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a a INTRODUCAO c A CRITICA TEXTUAL c . ¢ A C César Nardelli Cambraia ° ite C Rope c a o a C o c 0 Martins Fontes Sao Paulo 2005 oy ony 020, Live Mri Res ai. 7 Gotoinponeprene cio. relia compandanet a te Gute Bree "ser re “ils ee rca es “Gerd ine Pogue Suis 3 Deine Etre ads Ite Cats Peabo (I) "camara rca coarse ‘Cini Cara Tere ts tal [Cr Nal ans ~ to ae: Marin Foes, 2s ~(Ceiemae ct) iicgna San 20864 ei el Tt Se. coosce Trace or aig Hato Trenton bese 8 “os dies dea dita par angen porngpte revered Toles ‘Livrarie Martins Fontes Bditora Lide. na Cesc Raato 30/2500 So Polo SP Bras ‘(ip sage7 Fst! SI011082 emai ino@ranoues con linovenantnontescom ir INDICE Prfico Lista de abreviaturas 1. Introdugio. . 1.1. Definigdo de critica textual 1.2. A mobilidade dos textos 1.3. Critica textual, ecdética e flologia 1.4. Contribuigdes 1.5. Transdisciplinaridade Paleogratia Diplomatica Codicologia Bibliogcafia material. Lingiiistica. 2. Breve histérico da critica textual 2.1, Da Antiguidade & Idade Média 2.2, Do Renascimento ao século XIX 2.3. Epoca moderna 2.4. A critica textual em Portugal ¢ no Brasil 3.A transmissio dos textos. 3.1. Conceitos bisicos 3.2. A produgio do livro manuscrito 3.3. A produgio do livro impresso. 3.4. Tipologia dos erros 4, Tipos de edigéo. 4.1. Tipos gerais de edigio 4.2. Tipos fundamentais de edigao. Edigées monotestemunhais Edigdes politescemunhais 5. Normas de edigio 5.1. Principios norteadores 5.2. Procedimentos bésicos 5.3. Propostas de normas gerais. Edigao diplomitica Edigio paleogrifica... Edigio interpretativa 6. Edigio critica 6.1, Estabelecimento do texto cxitice. Recensio. Reconstituicao 6.2. Apresentagio do texto critico 7. Critica textual & informatica 7.1. A transmissio dos textos na era digital 7.2. A edigio de textos na era digital A informatica no estabelecimento do texto ‘A informitica na apresentacio do texto 8. Critica textual & ensino 8.1. Livros didaticos 8.2. A escolha de edicSes Referencias bibliogrdficas. 109 an 126 128 129 131 133 133 133 148 161 175 175 181 181 184 191 191 194 19 “Cada estagio da vide & uma edigio, que corrige a anterior, € que sex corrigida também, até a ediga0 defintiva, que o editor di de graga aos vermes” Mactiabo DE Ass Memras Péstumas de Brés Colas, 1977: 152. PREFACIO Niio deixa de ser surpreendente que a critica textual, ten- do mais de dois milénios de existéncia,seja tio pouco difun- dida no Brasil. Ratos sio os cursos de Letras, Bibliotecono- mia, Histéria, ComunicacZo Social, dentre outros afins a ela, que 2 tém como disciplina na sua grade curricular. Certamente um fato que muito contribui para sua pouca difusio no Brasil é 2 limitago bibliogséfica em Iingua por- ‘tuguesa: raras sfo as obras da especialidade, e poucos os ma- nuzis introdutérios, que, por sua vez, se encontram jé hé tem- pos esgotados ~ eis, pois, o principal motivo pars a elaboragio da presente obra. Concebida para ser utilizada em cursos universitirios de graduacio (mas, naturalmente, de utilizago vidvel em cursos congéneres), esta introdugo tem como objetivo fundamental levar 20 conhecimento de leitores sem formacio prévia em critica textual temas essenciais dessa 4rea,a fim de estimular a teflexio e a busca por informagoes mais ricas e diversifica~ das, Em fiangio desse objetivo, procurou-se expor os temas de forma direta com uma linguagem simples, atual e objetiva Embora se tenha tentado avancer na abordagem do assunto ry ) - rp Xe INrwoDUCAO A CRITICA TEETUAL com a inclusio de tépicos mais recentes (como, p. ex., critica genética e informitica),a presente obra nio escapou da ine~ vitével limitago bibliogrifica: por isso, deve ser entendida como uma sintese critica sobre o conjunto de informacdes disponiveis a0 autor duzante sua elaboragio. Adaptagdes criagées terminolégicas foram realizadas sempre que se fze- ram necessirias para dar 4 matéria tratada uma organizagio mais coerente. © autor nfo poderia encerrar este breve preficio sem externar seu agradecimento a duas pessoas em especial, que tornaram esta obra possivel: Heitor Megele, responsivel pela iniciagdo do autor no mundo da critica textual; e Haquica Osakabe, autor do coavite para a publica¢io desta obra. Ao colega José Américo de Miranda Barros, agradece 0 autor pelos inestimaveis coraentérios & primeira versio desta obra LISTA DE ABREVIATURAS brew. ~ abceviada alc, aleobacense prox, ~ aproximadamente staal. ~ auabizado(e) au. ~ avmentado(a) age. ~ angmentie Bibl. ~ Biblioteca €— cerca de, eanto cf ~ conferir 08d. cbdice collab. ~ elaboration e.~ excole £4(9).~ edigio/edivores) let ~eletrnica ‘exp. ~ espanhol) ll). - Bio() f~ fancés(es) ee Brego Len isto 8 ingl. ~ inglés(ea) Jat.— tim (9. nba) LC lgar-ctico melhor ~ melhorsdo(2) sms). — manwseritog) 16). ~ niimero(s) ‘Nac. ~ Nacional NT~ Nave Tstmento ‘of. -oficina ‘orge). ~ organizador(es) corig.— original p-pigina pen por exemple por. = portugués(ess) pub. ~ publicadofa) z= recto reed, ~ reeditsdo seimpr.~ reimpressio eu revista) sha = rue sist ristampa séeb), —século(s) sep. separa test ~ testemunho tend. tadugio ver, — verseulo voll) = volume(s) CAPITULO 1 INTRODUGAO 1.1, DEFINIGAO DE CRITICA TEXTUAL Um dado fundamental para compreender 0 escopo da cri tica textual € 0 fato de que um texto softe modifagies ao longo do processo de sua transmissio. Para perceber de forma descontraida essa questio, basta levar-se em conta a tradicional brincadeira chamada telefone- senrcfio:20 pé do ouvido de quem esti ao seu lado, uma pes- soa passa oralmente uma mensagem, a qual é repassada para a pessoa seguinte do circulo em que se encontram, e assim su- cessivamente — mas, como todos sabem, a0 retornat a0 pri- meiro emissor, a mensagem nunca chega come foi. Pode-se dizer que se passa, mutatis mutandi,a mesma coisz na transmis~ sio de textos escritos.A cada copia que se faz de um texto, a constituigig deste muda ~ seja por ato involuntirio, seja por ato voluntério de quem o copia. E justaménte por causa desse fato empirico incontestivel que a critica textual se constituiu: seu objetivo primordial € a restituigdo da forma genulna dos textos, Co 2 w inReDUGAO A CRITICA TEXTUAL 1.2. A MOBILIDADE DOS TEXTOS ‘As modificagdes que os textos podem softer ac longo do processo de sua transmusstio podem ser distribuidas em duas categorias: exégenas e endégenas. ‘As modificagies exdgenas derivam fandamentalmente da comupge do material utilizado para registrar um texto: tanto da matéria subjetiva (papiro, pergaminho, papel, etc.) quan- to da matéria aparente (grafite, tinta, etc) Isto significa que, mesmo que nenhuma cépia fosse feita de um registro origi- nal de punho do préprio autor, ainda assim a transmissio des- se registro poderia softer modificardes, pois furos no suporte podem criar lacunas que exigirio o trabalho do critico tex- tual para serem preenchidas, A corrupgio do material di-se por varios motivos: umidade, sol, fogo, insetos, vandalismo (cazio pela qual, aliés, documentos originais demandam con- digdes especiais de conservacdo, de que, via de regra, apenas grandes bibliotecas ¢ axquivos dispéem). No dominio da Kngua portuguesa, hd casos muito curio~ sos relacionados 2 essa questo da corrupg0 do material: po- dem-se citar, em especia,os chamados Pergaminho Vindel e Per- sgaminho Sharer. Em 1914, 0 livreiro espanhol Pedro Vindel deu noticia da descoberta de um pergiminho contendo nio apenas o texto de seve cantigas de amigo atribuidas 20 trovador medieval Martin Codax mas também a partitura de seis delas (cf. Vin del, 1914). Esse pergaminho, datével do séc. XIII, servia até entio de forro a um cédice do séc. XIV, contendo uma cépia do De Offs de Cicero. O pergaminho, que se encontra des- de 1977 na Pierpont Morgan Library de Nova Iorque, tornou posstvel, pela primeira vez, conhecer a miisica de cantigas de amigo, pois até entio sé se conhecia 2 misica de cantigas ga~ lego-portuguesas de cariter religioso — mais especificamente inrRopucho #3 as famosas Cantigas de Santa Maria, compiladas na corte de Afonso X, 0 Sabio (1221-1284)'. Se, por um lado, os furos que existiam no pergaminho nao impediram de todo 0 conhecimento do texto das can- tigas pelo fato de elas também se encontrarem registradas no Cancioneiro da Biblioteca Nacional (ns. 1278 a 1284) € no Can- cioneito da Vaticana (ps. 884 2 890), por outro, o conhecimen- to da miisica no escapou 4 necessidade de conjecturas, pois ‘um dos faros encontra-se justamenre na parte final de duas pautas da terceira cantiga.A propésito do texto em si, veja-se, na figura 1, como o furo na matérie subjetiva eliminou par te da quinta cantiga (na primeira coluna, 20 centro), Histéria semelhante aconteceu décadas depois: em 1991, © extudioso americano Harvey Sharrer noticiou a descoberta de um pergaminho que possufa nao somente o texto de sete cantigas de amor de autoria do rei D, Dinis (1261-1325) mas também a sua partitura (of, Sharrer, 1991). Esse pergaminho, dativel de fins do séc. XIM ou principios do XIV, fazia parte da capa de um livro do Cartério Notarial de Lisboa copiado em 1571, Novamente houve um grande achado, pois o per- gaminho, que se encontra no Arquivo Nacional da Torre do ‘Tombo, em Lisboa, evelou pela primeira vez a misica de can tigas de amor (as de Codax eram de amigo). ‘Também no caso das cantigas de D. Dini, o conhecimen- to do texto dessas composigdes liricas que se tem atualmente é menos lacunoso do que seria se constassem apenas do refe- ido pergaminho (muito mais fragmentatio que o localizado por Vindel), pois elas encontram-se registradas no Cancioneiro LA mica dat Contias de Sonte Mari recebeu ji duas proposts de incerpetagao ‘quanto 8 parca original: a de Ribera (1922) ea de Anglés (1945-1964). de Martin Codax fo esudsda por Manuel Fedo Ferrers (1986). 4 vrncoucho A crinica PoRTUAL Figura 1 — Folio 2x do Pergaminho Vindet (Foote: Ferri, 1986: 74-5) 1 j a mwrRopUghO § da Biblioteca Nacional (ns. 524 a 529 ¢ 5202) © no Cancio- neiro da Vaticana (ns. 107 a 113).De maneira igual, porém, a restituigio das notagdes musicais demandou conjecturas. Como se vé, em ambos os casos os estragos no pergami- nho impedizam a continuidade da transmissio das notagdes musicais em sua integridade, No que se refere 20s textos, em- bora haja outros registros das referidas composig6es, ainda as- sim pode-se considerar existir uma perda, pois, do ponto de vista de autoridade, os dois referidos pexgaminkos, porque sio 1 registros mais antigos, tm mais valor no processo de re~ constituigdo da forma genuina dos textos do que os dois can Cioneiros citados, que parecem datar do séc. XVI. Certamente um caso que pode ser considerado exemplar em termos de perda por corrupgio do material € 0 da versio medieval portuguesa do Merlin. Em 1979, 0 pesquisador catalio Amadew-J.Soberanas trou- xe a conhecimento a descoberta de um ffagmento do Merlin em portugués medieval (cf. Soberanas, 1979). Como nio se sabe de nenhum outro registro em lingua portuguesa desse texto, sua reconstituigao integral é simplesmente impossivel ¢ a propria reconstituigo apenas do texto portugués do frag- mento é certamente bastante limitada. Veja-se abaixo, atra~ vés de um dos trechos transcritos por Soberanas (1979: 191), como 0 texto apresenta lacunas ora passiveis de conjectura (entre colchetes), ora praticamente irrecuperiveis (trés pon= tos entre colchetes): Qvado eles chegard a abadya e os firades uird os caua[leifros chagados, fford contra eles [..] ¢ fiez[e]r6 [...] a hia camara ¢ {..] flezerlhys todo a{quel servigo} que poderé. Manhaa [..Joy manhaa espediusse a donzela[...] 08 caualeitos ffolgars (...] E quando uirs [...}tya caualgar [...Jes e forom [...Js come [..] (ms. 2434 da Bibl. da Cataluna, f6l, 122v-b). o > 6 = TRODUGAO A CRITICA TEXTUAL Nos trés exemplos acima citados, uma e6pia com corrup- cio material chegou até o presente, entretanto certamente muitas outras cépias corrompidas de textos, as quais desapa~ receram no curso do tempo, terio circulado no passado e ser~ vido de modelo para outras cépias, o que teri interferido na transmissio integral de muitos textos. ‘Ja as modificagSes endégenas sio aquelas que derivam do ato de reprodusdo do texto em si, ou seja, do processo de reali- zagio de sua cépia em um novo suporte material. As exoge- nas diferem das endégenas porque a origem destas é interna 20 ato de cépia (depende de seu responsivel), enquanto 2 da- quelas é externa, na medida em que nio depende do seu rea lizador, pois, mesmo cue este executasse a cépia com 100% de precisio,o resultadc ainda assim estaria comprometido, poz defeito no proprio modelo. As modificagdes endégenas po- dem ainda ser subdivididas em duas outras categorias: autorais ¢ ndo-autorais. ‘As modificagées autorais sio realizadas pelo préprio autor in- telectual da obra. Durante 0 processo de preparacio da edigao impresse de uma obra,é comum o autor receber as provas ti- pogrificas (impressio da primeira composi¢io tipogrifica fei- taa partir de um original manuscrito ou datilografido): nesse ‘momento, s6i acontecer nfo apenas de o autor retificar aqui- Jo que o tipégrafo tinka alterado por desatengio mas também de ele proprio, o autor, fazer novas intervenges na forma do texto anteriormente enviado 3 editora, Em um passado mais remoto era possivel ainda que um autor divulgasse sua obra através de cpias manuscritas em um primeiro momento, mas, posteriormente, tendo realizado modificagdes na sua obta, di- vulgaria novas cépias,jé com alteragées de sua autoria. "Um exemplo de modificagao autoral € 0 que aconteceu com a obra Os Sertées,de Euclides da Cunha (1866-1909). Se- gundo esclarece Walnice Galvio (cf. Cunha, 2003: 520-9), mwrnoDugio # 7 essa obra foi publicada pela primeira ver em 1902 pela edito- ra Laemmert, tendo sido reeditada em 1903 ¢ 1905 pela mes- ‘ma casa editorial. Foi, porém, apenas apés publicada a 4? ed., em 1911, jé sob a responsabilidade da editora Francisco Alves, que se descobriu um exemplar da 3 ed. com emendas de pré- prio punho do autor (cf. figura a seguir), alteracdes estas que foram integradas a0 texto apenas a partir da 5? ed.,saida em 1914. Atualmente o exemplar com emendas autografas est’, no entanto, desaparecido, mas ainda existe um exemplar com a reprodugio dessas emendas realizada por Fernando Nery (cepositado na Academia Brasileira de Letras). Apés ter com- parado as érés primeiras edigSes e 0 exemplar com reprodu- lo apégrafa das emendas euclidianas, Galvio apurou a exis- téncia de nada menos que em torno de 6.000 variantes (sem se incluirem nessa cifta as corregées geificas ortogriticas). Ter conscincia de que os autores modificam suzs obras de uma edigio para outra é especialmente importante, pois a diversidade formal dos textos tem origem nio apenas em lapsos de cépia mas também na mudanga de vontade do au- tor (que dé origem as chamadas variantes de autor):a dificulda~ de, entretanto, esta justamente em se estabelecer com certeza quando se trata de um caso € quando de outro, especialmen- te em relagio a textos muito antigos. Modificagées nfo-automais sio as que ocorrem sem a auto- rizagio nem 0 conhecimento do autor, ou seja, sio fruto da atividade de terceres. Bssas modificazdes podem ser subdividi- das em voluntérias ¢ involuntéria, Sio modificagdes voluntérias aquelas que ocorrem por ato Aeliberado de quem reproduz 0 texto.A azo principal para esse tipo de modificagio costuma ser 2 discordancia ideol6gica, que se manifesta, via de regra, através de censura (politica, re- ligiosa, etc.). 4 # tyrmopucKO A CRITICA TEXTUAL Figura 2 - Pigina 140 da 3! ed. d'Or Sevées com alterages autégrafis de ‘Faclides da Cunha (Fonte: Cunha, 1946: VI) a = Mo = de ria oepe@ 4 eo mtd 6 vane rea aro ves ots beige esata rend pcaria oa 1 lebiomens van em ekg oeleagy Lot 28 Oak, eombraenton ata a3 tere do malice 98 abs = ene vngio enuaro Js rains ‘cits relied ervey en ens bosagiados x S. Cone cau i pare fleece va rani ar he reo u dexerta de ojosoi percent inenure Ste i cons en exe a ee toda. He, dn ah aie papain, toes prox ‘iui sndroaln 26 etc lesa 8a emt ioe Aiea 6 an blader: a Peedi. las ot mest ‘ink compass de fligicrdoe Indl, se enfin“ ‘Mf ela fil grater eoB6 una mesicagea de congas All eid, frt0os, 0 enthréplime do iebnges, 0 arpa 14 asinine do fren 6 © git ami 0 props tad tonal da raga superior, ua épnen do decaiineni © de catia. Te ulti ¢ un cap vive do atavno, onadeanta as stats rl sioner ¢ oeniee agznen, pss rah rn deal poragues, «parr ecu XVI quando, depo caver por mowen's cz ae‘ tna «aia naracat os povs eatin 4 eubia, tex decompesisio pln tat dirt pee bts erecta BrasiTersg, tear, en Odeo 1, iio de completo evequitole oral, ad todos os terores do Rdede-Modie Unda enue ‘ono eathoiense geaarlar. Para exemplificar censura, pode-se mencionar a primeira edigio que Augusto Magne fez do texto medieval portugués da Demanda do Santo Graal em 1944. Certamente por achar que certas passagens do texto poderiam chocar o publico, o mTRODUGAO #9 editor suprimiu-as do corpo do texto, transferindo-as para uma segio final intitulada aditamento. Tendo sido criticado por essa atitude, Magne preparou uma segunda edicio, publicada em 1955-1970, em que nio somente recolocou no devido Iu- gar todas as passagens anteriormente deslocadas mas também incluiu reprodugio fac-similar do manuscrito para tornar evi dente sua fidelidade a ele. Veja-se, a seguir, a reprodugio de um excerto censurado na 1 ed. e de sua forma integral na 2° {0 excerto, do cap. LIl, § 357, narra 0 encontro do jovem rei Artur com uma donzela): ¢ dés i, foi-se contra a donzela e salvou-a;e ela se ergueu con- tra dle e salvou-o muito apdsto; e elrei se assentou e cla ou- trossis € comegatom a falar de-suii, ¢ achou-a el-rei tam si- suda e de tam booa palavra, que marivilha era, ¢ foi em tam pagado, que a quis levar consigo; ¢ entom aque-vos uu cava~ leiro j6 quanto de idade, que saiu da foresta asi desarmado como rei Artur (Magne, 1944, vol. Il 3, itilicos de Magne). ¢ dés i, foliJ-se contra a donzela e salvou-a; ¢ ela se ergueu contra éle e salvou-(0] muito apésto; ¢ el-rei se assentou e ela ‘ontrossi; e comegarom a falar de-sui,e achou-a el-rei tam si- suda € de tam booa palavra, que marivilha [era], foi tam pa gado, que jouve com ela per fora. B ela, que era menina ainda nom sabia de tal cousa, comesou a braadar mente ele jazia com ela, mais nom the houve prot ca toda via fez el-rei 0 que quis,e fez entomt em cla uit filko.E depois que howe feito seu prazer ea quis levar con~ sigo aque-vos ui cavaleiro jé [quanto] de idade, que saiu da foresta assi desarmado como rei Arcar (Magne, 1970: 89, it lico nosso). ‘Trata-se obviamente de uma cena forte, pois narra-se um estupro, Entretanto, no é possivel fazer uma andlise adequada do texto portugués da Demanda do Santo Graal levando-se em conta a edi¢io com censuras: s6 se pode ter uma visio global IDNA 195 10 4 termopUcho A cRiTicn TEXTUAL aprofizndada do texto medieval portugués considerando to- das as suas partes. Constituem modificagées involuntérias aquelas que ocor- rem por lapso de quent reproduz 0 texto, Esse tipo de modifica¢io, conhecido tradicionalmente como erro de cbpia, foi j6 obje- to de diversos estudos, que procuraram descrever ¢ classifi- car cada categoria: tal empenho decorre da consciéncia de que a identificago da origem de um erro explica a nature za da distorgio e evidencia como deve ser sanada na restitui- Gio da forma genuina dos textos. Como no capitulo 3 esse tema ser abordado detalhadamente, apresenta-se aqui apenas um exemplo: 0 sallo-bordae. Quando hé no modelo utilizado para a cépia duas palavras iguais em pontos diferentes de uma ‘mesma pagina de um manuscrito ou impresso, nfo raramente costuma-se saltar o texto que hd entre essas duas palavras. [sto di-se porque o copistando percebe que, o retornar os olhos para o modelo, apés ter registrado na sua cépia a primeira ocorréncia da palavra em questio, seus olhos se fixam em uma palavra igual, mas em um ponto situado adiante no mo- delo, Vasconcelos (1943: 97), comparando dois incundbulos coevos da Histéria de Vespasiano — urn-com © texto castelhano Gevilha: Pedro Brun, 1499) outro com o texto portugués (Lisboa: Valentim Fernandes, 1496) —, verificou varios casos de salto-bordio. Confira-se abaixo a reprodugio de um ex- certo do capitulo VII em ambas as linguas: ¢ Gays el senescal se scordo dixo a Jacob: Yo quero fablar con Pilato; Jacob te dizo:wYo je con vos»; e amos a dos varse a Pilata} T fablaron le delante del templo de Salamon (Foulchi bose 1909: 14, itdlico de Vasconcelos). Eo mestre-slla acordou-se e disse a Jacob: Eu quero fallar com . E fallaron lhe diante do templo de Salamom (Perei- 1a, 1905: 47). 4 weraoDUCiO #1 Percebe-se que, no texto portugués, houve a supressio da seqiiéncia preservada no texto castelhano (cf. trecho em iti- lico): essa omissio den-se justamente porque 2 seqii@ncia es- tava entre as duas ocorréncias do nome Pilatos. Em se tratando da lirica medieval, no entanto, as modifi- cages nos textos podem ter uma origem mais complexa do que simplesmente um lapso. Como zssinala Cunha (1985b: 36), as modificages eram motivadas ainda por dois fatores: 4) a indiferenge dos escritores medievais pela propriedade pela originalidade da obra, que estimavam ver alterada ou acrescida (..); 8) a transmisséo oral, com a “*falsa reiterabilidade” que a ca- racteriza, ‘A atuagio desses fatores, a que Zumthor (1981) chamou cde movencia, vem naturalmente implicagSes para o processo de estabelecimento de textos dessa época, pois, como jé alertou Cunha (1985b: 36), é preciso levar em conta nfo apenas a existéncia de variantes (imputéveis 20s copistas) mas também de variagio, isto é, modificagdes decorrentes das diversas per- formances de uma poesia difundida por um século e meio sob a forma cantada, Segundo Azevedo Filho (1998: 268), também em textos da lirica camoniana é possivel perceber casos de“interferéncia da meméria em caso possivel de trans missio oral”, Modificagées nao-autorais em am texto podem, por ve~ es, irapor-se de tal maneira que acabam obtendo uma sorte mais afortunada do que a da forma genuina, Um caso muito interessante & o do texto da Carta de Achamento do Brasil, re= digida por Pero Vaz. de Caminha ¢ datada de 1500: Mattos ¢ Silva (1999: 134) chama a atengio para 0 fato de como um dado trecho da referida Carta, que tem circulado atualmen- 12» wrTnopUGKO A critica TEXTUAL te de uma forma quase cristalizada, simplesmente nio existe no original, pelo menos dessa forma. Nao haveri um falante culto de portugués que nio conhega a expressio “em se plantando, tudo da” (ou ainda “aqui tudo, em se plantando, di”), tradicionalmente considerads parte da Carta de Cami- nha. No texto genuino (f61. 13v, k. 19 a 21), porém, o que ha 6“em tal maneira he graciosa que querendoa aproucitar darsea necla tudo per bem das agoas que tem” (Caminha, 2001: 79). Segundo a referida pesquisadora, é bem provivel que essa forma derive de alguma leitura atualizada do texto original. De qualquer maneira, nio deixa de ser impressio- ante como esse bordio paraftistico acabou por se enraizar profandamente na cultura luséfona. (Os exemplos apresentados acima poderiam induzir 0 lei tor a achar que as modificagdes ocorrem fundamentalmente em relagio a textos de épocas muito pretéritas, mas nio é ver~ dade:a mobilidade do texto manifésta-se em qualquer €poca Exemplos bastante curiosos da mobilidade do texto no mun- do moderno sio apresentados por Garcia (2002:92-3) no que diz respeito & misica popular brasileira: flagraram-se jé diver- sos casos em que intérpretes modificaram o texto genuine. ‘Um caso muito interessante é o relativo 4 cangio Ultimo De- sejo, de Noel Rosa: na estrofe “E as pessoas que eu detesto/ Diga sempre que eu nfo presto/ Que o meu lar é 0 bote- quim” (cf. Chediak, 1991, vol. 2:124 e 128), muitos cantores alteram a tiltima frase para “Que o meu lar é um botequim”, subvertendo o sentido do texto, Se, no texto original, o can- tor considera que o seu lar é fora de casa, & 0 botequim:; no texto modificado a idéia suscitada parece ser a de que o seu lar é a sua propria casa, mas ela assemelha-se a unt botequim. Enfim, de diversas ordens sio a: razdes pelas quais os tex- tos se modificam; ¢ certamente varias razSes entrecruzam-se weTRoDugho = 13 no processo de transmissio de cada texto. Justamente por isso, quanto mais ciente o critico textual estiver dessas possibilida- des, tanto mais preparado estard para desvendar os mistérios da histéria da transmissio de cada texto. 1.3. CRITICA TEXTUAL, ECDOTICA E FILOLOGIA Quando se fala em atca textual, no raramente despon tam dois outros termos: exdéticae filologia. Nao ha atualmente consenso* sobre o campo de conhecimento que cada um des- ses trés termos designaria: ora sGo tratados como sinénimos, ota como denominagio de campos de conhecimento distin tos ainda que intimamente relacionados, No que se refere 4 expressio artica textual, costuma-se empregi-la em lingua portuguesa como designadora do cam~ po do comhecimento que trata basicamente dz restituigao da Jorma genuina dos textos, i. é, de sua fexagio ou estabelecimento (cf Houaiss, 1967, vol. I: 204; Azevedo Filho, 1987: 15; Spi- na, 1994: 82). Jo termo ecdética? tem sido utilizado para nomear 0 cam= po de conhecimento que engloba o estabelecimento de textos € 2 sua apresentagao, i. &, sua edigio (cf. Azevedo Filho, 1987: 2 Ente problema termincligico, de que ade pedece ca de que nto pdece apenas gua poragues, eamentedictdo por Carahoe iva (002 53:70), Seguao dle papas oo Foun, ums dingo ene ia texte abn dain, pelo maton de Reich (188531), onde "A Cita dow Texts és inca dn aenges oao ‘exoseti nets, dor meie de econhect-las ede remediation by sre de publeat os tet” (endo nous) 3. Cicala também, apenas em portopus forma edt 2 forma ets, orignsmente utd pot Bueno (1946: 14) e eommads por Spine (1977 1994) 4-4 gro dns o trmor ef «ple navn o pro dasa 0 exabelecinento ea apresenagto de um texto sopndo designs compris tipogrifica/eleténica e impressio. = = Pon 2 Ge ‘ 3 yor SNA 14» merecpucdo A eRITICA TEXTUAL 15; Spina, 1994: 82): nessa acepgo, 0 termo abarca nfo ape- nas 0 processo de restituigao da forma genuina de um tex- to mas também os procedimentos técnicos para apresentar © texto ao piblico. Se, para os dois vermos acima discutidos, hi um certo li- mite nas oscilagdes de sua definicio, pois, ainda que even- tualmente sejam empregados como sindnimos (cf., p. ex., Houziss, 1967, vol. I: 204), referem-se sempre ao processo de edigio de textos;o mesmo nio se verifica, porém, em relagio 20 termo filologia, para c qual circulam definigdes muito dis~ tintas, No Diciondrio Houaiss (2001: verbete filologia) regis tram-se quatro significados para essa palavra: ‘.estudo das sociedades e civilizagbes antigas através de do- cumentos ¢ textos legados por elas, privilegiando a lingua escrita e literdtia como fonte de estudos 2. estudo rigoroso do: documentos escritos antigos e de sua transmissio, para estabelecer, interpretar e editar esses textos 3.0 estudo cientifico do desenvolvimento de uma lingua ou de familias de Lingaas, em especial a pesquisa de sua his- téria morfologica e fonolégica baseada em documentos escritos e na critics dos textos redigidos nessas inguas (p. ex, filologia lating, filologia germinica etc.); gramtica hist6rica 4. estudo cientifico de textos (no obrigatoriamente antigos) ¢ estabelecimento de sua autenticidade através da compa- ragio de manuscritos © edigdes, utilizando-se de técnicas auxiliares (paleograia, estatistica para datagio, histéria lite riria, econdmica etc.), esp. para a edigio de textos Como se pode ver, os conceitos acima ora apresentam, grande afinidade com 2 defini¢io de ortica textual adotada nesta obra (cf significados 2 e 4), ora identificam-se ao estudo IteTRODUGAO « 15 de histéria da lingua (cf. significado 3). Numa concepgio ‘mais abrangente, relacionar-se-ia 2inda 20 estudo de civiliza- ‘ses, a partir de textos (cf. significado 1). A polissemia do termo filolagia nio é, porém, fendmeno modemo, pois, 20 que parece, na Grécia antiga, periodo em que teria sido cunhado, jé apresentava sentidos diversos. Do ponto de vista etimol6gico, a palavra filolagia origina~ se, em diltima instincia, do vocibulo grego @iAohoytar, com- posto de um radical vinculado ao verbo quis (“amar”) e de um radical relacionado do substantivo A630 (“palavra”): as- sim sendo, a idéia bésica originalmente expressa pelo temo em questio seria “amor palavra”. Esse valor semfntico bisico no escaparia de softer deslo- camentos, pois verifica-se o emprego do referido termo com ‘outros significados j4 em autores gregos dos sécs, IV-III a.C, Bailly (1950: 2076) lista os seguintes: 1."“desejo de falar, pala~ vrério” em Licénio, Ath. 548a; 2."‘gosto pela dialética” em Platio, Thaet. 146a; 3. “gosto pela literatura ou pela erudi- cao” em Aristételes, Probl. 18, Plutarco M. 645¢~ por exten- so, “dissertacao sobze um assunto literdrio ou de erudigi0” em Isécrates, Antid. O deslocamento por trés do sentido cons- tatado em Aristételes parece ser metonimico: suporia um trajeto como “palavra” > “sentenca” > “discurso” > “‘conheci- mento” > “erudi¢io”. A idéia de filologia como “erudi¢io” parece ser a que esti na base do uso que Eratéstenes de Ci- rene (¢. 276-196 a.C.), um dos responsiveis pela Biblioteca da Alexandria no Bgito, fez 20 se auto-intitular fildlogo. Segun- do 0 historiador romano Sueténio (c, 69-140 d.C.}, ao tra~ tar de Liicio Ateio Pretextato no texto De Grammaticis et Rhetoribus, Bratéstenes teria sido o primeiro a adotar a refe- ida denominagio no mundo helénico, enquanto Ateio o te- ria feito no mundo romano: 16 « wTRODUGAO A cAINICA THXTUAL Philologi adpellationem adsumpsisse videtur, quia sic ut Eratos- thenes, qui primus hoc cognomen sibi vindicavit, multipli va- riaque doctrina censebater (Tranquillus, 1960 (1991]:§10.4-5).. Jano mundo moderno, o terme filologia assurmiria, acade~ micamente, um significado mais restrito: testemunho disso é © fato de o alemio Friedrich August Wolf ter-se matricula- do na Universidade de Géttingen, em 1777, com o titulo Studiosus Philologiae. Segundo Herrero (1988: 17), Wolf teria definido filologia como o “estudo do que é necessério para conhecer a correta interpretagio de um texto literério”. No dominio lus6fono, o terme fiologia ainda no sée. XVII, parecia continuar polissémico, pois em Bluteau (1712 [2000], L.VI: 482) apresentam-se duas definigdes, uma mais ampla e outra mais restrita (nas trés linhas finais a seguir): PHILOLOGIA. He palavra Grega composta de Philos, Amigo, & Logos, discurso; & Philologia val o mesmo que Estudo das le- tras humanas, comecando da Grammatica, (que antigamente era a parte principal da Philologia,’ & proseguindo com a elo- quencia Oratoria, & Poetica, com as noticias da Historia an- tiga, & moderna, com a intelligencia, interpretagio, & Critica dos Authores, com a erudicio sagrada, & profana, & géralmen- te com a comprehensa6, &¢ applicegio de todas as cousas, que podem ornar 0 engenho, & discurso humano. Rigorosamente fallando, Philologia he a parte das sciencias, que tem por ob- Jjecto as palavras, & propriedades éellas. Um século depois 0 termo nio deixaria de designar aquele conceito amplo, relacionado & interpretagao de tex- 5. "Vests [Atco] ter asumido a denominagio de flélogo, porque asim como Era~ \éstenes, que primeio reivindicou este epiteta paras, era estado por seu co- shecimento rasiplae variada ivrxopugho «17 to, Isto € © que se infere da definigio apresentada por Sil- va (1813 [1922), t. 2: 446): PHILOLOGIA, s.f.A arte, que trata da intelligencia, e interpre- taglo critica grammatical, ow rhetorica dos Autores, das anti- guidades, historias, &c E possivel constatar, porém, que em principios do sé. XX esse termo poderia ser utilizado enfocando-se especial mente o estudo da lingua, ficando a interpretagio dos tex- tos como parte acesséria — isto depreende-se ce como Lei- te de Vasconcelos (1911 [1959: 9}) definia filologia portuguesa: (-) 0 estudo da nossa Engua em toda a sua amplitude, no tempo ¢ no espago, ¢ acessériamente da literatura, olhada sébre tudo como documento formal da mesma lingua. Essa concepgio perduraria ainda pelo mencs até meados daquele século, pois Silva Neto (1956a: 15) reiterou, décadas depois, uma definicio de filologia portuguesa, bastante seme- Uhante Aquela, mas apresentada por Carolina Michaélis em suas prelegSes de 1911/1913 (cE Vasconcelos, s.d.: 156) fo ex- certo a seguir aparece de forma idéntica nessas duas obras} (..) 0 estado cientifico, histérico e comparado da lingua nacio~ nal em téda a sua amplitude, no s6 quanto a gramitica (foné- tica, morfologia, sintaxe) e quanto & etimologia, semasiologia, etc., mas também como Srgio da literatura e como manifesta ¢i0 do espfrito nacional Por volta dessa mesma época, porém, a definigio de fi- lologia como estudo do texto também existia, pois Melo (1952: 54-5) defendia ser a filolgia portuguesa: (..) 0 estudo largo e profiindo dos textos de nossa lingua para atin- gir em cheio a mensagem intelectual ou artistica néles contida, COCO EOES Ok > 18 inTRODUGHO A CRITICA TEXTUAL Alguns anos antes, no entanto, também circulava uma definiggo bem mais ampla de filologia, pois Bueno (1946 [1959: 22}) assim a delimitava: © comhecimento da civilizagio de um povo, num dado mo- mento da sua histéria, através dos seus monumentos liter 0s (..) Contemporaneamente, o termo filolagia, como ja se viu mais acima pelo verbetz do Diciondrio Houaiss, continua a ser empregado de forma polissémica, mas hi uma tendén- cia a se associar esse termo ao estudo do texto, reservando- se 0 termo lingifstica para identificar o estudo cientifico da linguagem humana, Seguindo essa tendéncia, emprega-se aqui © termo filologia para designar o estudo global de um texto, ou seja,a explorago exaustiva e conjunta dos mais variados as- pectos de um texto: lingiistico, lterario, critico-textual, so- cio-histérico, etc Para finalizar esta segio seri de grande proveito conhecer tum pouco mais quais seriam as tarefas do critico textual, Uma visio expandida dessas tarefas foi exposta de forma bastante instrutiva por Carvalho ¢ Silva (1994: 59-60): * A definigio do conceito, do objeto, do método e das f- nalidades da ciéncia e das diferentes épocas da sua evolugio. + O estudo ¢ clasificacio dos textos ¢ das edigdes,¢, nos casos de diivida, a aveciguagio da sua antenticidade e a fan- damentada identificagio de textos apécrifos € de edigtes frau dulentas (contrafagdes, +O exame da tradigio textual e da fidelidade das transeri- $8es, cOpias e edicdes. + A pesquisa da génese dos textos,sem deixar de lado qual- quer elemento (inclusive frégmentos textuais) que possa con- tribuir para as conclusées sobre o labor autoral. ietnopucho «19 + A fixagdo de principios que devem orientar 0 trabalho da reprodugio e da elaboragio de tedos os tipos de edigées de textos. « A aplicagio de tais principios e normas gerais a diferen- tes tipos de textos, tendo em vista os contextos histérico-cul- turais em que estio integrados. + O estabelecimento de normas gerais e de normas espe- cificas para a conversio dos textos orais em textos escritos. * A indicagio dos pressupostos fiol6gicos para a boa rea~ lizagio da tradugio dos textos. * A organizagio dos planos de publicagZo das obras avulsas ou das obras completas de determinado autor, apoiada em ri ‘goroso levantamento de dados histérico-culturais e biobiblio~ grificos; e a formulaggo de normas editoriais para cada caso em exame. + A preparagio de edigdes fidedignas ow de edigSes criti- «as, enriquecidas, sempre que recomendivel, de estudos pré- vvios, notas explicativas ou exegéticas destinadas a valorizar 0 labor autora. 1,4. CONTRIBUICOES: Com certeza a contribui¢io mais evidente ¢ importante da exitica textual & a recuperasao do patriménio cultural escrito de uma dada cultura, Assim como se restauram pinturas, escul- tras, igrejas € diversos outros bens culturais da humanida- de,a fim de que mantenham a forma dada por sett autor in- telectual, igualmente restauram-se os livros em termos tan- to fisicos (recuperagio da folha, da encadernagio, da capa, etc.) quanto de seu contetido (recuperagio dos textos). Considerando que, apés se ter restituido a forma genui- na de um texto escrito, ele &, via de regra, publicado nova~ mente, contribui-se também, assim, para a fransmissao e pre- servagio desse patriménio: colabora-se para 2 transtnissio dos 20 + iwrnopucko A calrica TexTUAL textos, porque, a0 se publicar um texto, este torna-se nova mente acessivel a0 pablico leitor; e contribui-se para a sua preservaso, porque se assegura sua subsist8ncia através de re- gistro ern novos e modernos suportes materiais, que aumen- tardo sua longevidade. Nio é necessério muito esforgo para se perceber a vasta, extensfo do dominio do conhecimento humano que se be- neficia do exercicio da critica textual: basta dizer simplesmen- te que tem impacto sobre ‘oda atividade que se utiliza do texto escrito como fonte, Exemplificar cada uma dessas atividades, sa~ lientando 2 importincia da utiliza¢io de textos fidedignos em cada caso, é uma tarefa praticamente infindavel, dada a vas- tidio dessas atividades. Nao se pode, porém, deixar de men- cionar duas delas: os estudos lingiisticos ¢ literdrios. No dominio dos estudos lingistcos, os textos escritos, no raramente, si0 utilizados como corpus, isto é, fonte de dados para o conhecimento da lingua. Uma descri¢ao lingiifstica s6 tem validade se, de fato, os textos adotados como fonte de da- dos espelharem 0 emprego efetivo da lingua (ainda que ape- nas na sua modalidade escrita): textos com deturpagées levam ‘um lingitista a considerar, como atestagio de uma palavra ou de uma estrutura lingiistica, algo que é simplesmente erro de cépia € que, portanto, nio reflete o uso real da lingua. ‘Um caso digno de mengio «m lingua portuguesa 6 0 da palavra cofe: Machado (1995, vol. I:177) registra no verbete espectivo a ocorréncia dessa palavra jé no séc. XIV, mais es- pecificamente na Demanda do Santo Graal. Entretanto, sabe~ se, desde a resenha dessa edicZo feita por Piel (1945), que se tuata de um erro do editor: assim, embora tenha lido em sua primeira edi¢do “Pois asi disse Galvam, eu irei buscar, preto ou longe unt cofte(..)” (cap. XLI, § 271; Magne, 1944, vol. I: 354, itilico nosso), jé na segunda edigo leu correta~ eTRODUGAO # 2t mente “Pois assi é, disse Galvam, eu irei buscar, preto ou lon- ge wo soterre(...)” (Magne, 1970: 5, itdlico nosso). Ou seja, © que havia sido lido como um cafre era, na verdade, u 0 50- terre (i 6,“onde o enterze”), pois 0 cavaleiro Galvio estava procurando lugar para enterrar o rei Bandemaguz, que aca- bara de morrer. Ja no dominio dos estudos literdrios, os textos escritos so ainda mais essenciais, ja que sio a principal forma de expressio da literatura — principal, mas certamente nio a ‘inica, pois nfo se pode esquecer da literatura oral, em que, alias, se fandamenta a produgio poética primitiva no apenas grega na Antiguidade mas também vernacular na Idade Média. Considerando, porém, particularmente a li- teratura escrita, a contribuigio da critica textual esté em assegurar que © critico literério possa exercer sua fungao com base em um testemunho que efetivamente reproduz 2 forma do texto que © autor Ihe deu, ou seja, sua forma genuina, Ainda que se argumente que € legitimo realizar uma and~ lise literdria voltada para a forma como o pitblico-leitor per cebe um dado texto independentemente de sua forma ser genuina ou nio, tal axgumento nao invalida o fato de que é igualmente legitimo realizar outros tipos de anilise, como aquelas voltadas para 0 texto como ato de cria¢io literitia so- cio-historicamente contextualizado, caso em que é fundamen- tal saber se o testernunho do texto em estudo é ou nio fiel 3 forma que o autor Ihe deu Como exemplo ilustrativo para essa questio, pode-se citar, a anilise literiria do poema “Aporo”, de Carlos Drummond. de Andrade (1902-1987), realizada por Lima (1968: 188-9) ‘Apés apresentar uma transcrigao desse poema, da qual se re- ptoduz abaixo a primeira estrofe 22 « ierxgpucio A calrica textual Um inseto cava cava sem alarme perfiamando a terra sem achar escape. comenta © critico:““A escavagio do inseto perfuma a terra, ‘mas a escava sem perfurar, sem achar escape” (italico de Lima). Considerando a estro tal qual acima reproduzida, nio hé absolutamente nada que se possa objetar em relagio a0 co- mentérjo do eritico.C problema est, porém, no fato de que ssa estrofe apresenta um erro, pois a forma que Drummond (cf. Andrade, 1945: 54) havia lhe dado, como se verifica na primeira edigio da obra em que veio a lume (A Rosa do Pov), tinha como terceiro verso 0 trecho “perfurando a ter 12”. Como se vé, dianze do texto genuino, 0 comentirio do ctitico deixa de ter validade: 0 choque de idéias assinzlado, i. &,"escava sem perfurar”, simplesmente no existe naquela cestrofe — ha, na verdade, um refor¢o, pois 0 inseto cava ¢, por conseqiiéncia, perfura Como nio consta em Lima (1968) a edigio utilizada como modelo para a transcrigo que reali- zou, nio é possivel verificar a origem da forma nio-genui- na. Independentemente da origem, é fato que a forma “per~ famando” nio parece ser atribuivel 2 Drummond, o que significa que nio pode ser considerada em uma anilise de abordagem s6cio-histérica, em que se leva em conta a von- tade autoral. 1,5. TRANSDISCIPLINARIDADE ‘Unna das caracteristicas mais instigantes da critica textual sua transdisciplinaridade. Para o efetivo exercicio da fixagio de textos sempre nezessirio um conjunto muito diversifi- cado de conhecimentos, o que obriga o trinsito por diversas reas do conhecimento. raopugho «28 Hi algumas reas em especial que tém impacto direto so- bre 2 atividade do critico textual: a paleagrafia, a diplomatia, a codicologia, a bibliografia material e a lingilstica. 1.5.1, Paleografia A paleograia pode ser definida, de uma forma bastante bi- sica, como o estudo das exeritas antigas. Modernamente, apre- senta finalidade tanto teGrica quanto pragmitica.A finalida- de teSrica manifesta-se na preocupacio em se entender como se constituiram sécio-historicamente os sistemas de escrita; jf a finalidade pragmitica evidencia-se na capacitacio de lei tores modernos para avaliarem a autenticidade de um do- cumento, com base na sua escria, e de interpretarem ade- \ guadamente as esctitas do passado. Sua constiuigio como campo de conhecimento sistema- tizado costuma ser situada no século XVII. Em viagem pela Europa, o jesuita Daniel van Papenbrocck (1628-1714) teria constatado a existéncia de muitos documentos falsos, o que 0 teria levado a escrever a obra Propylaeum Antiquarium circa Ver ae Palsi Discrimen in Vetustis Membranis (Antuérpia, 1675), onde apresenta critérios pata discernir documentos falsos de verdadeiros: como subsidio a esse julgamento, Papenbroeck apresenta uma classficagio das dife-entes escrtas, Tentando responder is criticas deste 2s documentos da Abadia de Saint- Denis, o monge beneditino Jean Mabillon (1632-1707) redi- git a obra De Re Diplomatica Libri IV (Pacis, 1681),em que avanga ainda mais na investigagio dos tipos de escrita. O termo que nomeia esse campo de estudo s6 apareceria com a obra Palacographia Graeca Sive de Ortw et Procesu Litterarum Graecarum Patis, 1708), escrita pelo também beneditino Ber- nard de Montéaucon (1655-1741). ‘A relevincia da paleografia para o critico textual é bas- ( evidente: para se fixar a forma genuina de um texto, 24 « mwrmonucho A enitica TexTUAL € necessério ser capaz de decodiicar a escrita em que seus testemunhos estio lavrados. £ muito comum, aliés, existirem edigdes de texto que apresentam falhas decorrentes de equi- voco na leitura do modelo por parte do editor. Dada 2 importincia das informnagdes de natureza paleo gréfica para a compreensio da leivara das fontes tealizada pelo ctitico textual, pode-se inchuir em edigdes de texto mais exu- ditas uma breve segio dedicada a comentirios dessa natureza, Nessa sego costuma-se abordar aspectos como os seguintes: 2) classificagéo da escrita, localizagio e datagio; b) descricio sucinta de caracteristicas da escrita, a saber: 2 morfologia das letras (sua forma), 9 seu trasado ow ductus (or~ dem de sucessio e sentido dos tragos de uma letra), 0 éngulo (telagio entre os tragos verticais das letras e a pauta horizontal da escrita), 0 médulo (dimensio des letras em termos de pau- ta) € 0 peso (relagio entre tragos finos e grossos das letras); ©) descrigao sucinta do sistema de sinais abreviativos em- pregado na referida escrita; 4d) descrigo dos outros elementos nio-alfabéticos exis tentes e de seu valor geral: nfamercs, diactiticos,sinais de pon- tuagio, separagio vocabular intralinear ¢ translinear, paragra~ fagdo, etc; ) descrigo de pontos de dificuldade na leitura e as so- lugdes adotadas. ‘Embora haja hoje em dia disponivel no mercado biblio- grafia introdutéria em paleografia relativamente variada (p. ex., Batelli, 1999; Stiennon, 1999; Cencetti, 1997; Bischoff, 1997; Terrero, 1999), obras em lingua portuguesa ou voltadas para a escrita latina no mundo luséfono sio muito raras: den- tre 0s textos mais gerais, podem-se citar Cruz (1987), Santos (1994, 2000) ¢ Berwanger & Leal (1995). Sua leitura, porém, deve ser complementada com a pritica efetiva de contato com textos lavrados nas mais diferentes escritas, o que pode ser neraopucno « 25 feito utilizando-se as reprodugdes fac-similares presentes nos Albuns de paleografiat voltados para documentos portugue~ ses e/ou brasileitos, tais como Burnam (1912-1925); Costa (1997);Valente (1983); Nunes (1984); Dias, Marques & Ro- drigues (1987); ¢ Acioli (1994) ~ infelizmente quase todos ‘esgotados, mas encontréveis em bibliotecas académicas.. 1.5.2. Diplomatica Pode-se definir basicamente a diplomatica como o estudo de documentos (em especial, os juridicos). Deve-se entender aqui por documento, em um sentido estrito, toda notlia escrita de algun acontecimento. ‘As origens da diplomitica estio fortemente entrelagadas, com as da paleografia, jf que os tratados mais antigos visavam a orientar a avaliagdo da autenticidade de documentos legais, tanto através de sua escrita quando de sua formae de seu con tedido. Seu estabelecimento como campo de conhecimento sistematizado remonta, assim, 3 j4 mencionada disputa entre Papenbroeck e Mabillon (podendo ser atribuida a este, em sua Jf teferida obra de 1681, cunhagem do nome desse campo). Os comhecimentos diplomiticos so especialmente rele~ ‘vantes para 0 critico textual que edita documentos.A decifra- io © a reproducio de um documento podem ser realizadas ‘com mais seguranga e propriedade quando se tem conscién- cia de como eram produzidos os documentos, em que clas- ses se distribufam e como se estruturavam inte:namente, so- bretudo porque apresentavam constantes formais em termos tanto estruturais quanto lingiisticos. 16.De mule usldade sto timbém os dicionirios de abrevatra: para abrevacuras latinas, pode-se consltar Coppell (1995)je pas portogucrs, Nunes (1981) e Fle- chor (1991). ice. fompilagas ole maniucrites, [kagistin ove Be leva. ole nist « Bigg anhiar/Oi« antign oe aulov a dice Forma Coratbouiticn, elo Marustrite tun prqaminke, himetiow a cle Livve motores 4 Tr ctaneminach. fier Trcalercany, om LIA 5 mm 26 « mwetnopucko A entrica T=xTUAL ‘Tratados introdutéios modernos de diplomitica aplica~ dos especificamente a documentos portugueses parecer ine~ xistir, mas podem-se obter informages relevantes em Mat~ ques (1963-1971, vol. 1: 823-8), Berwanger & Leal (1995) Cruz (1987); uma visio histérica recente dessa disciplina em Portugal aparece em Coelho (1991). Dada essa escassez no dominio luséfono, pode-se recorrer & leitura de obras basea das especialmente no dominio hispinico, o que permite ain- da que se tenha uma visio ibero-roménica do tema: atual- mente encontram-se disponiveis manuais espanhéis como 0 de Tamayo (1996) e Terrero (1999). 15.3. Codicologia A codicologia consiste basicamente no estudo da thnica do livro manuscrito (ji. &, dc ebdice). Esse termo, que tem sua pa~ ternidade reivindicada por Dain (1975: 76), é empregado atualmente, porém, em um sentido mais estrito do que aque- le postulado por quem o cunhou. Dain (1975:77) conside- ava como misses ¢ dominio da codicolagia a historia do ma~ nuscrito,a historia das colegdes de manuscritos, investigagses sobre a localizacio atual dos manuscritos, problemas de cata- logacao, repertérios de catdlogos, 0 comércio dos manuscritos, sua utilizagio, etc.,sendo do escopo da paleografia o estudo da escrita e da matéria esctiptéria, da confecrio do livro e de sua ilustragZo, ¢ 0 exame de sua “arquitetura”;mas obras mais re~ centes tendem a redistribuir as tarefas dos dois campos do co- nhecimento mencionados: Lemaire (1989: 3) postula dever a codicologia fixar-se sobretudo em compreender os diversos aspectos da confeccio material primitiva do cédice. Para o critico textual, a codicologia é de grande relevin- cia, pois fornece informacées que permitem compreender al- gumas das razGes pelas quais os textos se modificam no pro- INTRODUGAO « 27 cesso de sua transmissio. Saber, p. ex., que nos antigos recin- tos em que se realizavam as cépias (chamados scriptoria) havia © babito de se desmembrar um cédice para que suas partes (0s cadernos) pudessem ser reproduzidas simultaneamente por diferentes copistas permite ao critico textual elaborar hi- péteses sobre por que certas c6pias tém seu texto em ordem diferente de outras: possivelmente porque, a0 se recompor 0 cédice utilizado como modelo, teriam ocorrido equivocos | na ordenagZo de suas partes, ‘Além de permitir uma compreensio mais profunda do processo de transmisséo dos textos, os conhecimentos codico- Jégicos também sio utilizados mais pragmaticamente na des- crigdo de cédices,a qual deve constar na edigio de textos pre- servados em manuscritos. Como orientago para essa descri- Gio codicolégica, apresenta-se na pigina seguinte um guia bisico’ (outros modelos podem ser consultados em Bohigas, Mundé & Soberanas, 1973-1974, e em Ruiz, 1988: 316-40). S/O guia de descricao apresentado a seguir cobre aspectos es- senciais de um cédice, mas pode naturalmente ser estendido com a inclusio de detalhes que a tomem mais abrangente: po e-se, p.ex.,incluir um diagrama com a composicio dos ca dernos, identificando a natureza das faces dos pergaminhos (carne x pélo), rebarbas de flios sem sua parte solidétia, ir- regularidades, etc.; podem-se ainda acrescentar © incipit € 0 explicit de cada texto, aspecto importante para textos até en- to desconhecidos; ¢ diversos outros aspectos. Por outro lado, & possivel, em nome da concisio, suprimir alguns dados ¢ eli- minar os titulos dos itens de descrisio, organizando assim as informagdes em um parégrafo bastante compacto (sistema cortente em grandes catilogos de manuscritos). 7. Certamente muitos dos tsemos empregades neste guia no so de dominio ger, smas grande parte deles sed expicada ma segic 3.2, mais adlante 28 « wwTRODUGKO A cAITICA rexTUAL Guia Basico de Descrigio Codicolégica 1. Cota: cidade em que se encontra 0 cédice; nome da insti- tuigio; colegio de que faz parte; e nimero ou sigla de identificagio. 2. Datagdo: explicita (transcrever, informando folio ¢ linha em que consta) ou inferids (apcesentar justificativa). 3. Lugar de origem: explicito (xanscrever, informando f6- lio ¢ Tinka em que consta) ou inferido (apresentar justifi- cativa). 4, Folha de rosto: transcrigio. 5. Colofio: transcrigio. 6. Suporte material: papiro (pavrdceo), pergaminho (mem- bra-ndceo) ou papel (cartéceo) ~ sendo membransceo, infor- ‘mat animal, espessura, cor e obediéncia & Lei de Gregory; sendo carticeo, informar tipo, Inhas-d’agua (directo e dis- tncia entre pontusais e vergaturas),filigrana (descri¢do da figura). 7. Composigao: niimero de folios mimero ¢ estrutara dos a derrios (bina, emi, quaterno, ex.) formato (in-flio,n-A',in-83, etc) € dimensio dos flios (altuna x laxgura, em milimetre). 8. Organizagio da pagina: dimensio da mancha; ntimero de colunas; nfimero de linhas; gautado; numeragio (fllagao [namero s6 no recto do folio) ox paginagéo [nimero no ree to € no vers)); reclamos (auséncia ou presenga, localizacio na pégina e feeqiiéncia); assinataras (presenga ou auséncia, sistema) 9, Particularidades: miniaturas ‘capitulares ornamentadas); ilumimuras; marcas especiais (carimbos, ex-lbrs, assinaturas, pessoais, ec). 10. Encadernagao: tipo (original ou nio-original); dimensio; material; natureza e cor da cobertura; decoracio; texto na capa; nervos no lombo. 11. Contedido: identificagio dos textos do cddice por flio(s), informando autor e obra. 12. Descrigdes prévias: bibliograia. InetnoDUGAO « 29 Como sugestio bibliogrifica introdutéria sobre codi- cologia, podem-se citar Dain (1975), Petrucci (1984), Ruiz (1988) e Lemaire (1989), além dos ricos vocabulirios da area preparados por Muzerelle (1985), em francés, mas ja com traduedo para 0 espanol datada de 1997, e por Arnall i Juan (2002), em catalio, porém com indice de correspondéncia para o espanhol, francés ¢ italiano, No dominio luséfono, o Gnico volume publicado com dados afins parece ser 0 de Nas- cimento & Diogo (1984). 1.5.4. Bibliogratia material Um campo de conhecimento anilogo 2o da codicologia & a bibliografia material, que consiste no estuido da téenica do li- ro impresso, Embora os estudos sobre imprensa em si nfo sejam tio 1e- centes, data de pouco a constituigio de uma abordagem des- se tema diretamente ligada aos problemas de transmissio dos textos. Muitos dos trabalhos que contribuiram para essa nova abordagem derivam especialmente da experiéncia de estudio- 408 de lingua inglesa na pratica de edi¢ao ¢ anilise de textos literrios dos sécs. XVI e XVII. Dente esses estudos, certa- mente destacam-se trabalhos como Greg (1914), McKerrow (1927), Bowers (1949, 1959, 1964) e Gaskell (1972). Como jé disse metaforicamente Greg (1914 [1967: 47)), € apenas através da aplicagio de um métode bibliogréfico rigoroso que a dltima gota de informagio pode ser extraida de um documento literério. Dentre os instrumentos desse método, incluem-se naturalmente as técnicas de descri¢io Dibliogréfica, as quais jé foram minuciosamente tratadas por [Bowers (1949). Embora no haja aqui espaco pata discutir de- {talhadamente os diversos aspectos a que se deve dar especial 30 w IWrkoDUCKo A cAITICA TexTUAL tengo na investigacio do livro impresso, nfo se pode deixar de listar itens que devem ser observados em sua descrica Guia Basico de Descrigao Bibliogréfica @ Identificagao: nome do autor; titulo da obra; nome do edi- tor;local de publicagio; nome da editora e data de publicacio. 2. Folha de rosto: transcrigio. 3. Colofiio: transcrigio, 4. Suporte material: tipo de papel; linhas-d’gua; filigrana. 5. Composigo: niimeros de folios ou de piginas; nimero e estrutura dos cademnos; formato ¢ dimensio dos folios, Tipografia: dimersio da mancha; nimero de colunas; ni- mero de linhas; espécie e dimensio dos tipos; capitulares; numeragio; reclamos,assinaturas, 7. Particularidades:decoracdes;dustracdes; marcas especiais. 8. Encadernagio: tipo; dimensio; material, natureza e cor da cobertura; decoragio; texto na capa; nervos no lombo. 9. Contefido: identificacio das partes do texto por pigina, (@ Exemplar examinado: cota ¢ nome da instituigio de- tentora, (texto critico uma minuciosa descrig! 11. Descrigdes prévias: bibliografia, ‘Apesar de o livro manuscrito se constituir por um pro- cesso distinto do impresso, hé inegavelmente diversos aspec~ tos comuns a ambos, como se pode verificar através da com- parago deste diltimo guia e do exposto na segio anterior. Para exemplo interessante de descrigéo de livro manuscrito e de impresso de uma mesma tradigio em Iingua portuguesa, po- de-se consular 0 primeiro volume da edigio das Vidas e Pai- 8, Como orientagio pars a realzagio de uma descrigio biblogeifica,podemse ain ‘ha consular Diss (1994) os dicionrios de expecalidade de Faia & PerieZo (1988) fe de Sousa (1989). ivtRopucho # 31 -xées dos Apéstolos, de responsabilidade de Cepeda (1982-198! como sua edi¢io se baseia no texte presente no cédice alco- bacense CCXXXII/280 ¢ no impresso de 1505, precede 0 de ambos Naturalmente uma descri¢o bibliogréfica bem executa- da pressupSe familiaridade com a sva terminologia, ainda que esta nio seja totalmente consensual. Para se ter uma idéia dos, termos empregados na identificagio das partes principais de ‘um livro impresso, pode-se consultar a descrigio figurativa a seguir (figura 3), adaptada para 0 portugués por Nascimento & Diogo (1984). As seis obras citadas logo no inicio desta seo sio suf cientes para suprir 0 interessado de informagio sobre a bi bliografia material, mas baseiam-se fundamentalmente no livro impresso em lingua inglesa; para os livros impressos em lingua portuguesa, nfo parece haver até 0 momento nenhu- ‘ma obra introdutéria que siga a abordagem preconizada por aqueles autores. Existem, no entanto, bons titulos traduzidos para o portugués sobre o livro impresso, Cf, p. ex., McMur- trie (1982) ¢ Febvre & Martin (1992). Especificamente sobre a histéria da imprensa em Portugal, pode-se consultar, p ex, Anselmo (1981, 1991); e,no Brasil, Martins (1996), Sodré (1966), Hallewell (1985) ¢ Paixio (1996). 1.5.5, Linglistica A lingifstica, entendida como estudo cientifico da linguagem humana, tem, de todas as areas j6 citadas, a relagio mais ébvia € essencial com a critica textual, pois os textos tém como pi- lar a Kngua, Certamente primeiro aspecto que deve ficar evidente & 0 fato de que a adogio de uma mentalidade purista ou nor- maativista quanto a lingua no exercfcio da critica textual tem 32 + INTRODUGKO A GRIT CA TEXTUAL Figura 3 — Patter principais do livro (Fonte: Nascimento & Diogo, 1984: 98) saras de essinatore 2 escola (Gbiide ‘com fleres ae madin 1) edema os 25, tra de cantina (flso lmbo) ronda 27. tale 7 corte de diantsce, gocin 28. acho ). corte de pe 29. genta meio lombo 30. gravure . Tomko 31, ugem interior ou medians 5. entrenertos 32. endel (aio coafundir com forse ‘stereeito) 5. séalo 33. natgem de exer a 34. coluna de texto scieas 35. tranco de cepargio de texto cute 36, rargem de corte i plano (prime ou anteior gs 37. sbrecapa, sobrecobert, camisa ‘segunda eu posteiot) 38. boo 29, damnit, Bisa 39. sarstm de pe ‘efeitos nefastos.A confusio de perspectivas (cientifica x pu- rista/normativista) compromete seriamente o resultado no estabelecimento da forma genuina de um texto, pois 0 criti- nuTRODUGAO «33 ‘co incauto acaba por fixar uma forma do texto em perfeita consonincia com os padrées preconizados pelas gramticas normativas, mas completamente dissonante dos padres ge- nuinamente empregados pelo autor do texto em edicao. Na realidade, é verificadamente comum esse tipo de adul- ‘eragio de textos no processo de edigZo, pois com freqiiéncia procura-se fazer com que o texto editado se encaixe nas nor~ mas das graméticas tradicionais. Melo (1988: 18) cita como exemplo de “correcio” de formas genuinas o fato de muitos editores modificarem, no texto de Iraema, de José de Alen- cat, a seqiiéncia genuina “Onde vai” (no cap. I) por “Aonde vai” ~ certamente para subordinar 0 uso do advérbio 4 nor ‘ma tradicional de que onde se utiliza para “sienagio” e aonde para “diregio™. Dentre os varios ramos da lingiiistica,pode-se dizer que aquele que tem mais impacto sobre a edigio de textos & 2 lingitsticahistbrica, pois a critica textual debruca-se amitide so bre textos do passado, O desenvolvimento dos estudos diacré- nicos tem contribuido para a formagio de uma visio mais realista e abrangente da histérie das linguas: atualmente os es tudos diacrénicos dialogam com diversas éreas, permitindo fama percepgio mais agugada dos fenémenos lingiifsticos — Jcomo exemplo, pode-se citar a importincia dos estudos so ciolingiiisticos na compreensio da vatiacio lingiistica e, em especial, no reconhecimento da heterogeneidade como ca~ racterfstica constitutiva da linguagem (cf., p. ex., Weinreich, Labov & Herzog, 1968; e Labov, 1972). Embora todo critico textual deva necessariamente ter uma formagio lingtifstica ampla e variada, para a edigio de textos 9. Norms, ais, em desacordo com a propria hstria do advérbio anade, que desde sua origem no sc. XIV expresiia os valores de"stuagio”e dieqio" (cf, Cam- brs, 20023 VIA y 34 « wtRopucho A CRITICA TEXTUAL do passado deve ainda possuir conhecimento aprofundado da lingua da época. A aquisicio desse conhecimento dé-se efe- tivamente, em especial, pela leivura continuada de textos da época, fidedignamente estabelecidos.A esse propésito, diz Melo (1952: 53): Urge que 0 fildlogo e o lingtiista procurem conhecer @ lingua, isto & 05 textos, € no os gramiticos, muito menos os gramati- ‘queiros: conhecer a ingua, estudando-2 com olhos de técnico ¢ com olhos de artista, Sem divida @ muito mais ficil conhecer meia diizia de compéndios rangosos ¢ sonolentos do que conhe= cer a lingua diretamente, pelos seus documentos e monumen- 105,— 0 que demanda uma vida inteira de devogio,— mas é éte 0 sinico e verdadeiro caminko do filélogo (itélico de Melo). Embora nfo se posa deixar de admitir que as graméti- cas tradicionsis sejam relevantes no estudo de lingua” (pois registram padrdes que atua{rajm de forma coercitiva sobre ela), nio se pode pensar que seu conhecimento 6 suficiente para se saber como a lingua efetivamente foi ou é usada: h, na verdade, nessas gramiticas uma mescla de descrigio de fa tos reais de lingua e de padrdes preconizados, mas nao neces- sariamente adotados pelos autores de textos. Modernamente, no antanto, além da leitura de textos do passado, o conhecimento da Kingua de épocas pretéritas pode ser complementado com a consulta a obras da especialidade, como maniais introdutéros (p. ex., Bueno, 1955; Silva Neto, 1957b; Melo, 1971; Camara Jr., 1976; Teyssier, 1982; Fon- seca, 1985; Castro et al.,1991)" ¢ gramaticas histdricas (p.ex., 10, Para o conhecimento de grarcica da lingua portuguesa de 1500 2 1920, pode- se consular a extensa list prparada por Cardoso (1994: 19-139) [L. Também de itersse sio volumes da Hlstris de gue pertiguta,coordena- dos por Segismand Spina: Sine (1987) Paiva (1988), Morel Pino (1988), Mar- sins (1988), Pinto (1988) e Hlauy (3965). Intaopucko « 55 Nunes, 1919; Said Ali, 1931; Coutinho, 1938; Williams, 1961; Huber, 1986). Aos titulos listados, poderiam ser natu- ralmente acrescentados nao apenas outros relevantes mas tam- bém estudos de tema particular, aqui omitidos em nome da concisio, Nio se pode, no entanto, deixar de fazer mengio aos diciondrios, instrumentos de grande importincia: ha os especi- ficamente etimol6gicos (p. ex., Machado, 1952; Cunha, 1982; Corominas & Pacual, 1980-1991) e aqueles nio necessaria- mente etimolégicos mas de intereste histérico (p. ex., Blu- teau, 1712-1721, 1727-1728; Silva, 1789; Viterbo, 1798; Sil- va, 1813): Como os dicionarios tém sempre suas limitagdes, a consulta a glossizios (que eventualmente acompanham a edi- ‘gio de um texto) costuma ser de grande auxilio: além dos vo- lumes da colegio Diciondrio da Lingua Portuguesa: Textos e Voca- ‘uldrios (Berardinelli, 1963; Gomes Filho, 1963-1964; Pereira, 1964; Rossi, Mota, Matos & Sampaio, 1965; Pereira Filho, 1965; Cunha, 1966; Grillo, 1966; Cunha et al., 1966; e Be- ardinelli & Menegaz, 1968), ha amplos glossérios como do Cancioneiro da Ajuda (Vasconcelos, 1920), das Poesias de Sé de Miranda (Carvalho, 1953), das Cantigas de Santa Maria (Mettmann, 1972), da Vida e Feites de Jilio César (Mateus, 1974-1992) } capiTuLo 2 BREVE HISTORICO DA CRITICA TEXTUAL A historia da critica textual 6 bastante complexa, ¢ no apenas porque suas origens remontam para mais de dois mil anos atrés: seu progresso deu-se através de um conjunto de agées que ora a tangenciavam, ora a abordavam diretamente, além de ter sido exercida historicamente sobre fontes de na- tureza distinta — primeiramente sobre textos pagios gregos e, em seguida, latinos; depois sobre textos religiosos (em espe- ial, o Novo Testamento); , pot fim, textos em verniculo (i.&, em linguas no-cléssicas). Foi, enfim, desse conjunto hetero- génco de atividades que se constisuiram técnicas, se sedimen- taram priticas, se consolidaram métodos ¢, inevitavelmente, se formaram polémicas. Justamente por ser tio complexa, essa historia nio po- deri ser exposta aqui de forma minuciose, restando como al ternativa abordé-la através de algumas de suas figuras mais ‘marcantes. Para falar dessas figuras, serdo retomados aqui al- guns dos dados ricamente coligidos e comentados, em espe- cial mas nio apenas, pot Pffeifer (1998, 1999) e por Reynolds & Wilson (1995). ( ( CeCe’ 38 « usTRODUGHO A calricA TEXTUAL 2.1. DA ANTIGUIDADE A iDADE MEDIA O primeizo grande momento da critica textual, pelo me- nos no Ocidente', situa-se na époce dos primeiros diretores da Biblioteca de Alexendria (sécs. Ill aT a.C) Por ordem de Ptolomeu I, rei do Egito (de 306 2 283 a.C.),se teria constituido na cidade de Alexandria, situada no delta do Nilo, um centro de estudos, oficialmente chamado de Museum (um templo em honra das Musas, portanto), onde se reuniamn estudiosos de diversas areas. Em sua biblioteca, ha- veria jé na primeira metade do séc. IIL a.C. por volta de cen- tenas de milhares de rolos de papiro, aos quais se agregariam posteriormente outros tantos mais em um anexo conhecido como Serapeum. Como nio se sabe quantos volumes seriam parte de apenas uma obra, nem quantos seriam cépias de uma mesma obra, 0 néimeto de titulos existentes na biblioteca constitui um mistério.A destruigdo da biblioteca deu-se em 47 a.C., em um incéndio ocorrido durante a guerra de Jélio ‘César contra o Egito, Dentre 0s diretores dessa biblioteca, destacam-se, no cam- po da critica textual, Zenddoto de Bfeso (c. 325-234 a.C.), Arist6fanes de Bizincio (c. 258-180 a.C.) e Aristarco de Sa- motricia (¢. 216-144 2.) ‘Una das contribuigdes desses alexandrinos, que se dedi- caram em especial 3 obra de Homero, mas nfio apenas, esti na constituigéo de um sistema de critica (gr. BLdpOwarG, i. & “corre¢io”) baseado ra utilizagio de sinais com a finalidade 1 volts de 2800 a.C, a fos enorlteritios) em table- 4, Pfeifer (1998: 18) asinala ue jira antiga Sum vera esponsives pela preseswagdo de textes ice tes de aegil, of quis corrigriam erres de eseibas. 2. Entre Zenddoto e Ariane, também teiam divigido instivigfo os n menos fimnoses Apolinio de Redes Sé.tI.G) e Bratésenes de Cirene (¢ 276-196 a). BREVE HISTORICO DA CRITIZA TEXTUAL # 39 de explicitar seu julgamento quanto A genuinidade do texto, Desde Zenddoto (introdutor do primeiro dos sinais, o ébelo), cese sistema foi cada vez mais se ampliando e, com o passar do tempo, adotavam-se no apenas novos usos para antigos sinais como também novos sinais’. Para se ter uma idéia desse sis- tema, apresenta-se abaixo uma descrigio dele com base no uso que faria Aristarco, extraida de dados fornecidos por Gayo (1979-1980: 21-3), com algumas retificages aqui: 4) bbelo (—): verso apécrifo; ) anti-sigma ( > ): verso deslocado; ©) asterisco (3X): verso incorreto repetido em outro lugar; 4) diple (>): remissio a comertério; €) diple periestigmene ( >: ): verso distinto em relago ao tex- to de Zenédoto e em desacordo com outros comentadores; £) estigma ( * ): verso duvidoso ou suspeito; g) estigma com anti-sigma (x >): verso apés 0 qual se ha- via dado a0 texto nova disposigio; ¢ h) sigma pontuado (C +): verso(s) transferido(s) para outro ponto do texto. Além desses, podem-se citar ainda outros aparentemen- te nfo empregados por Aristarco: 0 cerdunio (I), utilizado por Arist6fanes para assinalar seqiiéncia de versos apéctifos; © anti-sigma com estignsa (> +), enapregado por outro alexan- Grino, AristOhico, para marcar alterag0 na ordem de versos; © anti-sigma periestigmene (+> +), presente em dois manuscri- tos dos sécs. IX-X com a Iitada (Venetus A e Cdice Ve), mar- cando conjunto de versos com mesmo sentido, mas com di- versas formas ¢ de dificil escolha; o dbelo periestigmeno (+), presente no referido Venetus A, indicando correcSes consi- 3. Isidoto de Seviha (570-636 d.C) dedica, em suas Eximolis, uma seco espe- cial (0 cap. XX, intiulado Das sigs das seengas)& desceigio dees snas ¢ de feu valores, 40 « wwrnopuczo A calica rexTUAL deradas acertadas; 0 dbelo com astersco (— x), também no Venetus A, identificando palavras cujo lugar no se acha; e, por fim, 0 asterisco com Sbelo (X—). existente no jé mencio- nado Cédice Ve, marcando supressic de asterisco. Entre os principios que Aristarco pregava no exercicio da exftica, consta 0 de que cada autor & seu melhor intérprete, ou seja, deve-se esclarecer uma passagern com outras passagens do mesmo autor — aspecto este que, de certa forma, anteciparia © tradicional critério do usus sibendi (tratado mais adiante na pp. 156), jf que também era empregado na discussio da genui- nidade de certas formas lingiiisticas dos textos, especialmente homéricos. Como assinalam Reynolds & Wilson (1995: 15-25), deve- se reconhecer que a atuacio dos alexandrinos teve impacto significative sobre a tradicdo dos textos gregos clissicos: no apenas fixaram a forma dos textos de autores comumente li- dos, como também se empenharam na imposigdo dessa for ma como fonte para c6pias posteriores; além disso, criaram auxilios 20 leitor, através de transliteragio de textos em outros alfabetos para o utilizado na época, do melhoramento do sis- tema de pontuacio e da eriagZo de um sistema de acentuagio (este, atribuido a Aristéfanes). As dificuldades na fixagio de textos fidedignos levaram-nos ainda a elaboragio de comen- trios para discutie problemas e propor interpretages: por isso, mesmo que certos estudiosos nio tenham produzido edigdes cxiticas a0 longo de sua vida, podem-se ver suas contribui- ‘Ges para a critica textual, em alguns casos,na discussio de va- riantes textuais em seus comenticios, Convém lembrar ainda que 0 sistema alexandrino, bascado em sinais e em comenti- rios, fol importante para assegurar a -ransmissio 4 posteridade do que existia (mesmo do que nfo fosse tido na época como genuino), pois, em vez de suprimirem ou modificarem 0 que considerassem nio-genuino, apenas o assinalavam. DREVE HISTORICO DA CRitIcA TEXTUAE « 41 Rivalizaria com 5 alexandrinos o estdico Crates de Ma- los (c 200-140 a.C.), diretor da Biblioteca de Pérgamo (ci- dade da antiga Asia Menor, atualmente territério turco), pro- vavelmente fundada por ordem do rei Eumenes If (197-159 4.C.). Comentador de textos de Homero, Crates diferiria de Aristarco em suas leituras e interpretagdes. Sua oposicio, alis, se consubstanciaria em uma das grandes controvérsias lingiiisticas da Antiguidade (cf. Robins, 1983: _5-7): 0s ale~ xandrinos defendiam 0 principio da analogia (organizacao re- gular da lingua), enquanto os estéicos sustentavara o principio da anomalia (organizacio suscetivel a irregularidades). Natu ralmente essas concep¢Ges refletiam-se no estabelecimento dos textos do passado: Gayo (1979-1980: 20) assinala que Aristarco tera preferido as formas analégicas no estabeleci- mento do texto homérico, regularizando a forma dos lexe- mas e das desinéncias nominais e verbais. No mundo romano, merecem especial atencio Marco Te- rincio Vartio (116-27 a.C.) M. Valério Probo (20-105 4.C.), embora L. Elio Estilio (sécs, II-T a.C.), que teria realizado es tudos sobre Plauto nos moldes alexandrinos, patega ter sido © primeiro dos latinos a empregar os sinais criticos alexandri- nos. Varrio, dentre cujas contribuigées esti o estabelecimento do canon das pegas de Plauto tidas como genuiras, reservava em seu paradigma de estudo do texto um espaco proprio para © exercicio da critica:é o que se depreende de sua divisio des- se estudo, de acordo com Elia (1995: 83), em lectio (leitura ex- pressiva), enamatio (explicagio das passagens obscuras), emen- datio (revisio € corregio) e iudicium (comentitio litersrio), sendo que a emendatio era especificamente definida, segundo Reynolds & Wilson (1995:30), como recorrectio ertonum qui per scripturam dictionemve fiunt (i. 8, \corregio dos etres que se fa- zem pela escrita e pela digo”).

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