneizantes. Evidenciava-se, naquele encontro, 0 modo como os jovens estavam dobrando 0 “ saber e verdade (DELEUZE, 1998, p. 111). fora” nas relagdes entre Algumas subjetividades contempordneas, especialmente as juvenis, no se sentem & vontade nas instituigdes pautadas em verdades unificadoras, Nenhum povo, Estado, filosofia ou teologia faz o ser humano sentir-se-em-casa em nossos dias. Toda uniformizagao, imposigio ou fundamentalismo gera desconforto em nossos coetineos. Estes ndo encontram seguranga em lugar algum. A inseguranga & dobrada, intemalizada assimilada pelas subjetividades de nossos tempos. Prefere-se permanecer nela a ter de retomar as falsas segurangas modemas e medievais. A maioria das pessoas nfo se sente em casa com esses modelos, tampouco procura sentir-se, Para elas, vale a pena o risco da desteritorializagdo, a fim de descobrir novos modos de exist ja no mais pautados por aquelas verdades totalizadoras. E, se nfo me sinto em casa na seguranga da “polis dentro dos muros das verdades rigidas da Tgreja -, “preferirei 0 risco da liberdade e me protegerei da falsa seguranga que as instituigdes oferecem” (LOPES, 2011, p. 94). Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, p. 476-499, abr.jjun. 2012 - ISSN: 2175-5841 490 “Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes Conforme acordado entre todos, 0 terceiro encontro objetivou a descoberta de problemas comuns a ser elencados por todos e sobre quais lacunas o grupo gostaria de desenvolver um trabalho em conjunto. Os jovens descobriram que seus problemas eram semelhantes, apesar das diferengas de suas identidades: a violéncia e a dependéncia quimica eram questdes importantes no contexto em que a comunidade de fé estava localizada, A extrema violéncia a que so submetidos os jovens gera neles um desejo de seguranga — como uma busca ética por mais vida. Nesse seu territério comum, todos se encontram com as mesmas fragilidades, os mesmos medos e a mesma necessidade de encontrar saidas para essas situagdes. Ao olhar para si mesmos, os jovens descobrem-se Unidos pela fragilidade, ao mesmo tempo que suscitam, do meio do seu caos, possibilidades de fuga para essas situagdes de morte, O caos ndo é o oposto da ordem, ma: sim, poténcia de novos territérios. Segundo Esperandio (2001, p. 65), na fragmentagdo caética nao ha nada a assegurar nem em que se segurar, “O caos possibilita a criago ~ [...] eampo das incertezas, dos possiveis, onde todas as possibilidades pululam, sem formas a priori, sem indicagao de escolhas” (ESPERANDIO, 2001, p. 65). Somente no caos o novo se produz. Somente da desterritorializagdo novas reterritorializages ocorrem e novas formas de subjetividades surgem e se organizam, compondo e recompondo o real. Os jovens dessa comunidade estio manifestando o desejo de produzir um novo modo de ser Igreja, escapando & uniformizagao tridentina ¢ & fragmentagdo propria da contemporaneidade. Esto produzindo uma rede que aponta para a ideia de “multidio”, a partir das profundas dores comuns vividas em suas subjetividades juvenis. © quarto encontro teve como principal objetivo evidenciar as brechas no instituido que possibilitam a criagao de novos modelos eclesiais de vivéncia coletiva da fé, ou seja, como, do caos gerado pela pluralidade de modos de viver a fé, & possivel, ou nao, a construgiio de um projeto coletivo comum, © movimento tragado pelos jovens da parsquia ‘ada aponta, nessa altura da intervengo, possiveis esq linhas de fuga (de possibilidades de afirmagio da vida), que comegam a aparecer em fun: jo de algumas fissuras que surgem no estabelecido, ‘Nas segunda e terceira reunides, a partir do confronto com algo que Ihes é exterior — ‘© Evangelho — os jovens tribalizados descobriram a incompatibilidade de seus modos 491 Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, p.476-499, abr jun 2012 - ISSN: 2175-5841 Doss: Juventude¢ Religio— Art. Juventud reigosidade: arog dos poe de subjetvagio de ovens catiios rua com de conflitantes ¢ agressivos de se organizar, possibilitando a eles sonhar com um ideal de m: vida, Esse confronto com um “ideal comum” exterior possibilitou 0 encontro aberto & franco entre eles e 0 surgimento de novas “conexdes” que facilitaram 0 didlogo ¢ a ‘comunhii . Percebeu-se nos jovens a capacidade de conexio por um sonho comum. Os jovens, confrontando-se com os valores do Evangelho, puderam vislumbrar uma linha de fuga e provocar algumas brechas em suas instituigSes, fazendo um movimento em busea de novas formas de subjetivagio — nio mais isoladas e identitérias, mas em conexdes, aos modos de uma rede. Os jovens, a0 se confrontarem com o Evangelho, descobriram a necessidade de continuar criando “redes” nio apenas com os seus iguais, mas com os diversos também. A reterritorializagdo tomou-se possivel porque as condigdes para o surgimento desses modos “conectados” foram produzidas pelo grupo a partir de seus problemas comuns em confronto com aquilo que querem construir no fora: a realizago do Reino pautado nos valores evangélicos, Precisou coragem para se saltar para territérios desconhecidos, ao que a forga do Evangelho, chamando todos a uma comunh&o mais plena, contribuiu significativamente © que se testemunhou junto aos jovens da paréquia pesquisada, ao término desse encontro foi o inicio de um proceso de criagdo de uma organizagdo em rede, caracteristica de subjetividades juvenis acostumadas & conexio constante. Desejos agenciados. Mistura de compos, diriam Deleuze e Guattari (2000, p. 21) — corpos dos aparelhos de comunicagao © corpos dos jovens misturados na produgo do novo. O projeto de pesquisa, a principio, previa a realizagao de quatro reunides, nas quais se daria a intervengZo como possibilidade de gerago do novo. Como os encontros cumpriram o objetivo de ser um dispositive para invengio de linhas de fuga, os proprios jovens solicitaram sua continuidade, possibilitando, também, a participagio de mais pessoas (a maioria jovens, mas também alguns adultos), que, sabendo da realizagdo dos encontros, desejavam participar. Durante © quinto encontro, © pesquisador realizou uma dinimica na qual os participantes puderam expressar como estavam se sentindo com aquelas reunides. Todos os depoimentos reforgaram uma mudanga significativa nas relagdes entre saber © verdade. Be Destacam-se as palavras “conhecimento, conceitos, preconceito, conv afirmagdes, conhecer, entender ¢ opinides” que se colocam como sendo a principal mudanga operada Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, p. 476-499, abrjjun. 2012 - ISSN: 2175-5841 492 Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes pelo grupo dispositive nesses jovens. Novas configuragdes de poder possibilitadas pelos encontros comegam a gerar novas formas de verdade. Antigos conceitos foram colocados em questio, Foucault (1999, p. 14) destaca que “a ‘verdade” esta circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos de poder que ela induz ¢ que a reproduzem, ‘Regime’ da ‘verdade™, O grupo dispositivo colocou em evidéncia verdades naturalizadas que nao produziam vida e que colocavam os jovens em conflitos pautados nos saberes estabelecidos, nas militincias em nome dos conhecimentos esclarecidos, ou do saber teolégico. Um dos participantes do MJ RCC destacou: “durante os encontros, pude perceber que alguns conceitos que eu tinha eram errados e distoreidos”. Outro, da TLC e PI afirmou que “nossas reunides destacaram a falta de conhecimento do outro © © quanto superficial eram e so as nossas afirmagdes a respeito do desconhecido”. De fato, em diversos momentos dos encontros anteriores, destacou-se a insisténcia das praticas discursivas de desconstrugao das identidades alheias, seja em cursos (como era o caso da Pastoral da Juventude), seja nos diversos momentos em que 0 TLC e a RCC utilizaram-se de estratégias de acusago de falta de “espiritualidade” por parte da Pastoral da Juventud, Qs trés organismos juvenis viveram, por anos, retransmitindo conhecimentos tidos naturalmente como verdadeiros, sem sequer uma vez considerar que foram discursos construidos, forjados nas disputas por hegemonia e naturalizados pelas instituigdes a que pertencem, “O importante, creio, & que a verdade nfo existe fora do poder ou sem poder”, afirma Foucault (1999, p. 13). As verdades produzidas pelos grupos naturalizavam esquemas de poder, lutas e disputas por espago, por influéncia maior jamais atingida por qualquer um dos trés grupos representados. Com as subjetividades colocadas em confronto neste estudo, facilitou-se 0 surgimento de uma nova configuragao dos esquemas de poder, possibilitando a emergéncia de novos saberes, mais abertos, mais dialogantes. Essas mudangas na subjetividade, que foram sendo possibilitad: a partir da relago entre saber € verdade, provocaram novas formas de configuragZo do poder e propiciaram novas subjetivagdes, mais abertas e valorizadoras da vida. De uma Igreja totalitiria, monolitica e tolhedora da criatividade e multiplicidade humanas, os jovens da comunidade pesquisada comegaram, por meio do grupo-dispositivo, 493 Horizonte, Belo Horizonte, v 10, n. 26, p.476-499, abr.jun.2012 - ISSN: 2175-5841 Doss: Juventude¢ Religio— Art. Juventud reigosidade: arog dos poe de subjetvagio de ovens catiios rua com de 2 forjar uma nova teologia, um novo discurso sobre Deus ¢ seu povo, que possibili novas priticas pastorais e novos modos de existéncia cristdos O evento de 10 de outubro — em comemoragio ao Dia da Crianga foi planejado como uma espécie de avaliago das possibilidades de unidade em meio a diversidade juvenil da comunidade de f&. Conforme sugestio do proprio grupo na quarta reunifo, es atividade seria como que um teste para se verificar se seria possivel ou ndo um trabalho conjunto, No dia esperado, cerca de 800 pessoas, entre jovens, criangas e adultos, estiveram presentes. Os jovens, em sua grande maioria muito empolgados com as atividades, empenharam-se ao maximo para proporcionar aquelas criangas uma experiéncia diferente, marcada pelos valores do Evangelho. © amor pelas criangas, pelos jovens em situagio de risco, pelas realidades de exclusdo ¢ de sofrimento possibilitou ultrapassar barreiras do saber pautado no poder homogeneizante. De teologias marcadas pela “excomunhdo”, pela divisio, pelo medo do outro, passa-se a teologias de unidade, de fratemidade, de acolhida da diferenga, sem medo. Os processos ainda esto em curso. Brechas foram abertas no instituido e os jovens, pelo menos um mimero consideravel deles, esto decididos a persistir na tentativa de uma caminhada comum, valorizadora da vida ¢ resistente as homogenei: ies das suas subjetividades 3 Implicagées teolégico-pastorais Os jovens da comunidade pesquisada, ao afetarem e deixarem-se afetar na pesquisa- intervengao apresentada, causaram brechas na instituigio eclesial da qual fazem parte, A cartografia, como método ad hoe, possibilitou desemaranhar essas linhas de forga que principiaram o emergir de novas subjetivagdes diante do estabelecido (DELEUZE, 1992, p. 110). Com esse método foi possivel acompanhar os movimentos imprevisiveis que foram transformando a paisagem até entio vigente. Esta terceira parte do artigo pretende fazer ver © que essas transformagdes tém a dizer & teologia, de modo especial & e siologia A intervengao na paréquia pesquisada proporcionou espago seguro para que alguns jovens dessa localidade desejassem novas formas “geogrificas” de ser Igreja e comegassem se aventurar por caminhos pouco percorridos. O que esté surgindo nessa comunidade sao Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n, 26, p. 476-499, abr.jjun. 2012 - ISSN: 2175-5841 494 Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes novos modelos de ser Igreja que escapam as antigas formas eclesiais de organizagao, O que comega a emergir ndo é mais uma organiz: jo eclesial monolitica, sem diferengas, mas os muitos grupos que embora identitérios, independentes ¢ auténomos, comecam a trabalhar com objetivos comuns, esto interligados em redes. Nao é mais possivel uma organizaao uniforme e uniformizadora, como ocorreu nos anos 1980 ¢ 1990 com as PJs. Mesmo as tentativas de alguns movimentos para se tomar dnicos, como se pudessem substituir a antiga organizagdo hegeménica, frustraram-se. © mundo antigo, pautado sobre a seguranca do interior da “pélis”, do Estado-nagio, no resiste a0 mundo liquido-modemo (BAUMAN, 2007, p. 7). Uma Igreja monolitica, forjada nesses modos de subjetiva¢o uniformizados também no, Os corpos organizam-se 2 partir disso, desterritorializando-se das velhas instituigdes e reterritorializando-se nas tribos. Assistimos, portanto, em meio aos jovens catélicos, a emergéncia de uma nova organizagdo eclesial: ndo mais grupos de comunidades uniformizadas que se articulam tertitorialmente, respeitando uma ordem piramidal; mas, sim, grupos organizados sob a forma das tribos urbanas, independentes de territsrio (existencial ou geografico). © que os jovens da comunidade pesquisada demonstram ¢ que as diversidades juvenis existentes hoje na Igreja (Cangao Nova, Shalom, Ematis, PJs, TLC, RCC, Opus Dei, Regnum Christi e, por fim, cada grupo de jovens) ndo querem se configurar de modo idéntico aos demais. Pelo contratio, querem construir seu modo de existéncia cristo, como uma nova forma de comunidade na qual os gostos ¢ emogdes pessoais se encontram escapam ao individualismo, O modelo eclesial que surge das novas configuragdes de Tgreja em produgio entre esses jovens expressa de modo mais claro a necessidade de se aprofundar a compreensio do que é a diversidade ma unidade, Para além das uniformizagdes pés-tridentinas, a juventude contempordnea pode fazer emergir um modelo eclesial realmente inclusivo, na comunhdo dos muitos, na articulago de redes promotoras da riqueza das miltiplas subjetividades, valorizadoras de todo 0 humano — a verdadeira “catolicidade”, no sentido estrito dessa palavra. Desde a aceitago do cristianismo como religiéo oficial do Império Romano, no final do século IV, a pertenga & “catolicidade” passou a ser determinada pela presenga em um territério especifico. Ou seja, ser stidito do Imperador significava, ipso facto, ser cristo, fazendo parte da comunidade dos que professam a f8. Essa concepgio de Igreja como 495 Horizonte, Belo Horizonte, v, 10,n. 26, p.476-499, abr.jun.2012 - ISSN: 2175-5841 Doss: Juventude¢ Religio— Art. Juventud reigosidade: arog dos poe de subjetvagio de ovens catiios rua com de territério naturalizou-se € perdurou por séculos nos meios catdlicos (e ainda perdura, segundo especificagdes do Direito Canénico), produzindo um regime de verdade que sustentou poderes e possibilitou a emergéncia de um laicato pacato e servigal aos Estados Cristdos e a Igreja em si. Esse modelo esté ruindo por completo em nossas sociedades contemporaineas. A catolicidade, expressa pela pertenga a um territério (diocese, parsquia) nao mais d4 conta do que seja a experiéneia cristd © atual momento da histéria ocidental, momento em que se revonfiguram as relagdes com 0 espago eo tempo, exige de nés clareza teoldgica, Se, em outros momentos da historia, pertenga ¢ teritorialidade se ientificaram sem mais, tal identficagdo vai deixando de ser tio imediata, tio automética. (AMADO, 2009, p.67) Os jovens da paréquia pesquisada, como recorte social de uma situago que atinge mais do que apenas essa paréquia em si, no mais aderem as estruturas simplesmente porque pertencem a este ou aquele espago geogrifico, ou defendam esta verdade ou aquela doutrinéria, Eles criam seus ambientes e formam novas maneiras de se relacionar comunitariamente. Se antes a catolicidade se expressava pela pertenga a um determinado local eclesial, as subjetividades juvenis relativizam esse modelo e 0 alteram por uma pertenga mais existencial — um “rizoma”, como queriam Deleuze € Guattari (2000, p. 15). “Rizoma” é uma espécie de raiz que no possui um “centro” definido, mas eresce por debaixo da terra, na horizontal. Sio multiplicidades em uma “rede” de vida e crescimento constantes, na qual no hd unidades separadas, mas, sim, apenas a “rede”, No rizoma, o que vale sio as interagdes e as conexdes, que sempre produzem novas formas de subjetivagio, linhas de fuga que escapam e produzem novas maneiras de se expressar (TURINO, 2008, p. 34). A Igreja beneficia-se mais com 0 modelo “rizoma”. Isso porque, atualmente, ela no eresce segundo a ordem e a uniformidade territorial. Ela cresce por agenciamentos, por contigio das subjetividades que veem no Evangelho uma linha de fuga diante do turbilho de menos vida que se apresenta em nossas sociedades e nas sociedades de todos os tempos. Outro aspecto a ser considerado: a juventude pesquisada, ao enxergar a dor da violéncia em meio aos jovens de sua cidade, encontrou como seu ponto “comum’” buscar saidas para tal situagdo. A partir de um olhar claro, que se volta para fora das estruturas Horizonte, Belo Horizonte, v. 10, n, 26, p. 476-499, abr.jjun. 2012 - ISSN: 2175-5841 496 “Mary Rute Gomes Esperandio; Alexsander Cordeiro Lopes eclesiais, os jovens assumiram uma con: io missionéria, libertadora e com a para promogio da vida em meio as situagdes de morte que encontrou, juventude pesquisada provoca a Igreja toda a se voltar para fora de suas estruturas, a niio se fechar como “tribo” em meio ao mundo, mas se assumir como fermento na massa. Este estudo nos ajuda a refletir sobre as posturas de isolamento que podem ser assumidas por membros das comunidades cristis. Porém, néo existe eristio fora do mundo, fora da sociedade, isolado de um contexto histérico ¢ cultural, Para ser fiel ao seu chamado, a Igreja nao pode fechar-se em si mesma e esquecer a situago de dor que perpassa seus membros, porque ela mesma é constituida por pessoas que vivem nessa sociedade, forjadas nessa cultura, nesse tempo. Ao dar 0 passo para fora, a partir dos conflitos desestabilizadores, para a construgo de outras formas de vida mais afirmativas, os jovens da comunidade pesquisada descobriram 0 quanto podem afirmar a vida criando mais vida. Pela sua ago em meio as criangas e adolescentes de um bairro perigoso de sua cidade, comprovaram que 0 Evangelho pode significar uma linha de fuga em meio a um contexto de subjetividades limitadas e fragilizadas. Uma Igreja que se isole em seu mundo no é fiel ao Deus que quis se fazer humano (BRIGHENTI, 2004, p. 124). Concluséo Os apéstolos reunidos no Cenaculo, impulsionados pelo Espirito, sairam de dentro daquela sala e encontraram-se com os seus, que etam o seu povo, a sua gente. Os cristios tinham uma mensagem que escapava aos modos de subjetivago que geravam a morte. Tinham a mensagem de mais vida anunciada pelo Cristo, Por isso, ndo como alguém que impde uma verdade desde fora, mas como humanos participes do mesmo destino, fizeram- se linha de fuga. Os jovens da comunidade pesquisada, a0 sair para fora de suas configuragde identitarias, ao se encontrar com a alteridade intraeclesial ¢ fora da Tgreja, em meio aos demais jovens daquela realidade, também fizeram a mesma experiéncia, E na abertura e encontro com a diferenca produziram um novo modo de ser Igreja, em comunhdo com o mundo, com os diversos grupos, com as diversas culturas. 497 Horizonte, Belo Horizonte, v 10, n. 26, p.476-499, abr.jun.2012 - ISSN: 2175-5841 Doss: Iuvetude« Religio Ast Javea reigashnde: arto ds pode subjetvag deren eatéicos em uncom, de ‘A Igreja possui a poténcia para sair de si mesma, escapar as linhas de segmentaridade duras e inflexiveis de suas titucionalizages engessadas e com medo do mundo, Ela é uma instituigdo feita por homens ¢ mulheres do “hoje”, que professam a fé “agora”. Homens e mulheres que, se embarcarem nas linhas de fuga, podem sentir-se aptos a ser de fato “fermento na massa” ¢ contribuir na produgdo de outros modos de existéncia mais afirmativos. O resultado dessa outra forma de vivéncia do Evangelho implica uma Tgreja mais aberta ao novo, sem medo de sonhar, que possibilita criar linhas de fuga, que no é rigida em suas instituigdes e & capaz de acolher a diferenga em seu seio. Uma Igreja assim sera uma instituigdo realmente apta a se reinventar sem perder 0 que Ihe é caracteristicamente fundamental, a sua unidade (em meio a diversidade) na comunhao com 0 Cristo. REFERENCIAS AMADO, J. P. Igreja e comunidade: aspectos pastorais. In: BRIGH 5 CARRANZA, B. (Org.). Igreja, comunidade de Comunidades. Brasilia (DF): Ed. CNBB, 2009. p. 62-71. ANGRA DO 6, A. A cultura é a inversio da vida. Velhice, juventude e politica nos idos do maio de 1968. Espago Académico, Maringé, n. 98, p. 22-27, jul. 2009. BAUMAN, Z. Vida liquida, Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 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